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Revista

GALO
Arte,
Sociedade
& Cultura

Dossiê:

História do Rio Grande do Norte


Temporalidades e interpretações

Ano 2, nº 3
jan./jun. 2021
issn 2675-7400
Revista GALO

Dossiê:

História do Rio Grande do Norte


Temporalidades e interpretações
© 2021 by Revista Galo A. S. C.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Biblioteca Ocidente, Parnamirim, RN, Brasil)

REVISTA GALO: ARTE, SOCIEDADE E CULTURA. [Versão Eletrônica] Ano 2, n. 3


(jan./jun. de 2021). Parnamirim-RN.
Periódico semestral.
Dossiê: História do Rio Grande do Norte: temporalidades e interpretações.
/ Organização de: Thiago do Nascimento Torres de Paula. – 2021.
302 f. : il. color.
issn: 2675-7400
Periódico científico – jan./jun. de 2021.
Editor responsável: Prof. Me. Francisco Isaac Dantas de Oliveira.
1. HISTÓRIA 2. RIO GRANDE DO NORTE 3. COLÔNIA 4. REPÚBLICA 5. IMPÉRIO
I. Oliveira, Francisco Isaac Dantas de II. Título.
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Esta revista e os artigos nela encontrados são disponibilizados sob os termos da


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Sumário

Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . v

Um balanço (editorial) da curta vida de Galo . . . . . . . . . . . . . . . vii

I Dossiê: História do Rio Grande do Norte: tempora-


lidades e interpretações 1

O patrimônio da Companhia de Jesus na capitania do Rio Grande do


Norte: bens como sustento da fé (1600–1759) . . . . . . . . . . . . . . 3

Farinha e carne no sertão. Fome e caristia no litoral: aspectos do mer-


cado interno no Rio Grande do Norte (séc. XVIII a XIX) . . . . . . . . . 23

Não ao peso, não ao recrutamento: os Quebra-quilos e as autoridades


públicas no Rio Grande do Norte (1874–1875) . . . . . . . . . . . . . . 53

De como as letras formam um cidadão: os ritos e símbolos da Primeira


República na cidade de Parelhas-RN (1928–1930) . . . . . . . . . . . . 75

A institucionalização da Matriz de Santa Luzia na cidade de Mossoró-RN 93

“Vencido o New Look”: resistências femininas a Christian Dior e as suas


modas (Natal/RN, 1948–1953) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

Os caminhos e os desdobramentos da vida, trajetória política e dos


discursos e pronunciamentos de Dinarte Mariz . . . . . . . . . . . . 125

Frentes de trabalho e ligas camponesas: movimentos populares, con-


flitos e sobrevivência (1960–1976) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

iii
iv Parnamirim, jan./jun. 2021

O Diário de Natal: o papel da imprensa potiguar na circulação das no-


tícias do Projeto Baixo-Açu (1975–1979) . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

Comemorar a posse de Thomaz de Araújo: a construção de um lugar


para o Seridó na memória histórica do RN . . . . . . . . . . . . . . . 169

O contexto sobre o uso de substâncias lícitas e ilícitas em Caicó, Rio


Grande do Norte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

O silencio dos caboclos: notas sobre catimbozeiros perseguidos no Rio


Grande do Norte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195

II Artigos livres 207


Dispositivo moda: a roupa em processos artísticos contemporâneos . . 209

Melhoramentos de São Paulo: intervenções urbanas e as irmandades


negras da capital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225

Mapas da cidade: textos, imagens e imaginários . . . . . . . . . . . . 243

Sair da pirâmide e conhecer Além-Nilo: ensino de história do Egito


Antigo na Educação Básica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263

III Transcrição de documentos 279


Os últimos desejos de um governador português na capitania do Rio
Grande do Norte: o testamento de Caetano da Silva Sanchez (1799) . . 281

IV Projeto de Pesquisa 287


Política(s) e modernização: a implantação do programa “alimentos
para a paz” e as frentes de trabalho no sertão do Seridó-RN (1968–1976) 289

Ficha técnica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 301


Editorial
O Rio Grande encontra-se elencado entre as regiões mais antigas de coloniza-
ção europeia das Américas. Ainda no século XVI recebeu em seu litoral marco
de posse da Coroa portuguesa, já no século XVII foi território da América ho-
landesa, chegando ao século XVIII como teatro do extermínio indígena durante
a Guerra dos Bárbaros. Em meados dos anos setecentistas a região foi nomeada
Rio Grande do Norte, consequência dos acordos diplomáticos entre as Coroas
ibéricas que disputavam territórios no sul do continente.
Apesar de não ter sido um produtor de açúcar em larga escala e não possuir
um porto atlântico, o Rio Grande do Norte conheceu a pratica da escravidão
africana no litoral e nos sertões, sob o domínio administrativo e judiciário de
outras capitanias a região supracitada esteve representada em sedições liberais
como, a Revolução Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador em
1824. Revoltas de cunho republicano que se consubstanciaram diferentemente
da afamada Inconfidência Mineira de 1789.
Durante o agitado e conflituoso século XIX, a terra onde nasceu Dom Antô-
nio Felipe Camarão, vivenciou epidemias de cólera que assolavam todo o ter-
ritório imperial do Brasil, além do surgimento dos cemitérios, a construção da
torre da igreja matriz da cidade do Natal, o desenvolvimento da cotonicultura
e da malha ferroviária. Para mais, o fluxo de miseráveis que fugiam das secas
nos sertões em direção ao litoral, seguido dos motins da fome na povoação de
Mossoró. Neste último caso, era o povo depauperado do Rio Grande do Norte
demonstrando sua capacidade de organização, pressão e negociação com os re-
presentantes do Imperador Dom Pedro II.
Os anos oitocentistas apagariam suas luzes com a proclamação da Repú-
blica (1889), que traria o sol da modernidade para província do Rio Grande do
Norte, especificamente para capital: o teatro, o bonde elétrico, a ponte metálica
e expansão planejada da Cidade do Natal, mas sobretudo a multiplicação dos
pobres, dos miseráveis e excluídos descendentes escravos e de indígenas secu-
larmente explorados, que se espalhariam pelos morros, arrabaldes e periferias
por todo século XX.
A partir desta longa história marcada por ocupações, conflitos, exploração
e resistência, somada as múltiplas possibilidades de interpretações do passado
humano, vinculadas a novas metodologias e propostas teóricas, é que a Revista
Galo brinda o público leitor com o Dossiê: História do Rio Grande do Norte:
temporalidades e interpretações. Dentre as publicações que integram a cole-
tânea em tela, destaca-se os seguintes artigos: O patrimônio da Companhia de
Jesus na Capitania do Rio Grande do Norte: bens como sustento da fé (1600–1759)
de Ana Lunara da Silva Morais; Farinha e Carne no Sertão. Fome e carestia no

v
vi Parnamirim, jan./jun. 2021

litoral: aspectos do mercado interno no Rio Grande do Norte (séc. XVIII a XIX) do
professor Thiago Alves Dias; Não ao peso, não ao recrutamento: os Quebra-quilos
e as autoridades públicas no Rio Grande do Norte (1874–1875) de João Fernando
Barreto de Brito; De como as letras formam um cidadão: os ritos e símbolos da Pri-
meira República na cidade de Parelhas-RN (1928–1930) de Laísa Fernanda Santos
de Farias e Sebastião Genicarlos.
Quanto ao Rio Grande do Norte contemporâneo, realça-se: A institucionali-
zação da matriz de Santa Luzia na cidade de Mossoró-RN de Arthur Ebert Dantas
dos Santos, Jackson Luiz Fernandes Adelino, Lara Raquel de Souza e Maia e Val-
deci dos Santos Júnior; “Vencido o new look”: resistências femininas a Christian
Dior e as suas modas (Natal/RN, 1948–1953) de João Vieira Neto e Joel Carlos
de Souza Andrade; Os caminhos e os desdobramentos da vida: trajetória política
e dos discursos e pronunciamentos de Dinarte Mariz de Larisse Santos Bernardo
e Jailma Maria de Lima; Frentes de trabalho e Ligas camponesas: movimentos
populares, conflitos e sobrevivência (1960–1976) de João Paulo de Lima Silva;
Por fim, O Diário de Natal: o papel da imprensa potiguar na circulação das
notícias do Projeto Baixo-Açu (1975–1979) de Maiara Brenda Rodrigues de Brito;
Comemorar a posse de Thomaz de Araújo: a construção de um lugar para o Seridó
na memória histórica do Rio Grande do Norte de Bruno Balbino Aires da Costa e O
contexto sobre o uso de substâncias lícitas e ilícitas em Caicó, Rio Grande do Norte
de Allyson Iquesac Santos de Brito e Helder Alexandre Medeiros de Macedo; e o
último texto dentro do dossiê é O silêncio dos caboclos: Notas sobre catimbozeiros
perseguidos no Rio Grande do Norte de Rômulo Henrique P. Angélico.
Os textos do atual conjunto, falam um pouco da produção historiográfica e
das múltiplas visões dos historiadores e historiadoras sobre a nossa história. A
cabo de tudo, apesar das contingencias impostas ao povo brasileiro, deseja-se
uma excelente leitura a todos.

Thiago do Nascimento Torres de Paula

Natal, maio de 2021.


Um balanço (editorial) da curta vida de Galo
O ano de 2021 trouxe o primeiro ano de vida acadêmica da Revista Galo. Um
ano de muito trabalho e conquistas significativas, nascemos em tempos difí-
ceis, onde a maior crise sanitária do mundo acontece desde de março de 2020,
nascemos no olho do furacão, em meio a maior pandemia dos último 100 anos,
porém, colocamos na praça um produto científico de qualidade.
Prezamos pela honestidade acadêmica, valorizamos os autores e prezamos
pela excelência na comunicação com todas as pessoas que nos procuram. Fica-
mos felizes em olhar para trás e ver que construímos uma boa relação com o
nosso corpo científico na figura dos editores e pareceristas ad hoc, sem eles a
tão almejada qualidade — científica — não seria possível.
Quero agradecer o trabalho voluntário de Leonardo Claudiano e Gabriel
Araújo, eles fazem a mágica acontecer nos bastidores, ambos são incansáveis
na comunicação visual da revista, como também, no trabalho cansativo e de
excelência na edição e editoração da Galo.
Dando continuidade nesse balanço anual, quero celebrar a existência do pri-
meiro ano festejando as nossas modestas conquistas, a exemplo: o número de
ISSN, nosso portal na internet, os dois primeiros números publicados — e cita-
dos em salas de aulas pelo Brasil a fora — os dois anais publicados e, os dois
primeiros e-books do Selo Biblioteca Ocidente. E agora temos o prazer de lan-
çar o dossiê organizado pelo pesquisador Thiago Torres sobre a história do Rio
Grande do Norte, peço licença para anunciar os artigos e os autores das ou-
tras seções da revista, que são: Dispositivo moda: a roupa em processos artísticos
contemporâneos de Violeta Adelita Ribeiro Sutili; Melhoramentos de São Paulo:
intervenções urbanas e as irmandades negras da capital de Alvaci Mendes da Luz;
A cidade em mapas, textos, imagens e imaginários de Leonardo da Silva Claudi-
ano; Sair da pirâmide e conhecer Além-Nilo: ensino de história do Egito Antigo na
Educação Básica de Bruno Miranda Braga.
Na Seção “Transcrição de Documentos/Análise Iconográfica” temos uma
transcrição de documento do próprio organizador deste número: Os últimos
desejos de um governador português na capitania do Rio Grande do Norte: o tes-
tamento de Caetano da Silva Sanchez (1799) de Thiago do Nascimento Torres de
Paula. E por fim, temos a seção “Projeto de Pesquisa/Relatos de Pesquisa” com
o texto Política(s) e Modernização: a implantação do programa “Alimentos para
a paz” e as frentes de trabalho no Sertão do Seridó-RN (1968–1976) do mestrando
João Paulo de Lima Silva.
Como disse o organizador deste número anteriormente, mesmo em tempos
mais difíceis como os que estamos vivendo, eu, como editor, e em nome de toda
a equipe editorial da Revista Galo, desejo que todos e todas tirem um tempo e

vii
viii Parnamirim, jan./jun. 2021

possam se debruçar nas páginas da Galo.


Uma ótima leitura!

Editor Franciscv Isaac D. de Oliveira

04/05/2021.
Dossiê

História do Rio Grande do Norte


Temporalidades e interpretações

1
O PATRIMÔNIO DA COMPANHIA DE JESUS NA CAPITANIA
DO RIO GRANDE DO NORTE
Bens como sustento da fé (1600–1759)
Ana Lunara da Silva Morais1
RESUMO: A ordem religiosa Companhia de Jesus estabeleceu-se na capitania do Rio Como referenciar?
MORAIS, A. L. S. O
Grande desde o primórdio de sua colonização, no início do Seiscentos, onde atuou até patrimônio da Companhia
a data de sua expulsão, em 1759. Nessa capitania angariaram muitas sesmarias, terras, de Jesus na capitania do Rio
Grande do Norte: bens
pessoas escravizadas e cabeças de gado. Neste artigo, questiona-se de que forma os como sustento da fé
jesuítas angariaram e geriram seus bens no Rio Grande do Norte ao longo de mais de (1600–1759). Revista Galo,
n. 3, p. 3–21, 17 jul. 2021
uma centúria e meia de atuação na capitania. Este trabalho é fruto de uma pesquisa de
mestrado, para a qual se realizou o cruzamento de fontes de variados fundos, como o
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), o Arquivo Histórico Ultramarino (AHU),
o Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano (APEPE) entre outros.
Palavras-chave: Jesuítas. América portuguesa. Propriedade.

THE PATRIMONY OF THE COMPANY OF JESUS IN THE CAP-


TAINCY OF RIO GRANDE DO NORTE
Property as a support of faith (1600–1759)
ABSTRACT: The religious order Company of Jesus was established in the captaincy of
Rio Grande since the principle of its colonization in the beginning of the Sixties, where
it operated until the date of its expulsion, in 1759. In the captaincy of Rio Grande, they
accumulate patrimony, sesmarias, lands, enslaved people and cattle heads. In this ar-
ticle, it is questioned how the Jesuits raised and managed their assets in Rio Grande
do Norte over more than a century and a half of acting in the captaincy. This re-
search, the result of a master’s dissertation, that utilized sources from varied archives,
especially the National Archives of Torre do Tombo (ANTT), the Overseas Histori-
cal Archives (AHU), the Public Archive of the Pernambuco State Jordão Emerenciano
(APEPE) among others.
Keywords: Jesuits. Portuguese America. Property.

1
Doutora pelo Programa Interuniversitário de Doutoramento em História (PIUDHist), vin-
culado ao Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEUHS), Universidade
de Évora, Portugal. ID Lattes: 6721.3449.9390.7020. ORCID: 0000-0001-5401-3235. E-mail: lu-
nara_ana@hotmail.com.

3
4 Parnamirim, jan./jun. 2021

Introdução
A Companhia de Jesus começou a atuar no Brasil em 1549, quando juntamente
com o governador geral do Brasil, Tomé de Sousa, desembarcaram alguns jesuí-
tas. Os jesuítas tiveram uma importância fundamental desde o início da forma-
ção do império português devido a necessidade de oferecer suporte espiritual
à colonização. Na América portuguesa, atuaram na conversão indígena, bem
como no reforço da doutrina cristã junto aos colonos, atividades fundamentais
para a consolidação de uma sociedade colonial em formação, colaborando para
a fixação do povoamento.
Os inacianos, para melhor se estabelecerem na colônia, passaram a angariar,
por meio da compra e de doação régia ou particular, terras, pessoas escraviza-
das, entre outros bens. A ordem possuía uma visão pragmática da expansão
comercial, percebendo-a como possibilidade de expansão da fé cristã, conse-
guindo para tal fim a obtenção de privilégios régios que colaboraram para o
crescimento da ordem. A presença jesuítica na capitania do Rio Grande tam-
bém ocorreu dessa forma. Ao longo do início do Seiscentos até a sua expulsão
de todo o território português, em 1759, estabeleceram relevante patrimônio
sob a justificativa de propagação da fé. A seguir será analisado de que forma a
Companhia de Jesus angariou e geriu seus bens na capitania do Rio Grande do
Norte ao longo de uma centúria e meia de atuação.

