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Biografias no campo de batalha: a resistência monárquica nos primeiros anos da

República no Brasil
Jaqueline Rodrigues de Oliveira1

Resumo

Este artigo tem como objetivo a análise de duas biografias escritas durante os primeiros anos
da República brasileira – Um Estadista do Império2, de Joaquim Nabuco (1897), e Dom João
VI no Brasil3, de Oliveira Lima (1908) – situando-as no cenário marcado por disputas
políticas e simbólicas entre elementos republicanos e monárquicos. A partir disso, pretende-se
examinar o papel da biografia como escrita histórica em um momento de reconstrução de
ideais de nacionalidade, além de estabelecer as aproximações e distanciamentos entre as duas
obras, principalmente no que concerne à caracterização destas como “biografias monárquicas”
e as especificidades narrativas e documentais que as colocam como dois marcos da
historiografia acerca do período monárquico brasileiro.

Palavras-chave: Biografias; Primeira República; Historiografia.

Introdução

Não resolvi a questão da republica para norma da minha vida politica


pensando no martyrio de Tiradentes, no centenario de 1789, na mocidade
Rio Grandense de Garibaldi, na unidade exterior da America, ou na
Humanidade de Augusto Comte. Não me preoccupei de hombrearmos com
os outros povos do Novo-Mundo. Os liberaes de todos esses paizes sabem
pela mais triste das experiencias que entre a republica e a liberdade ha
espaço para os peiores despotismos, e que não existe estelionato mais
commum do que a republica sem democracia4.

1 Graduanda em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista de Iniciação Científica
CNPq. E-mail: var.jaqueoliveira@gmail.com. A pesquisa que deu origem a este trabalho é financiada pelo CNPq
e pela FAPERJ através de projeto orientado pela Profª. Drª. Marcia de Almeida Gonçalves (UERJ).
2 NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império. 3 vols. Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier, 1898-1900.
3 LIMA, Oliveira. Dom João VI no Brasil. Edição fac-similar. 2 vols.:il. Brasília: FUNAG, 2019.
4 Manifesto do Dr. Joaquim Nabuco: respostas às mensagens do Recife e de Nazareth”, publicado pelo Diário
do Comércio, ed. 546, de 4 de junho de 1890, p. 3.
A passagem que abre este trabalho é um trecho da longa carta, transformada em
manifesto pelo Diário do Comércio, na qual Joaquim Nabuco se dirige à população de Recife
e de Nazaré da Mata (Nazareth) declinando da participação em qualquer atividade
organizadora do novo regime, incluindo a Constituinte. Os símbolos republicanos citados por
Nabuco – Tiradentes, a Revolução Francesa, Garibaldi, a América e o positivismo
representado por Augusto Comte – estavam sendo projetados e mobilizados, nesse primeiro
momento da República, a fim de forjar uma nova identidade nacional, desvinculada da criada
durante o Império, visando a formação de uma tradição republicana.
Com o golpe militar republicano de 15 de novembro de 1889 e o consequente
banimento da família imperial5, ainda restava todo um arcabouço burocrático, institucional,
político e cultural que deveria ser desmontado, renomeado e/ou ressignificado para dar
concretude à mudança efetiva de governo. A importância dos símbolos em um regime e, em
plano expandido, em toda a sociedade, é evidenciada pelo sociólogo Pierre Bourdieu a partir
do conceito de poder simbólico:

É a partir dos símbolos que uma determinada comunidade linguística,


artística, religiosa, entra em consenso acerca dos sentidos e representações
que circulam neste meio e que contribuem para a reafirmação e reprodução
de paradigmas, de ideias e de uma ordem social 6.

Considerando a exclusão da população do processo que levou à derrubada da


monarquia e seu apego geral à figura do Imperador Dom Pedro II, torna-se fundamental para
a República que ela exerça não apenas um poder político, como também um poder simbólico,
que legitimaria o primeiro. Porém, se no campo político o imperador deposto não ofereceu
nenhuma resistência7, no campo simbólico o novo governo teria alguns adversários.
Diversos intelectuais monarquistas – ainda que com trajetórias distintas – vão batalhar
com seus pares republicanos a fim de louvar o antigo regime e a sociedade aristocrática com

5 “No dia 17 de novembro de 1889, um domingo, às três da madrugada, a família real partiu acompanhada por
alguns poucos autoexilados. Dizem que os novos dirigentes acharam por bem evitar a luz do dia e impedir
qualquer reação da população”. Cf.: SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa. “A Primeira República e
o povo nas ruas”. In: Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 318. A Lei do Banimento
foi um decreto do governo provisório de 23 de dezembro de 1889 que, além da expulsão, destinava uma ajuda
financeira à família real (que foi recusada pelo monarca destituído); foi revogada pelo decreto nº 4.120, de 3 de
setembro de 1920.
6 Cf.: BOURDIEU, Pierre. “Sobre o poder simbólico”. In: O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil
SA, 1989, p. 10.
7 Para ilustrar o conformismo do Imperador, talvez motivado pelo seu esgotamento político, físico e psicológico,
pode-se citar a reação demonstrada por ele ao surgimento do jornal A República em fins da década de 1870, em
carta a José Antônio Pimenta Bueno, o Marquês de São Vicente: “se os Brazileiros não me quiserem para seu
Imperador, irei ser professor”. C.f: NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império. 3 vols. Rio de Janeiro/Paris:
H. Garnier, 1898-1900, p. 191 (tomo III).
ela aniquilada. Angela Alonso8 nomeia os dois grupos adversários como “monarquistas de
pena” – que eram ex-aristocráticos da sociedade de corte – e “jacobinos” – letrados
republicanos, membros de grupos sociais emergentes que procuram legitimar a nova ordem,
tendendo a alusões à Revolução Francesa de 1789 aliadas às revoltas coloniais e regenciais e
ao positivismo.

No que diz respeito a essa última, é importante destacar a posição do Instituto


Histórico Geográfico Brasileiro, arauto da produção histórica no século XIX e tradicional
instituição monárquica, nessa questão. De acordo com Alexandre Avelar 9, apesar de abalado
pela ausência de seu protetor – o Imperador Dom Pedro II – o IHGB deu continuidade a seus
trabalhos com o propósito de produzir e disseminar, através de sua tradicional revista 10,
conhecimentos históricos que agora seriam úteis para a reinvenção da nação. Apesar da
melancolia imperial e de certa resistência inicial a elementos republicanos, a instituição tentou
manter-se imparcial de forma a garantir sua sobrevivência em um contexto em que qualquer
ícone que remetesse ao antigo regime era brutalmente visado pelo novo governo. A biografia,
que sempre fez parte da produção historiográfica do IHGB, consolidou-se como uma
importante escrita histórica nesse momento de reinvenção.

Biografias no campo de batalha


Benito Schmidt11, em texto em que traça um panorama das relações entre biografias e
História ao longo do tempo, destaca que a partir do século XVIII, com a filosofia Iluminista,
principalmente baseado nas ideias de Voltaire, os “grandes homens” entram em cena
substituindo os “heróis” – que eram os biografados em séculos anteriores 12- sendo aqueles que
serviam à humanidade e, principalmente à pátria, de modo incondicional. Isso vai fazer com
que ao longo dos oitocentos a escrita biográfica assuma um importante papel na construção da