O patrimônio da companhia de jesus na capitania do Rio


Grande do Norte
Até o final do século XVI, a capitania do Rio Grande encontrava-se abandonada
pela Coroa portuguesa, desprovida de qualquer assistência da mesma, e sujeita
à ação de exploradores estrangeiros, pois as expedições colonizadoras haviam
fracassado (MEDEIROS, 1985, p. 200; PEREIRA, 2018).
Em um contexto de efetivar a posse da colônia, já no final de 1597, organizou-
se uma expedição à capitania do Rio Grande comandada pelo capitão-mor de
Pernambuco Mascarenhas Homem, composta pelo capitão-mor da Paraíba Fe-
liciano Coelho, o comandante de esquadra Francisco de Barros Rego, os irmãos
mestiços Jerônimo, Antônio e Jorge Albuquerque, o franciscano Frei Bernardino
das Neves, e os jesuítas padre Francisco Lemos e padre Gaspar de Samperes. A
participação dos inacianos evidencia a sua importância no processo de conso-
lidação da presença portuguesa na colônia (MARIZ; SUASSUNA, 2002, p. 34).
Em janeiro de 1598, iniciou-se a construção do forte dos Reis Magos na barra
do rio Potengi, sendo a planta elaborada pelo padre jesuíta Gaspar de Samperes.
Fundou-se a cidade do Natal em 1599, e em 1600 procedeu-se o início das doa-
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 5

ções de sesmarias para efetivar o assentamento de colonizadores (CASCUDO,


1984, p. 24, 44). Segundo o padre provincial Pero Rodrigues, em 1599, os padres
Gaspar de Samperes e Francisco Lemos fizeram entradas pelo rio Potengi para
converter os índios e formar alianças com os Principais das aldeias. Estes padres
erigiram cruzes onde os índios queriam reunir novamente seus membros, pois
estavam dispersos devido aos conflitos com os portugueses, a chamada Guerra
da Conquista (LEITE, S., 2004, Tombo V, p. 361–363).
A distribuição de sesmarias — título de doação de terra — na capitania do Rio
Grande iniciou-se em 1600, sendo concedidas pelo capitão-mor João Rodrigues
Colaço. As informações sobre as doações de sesmaria no Rio Grande desde
seu início até 1614, podem ser analisadas por meio do Translado do Auto de
Repartição de Terras do Rio Grande (TRANSLADO. . . , 1909). O rei Felipe II
havia sido informado que, na capitania do Rio Grande, muitas terras haviam
sido distribuídas para que fossem cultivadas e beneficiadas. Os sesmeiros não
cumpridores das obrigações estipuladas, entretanto, geravam grandes perdas à
Fazenda Real. Devido a este fato, o rei lançou um alvará em 8 de setembro de
1612, no qual requeria um levantamento sobre todas as terras que haviam sido
doadas na capitania. As terras que se encontrassem abandonadas deveriam ser
consideradas devolutas e riscadas dos livros de concessões, podendo ser doadas
a outras pessoas (TRANSLADO. . . , 1909, p. 7–12). Além do descumprimento
das obrigações, o rei reclamou principalmente sobre as imensas áreas doadas
à Companhia de Jesus e aos filhos do capitão-mor do Rio Grande, Jerônimo de
Albuquerque. O rei alegou que as terras não estavam sendo bem utilizadas e
deveriam ser repartidas para outros sesmeiros (TRANSLADO. . . , 1909, p. 6–9).
Das 186 datas de sesmaria doadas entre 1600 e 1614, cinco pertenciam à
Companhia de Jesus, como se pode ver na figura 1 em sequência. As três primei-
ras datas concedidas foram doadas em 1600, pelo capitão-mor João Rodrigues
Colaço, e são correspondentes às datas segunda, quarta e 24° do livro original
de concessões. A primeira data localizava-se entre as ribeiras Arapapuhu e Ita-
orassutuba, com légua e meia de comprimento e uma de largura. No ato de
realização de averiguação das terras, a Companhia cultivava nesta área roça-
rias e mantimentos, mas já havia criado gado vacum no local. A segunda data
tratava-se de “uns chãos” de terra na cidade do Natal. A terceira data tratava-
se de um sítio de salinas cercado que iniciava no estreito do rio Jaguarari (ou
Iaguaribe) em direção ao sudoeste até chegar ao rio Aguape, também chamado
de Obure, o qual se encontrava cercado pela ribeira do Potengi, com meia légua
em quadra (TRANSLADO. . . , 1909, p. 19, 20 e 25).
As outras duas datas de sesmarias foram concedidas pelo capitão-mor da
capitania do Rio Grande, Jerônimo de Albuquerque, em 1607, e correspondem
às datas número 102º e 103º do livro original de concessões. A primeira data
localizava-se no “lugar chamado tijuru” (Guajiru), até o mar, podendo “compre-
6 Parnamirim, jan./jun. 2021

Figura 1 – Sesmarias da Companhia de Jesus na capitania do Rio Grande, início do século XVII

Fonte: Elaboração própria a partir das informações contidas em: TRANSLADO, 1909.

ender esta data quatorze léguas pouco mais ou menos”. Não há informações
suficientes sobre os limites dessa sesmaria para realizar a sua delimitação, por-
tanto, a área dessa concessão apontada na figura 1 é uma aproximação com
base na extensão da mesma. Nessa sesmaria, a Companhia possuía dois cur-
rais de gado e quatro pessoas escravizadas originais da Guiné. A segunda data
trata-se do aumento da primeira data de terra requerida pelos padres em 1600.
Requereu-se os “sobejos que houvessem [de terras] que se achasse entre a data
de Domingos Álvares e as dos padres”, sendo esta quinhentos braças — equi-
valente a 1.100 metros, ou 0,16 légua em quadra — de terras até chegar ao rio
Pitimbu (TRANSLADO. . . , 1909, p. 49–51).
Para Fátima Martins Lopes (2003, p. 107), estas posses seriam a garantia do
sustento dos padres da Companhia na capitania durante as missões volantes.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 7

O requerimento de um terreno na cidade do Natal fazia-se pela necessidade


de os padres jesuítas formarem uma residência central, pois não havia muitos
padres disponíveis, sendo impossível haver a quantidade necessária de padres
para cada aldeia que deveria ser visitada.
Ao requerer cinco datas de sesmaria, no entanto, tendo uma delas a grande
extensão de 14 léguas, a Companhia de Jesus já deveria pensar sobre o cresci-
mento da ordem na capitania do Rio Grande. Como foi explanado, as missões
volantes eram periódicas e realizadas anualmente por apenas dois padres da
Companhia. Assim, o requerimento de várias terras não representaria apenas
a necessidade de garantir os mantimentos necessários para a subsistência dos
padres na capitania. O exemplo das concessões de terra na capitania do Rio
Grande aos inacianos corrobora as observações feitas pelos historiadores Ed-
gard Leite (2000), Paulo de Assunção (2004), Maria Isabel da Silva Reis Vieira
Rodrigues (1997), e Manoela Pedroza (2020) que atentaram para a ideia de que
a Companhia de Jesus possuía a fé como justificativa para a ampliação de suas
atuações.
Cabe apontar que não se sabe o destino das terras concedidas aos jesuítas na
capitania do Rio Grande na primeira década de 1600. O alvará de 1612 ordenou
a diminuição da terra da Companhia do lugar chamado Tijuru, possivelmente
Guajiru, nas proximidades da aldeia e lagoa de mesmo nome. Contudo, não se
sabe o que aconteceu com as terras após a invasão holandesa e a fuga dos padres
inacianos juntamente com outros moradores da capitania. Quando os inacia-
nos retornaram à capitania do Rio Grande, depois de 1678, não há informações
sobre a posse das terras doadas entre 1600 e 1607. Verificou-se, entretanto, que
das cinco sesmarias doadas no início do século XVII encontrava-se nas posses
da Companhia no momento de sua expulsão algumas fazendas de gado ainda
localizadas na área de sesmarias de maior extensão.
Fátima Martins Lopes (2003) destacou que apesar das dificuldades enfren-
tadas pelos moradores na capitania, como a hostilidade dos índios e também
pela natureza da região (falta de água, e solo arenoso), houve uma adequação
às condições da capitania. Explorou-se o sal natural, foram criados gado e ou-
tros animais, desenvolveu-se pescarias e coletas de âmbar, e foram produzidos
alimentos. A capitania do Rio Grande não possuía alfândega, assim não comer-
cializava os seus produtos diretamente com Portugal, e sim por Pernambuco
A capitania possuía apenas um engenho de cana-de-açúcar no período, o Cu-
nhaú, não havendo uma produção de açúcar relevante. Além disso, é possível
que pelo destaque na produção de alimentos, a capitania tenha comercializado
internamente com as capitanias próximas, pois havia um livre comércio entre
estas (DIAS, T. A., 2011, p. 191–196, 2018, p. 203–225).
As terras requeridas pela Companhia podem ser associadas às atividades
já referidas, pois se tratam de um sítio de salinas no litoral, ribeiras de rios
8 Parnamirim, jan./jun. 2021

importantes para currais de gado e cultivo de mantimentos. A presença de


africanos escravizados em uma das concessões mostra o interesse dos jesuítas
em iniciar uma atividade produtiva ou mesmo preparar e melhorar suas terras.
Ao analisar o Translado do Auto de Repartição de Terras do Rio Grande, Lo-
pes (2003, p. 103) observou que das 186 datas, apenas em sete havia referência
sobre a presença de pessoas escravizadas nas terras, das quais apenas em duas
fazia-se menção à posse de pessoas escravizadas da Guiné, sendo uma delas a da
Companhia de Jesus. Segundo Lopes (2003, p. 68), a escravidão negra no século
XVII foi uma realidade para a Bahia e Pernambuco, capitanias açucareiras que
podiam importar pessoas escravizadas, diferentemente do Rio Grande, onde a
opção pela escravidão negra era muito restrita. Pesquisas mais recentes evi-
denciaram a presença da escravidão negra na capitania do Rio Grande somente
para o final do século XVIII e início do século XIX (MACÊDO, 2007; SOUZA,
2013). Neste aspecto, a posse de pessoas escravizadas pela Companhia mostra
que a ordem era privilegiada se comparada à situação dos demais moradores.
Com a volta dos jesuítas à capitania após a expulsão dos holandeses, retomou-
se o objetivo de catequizar os índios da região. Segundo Serafim Leite, “quebrando-
se o julgo holandês, restabeleceu-se as atividades jesuíticas no Rio Grande, quer
como feição econômica e rural, quer como a vida catequética nos aldeamen-
tos de Guajiru e Guaraíras” (LEITE, S., 2004, Tombo V, p. 370). Dessa forma,
além das atividades missionárias nos aldeamentos — refere-se a um aglomerado
resultante da “aculturação” mediante a presença de missionários catequistas
(AZEVEDO, 1957, p. 39) — os jesuítas também atuaram nas atividades econô-
micas da capitania.
Posteriormente à expulsão dos holandeses, as missões volantes ocorreram
anualmente com a visita de dois padres do Colégio de Olinda da Companhia
de Jesus. Atuaram formando alianças com os índios e batizando-os. Durante
os contatos iniciais na capitania do Rio Grande, a habilidade intercultural dos
jesuítas e o papel de intermediários, possibilitaram as alianças com os Potiguara.
Os jesuítas tornaram-se mais eficientes que as forças militares, pois, possuíam
melhores estratégias da aproximação, tendo possibilitado o encontro pacífico
com os índios (PORTO, 2000, p. 88).
Não há muitas informações acerca da atuação jesuítica na capitania do Rio
Grande no período da ocupação holandesa (1633–1654). É sabido que até 1634,
entretanto, os missionários visitaram algumas aldeias, mas após esta data, não
há registro dos inacianos atuando na capitania (PORTO, 2000, p. 91). Com a ex-
pulsão dos holandeses, retomou-se o processo de colonização portuguesa na ca-
pitania: o Senado da Câmara de Natal foi restabelecido; as sesmarias passaram
a ser doadas novamente; e posteriormente os jesuítas retornaram à capitania.
Desde o Plano Civilizador do padre provincial Manuel da Nóbrega no go-
verno de Mem de Sá, iniciou-se uma mudança na forma de catequizar os índios.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 9

Os jesuítas perceberam que a missão volante havia se tornado menos eficaz me-
diante a necessidade de melhor concentrar os índios e pregar a doutrina cristã,
fazendo os índios abandonarem os seus hábitos culturais e tornarem-se cristãos.
As missões efetivas, chamadas apenas de missões, aldeavam os índios buscando
aproximar-se do ambiente natural dos mesmos, e simultaneamente visavam o
seu afastamento dos centros de colonização (AZEVEDO, 1959). Tais missões
também deveriam possuir uma organização administrativa, deveriam inserir os
índios no trabalho agrícola, promover a ida à igreja, entre outras obrigações
(LOPES, 2003, p. 162).
Este novo modo de catequizar os índios foi ao encontro dos interesses das
autoridades da capitania, pois com a expulsão dos holandeses, a retomada da
colonização na região expandiu-se para o interior, seguindo as frentes de pene-
tração pecuária que provinham da Paraíba, Pernambuco e Ceará (LOPES, 2003,
p. 129). Ao direcionarem-se para o sertão — aqui é compreendido como es-
paço sem atuação da Coroa portuguesa (SILVA, K. V., 2010, p. 112) — os colonos
depararam-se com vários grupos indígenas, os quais foram resistentes à colo-
nização portuguesa, gerando a Guerra dos Bárbaros (CASCUDO, 1984, p. 96;
DIAS, P. O., 2015; SILVA, T. F., 2015).
Neste contexto de conflitos entre índios e colonos e a necessidade de es-
tender as posses de terras para a criação de gado, coube aos jesuítas aldear
os índios para que estes fossem reduzidos em missões e fossem “apaziguados”.
Nestas missões também se tentou regularizar a mão de obra indígena (PORTO,
2000, p. 95).
Os jesuítas fixaram duas missões efetivas na capitania do Rio Grande. Am-
bos aldeamentos eram de remanescentes Potiguara, entre outras etnias: São
Miguel de Guajiru e São João Batista das Guaraíras. O aldeamento de Guajiru
estava localizado na margem da lagoa de mesmo nome (atual lagoa de Extre-
moz), a duas léguas da cidade do Natal, e foi relatada sua existência desde 1641,
por um emissário holandês. Tal aldeamento, portanto, localizava-se na sesmaria
de enorme extensão de 14 léguas concedida no início do século XVII a Compa-
nhia de Jesus. A presença dos jesuítas na aldeia foi mencionada a partir de 1679,
por meio de uma queixa dos oficiais da Câmara da cidade do Natal ao bispo de
Pernambuco, na qual acusavam o padre inaciano João de Gouveia de incitar os
índios contra um administrador colonial. Entretanto, o primeiro relato oficial
sobre a presença dos jesuítas na aldeia foi apenas em 1683, no Catálogo da Com-
panhia de Jesus, sendo o seu superior o padre Antônio Cardoso, na qual também
estava presente o padre Francisco de Albuquerque (LOPES, 2003, p. 170).
A presença jesuítica no aldeamento de Guaraíras, localizado nas proximida-
des do rio Jacu, foi relatada desde 1681, pois neste ano ordenou-se que os índios
da aldeia de Mipibu fossem reunidos com os índios do aldeamento de Guaraíras
(LEMOS, 1912, p. 35). A missão foi registrada nos Catálogos da Companhia de
10 Parnamirim, jan./jun. 2021