8 Cf.: ALONSO, Angela. “Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual brasileiro na primeira década
republicana”. Novos estudos. São Paulo: CEBRAP, n. 85, 2009, p. 131.
9 Cf.: AVELAR, Alexandre de Sá. “Entre a tradição e a inovação: o IHGB e a escrita biográfica nas primeiras
décadas republicanas”. História da Historiografia. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto, v., 13, n. 33,
maio-ago., 2020, p. 400.
10 A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) circula desde 1839 e é um dos periódicos
científicos mais longevos do mundo ocidental.
11 Cf.: SCHMIDT, Benito Bisso. “História e Biografia”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo
[org.]. Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 190.
12 SCHMIDT, Benito Bisso. “História e Biografia”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo [org.].
Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 187, defende, assim como outros especialistas de
Teoria e Historiografia, que o gênero biográfico surgiu em conjunto com o gênero histórico na Grécia do século
V.
ideia de nação e, consequentemente, na consolidação de “um patrimônio de símbolos”, como
destaca Mary Del Priore13.
Com o triunfo do individualismo que marcou o século XIX, diversas formas de
celebração do “eu” – autorretratos, diários e memórias – entraram na moda. Essa tendência
estimulou o surgimento de biografias de caráter literário – eram geralmente romanceadas ou
panegíricos. Esse cenário se transforma e dois marcos dessa mudança são Um Estadista do
Império de Joaquim Nabuco (1897) e Dom João VI no Brasil de Oliveira Lima (1908).
Essas obras, produzidas em um contexto de disputa entre elementos monárquicos e
republicanos, constituem um marco importante para a consolidação da biografia como escrita
histórica, sendo consideradas grandes clássicos da historiografia brasileira, fundamentais para
a compreensão dos períodos joanino e imperial. O rigor documental e a intensa pesquisa
acerca das épocas em que os biografados viveram convertem a escrita biográfica, que passa de
um “retrato de um grande homem” a uma “paisagem” que sim, ainda centraliza um indivíduo,
mas também empresta cores e caráter ao seu redor.
As duas obras figuram como representantes do elemento monárquico – e situam-se no
campo de batalha - visto que os autores logram, através de sua narrativa e de situações
contemporâneas aos biografados, exprimir suas opiniões acerca de seu tempo, o que
consolida-se como uma característica do gênero, como observa-se na produção de Octávio
Tarquínio de Sousa, por exemplo, entre as décadas de 1930 e 195014.

Joaquim Nabuco e Um estadista do Império

Em Um Estadista do Império – Nabuco de Araújo: sua vida, suas opiniões e sua época,
Joaquim Nabuco presta homenagem não apenas a seu pai, como também ao período imperial.
Filho e neto de estadistas do Império, Joaquim Nabuco (1849-1910) nasceu no interior de uma
elite aristocrática que gozava de todas as benesses da sociedade de corte. De acordo com
muitos estudiosos, os quais são sintetizados por Christian Lynch15, Nabuco seria um
conservador nato devido à sua origem, que teve apenas um lapso rebelde ao entrincheirar-se

13 Cf.: PRIORE, Mary L. M. “Biografia: quando o indivíduo encontra a História”. Topoi Revista de História.
Rio de Janeiro: PPGHS UFRJ, v. 10, n. 9, jul.-dez., 2009, p. 10.
14 “[…] a análise da história do passado brasileiro, no recorte específico da constituição do Estado, permitira
ao autor Octávio Tarquínio explicitar seus pontos de vista, em um momento (1939) em que o autoritarismo do
regime estado-novista se manifestava…” (p.65). Cf.: GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Fisionomias em
construção”. In: Em terreno movediço: biografia e história na obra de Octávio Tarquínio de Sousa. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2009, p. 65.
15 Cf.: LYNCH, Christian E.C. “O Império é que era a República: a Monarquia republicana de Joaquim
Nabuco”. Lua Nova. São Paulo: CEDEC, n. 85, 2012, p. 277.
na luta abolicionista, o que justificaria seus posteriores arroubos nostálgicos quanto à
monarquia e, mais contraditoriamente, quanto à escravidão.
Lynch, por sua vez, reestabelece a figura de Nabuco ao analisar toda a sua obra do
“período monárquico” e apreender que: “Nabuco permaneceu monarquista por julgar que o
advento do regime republicano, na modalidade oligárquica proposta pelo partido homônimo,
ao invés de auxiliá-la, prejudicaria o advento de uma sociedade autenticamente republicana,
liberal e democrática”16. Essa concepção, ainda que alvo de problematizações que podem ser
melhor esmiuçadas em trabalhos futuros, é facilmente apreendida em Um Estadista do
Império, principalmente nas análises de Nabuco sobre as repúblicas caudilhas da América
Hispânica e acerca da natureza do poder exercido pelo Imperador Dom Pedro I.
De acordo com o pensamento de Joaquim Nabuco, a monarquia constitucional
ofereceria uma caminho mais seguro até a República e deveria perdurar até que o choque
causado pela Abolição se dissolvesse: “‘Não se aprende a nadar sem entrar n’água’. Também
não se ensina ninguém a nadar atirando-o pela primeira vez em alto mar em noite de
tempestade”17. Essas ideias políticas marcam profundamente sua produção, inclusive a
biografia de seu pai.
Já no prefácio da obra, escrito na capital federal em 1897, o autor destaca o império
de Dom Pedro II como a “Grande Era Brazileira”, ao passo que deixa explícita sua aversão à
violência das revoltas de 1893 e 1894. Utiliza-se, assim, da antiga ideia de que o Império
representou a civilização, em contraposição à barbárie das repúblicas oligárquicas que se
estabeleceram em toda a América Latina, incluindo o Brasil florianista.
A crítica especializada recebeu muito bem a obra, que foi publicada pela Editora H.
Garnier em três tomos, após ampla e prévia divulgação pela Revista Brasileira. O maior
crítico, não da qualidade artística e historiográfica da biografia, mas sim de sua propaganda
monarquista de caráter eufemista, foi Eunápio Deiró 18, do Jornal do Commércio, como
demonstra trecho abaixo:

16 Cf.: LYNCH, Christian E.C. “O Império é que era a República: a Monarquia republicana de Joaquim
Nabuco”. Lua Nova. São Paulo: CEDEC, n. 85, 2012, p. 312.
17 Cf.: Diário do Comércio, ed. 546, de 4 de junho de 1890, p. 3.
18 Eunápio Deiró (1829-1909) foi um jornalista, escritor, político e advogado republicano. Uma das curiosidades
sobre Deiró é que ele advogou a favor do português Adriano Augusto Valle que, na noite de 15/07/1889, atentou
contra Dom Pedro II após dar “Vivas ao Partido Republicano” na saída do espetáculo no Teatro Sant’anna. Cf.:
VIDIPÓ, George. “Um processo criminal nos jornais do século XIX: o atentato contra Dom Pedro II”. In:
MOTTA, Maria Marcia; PEREIRA, Raquel; REIS, Thiago [org.]. Anais do Encontro Internacional e XVIII
Encontro de História da Anpuh-Rio: Histórias e Parcerias, jul. 2018, Niterói. Rio de Janeiro: Anpuh-Rio, 2018,
p.5.
Neste capitulo, porém, tenta como historiador estabelecer as causas,
que determinárão a revolução de 7 de abril de 1831. Os elementos de que
servio-se para apurar a verdade historica – uns resultão da tradicção – outros
de meras conjucturas; raros procedem de documentos authenticos e de justa
apreciação dos factos, que constituem o primeiro reinado. Em muitos pontos
os juizos do autor exigem contestação, não podem passar como fundados na
verdade. A tradicção alterou a realidade, porque foi-se formando como
expressão dos sentimentos dos differentes interesses, dos grupos e dos
partidos politicos. Até os nossos dias a critica historica ainda não os apurou,
verificando a parte imaginativa e a parte real. Não ha que estranhar ter o
autor seguido a versão, que naturalmente está de accôrdo com o ponto de
vista em que se collocou19.

Essa é a reação de Deiró à versão narrada por Nabuco de que o 7 de Abril de 1831
havia sido um “desquite amigável” entre Dom Pedro I e o Brasil, mesmo à revelia de
determinados setores caracterizados como ingratos. Aqui, tanto o autor tentou heroicizar a
figura polêmica do primeiro imperador, quanto o crítico tentou vilanizá-la, a fim de
estabelecer que a monarquia também possuiu uma face “ditatorial” às expensas do caráter que
Nabuco recorrentemente atribuía à República.
A crítica acerca da utilização - ou não - de documentos autênticos não foi repetida por
nenhum outro crítico, tendo nomes como José Veríssimo20e J. Dos Santos21 elogiado o rigor
documental de Nabuco que, além do arquivo pessoal de seu pai, buscou diversas outras fontes
e extensa bibliografia, chegando a recolher depoimentos e memórias de estadistas
contemporâneos de seu pai, em um esforço que hoje é muito repercutido no âmbito da
História Oral.
A obra consagrou-se por seu estilo narrativo extremamente descritivo e por sua
contribuição para o entendimento dos bastidores da política imperial, além de seu valor para a
História do Direito. Através de uma abordagem histórica, psicológica e sociológica, o autor
consegue mesclar, em diferentes planos, a história de vida privada e política de seu pai e a sua
época, realizando, por vezes, análises conjecturais valiosas para a interpretação do Segundo
Reinado, sobre as quais não pode-se ignorar o contexto de disputa em que foram escritas.