Jesus em 1683, com a presença do padre superior Luiz Pinto e do padre José dos
Reis (LOPES, 2003, p. 172).
Foram nos aldeamentos de Guajiru e Guaraíras, e em suas proximidades,
que a Companhia de Jesus exerceu as suas atividades de forma mais intensa.
Ao fundar uma missão fixa, os jesuítas deveriam preocupar-se com o sustento
da ordem, bem como de seus membros e dos índios. Houve a necessidade da
fundação de fazendas para a produção de mantimentos, e criação de animais. A
forma como os jesuítas administravam as atividades produtivas nos aldeamen-
tos e em suas fazendas, pode ser percebida por meio da análise de suas posses
de terra e dos conflitos derivados desta prática.
Com o Alvará de 23 de novembro de 1700, que garantiu uma légua de terra
em quadra (uma légua – 6,6 km – de comprimento por uma de largura) para
o sustento dos índios e missionários, as missões Guajiru e Guaraíras tiveram
suas terras demarcadas na primeira década do século XVIII (CASCUDO, 1984,
p. 111–112; LOPES, 2005, p. 44).
Além das terras das missões, que pertenciam aos índios nelas aldeados, mas
que também eram usufruídas pelos inacianos, observou-se por meio de algumas
cartas de sesmarias que apontavam os jesuítas como confrontantes de suas ter-
ras, que a Companhia de Jesus possuía outras terras na capitania do Rio Grande.
Antônio Cardoso Batalha solicitou uma terra nas proximidades da ribeira
do Ceará-Mirim, em 1739, e afirmou que a terra chamada Maracacheta, locali-
zada nas proximidades do rio Ceará-Mirim, em direção à praia (litoral leste da
capitania) pertencia aos Jesuítas.2 Acredita-se na possibilidade de o lugar Ma-
racacheta ter alguma relação com o lugar chamado Massangana, localizado ao
norte da missão de Guajiru.
O padre jesuíta Antônio de Amorim, em agosto de 1736, requereu um novo
documento da sesmaria que herdou de seu pai, o coronel Antônio Dias Pereira.
A petição foi feita por intermédio do procurador do suplicante, o padre jesuíta
coadjutor e licenciado João Gomes Freire. A terra requerida localizava-se nas
confrontações das terras da própria Companhia de Jesus, nas proximidades do
rio Ceará-Mirim, seguindo o curso do rio Caratã — hoje rio Mudo, ou rio do
Jorge, o qual deságua na lagoa de Extremoz, antiga lagoa de Guajiru (CAS-
CUDO, 1968, p. 79) — ficando este no meio das terras de um lugar chamado
Cacimbas.3 Esta sesmaria pode revelar não apenas uma terra da Companhia
nas proximidades da missão de Guajiru, como também pode evidenciar a ane-
xação da terra herdada por um membro da Companhia, visto que quem reali-
zou a petição foi outro padre jesuíta e a terra localizava-se nas confrontações
2
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte [IHGRN] — Fundo Sesmarias,
Livro IV, n. 287, fl. 51–52.
3
IHGRN — Fundo Sesmarias, Livro III, n. 241, fl. 158–159.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 11

de outras terras da ordem. Ao catequizar os índios nas ditas missões, os je-


suítas utilizaram-se das terras das mesmas, bem como das terras que haviam
requerido inicialmente para as fazendas que produziam mantimentos e tinham
criações de gado para efetivar a catequização.
Para a identificação das posses jesuíticas na capitania do Rio Grande na
primeira metade do século XVIII realizou-se a análise de fontes referentes ao
estabelecimento do Diretório dos Índios. Esse, decretado em 8 de maio de 1758,
aboliu o poder temporal e espiritual dos missionários sobre os índios aldeados.
Desta forma, os inacianos deveriam ser substituídos pela administração civil e
pelo clero secular (COUTO, 1990, p. 18–20). Em 14 de setembro do mesmo ano,
Luís Diogo Lobo da Silva, governador das Capitanias do Norte, ordenou que
fossem erigidas vilas nos aldeamentos administrados pelos jesuítas (COUTO,
1990, p. 43–46). No início do ano de 1759, Dom Francisco Xavier Aranha, bispo
de Pernambuco, ordenou aos superiores dos Colégios de Olinda e Recife, que
quando os substitutos seculares chegassem às missões os jesuítas deveriam se
retirar das mesmas e se dirigissem aos seus Colégios (LOPES, 2005, p. 102).
Em junho de 1759, os párocos seculares chegaram às missões do Rio Grande,
e realizou-se um alistamento dos bens pertencentes às missões, às igrejas e às
residências jesuíticas. Os bens móveis dos jesuítas passaram a ser subordina-
dos à jurisdição do arcebispo de Olinda, visto que seu caráter religioso impedia
que a Coroa os confiscasse. Assim, o rei permitiu que tais bens ficassem sob
a responsabilidade do arcebispo de Olinda, o qual deveria sequestrar e repartir
tais bens (COUTO, 1990, p. 29–35). O ouvidor geral Bernardo Coelho da Gama
e Casco ordenou que se realizasse o inventário dos bens das missões jesuíti-
cas da capitania do Rio Grande, Guajiru e Guaraíras, em 1760, os quais foram
registrados em 1761 (LOPES, 2005, p. 172).
O padre inaciano Alexandre Carvalho entregou os bens da igreja da antiga
missão de Guajiru, Nossa Senhora dos Prazeres e São Miguel, para o vigário
Antônio de Souza Magalhães. No inventário, que se encontra no códice 1964
do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), os bens da igreja eram compostos
por 17 imagens religiosas, das quais sete apresentavam adornos de prata, e uma
de ouro; vários objetos destinados para a celebração de missas, dos quais alguns
eram de prata como relicários, vasos de comunhão, cálices e turíbulo; toalhas,
cortinas, mantos, capas, véus, missais, entre outros. A construção da igreja
de Nossa Senhora dos Prazeres e São Miguel ainda não estava concluída no
momento do inventário.4
A missão de Guajiru possuía 70 cabeças de gado vacum e nove de cavalar.
4
Arquivo Histórico Ultramarino [AHU] — Códice 1964, fl. 337–342. Inventário que mandou
fazer o Dr. Desembargador ouvidor geral Bernardo Coelho da Gama e Casco, de Todos os Bens
Pertencentes a esta missão de Guajiru e igreja de Nossa Senhora dos Prazeres e São Miguel.
12 Parnamirim, jan./jun. 2021

Também possuía 15 pessoas escravizadas.5 Como os missionários não possuíam


comprovantes da origem da posse pessoas escravizadas, nem de seus gados, o
ouvidor geral da Gama e Casco instaurou um sumário de testemunhas para que
fosse apurado se estas propriedades pertenciam à missão ou à Companhia de
Jesus. Segundo alguns índios, antigos moradores da missão, as pessoas escra-
vizadas eram descendentes dos cativos que os missionários haviam comprado
ou trazido nos primórdios da missão.6
Na missão de Guaraíras, os bens foram passados ao vigário Pantaleão da
Costa de Araújo pelo padre jesuíta Manoel Pinheiro. A igreja de São João Batista
encontrava-se nova, construída de pedra e cal. Os bens pertencentes a esta
igreja, embora possuíssem menos imagens religiosas com adornos de prata em
comparação à missão de Guajiru, possuía mais bens. Havia pias de água benta,
pia batismal, dois confessionários, e ainda uma grande variedade de utensílios
religiosos e adornos decorativos: galhetas, cruzes, cálices de prata, castiçais,
velas, bandeiras de paniconografia (gravura em relevo sobre zinco), e panos,
mantos, cortinas e vestimentas sacerdotais de tecidos nobres. A missão ainda
possuía 174 cabeças de gado vacum, 57 de cavalar, 27 de gado caprino, 38 de
ovino, três porcos, e mais vinte e três mil e setecentos réis.7
A missão de Guaraíras possuía pertences que podem refletir uma melhor
condição dessa missão em comparação à missão de Guajiru. A missão de Gua-
raíras possuía uma livraria com 20 volumes, e interessantes utensílios como
“uma chocolateira e seu pau”, um “baú de Moscóvia”, e “umas charamelhas”
(instrumento de sopro).8
Ambas as residências das missões possuíam uma mobília básica como cadei-
ras, mesas, tamboretes, e objetos de higiene pessoal. Em ambos os inventários
também se percebe instrumentos de trabalho, relacionados à produção econô-
mica desempenhada pelos índios, como redes de pescas, serrotes, entre outros
(LOPES, 2005, p. 173).
Assim, como havia sido acordado anteriormente, desde maio de 1758, os
bens semoventes (ornamentos, utensílios, animais, pessoas escravizadas, entre
outros) das missões jesuíticas foram divididos em 1761, conforme a proposta
lançada pelo bispo de Olinda à junta criadora das vilas, que incluía represen-
tantes eclesiásticos, funcionários coloniais e índios que ocupavam cargos civis
e militares (LOPES, 2005, p. 179). Os bens de raiz das missões, ou seja, as ter-
5
AHU — Códice 1964, fl. 337–342.
6
AHU — Códice 1964, fl. 343–347. Auto de Sumário que mandou fazer Bernardo Coelho da
Gama e Casco para por ele perguntar testemunhas ex-ofício, em 30/05/1760.
7
AHU — Códice 1964, fl. 390–398. Inventário que mandou fazer o Dr. Desembargador
ouvidor geral Bernardo Coelho da Gama e Casco, de todos os bens pertencentes a esta missão
de guariras e igreja de São Sebastião.
8
AHU — Códice 1964, fl. 390–398.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 13

ras que foram concedidas para a criação da missão ou mesmo para a ampliação
de sua extensão, deveriam ser repartidas entre os índios das mesmas de acordo
com o arcebispado, e o governador ou capitão-mor da capitania, não ficando
nenhuma terra para a igreja.9
As providências para erigir as novas vilas começaram no início do ano de
1759. As missões de Guajiru e de Guaraíras tornaram-se respectivamente as
vilas de Estremoz em 3 de maio de 1760, e a vila de Arêz em 15 de junho de 1760
(LOPES, 2005, p. 122–123). Nesta mudança de missões para vilas, também foi
ordenado que o ouvidor geral Bernardo Coelho da Gama e Casco convocasse
os prelados dos Colégios de Olinda (ao qual estavam submetidas às missões
jesuíticas do Rio Grande), Recife e Paraíba, para que fossem apresentados os
bens que os jesuítas possuíam em um prazo de 20 dias após a averiguação e
levantamento dos bens.10
Desde maio de 1758, o rei havia ordenado que os bens de raiz pertencentes à
Companhia de Jesus que estivessem em desacordo com as antigas leis impostas
a ordens religiosas poderiam ser sequestrados. Assim, os bens de raiz que não
possuíssem licença régia — norma referente ao Título XVIII das Ordenações
Filipinas, presente no alvará de 30 de julho de 1611, no qual se ordenou que to-
dos os bens religiosos deveriam possuir sua respectiva autorização — poderiam
ser de imediato revertidos à Coroa portuguesa. Em agosto de 1759, o rei Dom
José ordenou que fosse realizado o sequestro de todos os bens da Companhia
de Jesus em Pernambuco com sua respectiva origem e valor.11
Assim, averiguaram-se alguns bens de raiz da Companhia de Jesus na capi-
tania do Rio Grande pertencentes então ao Colégio de Olinda. O ouvidor Gama
e Casco arrolou alguns bens de raiz e os colocou em arrematação pública para
serem arrematados em 1º de junho de 1760 — a saber as fazendas: Oitizeiro,
Ceará e Curral de Baixo.12 É sabido que além dessas fazendas os inacianos pos-
suíam na capitania do Rio Grande os sítios Galos e Guamaré e uma fazenda de
gado chamada de Santa Cruz,13 como se pode ver na figura 2.
Segundo José Jorge da Costa Couto, enquanto Portugal negociava com a
Cúria de Roma (1759-1760) acerca da situação dos bens jesuíticos, a administra-
ção de Portugal manteve os bens fundiários da ordem jesuítica intocáveis, com
exceção dos bens que não possuíam licença régia (COUTO, 1990, p. 149).
9
Arquivo Público do Estado de Pernambuco [APEPE] — Ordens Régias, Livro nº 10 (1755–
1760), fl. 144–146.
10
APEPE — Ordens Régias, Livro nº 10 (1755–1760), fl. 144–146.
11
Arquivo Nacional da Torre do Tombo [ANTT] — Documentação das capitanias do Brasil
existente no núcleo do Real Erário, Livro nº 574, documento sem número.
12
AHU-PE — Papéis Avulsos, Cx. 95. Doc. 7493. Ofício do ouvidor geral Bernardo Coelho
da Gama e Casco ao secretário de Estado Conde de Oieiras. 10 de fevereiro de 1761.
13
AHU-PE — Papéis Avulsos, Cx. 95. Doc. 7493.
14 Parnamirim, jan./jun. 2021

Com a definitiva expulsão dos jesuítas de Portugal e de todos os seus domí-


nios, em 3 de setembro de 1759, os bens da Companhia de Jesus foram revertidos
à Coroa, visto que a ordem religiosa foi extinta. Tal fato foi corroborado pelo
alvará de 25 de fevereiro de 1761, o qual determinou a imediata incorporação
no fisco da Câmara Real de todos os bens temporais, isto é, aqueles que não
se encontravam direta e exclusivamente destinados ao culto divino (COUTO,
1990, p. 151).
Desse modo, a ordem régia de 22 de outubro de 1761 estabeleceu como os
bens confiscados dos jesuítas deveriam ser classificados, registrados e arrema-
tados. Os bens imóveis deveriam ser alienados em público, com a presença da
Junta congregada, sendo aceito o maior lance dos sujeitos interessados em ar-
rendar o bem. A arrematação poderia ser paga em dinheiro ou em gêneros de
fácil venda (COUTO, 1990, p. 153). As normas da referida ordem chegaram ao
governador de Pernambuco, e consequentemente para as Capitanias do Norte,
apenas em 1763.
Foi criada, em 10 de abril de 1769, uma Junta da Fazenda Real em Pernam-
buco, para evitar falhas na administração e arrecadação da Real Fazenda de
Pernambuco. A mesma era composta pelo governador, procurador, provedor e
contador da Fazenda. A Junta deveria ser responsável por classificar os bens
confiscados bem como elaborar um livro de inventário dos ditos bens (COUTO,
1990, p. 158).
Foi por meio destes documentos produzidos pela Junta da Fazenda Real em
Pernambuco que é sabido que, em 1772, algumas fazendas jesuíticas no Rio
Grande, pertencentes ao Colégio de Olinda, não estavam arrematadas: fazenda
Oitizeiro; fazenda Ceará; fazenda Curral de Baixo; sorte de terras no lugar cha-
mado Ceará; e sítio de terra chamado Arraial das Formigas na ribeira do rio
Piranhas.14
As fazendas Oitizeiro, Ceará, e Curral de Baixo, as quais haviam sido ar-
rematadas a Antônio da Silva de Carvalho em 1760, ficaram deterioradas após
o falecimento do mesmo. As ditas três fazendas passaram novamente para a
administração da Provedoria da Fazenda do Rio Grande, em 1770, e foram lei-
loadas em 1776 para Domingos Gomes Maciel.15
As posses de terras da Companhia de Jesus na capitania do Rio Grande as
quais se tem conhecimento foram as fazendas Oitizeiro, Ceará, Curral de Baixo
e Santa Cruz; os sítios dos Galos, Guamaré, e o Arraial das Formigas; além de
uma sorte de terra no lugar chamado Ceará; totalizando três fazendas, dois sí-
14
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro [IHGB] — Arq. 1.1.15. Avaliações dos bens
jesuítas em Pernambuco, 1772, p. 9–11.
15
ANTT — Erário Régio, Capitanias do Brasil — Pernambuco, livro 636, traslado nº 3, Autos
de arrematação dos bens confiscados dos jesuítas e pertencentes ao Fisco Real, dos anos de 1776,
1777 e 1778. Em carta da Junta de Pernambuco, de 15 de junho de 1779.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 15

Figura 2 – As terras da Companhia de Jesus na data de sua expulsão (1759)

Fonte: Elaboração própria a partir das informações contidas em: IHGB — Arq. 1.1.15. Avalia-
ções dos bens jesuítas em Pernambuco, 1772. AHU-PE — Papéis Avulsos, Cx. 95. Doc. 7493. 10
de fevereiro de 1761.

tios, um arraial e uma sorte de terra. Como os bens imóveis citados, referentes
às missões de Guajiru e Guaraíras, estavam subordinados a mesma jurisdição do
Colégio jesuítico de Olinda, não se conseguiu verificar por meio da documenta-
ção analisada quais fazendas estavam subordinadas à administração específica
dos padres da missão de Guajiru, com exceção da fazenda Santa Cruz.16

16
AHU — Códice 1822, fl. 31v–32, CARTA do capitão-mor do Rio Grande, João Coutinho de
Bragança ao governador de Pernambuco, em 17/02/1760.
16 Parnamirim, jan./jun. 2021

Os bens como sustento da fé


Segundo o historiador Fabricio Lyrio Santos (2008) as práticas inacianas de acu-
mulação de bens não contradiziam o voto de pobreza dos membros da ordem.
Essa concepção acerca da acumulação de bens para o desenvolvimento das ati-
vidades da ordem inaciana estava presente já na versão sumária das regras de
funcionamento da ordem, aprovada pelo Papa Paulo III em 1540, na qual o fun-
dador da Companhia de Jesus, padre Inácio de Loyola, recomendava o voto de
pobreza, mas, permitia que se aceitassem rendas para o sustendo dos estudantes
(SANTOS, 2008).
Além disso, as cartas apostólicas Regimini militantis Ecclesiae, de 27 de se-
tembro de 1540, e Exposcit debitum, de 21 de julho de 1550, corroboravam as
regras de criação da ordem e aceitavam que a mesma estabelecesse colégios
para formação de estudantes e novos membros da ordem. Tais colégios deve-
riam possuir suas próprias rendas e/ou propriedades para sua manutenção e
sustento de seus membros (SANTOS, 2008). Portanto, poderiam ou deveriam
ser aceitas as doações régias para efetivar o funcionamento da ordem jesuítica.
Segundo Edgard Leite (2000, p. 60), a história da Companhia de Jesus no
Brasil é a história da construção de um gigantesco patrimônio, o qual foi cons-
truído por uma série de privilégios e favorecimentos da Coroa portuguesa, e
também por decisão acordada dentro da própria ordem.
Desde o primeiro ano que os jesuítas chegaram ao Brasil, em 1549, rece-
beram benefícios, bem como muitos colonos (FRAGOSO, 2001, p. 30–71). No
dito ano, a bula papal Licet Debitum isentou o pagamento de dízimos (LEITE,
S., 2004, Tombo VII, p. 103). Tal isenção foi confirmada no reinado de Dom
Sebastião posteriormente em 1576 e 1577. Também foi estabelecido, desde o
princípio das ações jesuíticas, o fornecimento de gêneros à Companhia, com
finalidade de manter as necessidades da ordem. A partir de 1560 e 1570, uma
porcentagem dos impostos arrecadados pagos em açúcar à Coroa, a redízima
dos dízimos, era repassada aos três colégios jesuíticos do Brasil: Bahia, Rio de
Janeiro e Olinda. Em 1573, um alvará isentou a Companhia dos pagamentos
de direitos alfandegários sobre os produtos que recebessem na ou enviassem
da América portuguesa. A Coroa também destinava aos jesuítas a subvenção
pessoal, equivalente a uma pensão anual, para aqueles que embarcavam de Por-
tugal para o Brasil, sendo 20.000 réis em 1581, e 35.000 réis em 1690 (LEITE, E.,
2000, p. 60–61).
Além dos subsídios reais, com a reconhecida necessidade da posse de ter-
ras para o sustento da ordem jesuítica, bem como para a formação de núcleos
territoriais, os membros da Companhia obtiveram terras por meio das seguin-
tes formas: sesmaria, doação, compra, e mais raramente a troca (ALVEAL, 2002,
p. 12). As doações de fiéis podiam ocorrer pela estipulação de um valor a ser do-
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 17

ado à Companhia anualmente, em espécie ou em produtos do mercado colonial


(ASSUNÇÃO, 2004, p. 81).
Os subsídios reais e as isenções de pagamentos de dízimos e taxas alfande-
gárias mostraram o interesse da Coroa portuguesa de livrar a ordem de obriga-
ções, proporcionando não apenas o seu mantimento, como também o seu cres-
cimento. Para a Coroa, a presença jesuítica, naquele momento, era não apenas
favorável como necessária, pois, convertia-se o gentio e controlava-se a mão de
obra indígena, combatia-se a ação de invasores estrangeiros e relatava-se a pre-
sença destes, e, sobretudo, confirmava a presença portuguesa no novo território
(ASSUNÇÃO, 2004, p. 156). Assim, esse importante papel da Companhia de Je-
sus na integração do mundo colonial era percebido como um serviço prestados
à Coroa.
Ao descrever sobre os bens da Companhia, o historiador e padre jesuíta Se-
rafim Leite relatou que, à primeira vista, os bens da Companhia geram uma
visão equivocada da ordem. Ele afirma que o equívoco é desfeito quando per-
cebida a necessidade dos bens para a manutenção da Companhia. Segundo o
autor, os jesuítas não obtinham lucros das atividades que exercitavam, apenas
necessitavam de maiores subsídios para continuarem com as atividades missi-
onárias (LEITE, S., 2004, Tombo I, p. 49).
Assim como Serafim Leite, Dauril Alden não corrobora a ideia de que a Com-
panhia de Jesus se utilizou do comércio e de outras estratégias para manter a
ordem religiosa. Ambos os autores afirmam que a Companhia não havia que-
brado o voto de pobreza. Alden defende que a Companhia de Jesus não obteve
ganhos significativos, e contesta a associação entre jesuítas e homens do co-
mércio moderno, comumente realizada. Para Alden (1996, p. 527), as atividades
desenvolvidas pela Companhia não se enquadravam como comércio.
Entretanto, autores como Paulo de Assunção (2004), Edgard Leite (2000),
Maria Isabel da Silva Reis Vieira Rodrigues (1997) e Manoela Pedroza (2020),
demonstraram por meio de suas pesquisas que a Companhia de Jesus possuía
a fé como justificativa para a ampliação de suas atuações, principalmente no
comércio de gêneros alimentícios. Por meio do apoio da Coroa, de concessões
de terras, das doações de fiéis, e da administração de seus bens, a Companhia
construiu no Brasil um grande e poderoso patrimônio.
Os jesuítas, inseridos em uma sociedade colonial em formação, acabaram
por se adequar àquela sociedade. A mentalidade moderna do descobrimento e
da conquista não influenciou apenas a monarquia e os colonos. Os jesuítas, ao
compartilharem um mesmo espaço de relações sociais, incorporaram valores
modernos em suas atuações, tornando-se necessário para o desenvolvimento
da ordem, a inserção dos jesuítas no mundo mercantilista (ASSUNÇÃO, 2004,
p. 239). Deste modo:
18 Parnamirim, jan./jun. 2021

A preocupação com o cultivo e a exploração das terras de forma a


garantir a estrutura da Companhia colocou-a em consonância com
a lógica da colonização da época moderna. O empreendimento je-
suítico era parte de uma ação colonizadora que almejava, por meio
da circulação de mercadorias, efetivar o poder da fé. (ASSUNÇÃO,
2004, p. 251)

Os jesuítas designados a missionar na América portuguesa encontravam-se


inseridos em um novo mundo que, diferentemente do contexto europeu, ha-
via necessidades e dificuldades específicas reveladas pelo meio: a produção de
alimentos, as pragas e pestes nos roçados, guerras entre etnias indígenas, in-
vasões estrangeiras, entre outras. Mesmo com os subsídios e doações reais, a
Companhia de Jesus encontrava-se desprovida, insegura, sendo necessária a in-
corporação dos valores da época moderna para que superassem as dificuldades
e mantivessem as atividades missionárias e o crescimento da ordem (ASSUN-
ÇÃO, 2004, p. 151).
Cabe ressaltar que propriedade está relacionada à mentalidade, ou seja, a
forma como se compreendia a posse de uma terra estava associada aos valores
dos indivíduos que o fazia. Dessa forma, as concepções acerca da posse de terras
devem ser relativizadas, pois o vínculo de um sujeito ou instituição com a terra
está relacionada à sua concepção de mundo (GROSSI, 2006, p. 30–31). Além
disso, negar a necessidade da produção de mantimentos, bem como a preocu-
pação com o sustento da ordem, seria negar as condições adversas existentes
no novo mundo colonial que, principalmente no século XVI e XVII, dificultou
a ação dos colonizadores e também dos religiosos. Portanto, a posse de terras
deve ser compreendida como necessária para a existência de indivíduos e de
instituições na América portuguesa, embora, as percepções acerca destas pos-
ses fossem diferentes entre si.
Ao longo da atuação da Companhia de Jesus no Brasil construiu-se um vul-
tuoso patrimônio por meio dos favorecimentos e privilégios reais, doações, con-
cessões de terras, e pelo bom gerenciamento de suas atividades. A Companhia
de Jesus, contudo, ao efetivar seus objetivos de converter os indígenas e gerar
o sustento da ordem, além de manter um domínio espiritual sobre os colonos,
construiu articulações políticas e econômicas. O crescente poder dos inacia-
nos foi uma das muitas motivações da Coroa portuguesa para a expulsão dessa
ordem de todos os seus territórios (COUTO, 1990).

Conclusão
A presença jesuítica na colonização da capitania do Rio Grande do Norte, bem
como da América portuguesa, era necessária, pois, convertia-se os índios e
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 19

controlava-se sua mão de obra, combatia-se a ação de invasores estrangeiros


e relatava-se a presença destes, e, principalmente, afirmava a presença portu-
guesa no novo território. Assim, pode-se afirmar que o empreendimento jesuí-
tico na capitania era parte de uma ação colonizadora que almejava efetivar o
poder da fé por meio da consolidação de um sólido patrimônio e da circulação
de mercadorias. Por sua vez, a construção do patrimônio jesuítico foi viabili-
zada pelo apoio da Coroa, com a larga concessão de terras, e, possivelmente,
das doações de fiéis.

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Recebido em 07 abr. 2021


Aprovado em 24 abr. 2021
FARINHA E CARNE NO SERTÃO. FOME E CARISTIA NO LITO-
RAL
Aspectos do mercado interno no Rio Grande do Norte (séc. XVIII
a XIX)
Thiago Alves Dias1
RESUMO: Partindo da análise de dois gêneros básicos da alimentação colonial que fo- Como referenciar?
DIAS, T. A. Farinha e carne
ram objetos de regulação direta das instituições administrativas coloniais, a farinha de no sertão. Fome e caristia
mandioca e a carne bovina, o presente artigo visa contribuir com a escassa discussão no litoral: aspectos do
mercado interno no Rio
historiográfica norte-rio-grandense sobre o mercado interno e as dinâmicas mercantis Grande do Norte (séc. XVIII
coloniais durante o século XVIII e primeira metade do XIX, notadamente, da cidade do a XIX). Revista Galo, n. 3,
p. 23–51, 17 jul. 2021
Natal. Com base nos registros da Câmara de Natal, cartas de sesmarias e outras fontes
documentais, bem como amparado nas proposituras teóricas do historiador econômico
Istvan Hont, concluímos que o comércio interno no Rio Grande do Norte, em geral, e na
cidade de Natal, em particular, ganhou conjunturas de estabilidade e superação de pro-
blemas de abastecimento a partir da conquista colonial dos sertões e das prerrogativas
institucionais de controle auferidas pela Câmara de Natal.
Palavras-chave: Câmara de Natal. Rio Grande do Norte. Mercado interno.

HARINA Y CARNE EN EL SERTÃO. HAMBRE Y CARESTÍA EN


LA COSTA
Aspectos del mercado interno en Río Grande del Norte (siglos
XVIII al XIX)
RESUMEN: Desde el análisis de los tipos básicos de alimentos coloniales que fueron
objeto de regulación directa por parte de las instituciones administrativas coloniales,
la harina de mandioca y la carne vacuna, este artículo tiene como objetivo contribuir a
la escasa discusión historiográfica en el mercado interno de Río Grande del Norte y la
dinámica mercantil colonial durante el siglo XVIII y la primera mitad del XIX, especial-
mente en la ciudad de Natal. Basándose en los registros de la Cámara de Natal, cartas
de sesmarias y otras fuentes documentales, así como amparado en los planteamientos
1
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Universidade de
São Paulo (PPGHE/USP), professor de História Moderna na UPE e pesquisador no grupo de
pesquisa do CNPq “Laboratório de Experimentação em História Social” da UFRN. ID Lattes:
4789.9607.6279.7571. ORCID: 0000-0003-4308-418X. E-mail: thiago.dias@upe.br.

23
24 Parnamirim, jan./jun. 2021

teóricos del historiador económico Istvan Hont, concluimos que el comercio interno
en Río Grande del Norte, en general, y en la ciudad de Natal, en particular, ganó esta-
bilidad y superó problemas de abastecimiento como resultado de la conquista colonial
del interior y de las prerrogativas institucionales de control obtenidas por la Cámara
de Natal.
Palabras clave: Cámara de Natal. Río Grande del Norte. Mercado interno.

Introdução
No mês de julho de 1711, a Câmara de Natal registrou em seus livros a falência
de João do Rosário, o contratador das carnes daquele ano. Resolveram, portanto,
notificar o fiador do contrato, o tenente-coronel e vereador Manoel Rodrigues
Coelho, exigindo que o mesmo apresentasse uma solução para o caso. Naquela
altura, Manoel Rodrigues Coelho já estava de volta a Natal, já que o mesmo
estava nas trincheiras do Assú combatendo com os indígenas do sertão, sendo
inclusive eleito no ano de 1712 a função de Juiz Ordinário da Câmara de Natal.
Ocorre que durante o mês de junho daquele ano de 1711, mês festivo em torno
do fim da colheita do milho e apropriado pelo calendário cristão em memória
dos santos Antônio, João e Pedro; a cidade sofreu um verdadeiro desabasteci-
mento de carne bovina2 .
No mês de maio de 1713, ou seja, em meio ao problema do abastecimento
da carne bovina, a Câmara de Natal decidiu, acatando a queixa da população,
instituir uma multa para os agricultores que fabricavam farinha de mandioca
e não traziam para a venda pública na cidade do Natal3 . Muito embora não
houvesse impostos diretos da Câmara sobre a comercialização da farinha de
mandioca, o que poderia encarecer o produto, como era o caso da carne bovina,
a oferta do “ordinário pão da terra”, como referiu-se Francisco de Brito Freire
em 1630 (FREIRE, 1675, p. 187) e reiterado por Caio Prado Jr. em suas relevantes
proposituras sobre a agricultura de subsistência no Brasil colonial (PRADO JR.,
1997, p. 165), também sofria com as guerras no sertão. O abastecimento das
tropas do Açu impedia que a produção de farinha do sertão viesse para o litoral.
Além disso, parte considerável da farinha produzida no litoral seguia o lucrativo
comércio com a capitania de Pernambuco, problema essa que teve continuidade
durante todo o século.
2
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte [IHGRN] — Livros de Termos de
Vereação da Câmara de Natal [LTVCN], livro 1709–1721. Câmara de Natal. Termo de Vereação
de 02 de julho de 1711, fl. 43v. Manuscrito.
3
IHGRN — LTVCN, livro 1709–1721. Câmara de Natal. Termo de Vereação de 23 de maio
de 1713, fl. 77v-78. Manuscrito.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 25