Oliveira Lima e Dom João VI no Brasil

19 Jornal do Commercio, ed. 317, de 14 de novembro de 1898, p. 1.


20 Revista Brasileira, ed. 14, 1898, p. 153-177.
21A Notícia, ed. 249, 1898, p. 3.
“Ele viveu no Portugal monárquico, foi discípulo de Oliveira Martins –
historiador português monarquista – e conviveu com os monarquistas
brasileiros exilados em Lisboa. Por outro lado, Oliveira Lima era um
diplomata nomeado pela República, num momento de renovação de quadros
em que a diplomacia devia fazer uma profissão de fé republicana”, diz. Por
dever de ofício, escreveu textos republicanos, destinados a criar uma
imagem positiva do Brasil no exterior que contribuísse para dar credibilidade
ao país junto aos investidores europeus. Sua convicção monárquica começou
a aparecer entre 1903 e 1904, período que passou no Brasil e se fortaleceu a
partir de 190822.

Dom João VI no Brasil de Manoel de Oliveira Lima (1867-1928) é uma década mais
jovem do que a obra de Joaquim Nabuco e ainda assim guarda com ela algumas semelhanças
importantes. No início do século XX, as últimas ondas de resistência monárquica afloravam o
debate público e intelectual, enquanto uma série de comemorações cívicas eram organizadas –
o 4º Centenário do Descobrimento do Brasil e o 1º Centenário da Chegada da Família Real
Portuguesa e da Abertura dos Portos – os “monarquistas de pena” se compraziam em verificar
como a República ressignificaria datas estreitamente relacionadas ao passado monárquico e à
herança portuguesa.
Já “convertido” a ideais monarquistas, Oliveira Lima participa de um concurso
promovido pelo IHGB, idealizado em 1903, a fim de comemorar o 1º Centenário da Chegada
da Família Real ao Brasil e a Abertura dos Portos, o qual deveria contar a história da
permanência do príncipe - depois rei - em terras brasileiras. O trabalho diplomático facilitou o
acesso de Lima a diversos arquivos, tanto brasileiros ou portugueses, quanto franceses,
estadunidenses e ingleses. No prefácio da obra, o autor tece agradecimentos a uma série de
chefes e presidentes de arquivos, embaixadores e diplomatas que tornaram possível o acesso a
um amontoado de documentos originais e inéditos.
De acordo com Teresa Malatian24 em depoimento à matéria da revista Pesquisa
FAPESP, Oliveira Lima não era originalmente monarquista, muito menos fez parte de um
movimento articulado. O diplomata aderiu às ideias de homens como Joaquim Nabuco por
considerar o período imperial como um momento de estabilidade política e institucional e por
temer que a República brasileira se tornasse um espelho das repúblicas causilhas dos vizinhos
americanos, cujos males ele pode acompanhar in loco durante sua estada diplomática na
Venezuela. Sua querela com o Barão do Rio Branco – então Ministro das Relações Exteriores

22 Cf. PESQUISA FAPESP. O quixote liberal da República. São Paulo: FAPESP, ed.73, mar. 2002, p. 90-91.
Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2002/03/90-diplomacia.pdf>.
- também é considerado por especialistas como Malatian e Renan Fontes 23 como um dos
motivos para a adesão à causa monárquica.
De fato, o extenso trabalho documental é um dos pontos mais elogiados da obra de
Oliveira Lima que também recebe o mérito de reabilitar a figura de Dom João VI. Cunhando
um perfil psicológico do monarca, o autor também o heroicizou, colocando-o como “fundador
da nacionalidade” e “o favorito da dynastia nacional” legitimando a ideia tanto pela opinião
culta dos sócios do IHGB quanto por uma suposta afeição popular, que superaria o gosto por
Dom Pedro I e seu imperial filho 24. O caráter histórico, sociológico, geográfico e até mesmo
antropológico de Dom João VI no Brasil, com uma narrativa extremamente descritiva fazem
com que Malatian25o considere com um precursor da história do cotidiano.
No ano de 1911, o suplemento sul-americano do jornal norte-americano Times26
publicou crítica literária positiva da obra. Considerando que esta trazia uma interpretação de
Brasil que considerava a experiência monárquica como significativa, constitui ao menos uma
vitória simbólica para o que Angela Alonso vai chamar de “decadência com elegância” 27 dos
monarquistas. Em 1920, a Lei do Banimento é revogada e o campo de disputas se encerra
oficialmente.
Originalmente publicado pela Typographica do Jornal do Commércio em 1908, Dom
João VI no Brasil foi reeditado na década de 1940 pela editora José Olympio, na coleção
Documentos Brasileiros com prefácio de um dos principais biógrafos do período, Octávio
Tarquinio de Sousa, e sob supervisão de um dos maiores admiradores de Oliveira Lima,
Gilberto Freyre. Com excelente recepção da crítica, a obra se consolidou como uma das
maiores da historiografia brasileira. Em 2019 a obra foi relançada com uma edição fac-similar
a de 1908, na esteira dos projetos que comemorarão o 2º Centenário da Independência em
2022.