Esse quadro de guerras coloniais contra os indígenas e a oferta de mercados


mais vantajosos fora da Capitania do Rio Grande do Norte, provocou sucessivas
ondas de desabastecimento na cidade de Natal durante o século XVIII: nem
carne, nem farinha.
O presente artigo visa contribuir com a escassa discussão historiográfica
norte-rio-grandense sobre o mercado interno e às dinâmicas mercantis coloni-
ais durante os séculos XVIII e XIX, notadamente, da cidade do Natal. A proble-
mática aqui discutida limita-se entre o fim das Guerras de Conquista do Sertão,
a chamada “Guerra dos Bárbaros” (c. 1720), até, aproximadamente, a segunda
metade do século XIX, quando a cotonicultura muda, drasticamente, os padrões
de consumo e de circulação de produtos do comércio interno no Rio Grande do
Norte.
No tocante a historiografia, diferentes esforços de pesquisas em história
econômica e social do Brasil, notadamente, a partir da década de 1970, tem
se debruçado sobre as formas de organização e funcionamento dos circuitos
mercantis internos no período colonial (LINHARES, 1979; LAPA, 1980). Pas-
sado mais de meio século, a crescente preocupação das humanidades com pro-
blemáticas permanentes, tais como: acesso à terra, desiguais relações de tra-
balho e ausência de políticas públicas de financiamento e intervenção estatal
em áreas produtivas estratégicas, por exemplo, continuam conduzindo a comu-
nidade acadêmica a investigar o nosso passado agrário. Essas pesquisas têm o
mérito de buscar evidenciar, entre outras questões, as práticas comerciais endó-
genas e aspectos da economia de subsistência na América portuguesa, passando
pela formação e consolidação de mercados internos. Esse esforço contínuo de
produção de conhecimento visa nos auxiliar, enquanto sociedade, na definição
de caminhos e estratégias para superação de parte desses nossos problemas his-
tóricos.
Esse artigo partiu da análise de dois gêneros básicos da alimentação colonial
que foram objetos de regulação direta das instituições administrativas coloni-
ais: a carne bovina e a farinha de mandioca. A escolha deve-se ao fato de que
inicialmente esses gêneros foram largamente produzidos no litoral atendendo
as demandas populacionais proporcionais ao primeiro século da colonização.
Com o adensamento populacional litorâneo, a consolidação da conquista dos
sertões na primeira metade do século XVIII, foi uma alternativa para ocupação
da terra e formação dos planteis, lavouras e pastos do sertão servindo de re-
taguarda as necessidades de abastecimento alimentício litorâneo. Apesar das
insuficientes pesquisas realizadas no campo da alimentação e produção de ali-
mentos na Capitania do Rio Grande do Norte, tudo nos leva a crer que o arroz,
o milho e o feijão eram, sem dúvidas, amplamente consumidos, no entanto,
tinham um papel secundário na alimentação cotidiana diante do consumo da
farinha de mandioca. De acordo com Câmara Cascudo (1980, p. 78), “a farinha
26 Parnamirim, jan./jun. 2021

foi o produto inicial e sempre há citações holandesas e portuguesas [. . . ]. A


Capitania era região de gado e mandioca”.
O trabalho de pesquisa aqui empregado segue as proposituras teóricas de-
fendidas pelo historiador britânico da economia e do pensando político, Istvan
Hont (2005). Para esse historiador, os padrões de desenvolvimento político eu-
ropeu durante o período moderno, consolidadas durante o século XVIII, mas em
franca expansão desde o século XV, passaram a alinhar o comércio como função
do Estado moderno, solidificando a interação “comércio e política” e intervindo,
inclusive, nas questões de mercado interno, economia doméstica e segurança
alimentar das populações. As funções comerciais das instituições modernas
que cuidavam da presença do rei e do aparato português no Brasil durante o
período colonial não deixaram de ser afetadas por essas transformações e foi
justamente nesse longo processo que podemos analisar um dos cruciais fatores
que permitiram a formação das nações e do ideal do nacionalismo econômico
tão preponderante no âmbito dos Estados nacionais no século XIX, inclusive no
Brasil: a interação “comércio e política”.
Nesse sentido e buscando emular as questões teóricas à realidade política
colonial e imperial do Rio Grande do Norte entre os séculos XVIII e XIX, a
hipótese desenvolvida nesse artigo é que o comércio interno no Rio Grande do
Norte, em geral, e na cidade de Natal, em particular, ganhou conjunturas de
estabilidade e superação de problemas de abastecimento a partir da conquista
colonial dos sertões e das prerrogativas institucionais de controle auferidas pela
Câmara de Natal. Assim sendo, a conquista colonial dos sertões permitiu, por
um lado, a ampliação das fazendas pecuaristas e das lavouras de mandioca nos
sertões e, por outro lado, a Câmara de Natal passou a legislar e ser mais operante
em proteção ao mercado interno e de subsistência, trazendo essa matéria para o
centro das questões jurisdicionais e da organização do estado burocrático local.
Quanto as questões metodológicas, Maria Yedda Linhares (1979), já havia
assinalado a urgência na pesquisa e aprofundamento da temática sobre o mer-
cado interno, ressaltando a importância do desenvolvimento de estudos sobre
a pecuária e a cultura de alimentos no Brasil, encarando-os em suas caracterís-
ticas internas e externas, assim como também se fazia necessário o estudo das
interrelações territoriais. A pesquisadora também apontou um caminho meto-
dológico quando afirmou ser indispensável retomar velhas fontes cartoriais e
de natureza municipal, utilizar novas fontes, reavaliar outras já conhecidas e
revalorizar velhos textos, de forma sistemática e organizada.
Seguindo essas premissas, além da reavaliação de um antigo trabalho pro-
duzido sobre esse tema (DIAS, 2007), utilizamos enquanto fontes documentais:
registros das vereações da Câmara de Natal sob a guarda do Instituto Histórico
e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN); cartas de sesmarias que ex-
plicitam as intenções de uso da terra dos solicitantes disponíveis na Plataforma
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 27

Sesmarias do Império Luso-brasileiro (SILB); registros das ações dos Presidentes


de Província do século XIX disponíveis no site do Center for Research Libraries;
correspondência entre autoridades do Rio Grande do Norte e administradores
lusos através da documentação do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) do
fundo Conselho Ultramarino e disponível no site da Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro (BNRJ) e, por fim, documentos diversos publicados em periódicos
como, por exemplo, “Memória sobre a extrema fome. . . ” do padre Joaquim José
Pereira de 1793 sobre a produção de alimentos no sertão do Rio Grande do Norte
e publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).

A raiz indígena e o comércio da farinha de pau


No final do século XVIII, o padre Joaquim José Pereira produziu importantes
relatos e memórias sobre os longos anos em que viveu no sertão da Ribeira do
Apodi, na Capitania do Rio Grande do Norte, indo viver em São Luís no Mara-
nhão em 1792. Até aquele ano, exerceu a função de vigário dos índios na Vila
de Portalegre, “onde era a minha residência no emprego de Sua Majestade”. Na
“Memória sobre a extrema fome e triste situação em que se achava o sertão da
Ribeira do Apody da Capitania do Rio Grande do Norte. . . ”, o padre registrou
suas afetividades e denúncias sobre uma grande seca que assolou aquelas pa-
ragens no ano de 1792 em uma das memórias dirigidas ao Secretário de Estado
dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos em Portugal, D. Rodrigo de
Souza Coutinho, o futuro Conde de Linhares, enviada para Portugal em 1798 e
publicada pela primeira vez na Revista do IHGB na edição de 1857 (PEREIRA,
1973).
O lamurioso relato do padre sobre a seca e a fome no sertão foi acompa-
nhado de relevantes reflexões sobre a vida no sertão, a questão do acesso à
água, a cadência das chuvas, a importância de se estocar alimentos, além de
sofisticadas análises sobre o papel da agricultura e da terra na constituição dos
Estados modernos. Parecendo ter saído de textos de François Quesnay sobre a
questão do plantio e dos frutos da terra como aqueles que “enriquece os Estados
e as monarquias mais do que todos os outros”, Joaquim José Pereira nos deixou
um mapa. Esse curioso documento é uma tabela apensa à memória indicando,
entre outras informações quantitativas, o número de habitantes daquelas pa-
ragens em 1792, a quantidade de suas plantações de mandiocas, o número dos
lavradores empregados, a quantidade de farinha que consumiam e o excedendo
que podiam estocar.
De acordo com as informações constante, viviam na Ribeira do Apodi no
ano de 1792, pouco menos de 9 mil pessoas, sendo que 5% dessa população era
constituída de lavradores de mandioca. Reunindo as informações das três fre-
28 Parnamirim, jan./jun. 2021

guesias que compunha aquela ribeira, ou seja, as margens do Apodi, a povoação


de Pau dos Ferros e a Vila de Portalegre, plantou-se naquele ano 1.888.000 co-
vas de mandioca, produzindo nada menos que 56.640 alqueires de farinha. De
acordo com as estimativas do padre, cada individuo consumia um prato de fa-
rinha por dia e como um alqueire de farinha corresponde a 60 pratos, significa
dizer que anualmente um individuo consumia 6 alqueires de farinha. As estima-
tivas do padre nos surpreendem quando é constato que a produção de farinha
de mandioca, em um ano de extrema fome e copiosa seca, apresenta um saldo
positivo em mais de 4 mil alqueires de farinha. Significa dizer, portanto, que há
produção de farinha para toda a população da Ribeira e um excedente pequeno,
no entanto, possível de alimentar toda a população em mais um mês de seca,
sem alterar os padrões de consumo mínimo de farinha de mandioca. É possível
imaginar a quantidade de farinha produzida em tempos de chuvas regulares.
Uma das perguntas possíveis e que vale a pena ser feita é: em que momento
e a partir de que incentivos, as terras do sertão da Capitania do Rio Grande do
Norte passaram a ser lavradas com mandioca e comportar engenhos de produ-
zir farinha, tornando tal víveres um alimento básico e em níveis de produção
positiva para a população local? Buscaremos apontar algumas respostas.
Nativa da América do Sul e de conhecimento e usufruto originalmente indí-
gena, a mandioca, palavra Tupi que significa “casa de Mani” ou “raiz de Mani”,
por causa de uma lenda indígena com variadas versões e investigada por Altino
Brasil (1987) através de entrevistas com caboclos e indígenas do Amazonas, é
planta rica em calorias e de cultivo menos penoso comparado à produção açu-
careira ou aos cuidados que requeriam outros tipos de lavoura. Planta de fácil
adaptação e resistente a seca, aproveita-se tanto as folhas, como sua suculenta
raiz. Existem dois tipos de mandioca: a brava e a mansa. A mandioca brava é
aquela que origina a farinha de mandioca, o “pão do Brasil”, como afirmou o
viajante inglês Henry Koster em 1810 (1942, p. 113) e precisa de dispendiosos
preparos para tirar seu veneno e acidez e, só assim, produzir farinha, goma e
outros subprodutos. Já a mandioca mansa é a macaxeira ou aipim e pode ser
tirada da terra e logo preparada para o consumo.
Se, por um lado, a iconografia produzida a partir do século XVII relaciona a
planta e a raiz da mandioca ao mundo indígena, como podemos constatar nas
pinturas de Albert Eckhout e analisadas pela pesquisadora Mariza de Carvalho
Soares (2009), por outro lado, o trabalho nos engenhos ou casas de farinha, ou
seja, a manipulação e o trabalho em torno da transformação da mandioca em
farinha estão relacionados ao mundo africano. Essa forma e ordem de represen-
tações, ou seja, aos indígenas coube o conhecimento da planta e aos africanos
coube o trabalho nos engenhos e casas de farinha, como pode ser constado nos
exemplos apresentados no anexo iconográfico deste artigo, criou uma falsa ideia
sobre o consumo alimentar.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 29

O alimento indígena não foi incorporado à alimentação colonial, logo em


suas bases formativas, por um puro desejo das levas de europeus que chegavam
nas américas. A “farinha de pau” foi uma solução alimentar encontrada pela
Coroa e seus legisladores para assegurar o processo colonizador.
É bem verdade que os rendimentos do açúcar de Pernambuco permitiram
o pagamento das tropas e dos custos da guerra contra os Potiguaras no século
XVI e a efetiva conquista do Rio Grande. Mas é igualmente verdade que o en-
vio de 50 alqueires de farinha de mandioca, às custas da população litorânea e
a mando da Câmara de Natal para manter as tropas nas Guerras de Conquista
do Sertão no Assú no final do século XVII, foi importante para o sucesso da em-
preitada colonial nos sertões4 . Uma década mais tarde, com a continuidade das
guerras contra os indígenas do sertão, “todos os moradores de mais posição” da
Cidade do Natal, decidiram manter às suas expensas, um presídio em Assú com
“farinhas para o sustento dos que nelas assistissem” por 6 meses, enquanto uma
das soluções apresentadas pelo Capitão-mor ao rei D. Pedro II “para segurança
e aumento das povoações”5 .
Como assinalou Bert Barickman (2003), mais do que a preocupação com o
sustento dos escravos, a insistente reedição de alvarás e provisões régias, ainda
na primeira metade do século XVII, que obrigavam os senhores de engenho e
lavradores de cana a plantar um número mínimo de covas de mandiocas, era
para assegurar os estoques abundantes de farinha para os mercados locais e as
populações coloniais como um todo.
Nenhuma das cartas de sesmarias da Capitania do Rio Grande do Norte, ou
seja, os títulos de concessão de terras, citam, como justificativa para a petição,
o termo ‘mandioca’. Mesmo assim, alguns registros mencionam terras para
lavoura ou plantio, de forma genérica, como foi o caso da viúva Paula Pereira
de Abreu, que requereu uma sesmaria na cidade de Natal concedida em 1735
alegando “não ter terras para o plantio de lavouras”6 . A ausência de registro
de solicitações de terras com justificativas em torno da mandioca não implica
dizer que não houve lavradoras ou lavradores de mandioca, ou engenhos e casas
de farinha na Capitania, como podemos constatar em alguns inventários de
moradores da cidade de Natal.