Considerações finais

23 Cf.: FONTES, Renan P. A biografia como forma de escrita historiográfica: D. João VI no Brasil, de Oliveira
Lima. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015, p. 72.
24 Cf.: LIMA, Oliveira. Dom João VI no Brasil. Edição fac-similar. 2 v.:il. Brasília: FUNAG, 2019, p. 3.
25 Cf.: PESQUISA FAPESP. O quixote liberal da República. São Paulo: FAPESP, ed.73, mar. 2002, p. 90-91.
Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2002/03/90-diplomacia.pdf>.
26 O Jornal do Commercio publicou uma tradução da crítica na ed. 109, em 1911, p. 3.
27 ALONSO, Angela. “Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual brasileiro na primeira década
republicana”. Novos estudos. São Paulo: CEBRAP, n. 85, 2009, p. 138.
A partir das reflexões aqui suscitadas chega-se à conclusão de que as chamadas
“biografias monárquicas” – aqui representadas pelas obras de Joaquim Nabuco e Oliveira
Lima – constituíram-se como grandes marcos historiográficos ainda que representantes do
regime suplantado na batalha de símbolos que se estabeleceu nos primeiros anos do período
republicano.
Por fim, pode-se dizer que ainda que o elemento republicano tenha conseguido
estabelecer-se e legitimar-se, a monarquia resistiu no campo cultural e simbólico por muitos
anos - ainda que sufocada em todo o seu arcabouço político e simbólico - e continuou
produzindo e sendo reproduzida por uma elite intelectual que resistia vezes por um ideal,
vezes por uma desilusão aristocrática.

Fontes

Diário do Comércio, ed. 546, de 4 de junho de 1890, p. 3. Disponível:


<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=248070&Pesq=%22monarchista
%22&pagfis=2249>.
Jornal do Commercio, ed. 317, de 14 de novembro de 1898, p. 1. Disponível:
<http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=364568_08&pagfis=30278>.
____________________, ed. 109, 1911, p. 3. Disponível:
<http://memoria.bn.br/DocReader/364568_10/5345>.
Revista Brasileira, ed. 14, 1898, p. 153-177. Disponível:
<http://memoria.bn.br/DocReader/139955/12142 >.
A Notícia, ed. 249, 1898, p. 3. Disponível: <http://memoria.bn.br/DocReader/830380/4879>.

Referências bibliográficas
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primeira década republicana”. Novos estudos. São Paulo: CEBRAP, n. 85, 2009, 131-148.
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Federal de Ouro Preto, v., 13, n. 33, maio-ago., 2020, p. 397-429.
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FONTES, Renan P. A biografia como forma de escrita historiográfica: D. João VI no Brasil,
de Oliveira Lima. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós Graduação em
História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015,
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MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Esaú e Jacó. Porto Alegre: L&PM, 1998.
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p. 90-91. Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2002/03/90-
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Pedro II”. In: MOTTA, Maria Marcia; PEREIRA, Raquel; REIS, Thiago [org.]. Anais do
Encontro Internacional e XVIII Encontro de História da Anpuh-Rio: Histórias e Parcerias,
jul. 2018, Niterói. Rio de Janeiro: Anpuh-Rio, 2018, 10p.

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