4
IHGRN — LTVCN, livro 1674–1698. Câmara de Natal. Termo de Vereação de 02 de ago.
de 1687, fl. 74v. Manuscrito.
5
Arquivo Histórico Ultramarinho [AHU] — Conselho Ultramarino, RN, cx. 1, doc. 42. Carta
do Capitão-mor do Rio Grande, Bernardo Vieira de Melo, ao rei D. Pedro II sobre as decisões dos
oficiais da Câmara e moradores de Natal de se fazer um presídio no sertão do Açu, que seria
sustentado por seis meses pelas farinhas dadas pelos moradores. Natal, 15 de abril de 1697.
Manuscrito.
6
Plataforma SILB — RN 1149. Carta de Sesmaria de Paula Pereira de Abreu. Concessão em
01 de jan. 1735. Disponível em http://www.silb.cchla.ufrn.br.
30 Parnamirim, jan./jun. 2021

Entre os bens testamentos por Januária da Rocha em 1770, além da escra-


varia e bens de raiz, consta uma morada no sítio do Timbó com meia légua de
terra, móveis domésticos e “apetrechos de fazer farinha em preço de trinta mil
réis”. Já, Rosa Maria Josefa, também moradora no termo da cidade de Natal,
declarou em seu testamento de 1786 que, além dos diversos chãos de terra, sí-
tios e fazendas pecuaristas com escravos, possuía no sítio Coíte “aviamentos de
farinha com roda de cobre e prensa em bom uso”. No testamento de Francisco
Fernandes da Silva de 1771, morador da Vila de São José e distante de Natal,
mas nos arredores litorâneos da cidade, o bem de raiz acabou sendo arrolado de
forma mais específica: uma casa de farinha, ou seja, um engenho de beneficia-
mento da mandioca.7
Para além da subsistência alimentar das famílias que produziam sua própria
farinha, as demandas em torno da comercialização interna, sobretudo, durante
o século XVIII, deu-se muito mais em função das normativas camarárias que
passaram a intervir diretamente na produção agrícola para fomento e proteção
do comércio interno de farinha de mandioca, do que as iniciativas particula-
res dos lavradores ou comerciantes de farinha que acabavam exportando sua
produção para o comércio intracapitanias, notadamente, para Pernambuco.
Os primeiros registros disponíveis sobre o ordenamento institucional por
parte da Câmara de Natal acerca do plantio de mandioca datam da segunda
metade do século XVII e passam a ser constantes. As ordens camarárias para o
plantio mínimo de covas de mandioca, controle na saída desse gênero para fora
da Capitania e as punições para quem descumprisse essas diretrizes, foram te-
mas recorrentes por parte da Câmara de Natal durante todo o período colonial,
sobretudo, em períodos de estiagem. As Posturas anuais, editais e a reedição
constante de punições para os que descumprisse os valores sobre preços pra-
ticados ou que vendessem para fora da Capitania também foram discutidos na
Câmara. No ano de 1734, por exemplo, a Câmara de Natal resolveu convocar
os lavradores de mandioca em reunião para avaliar a capacidade de produção
de suas roças, objetivando forçar os lavradores a manter um fornecimento de
farinha para o mercado interno com alguma regularidade8 . Como apontou Ba-
rickman para a realidade da cidade de Salvador durante o período colonial, “a
repetição dessas leis é por si mesma sugestivas; se tivessem sido obedecidas,
não teria sido necessário reeditá-las a cada ameaça de escassez” (BARICKMAN,
2003, p. 105).
7
IHGRN — Livro de notas 1767–1792. Testamentos de Januária da Rocha de 18 nov. 1770,
de Rosa Maria Josefa de 5 mai. 1786 e, de Francisco Fernandes da Silva de 4 mai. 1771; fl. 11–14v
(Januária), fl. 73–75v (Rosa) e, fl. 21-23 (Francisco). Manuscritos. Agradeço a Thiago Torres
pela indicação e disponibilização das transcrições.
8
IHGRN — LTVCN, livro 1721–1735. Câmara de Natal. Termo de Vereação de 03 de março
de 1734, fl. 154v–155v. Manuscrito.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 31

Três mecanismos de fomento à produção de farinha e controle comercial


desse produto foram utilizados de forma mais constante pela Câmara para ga-
rantir o abastecimento regular interno: vigilância nas roças, vigilância no co-
mércio e solicitações de envio de farinha dos sertões para o litoral. Mas não
foram os únicos.
Muito embora, após o fim das Guerras de Conquista do Sertão e a efetiva
transformação da paisagem nativa em espaços coloniais, a oferta da farinha de
mandioca tenha sido alterada pela produção sertaneja, o problema do mercado
interno não deixou de ser pauta na Câmara de Natal, muito em função do in-
teresse dos lavradores em venderem a farinha para fora da Capitania, como já
foi apontado. A lista de ações é extensa: regular o preço máximo do alqueire a
ser vendido ao povo; promulgação de multas e penalidades para os descumpri-
dores das normativas; pagamentos de aforamento das terras da Câmara foram
cobrados em farinha; vadios foram coagidos para trabalhar nos roçados; roças
foram averiguadas; roceiros foram notificados para declararem, sob juramento,
quanto plantavam e quanto de farinha produziam; farinha foi apreendida nas
casas, roças e porto etc.
Dentre essas ações insistentes e repetitivas da Câmara de Natal, uma ordem
expedida em 1778 se sobressai: a assinatura de um compromisso por parte de
alguns importantes senhores de terras e comerciantes da Capitania em enviar
20 alqueires de farinha, cada um9 . Entre os signatários que assinaram o com-
promisso com a Câmara de trazer a farinha de mandioca para a venda em Natal
estavam: os capitães Manoel Álvarez de Morais Navarro, descente da família
francesa Navarro com posses de terra e negócios na capitania desde a primeira
metade do século XVII (DIAS, P. O., 2016); Antônio da Silva de Carvalho e o
Manuel de Abreu Soares, todos detentores de terras no litoral quanto no ser-
tão, o que provavelmente indica que possuíam roçados e até engenho/casas de
farinha. Já o alferes João Pedro de Sá Bezerra e os sargentos-mores Prudente
de Sá Bezerra, Antônio Rodrigues Santiago e José Rodrigues da Rocha, além de
Francisco Gomes, possuíam terras no litoral, mas sem menção a posses no ser-
tão, o que não impedia que mantivessem roçados e lavradores de mandioca nas
suas terras ou fossem comerciantes ou mesmo os dois. Como era de se espe-
rar, nem todos cumpriram o acordado, no entanto, esse expediente de convocar
pessoas nominalmente para fornecerem farinha foi se repetindo nas decisões
da Câmara.
Antônio da Silva de Carvalho, meses depois, foi notificado mais uma vez
de seu compromisso assumido e Manoel Álvares de Morais Navarro, embora
aparentemente tenha atendido a Câmara naquele momento, anos depois, em
9
IHGRN — LTVCN, livro 1766–1781. Câmara de Natal. Termo de Vereação de 02 de março
de 1778, fls. 240–240v. Manuscrito.
32 Parnamirim, jan./jun. 2021

1786, foi notificado para conduzir à Natal “toda a farinha em seu poder”, por
constar que pretendia comercializar nas regiões salineiras, fora da jurisdição da
Câmara, para ser exportada para Pernambuco, “em extremo prejuízo ao Povo,
o que já teria acontecido para outros destinos”10 .
Durante a segunda metade do século XVIII é possível constatar que foi mais
recorrente a vigilância em torno da farinha que seguia para fora da Capitania,
fosse através dos caminhos terrestres, fosse através do movimento portuário
nas áreas salineiras. A Câmara de Natal não só reeditou incansavelmente suas
ordens e éditos sobre a farinha de mandioca, como passou a intervir em outras
jurisdições ou envolver outros agentes e instituições administrativas nessa em-
preitada: “solicitaram do Governo da Capitania providenciar farinha de outras
jurisdições que não fossem desta Câmara”, “solicitaram dos Capitães-mores da
Capitania que impedissem o embarque de 200 alqueires de farinha para Per-
nambuco”11 e até mesmo pedidos para aqueles que tivessem roças e morassem
fora da Capitania, trouxessem farinha.
A farinha de mandioca, “presente tanto nas mesas dos ricos, como na dos
pobres, e nas cuias e baldes que os escravos usavam à falta de pratos, constituía
a base da dieta comum” (BARICKMAN, 2003, p. 96) e foi largamente produzida
nos sertões da Capitania do Rio Grande do Norte, como foi demonstrado na me-
mória do pe. Joaquim José Pereira, como também em áreas adjacentes a Natal.
Foi produto de grande relevância comercial ao ponto de ter provocado desa-
bastecimento e inflação do preço, já que os alqueires de farinha de mandioca
seguiam para mercados de exportação mais rentáveis.
Ao final do século XVIII, a situação de segurança alimentar em Natal con-
tinuava fragilizada sob a pressão do mercado exportador, notadamente, do co-
mércio realizado com a Capitania de Pernambuco. Em 1791, o Capitão-mor
Caetano da Silva Sanches escreveu aos agentes metropolitanos em Lisboa suas
diligências a frente da Capitania e afirmou que a venda de farinha em Natal,
durante meses “se não vendia aqui uma quarta”, uma vez que a farinha era con-
duzida em embarcações para diversas partes” e a pouca que permanecia era
vendida inflacionada, dada a grande procura12 . O novo capitão-mor cuidou em
buscar intervir, com a força da lei e de sua jurisdição, talvez sem saber que
durante décadas à Câmara de Natal fez o mesmo e com pouco sucesso.
Nesse sentido, coube as instituições ligadas ao aparato estatal, sobretudo,
10
IHGRN — LTVCN, livro 1784–1803. Câmara de Natal. Termo de Vereação de 1786 (data
ilegível), fl. 29. Manuscrito.
11
IHGRN — LTVCN, livro 1784-1803. Câmara de Natal. Termos de Vereação de 1786 (data
ilegível), fl. 27v-28. Manuscrito.
12
AHU — Conselho Ultramarino, RN, cx. 8, doc. 483. Ofício do Capitão-mor do Rio Grande
do Norte, Caetano da Silva Sanches, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar em Lisboa,
Martinho de Melo em Castro. Natal, 29 de abril de 1791. Manuscrito.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 33

a Câmara de Natal, órgão a serviço do povo e dos interesses coloniais portu-


gueses, buscar manter as condições de crescimento populacional e o desenvol-
vimento da cidade sede da Capitania, contingenciando os problemas de abas-
tecimento alimentício internos recorrentes, adotando medidas que implicavam
diretamente na relação “política” e “comércio”.
Durante a segunda metade do século XIX e no contexto do surto epidêmico
do cólera-morbo que se estendeu entre 1855 a 1857 na província, mesmo me-
diante todos os esforços perpetrados pela Câmara de Natal séculos antes para
tornar mais seguro a oferta de farinha no mercado interno, a fome foi recru-
descida. A fala de um presidente de província acerca da possível atitude da
população resumiu os ânimos vividos naqueles tempos de penúria e fome: “ou
farinha ou revolução” (MONTEIRO, 2007, p. 117). Naquela ocasião e mais uma
vez, foi a interferência do estado que sanou a crise alimentar com envios de
farinha de mandioca pelo Governo Imperial no Rio de Janeiro e uso dos recur-
sos públicos para compra do mesmo nas províncias vizinhas de Pernambuco e
Ceará.

O boi europeu e o comércio da carne vacum

É consenso entre os pesquisadores da alimentação que a mais expressiva revo-


lução nos hábitos alimentares humanos foi vivenciada durante o período mo-
derno e fruto da expansão colonial europeia, provocando um maior intercâmbio
de produtos de diferentes continentes e alterando, indelevelmente, a dieta e o
paladar de praticamente todos os povos do mundo. Esse foi o caso do consumo
da carne de boi e de vaca na alimentação no Brasil desde o século XVI.
Tanto os registros escritos como as escavações arqueológicas confirmam
que na antiguidade do continente europeu, a criação de bois era muito difun-
dida no trabalho dos campos, especialmente na lavoura e, portanto, seu papel
na alimentação era secundário. Essa relação se modifica durante a Idade Mé-
dia, já que as escavações revelam a presença significativa de ossos de bois nos
restos de cozinha, mesmo mantendo a prerrogativa de abater os animais idosos,
já que os jovens puxavam os arados e as carroças (FLANDRIN; MONTANARI,
1998). Embora a agricultura produza muito mais alimentos do que a criação de
gado em uma mesma extensão de terra, foram os povos europeus modernos que
mais valorizaram a alimentação carnívora e promoveram a ideia de criação sis-
temática e regular de caprinos, ovinhos e bovinos voltados, em grande medida,
para o abate e alimentação, ligados ao ritmo de reprodução dos animais e sua
aceleração quando pensado em conjunto no rebanho (CARNEIRO, 2003).
Embora as populações nativas americanas se alimentassem de carne de ani-
mais silvestres, as carnes de caça, sua dieta alimentar não era baseada no con-
34 Parnamirim, jan./jun. 2021

sumo exacerbado de alimentos cárneos. Mesmo após o contato e intercâmbio


de sabores e experiências alimentares entre indígenas e europeus, os indígenas
mantiveram a distinção entre os animais criados na companhia de coletivos
humanos e os alimentos provenientes da caça (VELDEN, 2019).
O gado doméstico europeu, descendente de espécies de bovinos silvestres
que habitaram tanto a Ásia com a África, levou milhares de anos para sua do-
mesticação, no entanto, desde as primeiras levas de gado bovino que Colombo
transportou das Canárias para Hispaniola no final do século XV, este foi rapi-
damente naturalizado, representando mais um elemento triunfante da “biota
portátil” que os europeus conduziram para as américas (CROSBY, 1993).
No caso da conquista colonial da Capitania do Rio Grande, notadamente, a
partir da formação da cidade de Natal em 1598-99, o projeto colonial do gado
foi a solução colonizadora encontrada, já que as terras não eram propícias para
o açúcar. Terras boas para o gado de todas as sortes: vacum, cabrum, ovelhum,
muares. Dos 1.268 registros de terras da Capitania do Rio Grande do Norte
disponíveis na Plataforma SILB, 857 citam como justificativa de petição da terra
o criatório bovino. Ou seja, quase 70% de toda a terra da Capitania do Rio
Grande do Norte foi solicitada para a pecuária. Uma pequena parcela desses
registros se refere a terras para pescarias, chãos de terras nas áreas urbanas ou
justificativas várias.
Já no século XVIII, o processo de ocupação colonial dos sertões, que não foi
tranquilo e nem isento de disputas (ARAÚJO, 2007; ALENCAR, 2017), também
foi consolidado pelo criatório bovino. Aos poucos, como explicou Muirakytan
Macêdo (2007), o sertão da Capitania, “movidos pela abertura de fronteiras que
possibilitaram a animação do mercado interno com a comercialização do gado”,
deram início a um grande reordenamento demográfico, catastrófico, em grande
medida, para os indígenas, mas rico de novos reordenamentos sociais. Esse
quadro de ocupação colonial dos sertões pela pecuária, em grande medida, é
confirmado também por meio da análise global das sesmarias nas Capitanias
do Norte estudadas por Carmen Alveal (2019). No caso da Ribeira do Assú, esse
custoso e violento processo de transformação de territórios nativos em espaços
coloniais, criou uma dinâmica mercantil pujante, em que triunfaram as fazendas
de criar gado, as olarias e as oficinas de charqueadas (SILVA, 2015).
O gado, por sua vez, foi se alastrando nas paragens sertanejas e multiplicando-
se em proporções cada vez maiores, durante todo o período colonial. Força
motriz, leite, manteiga, queijo, carne, couro, gordura animal. Muitas foram as
aplicabilidades do gado e sua utilização, tanto no cotidiano da subsistência (no
âmbito da alimentação, vestuário e utensílios domésticos) como nos circuitos
mercantis coloniais internos e de exportação.
A partir da análise de alguns registros iconográficos presentes no anexo
desse artigo, podemos constatar que o motivo e seus variantes “gado bovino”
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 35

foi representado em, pelo menos, três tópicos distintos: primeiro; força motriz
que carrega o arado, puxa
a carroça e movimenta o engenho, notadamente, nos registros do século
XVI e XVII e, portanto, uma relação com a noção de força e trabalho; segundo;
registros de ferro com iniciais de nomes de indivíduos, famílias, fazendas ou
localidades a serem afixados na pelo do gado, notadamente, nos registros dos
séculos XVII a XIX e, portanto, uma relação com a noção de posse e jurisdição e,
por fim, representações sobre alimentos, cozinha e comidas, notadamente, nos
registros do século XIX em diante e, portanto, uma mudança de atitude sobre o
preparo das carnes bovinas e seus derivados, muito em função da nova ordem
imperial do Brasil e a circulação de livros de receitas a partir de impressos do
Rio de Janeiro.
No tocante a relação entre alimentação e políticas municipais da Câmara de
Natal para garantir a oferta de carne bovina para a população local, objeto prin-
cipal de análise do artigo, as questões sobre a farinha de mandioca se repetem
em relação a carne.
Os primeiros registros da Câmara de Natal da segunda metade do século
XVII sobre a temática do abastecimento alimentar da carne versam sobre a re-
gularização e aferição do preço máximo que deveria ser comercializado, indi-
cando que o preço da carne bovina sofria inflação constante. Outro tema repe-
titivo foi a questão do abate de animais em casas particulares e sem licença da
Câmara, já que prejudicava os rendimentos municipais e seu controle efetivo
sobre o comércio local. No entanto, o objeto de maior preocupação dos cama-
rários durante o século XVIII foi mesmo a falta de carne no mercado local da
cidade.
A incisiva preocupação da Câmara sobre a falta de carne na cidade não im-
pactava somente os níveis de confiança que a população poderia ou não ter so-
bre a gestão municipal. Impactava diretamente as contas da Câmara, já que era
um dos poucos impostos de arrecadação municipal e que pagavam as próprias
despesas da Câmara, tais como: o salário do escrivão e do porteiro, a compra de
insumos como papel e tinta, a aquisição de velas e adornos para as celebrações
que envolviam a Câmara ou mesmo a possibilidade de empenhar recursos em
alguma obra pública de melhoria na cidade.
Havia um verdadeiro desinteresse dos comerciantes e fazendeiros em arre-
matarem o contrato municipal dos subsídios das carnes, ou seja, o contrato de
cobrança de impostos devido à Câmara pela carne vendida no açougue público.
Por um lado, essa era a forma dos próprios comerciantes e fazendeiros boico-
tarem a cobrança dos impostos, abatendo seus animais fora da área urbana da
cidade. Por outro lado, esse desinteresse por parte dos possíveis indivíduos ap-
tos a deterem o contrato demonstra a ausência de oferta regular de carne no
mercado local, o que traria prejuízo aos possíveis contratantes, uma vez que
36 Parnamirim, jan./jun. 2021

o contrato era pago antecipado à Câmara por um valor arrematado e o arre-


matante ia retirar o capital investido e o lucro na cobrança diária da venda da
carne. Na segunda metade do século XVIII, esse problema se agravou já que a
criação do imposto régio sobre cada cabeça de boi abatida, o Subsídio Literário,
aumentou a tributação sobre a carne bovina.
Se, na primeira metade do século XVIII, havia uma insegurança alimentar
na cidade de Natal e a oferta de carne bovina era escassa, o fim das Guerras de
Conquista do Sertão e a consolidação da ocupação colonial sertaneja voltada
para a pecuária significou um alento.
Em 1783, a Câmara de Natal escreveu uma carta ao Juiz Ordinário do Jul-
gado do Assú, José Caetano da Costa, explicando que motivações menores já
seriam o bastante para a Câmara recorrer a outras jurisdições e se mover em
vigilante cuidado, caso não fosse a grande falta de um dos principais alimentos
que os habitantes de Natal experimentavam, “com grande e lastimosa frequên-
cia”. Muito embora a situação da fome e carestia alimentar estivesse implicada
em decorrência da seca que a Capitania passava naqueles anos, a fala lamuriosa
cita uma falta recorrente de carne bovina e não pontual.
A solução encontrada nessa ocasião foi cobrar da sociedade colonial serta-
neja os envios de farinha que a sociedade colonial litorânea tinha desprendido
anos antes para assegurar o genocídio das populações indígenas na “Terra dos
Tapuias”.
A Câmara de Natal remeteu ao Juiz do Assú um rol de 12 pessoas que deve-
riam conduzir cada um 16 rezes, duas vezes por mês, totalizando 32 cabeças de
gado mensais durante seis meses, do sertão do Assú para Natal. Nesse sentido,
entre os meses finais de 1783 e os iniciais de 1784, os fazendeiros da Ribeira do
Assú deveriam conduzir 192 cabeças de gado cada um para a sede do governo
da Capitania13 . Os 12 fazendeiros da Ribeira que aparecem no rol são: João da
Costa Pinheiro, Sargento-Mor Francisco José Dantas, Capitão Francisco Dan-
tas Cavalcante, Antonio Duarte, Tenente Constantino dos Santos Braga, Alfe-
res Antonio Lourenço Pereira, José Pedro Tinoco, Capitão José Freire Carneiro,
José Roiz, Capitão João Soares Salgueira, Tenente Cosme Damião e o Tenente
Miguel da Rocha Marques.
Dentre esses fazendeiros dois nomes se destacam. Constantino dos Santos
Braga detinha terras no Assú e em 1762 requereu a concessão de mais terras no
sertão14 . Já José Pedro Tinoco requereu a Câmara de Natal, em 1787, um título
13
IHGRN — Livro de Registro de Cartas e Provisões da Câmara de Natal [LRCPCN], cx. 04,
lv. 12. Câmara de Natal. Registro de uma carta que este Senado escreveu ao Juiz do Assú, José
Caetano da Costa, em 16 de agosto de 1783 para efeito de mandar gado para o povo desta cidade.
Natal, 16 de agosto de 1783. Manuscrito.
14
Plataforma SILB — RN 0806. Carta de Sesmaria de Constantino dos Santos Braga. Dispo-
nível em http://www.silb.cchla.ufrn.br.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 37

de sesmaria de uma légua de terra que se iniciava em um poço d’água e seguia


o curso do rio Assú, junto com sobras de terras que se encontravam devolutas
próximas ao sítio de Angicos, atual cidade de Angicos, além de outras sobras
de terras entre o riacho Juazeiro e o sítio das Flores, no rio Salgadinho, entre
as confrontações do Riacho da Volta, ou seja, terras entre rios e águas, bastante
propícias à pecuária15 .
Tal como foi solicitado que os fazendeiros da Ribeira do Assú levassem ca-
beças de gado de suas fazendas para Natal, dez agentes mercantis da Ribeira do
Seridó também foram solicitados a trazer cabeças de gado em 1785. De acordo
com uma outra carta, dessa vez enviada ao Coronel Caetano em 18 de junho de
1785, os camaristas afirmam que devido “à grande vexação em que se passa este
povo está por falta de carne faz com que este Senado, como tendo obrigação, e
procure remédio a este mal”, para tanto, foi remetido ao Regente dessa Ribeira
“um rol em que vão nomeadas as pessoas que em cada mês vão mandar para
esta cidade o determinado número de rezes e ainda que V. Mercê vai nomeado
no mesmo rol”16 .
Desse rol, consta o nome de dez senhores de fazendas que deveriam suprir
com carne a cidade de Natal a partir de julho até dezembro de 1785, totalizando
175 cabeças de gado. Foram eles: o próprio Coronel Caetano Dantas, João Da-
masceno, Sargento-Mor regente Cipriano Lopes Galvão, Capitão Antonio da
Silva, Cosme Soares, Felipe de Moura, Capitão Domingos Alves dos Santos,
Manoel Gonçalvez de Mello, Manoel de Souza Forte e Vicente Fernandes.
A historiografia norte-rio-grandense, sobretudo, aquela produzida por me-
morialistas, cronistas e historiadores que residiam em vilas e cidades da Ribeira
do Seridó, aponta Caetano Dantas e, posteriormente, seus descendentes, como
homens e mulheres de grande influência e prestígio socioeconômico na região.
Olavo de Medeiros Filho compilou uma série de documentos pertencentes a
acervos do Rio Grande do Norte e da Paraíba que mostram a trajetória mer-
cantil de Caetano Dantas. A caráter de exemplo, só na Ribeira do Seridó, entre
os anos de 1742 a 1768, Caetano Dantas recebeu a confirmação de pelo menos
sete sesmarias em lugares distintos ou ampliando as que já possuía, quase todas
citando a criação de gado e lavouras. Ao problematizar a estratégia e evolução
fundiária de Caetano Dantas Correa, Muirakytan Macêdo (2007, p. 81), consi-
dera sua trajetória uma sístole, ou seja, “o processo de concentração fundiária
por aquisições de sobras desaproveitadas e através da compra”.

15
Plataforma SILB — RN 0884. Carta de Sesmaria de Jose Pedro Tinoco. Disponível em
http://www.silb.cchla.ufrn.br.
16
IHGRN — LRCPCN, cx. 4, lv. 12. Câmara de Natal. Registro de uma carta que este Se-
nado mandou ao Coronel Caetano Dantas na Ribeira do Seridó. Natal, 18 de junho de 1785.
Manuscrito.
38 Parnamirim, jan./jun. 2021

Tendo passado a Tenente Coronel de Milícias em 1793, Caetano Dantas fale-


ceu poucos anos depois. No seu inventário datado de 1798, ele deixou algumas
fazendas de gado, casas e um montante equivalente a 5:673$240 (MEDEIROS FI-
LHO, 1983, p. 120–121). Se tomarmos como parâmetro de comparação os totais
do montante de produção da Capitania para o ano de 1811, os bens deixados
por Caetano Dantas, em 1798, corresponderam a mais de 2% de toda a riqueza
da Capitania em mãos de um único agente mercantil (DIAS, 2007).
As conexões entre as famílias dos fazendeiros podem ser constatadas atra-
vés dos familiares de Caetano Dantas Corrêa e os sujeitos arrolados no rol. João
Damasceno Pereira, que também foi convocado a remeter cabeças de gado para
Natal, por exemplo, era irmão da esposa de Caetano Dantas. Já Cosme Soa-
res Pereira, também convocado a remeter cabeças de gado, era irmão de João
Damasceno Pereira e, portanto, também cunhado de Caetano Dantas. Já Ci-
priano Lopes Galvão, de acordo com Olavo de Medeiros e suas pesquisas da
tradição oral, foi o primeiro Coronel do Regimento de Cavalaria da Ribeira do
Seridó. Falecendo em 1813, deixou em seu inventário 23 escravos, 631 bovinos,
121 cavalos e 202 caprinos e ovinos. Dos dez títulos de terra deixados por Ci-
priano Lopes Galvão, oito eram de criar gados. Seu padrasto foi Antonio da
Silva e Souza, também convocado pela Câmara de Natal para conduzir gado
(MEDEIROS FILHO, 1983). O Sargento-Mor das Milícias, Felipe de Moura e Al-
buquerque deixou um farto inventário que, dentre outros bens, constava 1.066
bovinos, 85 cavalos, 42 caprinos e 24 escravos, um número maior que a mé-
dia de escravos utilizados nas lides pecuaristas dos sertões da Capitania do Rio
Grande do Norte (MEDEIROS FILHO, 1981).
A prática de recorrer ao gado do sertão para suprir as necessidades proteícas
da população de Natal foram ficando cada vez mais expressivas e recorrentes.
A década de 1790 foi marcada por um grande período de estiagem na Capi-
tania do Rio Grande, como foi discutido no início desse artigo sobre a produção
de farinha de mandioca no sertão pela pena do padre Joaquim José Pereira.
Como forma de garantir o abastecimento, a Câmara designou, por escolha do
conselho, as pessoas que deveriam efetivar as responsabilidades dos contratos
sem pagar diretamente à Câmara por isso. O sistema de “administração pela Câ-
mara” escolhia entre os “homens bons”, do termo da cidade, uma “pessoa idônea
e capaz” que pudesse dar continuidade ao abastecimento da carne e da vigilân-
cia dos demais gêneros, passando a quinta parte de tudo que fosse arrecadado
à Câmara.
Assim sendo, José Joaquim Ferreira Nobre foi o votado pela Câmara para
permanecer atuando no contrato das carnes a partir de 1794. As motivações
pela escolha do postulante foram apresentadas: “negociante de gado que vai
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 39

comprar pelo sertão e por este ter muita carne”17 . Contrariando uma Provisão
Régia, a Câmara de Natal estava disposta a não cobrar o imposto devido sobre
cada arroba de gado, o Subsídio Literário, no intuito de fazer com que um co-
merciante, já participante dos ofícios régios, mesmo que temporário, trouxesse
sua vasta produção de carne sertaneja para ser comercializada em Natal.
Muito embora durante todo o século XVIII os oficiais camarários tenham
buscado soluções para o problema do abastecimento da carne bovina na cidade,
o desinteresse dos negociantes em arrematar o contrato era sintomático. Por
um lado, peixes, aves e animais menores podiam suprir a necessidade proteica
da população, já que a pouca oferta da carne bovina era oriunda das fazendas
sertanejas, o que inflacionava o preço final que chegava ao consumidor no li-
toral. Por outro lado, o corte e comércio da carne era realizado, até onde fosse
possível, longe da interferência da Câmara que cobrava seus pesados tributos,
encarecendo o produto. De uma forma ou de outra, durante século XVIII, a Câ-
mara de Natal buscou diferentes estratégias de regularização da oferta de carne
bovina a ser realizado dentro do açougue público: abriram mão dos autos de
arrematação, bem como parte das pensões e impostos devidos; proibiram por-
cos e cabras na cidade alegando saúde pública e até instituíram “olheiros” para
vigiar aqueles que estavam abatendo reses e cortando carne sem licença nas
imediações. No entanto, foi o gado proveniente do sertão, fruto do processo
colonizador baseado na pecuária após as Guerras de Conquista no Sertão, que
trouxeram algum alento para a oferta de carne bovina em Natal.
Durante a primeira metade do século XIX a economia pecuarista do sertão
continuou provendo as necessidades do litoral. Antônio Bernardo de Passos,
Presidente de Província do Rio Grande do Norte, afirmou em 1854 que das fon-
tes dos rendimentos da Província, o dízimo do gado era o mais importante até
aquele ano. Essa constatação de Antônio Passos é fundamentada pelos seguin-
tes dados: o dízimo do gado representou, em média, 47% de todas as rendas
provinciais do Rio Grande do Norte entre 1851 a 1854 (PASSOS, 1854, p. 30).
Como declarou também Figueiredo Jr., outro Presidente de Província, “até o
ano de 1847, a criação de gado era a indústria quase exclusiva a que se apli-
cavam os habitantes da província” (1861, p. 37). Depois da década de 1850, o
algodão passou a ter maior expressividade no comércio e nas contas públicas.
Muito embora o algodão não se coma, mas se veste, a prosperidade econômica
da cotonicultura garantiu novos padrões de desenvolvimento e consumo as po-
pulações tanto no litoral, quanto no sertão.

17
IHGRN — LTVCN, livro 1784–1803. Câmara de Natal. Termos de Vereação de 14 de junho
de 1786, fl. 25. Manuscrito.
40 Parnamirim, jan./jun. 2021

Considerações finais
A formação e consolidação do Estado moderno não foi produto somente da Eu-
ropa, mas também passou pela experiência e prática das instituições coloniais
na América entre os séculos XVI a XVIII. O ‘ciúme do comércio’, ou seja, a apli-
cação da razão do Estado nas questões comerciais e nas necessidades sociais li-
gadas ao comércio, como entende Istvan Hont (2005), também foi vivenciada na
prática colonizadora ultramarina. A Câmara de Natal interveio diretamente nas
questões comerciais e até produtivas para garantir o abastecimento e a oferta,
com preços regulados, de farinha de mandioca e de carne bovina à crescente
população que ia se instalando na cidade sede do governo da Capitania.
As tarefas e incumbências da Câmara não se restringiram a cobrança dos im-
postos devidos e da regularização das práticas e dos espaços comerciais, como
fiscalizar lojas, aferir pesos e medidas ou manter o funcionamento de açougues
e ordenamento de feiras livres. A Câmara buscou garantir a segurança alimen-
tar das populações intervindo diretamente nas práticas comerciais e inclusive
interferindo em outras jurisdições e espacialidades como o sertão, trazendo des-
contentamentos e afetando as lógicas de livre mercado que iam se instaurando,
paulatinamente, no cotidiano das práticas mercantis e nas consciências dos que
agentes mercantis.
Nesse sentido, o comércio interno no Rio Grande do Norte, em geral, e na
cidade de Natal, em particular, ganhou conjunturas de estabilidade e superação
de problemas de abastecimento a partir da conquista colonial dos sertões na
segunda metade do século XVIII e das prerrogativas institucionais de controle
auferidas pela Câmara de Natal durante todo o período colonial. A conquista
colonial dos sertões permitiu, por um lado, a ampliação das fazendas pecua-
ristas e das lavouras de mandioca nos sertões e, por outro lado, a Câmara de
Natal passou a legislar e ser mais operante em proteção ao mercado interno e
de subsistência, trazendo essa matéria para o centro das questões jurisdicionais
e da organização do estado burocrático local.

Referências
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Recebido em 30 abr. 2021.


Aprovado em 14 maio 2021.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 43

Anexo iconográfico: mandioca e carne bovina entre os sé-


culos XVII e XIX
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 45

Tupinambá/Homem Brasilian e de-


talhe da mandioca. Albert Eckhout.
Óleo sobre tela, 272x163 cm. 1643.

Detalhe de Plantes Nutritivies Estudo preparatório e Natu-


de Jean-Baptiste Debret. Lito- reza-morta com mandioca de
grafia em cores, 51,4x33,4 cm. Albert Eckhout. Óleo sobre
1835. tela, 93x90 cm. 1640.
46 Parnamirim, jan./jun. 2021

Detalhe de Enge-
nho de mandioca de
Frans Post. Óleo so-
bre tela, 47x68 cm.
1651. Coleção par-
ticular, Inglaterra.

Preparação da fa-
rinha de mandioca
de Pereira. Lito-
grafia sobre papel,
13,9x18,5 cm. Século
XIX. Arquivo Histó-
rico Ultramarino.

Detalhe de Éplu-
cheuses de mandioca
de Victor Frond.
Litografia sobre
papel, 48x63,5 cm.
1861. Coleção par-
ticular, Inglaterra.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 47

Detalhe de Tu-
pinambá/Mulher
Brasilian de Albert
Eckhout. Óleo sobre
tela, 274x163 cm.
1643.

Detalhe de Tapeça-
ria a partir da obra
de Albert Eckhout
“Les deux taure-
aux”. Lã e seda,
470x740 cm. Circa
de 1690. Mobilier
National de France.

Detalhe de Trans-
port de viande de
boucherie com mar-
cas de propriedade
no gado, de Jean-
Baptiste Debret.
Litografia em pb,
24,5x25,0 cm. 1835.
48 Parnamirim, jan./jun. 2021

Capa do Tratado sobre a salga da carne. . . de Christian


Martfelt, traduzido do francês por um brasileiro e im-
presso no Rio de Janeiro em 1824.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 49

Detalhe do apenso da 10ª edição da obra Cozinheiro Imperial (1ª ed. 1840)
de 1887 mostrando os cortes de carne bovina de R. C. M e impresso no
Rio de Janeiro em 1887.

Boutique de carne secca de Jean-Baptiste Debret.


Litografia em cores, 25,8x19,8 cm. 1835.
50 Parnamirim, jan./jun. 2021

Diversos registros de ferro do gado da Capitania do Rio Grande do Norte


realizados na Câmara de Natal entre 1673 a 1690 constante no Livro de
Registros de Cartas e Provisões da Câmara de Natal de 1673 a 1690.

Registro de ferro do
gado do Sargento-
mor Leonardo Be-
zerra Cavalcante na
Câmara de Natal em
6 de agosto de 1699
constante no Livro
de Registros de Car-
tas e Provisões da
Câmara de Natal de
1691 a 1702, p. 92v.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 51

Desenhos utilizados nas marcas de ferro para gado do Rio Grande do Norte, séc.
XIX–XX por Oswaldo Lamartine de Faria em sua obra “Ferro de Ribeiras do Rio
Grande do Norte” de 1984.
NÃO AO PESO, NÃO AO RECRUTAMENTO
Os Quebra-quilos e as autoridades públicas no Rio Grande do
Norte (1874–1875)
João Fernando Barreto de Brito1
RESUMO: No ano de 1874 as notícias sobre as ações dos Quebra-quilos circulavam Como referenciar?
BRITO, J. F. B. Não ao peso,
com grande velocidade na província do Rio Grande do Norte. As feiras, casas comer- não ao recrutamento: os
ciais e tabernas eram espaços privilegiados para a disseminação das fofocas e mexe- Quebra-quilos e as
autoridades públicas no Rio
ricos em torno de uma onda de revoltas nascidas no interior da Paraíba do Norte. A Grande do Norte
cada momento, notícias chegavam aos ouvidos de autoridades públicas, mas também (1874–1875). Revista Galo,
n. 3, p. 53–73, 17 jul. 2021
de pessoas que se mostraram insatisfeitas com a política imperial, com os impostos
municipais, com o recrutamento por sorteio e, sobretudo, com a lei que estabeleceu
oficialmente o Sistema Métrico Decimal Francês (SMD), substituindo as tradicionais
costumeiras medidas antropométricas lusitanas, prevendo multa e prisão para aqueles
que ousassem desrespeitar tal determinação. O presente artigo investigou a atuação
dos Quebra-quilos no Rio Grande do Norte, destacando vilas e povoações atingidas por
esses sediciosos, identificando os grupos sociais partícipes, suas estratégias, e a ma-
neira pela qual as autoridades públicas e militares combateram os revoltosos na citada
província. Problematizamos fontes oficiais, correspondências, códices, periódicos de
época e ofícios do governo Imperial.
Palavras-chave: Quebra-quilos. Sistema métrico decimal. Rio Grande do Norte.

NO TO WEIGHT, NO TO RECRUITMENT
The Quebra-quilos rebels and public authorities in Rio Grande do
Norte (1874–1875)

ABSTRACT: In the year 1874, news about the actions of Quebra-Quilos rebels spread
out quickly in the province of Rio Grande do Norte. Street markets, commercial houses
and taverns were privileged spaces for spreading rumors and gossip about a wave of
revolts started in the countryside of Paraíba do Norte. At every moment news reached
public authorities, but it also echoed in sectors of society who were dissatisfied with
imperial policy, municipal taxes, recruitment by drawing lots, and most of all the law
1
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ). ID Lattes: 2836.1238.5025.4834. ORCID: 0000-0003-1692-8703.
E-mail: joaofernandohistoria@gmail.com.

53
54 Parnamirim, jan./jun. 2021

that officially established the French Decimal Metric System (SMD), replacing the tra-
ditional customary Portuguese anthropometric measures and imposing fine and im-
prisonment for those who dared to disrespect such determination. The present article
investigates the actions of Quebra-quilos in Rio Grande do Norte, highlighting the vil-
lages and towns affected by these seditious people, identifying the participating social
groups, their strategies, and the way public and military authorities fought the rebels
in that province. We problematize official sources, correspondences, codices, press re-
ports of that time and official letters by the Imperial government.
Keywords: Quebra-quilos. Decimal Metric System. Rio Grande do Norte.

Introdução
Já nos últimos dias do mês de novembro de 1874, povoações e vilas do inte-
rior paraibano e pernambucano foram atacados pelos Quebra-quilos.2 Feiras
locais, casas comerciais, paróquias, coletorias e até as residências de pessoas
influentes dessas localidades (juízes, coletores de rendas, subdelegados e dele-
gados) foram alvos desses revoltosos. A situação entre os do mundo do governo
era de preocupação. Na província do Rio Grande do Norte adotaram-se me-
didas “preventivas”, prepararam-se com a finalidade de conter os agitadores.
Oito dias após as primeiras agitações verificadas na província de Pernambuco,
o Rio Grande do Norte recebeu da Secretaria dos Negócios de Guerra uma con-
siderável quantidade de armamento. Parecia que os representantes provinciais
sabiam da inevitabilidade dos conflitos e armaram-se até os dentes, como diz o
ditado popular.
Mais de 22 mil utensílios a serem usados em combates desembarcaram em
Natal, de onde seriam distribuídos para aqueles responsáveis por evitar o furor
dos Quebra-quilos. O envio de espingardas raiadas, cartuchos, cápsulas, bornais
2
É possível compreender o significado atribuído na época à palavra “quebra-quilos” a partir
da visão do Imperador Dom Pedro II, demonstrada em sua “Falla do Throno” diante da assem-
bleia geral em 16 de março de 1875, oportunidade em que ordem pública novamente havia sido
perturbarda, desta vez no interior de quatro províncias do Norte, perpetradas por “bandos se-
diciosos, em geral movidos por fanatismo religioso e preconceitos contra a pratica do systema
metrico, assaltaram povoações, e destruiram archivos e padrões dos novos pesos e medidas”.
Esta maneira de enxergar os seus súditos descontentes de certo servia como forma de deslegi-
timar a ação dos revoltosos, de modo que não reconhecia as reclamações e protestos proferidos
por tais. Por outro lado, estigmatizava-os como “bandos sediciosos”, fazendo-se alusão a grupos
de salteadores, estes impulsionados pela ignorância, por não aceitarem o sistema métrico im-
posto pelo governo, tresloucados religiosos, ou seja, que não agiam motivados pela razão. Ver
SENADO FEDERAL. Biblioteca Digital. Falla do Throno na abertura da assembléa geral de 16
de março de 1875. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/227319>, acessado
em 29 de julho de 2016.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 55

entre outros objetos é de fato resultado do conhecimento prévio das autoridades


acerca da proximidade dos confrontos com os Quebra-quilos.3
Outra medida de prevenção articulada pelas autoridades do Rio Grande do
Norte foi tomada ainda em 4 de dezembro de 1874, conforme publicou o jornal
D. Pedro II, quando “partio o chefe de polícia Dr. Luiz Ignacio Barreto com des-
tino á comarca de S. José e a diversos pontos da de Canguaretama, limitrophes
da província da Parahyba, no intuito de providenciar em ordem a prevenir a
invasão dos insurgentes daquella província”.4
Um dia depois, Bandeira de Mello ainda demonstrava preocupação em rela-
ção a proteção da província, de modo que solicitou ao presidente pernambucano
Henrique Pereira de Lucena, em virtude da “falta de armamento no Deposito
de artigos belicos d’esta Província”,5 mais armamentos tendo em vista às “oc-
currencias que se vão dando na Província da Parahyba e de que se acham ame-
açadas alguns pontos desta”.6 Naquele mesmo mês, em dia de 5 de dezembro de
1874, as previsões se confirmaram e aos poucos vários lugares seriam também
palco das ações dos Quebra-quilos, como podemos observar da figura 1.

Figura 1 – Quebra-quilos no Rio Grande do Norte

Fonte: Monteiro (1993, p. 17)

O presente artigo visa investigar a atuação dos Quebra-quilos no Rio Grande


do Norte. Destacaremos as vilas e povoações atacadas por esses sediciosos, que
grupos sociais participaram ativamente, quais estratégias foram utilizadas por
eles, e como as autoridades públicas e policiais norte-rio-grandenses lidaram
3
Arquivo Nacional, Brasil — Código NP, Fundo “Diversos códices da antiga SDH”. Notação
do documento “Códice 603 v. 5”. Dr. José Maria Lopes da Costa, Secretaria do Estado dos
Negócios de Guerra, em 29 de novembro de 1874, p. 24.
4
Biblioteca Nacional, Brasil (Hemeroteca Digital) — D. Pedro II, n. 34, 24 de dezembro de
1874, p. 2.
5
Arquivo Público do Estado de Pernambuco Jordão Emerenciano [APEJE] — Coleção cor-
respondências entre presidentes de província, PP 53,1874, p. 290.
6
Ibidem.
56 Parnamirim, jan./jun. 2021

com esta que foi a maior revolta popular do século XIX. Serão investigadas fon-
tes oficiais do governo, tais como correspondências entre presidentes de provín-
cias, o códice 603 (fonte que reuniu vários documentos ministeriais da Guerra e
da Justiça sobre a revolta), além de diversos periódicos. Analisaremos os discur-
sos e falas das autoridades, bem como problematizaremos as ações, experiências
e estratégias dos Quebra-quilos.

Desenvolvimento
Segundo a folha noticiosa Diário de Pernambuco, insurgentes da Paraíba
transpassaram os limites provinciais e adentraram o Rio Grande do Norte em
5 dezembro de 1874. De acordo com o referido jornal, cerca 200 indivíduos de-
nominados “quebra-kilos”, que unidos a mais 100 pessoas do lugar invadiram a
feira da povoação de Santo Antônio, município de Goianinha, causando a des-
truição de pesos e medidas do SMD em diferentes estabelecimentos. Destacava
a mencionada folha noticiosa, pretendiam os sediciosos adentrar a casa do pa-
dre capelão com o intuito de queimarem os livros de batismo dos filhos livres
de mulheres escravas, algo não realizado posto que foram demovidos de suas
intenções pelo subdelegado local.7
Ao atacarem a povoação de Santo Antônio (RN), os sediciosos usaram de
estratégias já bem conhecidas, repetindo-se o modus operandi das ações tidas
nas províncias da Paraíba e Pernambuco. Parece-nos que a experiência dos
ataques passados ainda na região da Borborema norteou as investidas tanto do
lado pernambucano quanto do lado rio-grandense. A feira se manteve como
espaço de aglutinação de novos revoltosos (dos paraibanos com os nativos) e o
lugar de demonstrar as insatisfações com as políticas e autoridades imperiais.
Isto porque a escolha de um alvo limítrofe à Paraíba não era algo aleatório.
Os insurgentes paraibanos “invadiram” Santo Antônio e somaram-se a mais
indivíduos deste povoado.
É preciso trazer à tona também a participação ativa de sujeitos pardos, ca-
boclos e negros (escravos(as), ex-escravos(as) e gente livre) em algumas ações
ocorridas no Rio Grande do Norte. Atentos às transformações promovidas pela
lei do Ventre Livre (1871), cuja obrigatoriedade de comprovação da propriedade
escrava passava a ser de responsabilidade do proprietário e não mais do cativo,
e para a condição que envolvia a condição do escravo ingênuo a depender de
sua data de nascimento, podemos inferir que a procura de certos sediciosos pe-
los livros de batismos de filhos livres de mulher escrava era um meio de evitar
com que estes se tornassem escravos ilegalmente. Evitava-se que o senhor de
7
Biblioteca Nacional, Brasil (Hemeroteca Digital) — Diário de Pernambuco, ed. 286, 15 de
dezembro de 1874, p. 1.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 57

falsificasse a data do registro de nascimento daqueles e/ou impossibilitava a


comprovação da propriedade por este.8
Ademais, o desfecho desta passagem dos sediciosos por Santo Antônio teve
início quando uma força policial, composto de 53 praças de linha e guiada pelo
alferes João Ferreira Oliveira, foi destacada para o termo de Canguaretama, sede
da comarca. O coronel Bonifácio Francisco Pinheiro da Câmara (que foi o se-
gundo vice-presidente do Rio Grande do Norte em 1873, além de chefe do par-
tido Conservador da mesma província), naquele momento comandante supe-
rior da Guarda Nacional, articulou no mesmo dia um contingente da capital
para enviar ao local. Isto teria desmobilizado os sediciosos que recuaram em
suas intenções, mas não por muito tempo.9
Bandeira de Mello e Filho comunicou em carta endereçada ao presidente
Henrique Pereira de Lucena no dia 7 de setembro de 1874, que no município
de São José de Mipibú, 40 quilômetros de Canguaretama, “desordeiros” da po-
voação de Santa Rita da Cachoeira se manifestaram contra os pesos e medidas.
Repetia-se a fórmula anterior até que um boato sobre alguns sujeitos que acusa-
dos de serem “republicanos e defensores das liberdades públicas”10 se prepara-
vam para organizar um motim na feira daquele lugar, de modo a fazer com que

8
A presença de pessoas negras nas revoltas do Quebra-quilos no Rio Grande do Norte pode
se averiguar a partir da ação que intencionava a queima da documentação cartorial, que para
além de se querer evitar o pagamento de impostos ou dívidas também envolviam os docu-
mentos de matrículas de escravos, classificação de escravos e o registro de nascimento e óbito
dos ingênuos, o que colocava em dificuldades a comprovação da propriedade escrava pelo se-
nhor, portanto o que nos leva a crer que a participação de negros cativos nestas revoltas é um
elemento pertinente. Lembremos que o historiador Luciano Mendonça já chamava a atenção
para os casos de participação de escravos, ex-escravos e gente negra nas sedições em Campina
Grande. No Rio Grande do Norte os estudos sobre a história dos negros e de suas lutas ainda
são poucos, podemos citar alguns trabalhos como os de MATTOS, M. R. M. F. Vila do Príncipe
(1850–1890): Sertão do Seridó — um estudo de caso da pobreza. 1985. Dissertação (Mestrado
em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói; ASSUNÇÃO, L. C. d. Os Negros do
Riacho: estratégias de sobrevivência e identidade social. Natal: UFRN/CCHLA, 1994; BORGES,
C. C. d. L. Cativos do Sertão: um estudo da escravidão no Seridó, Rio Grande do Norte. 2000.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual Paulista, Franca, SP; MACÊDO,
M. K. A penúltima versão do Seridó: uma história do regionalismo seridoense. Natal: Sebo
Vermelho, 2005; MACEDO, H. A. M. d. Histórias de famílias mestiças no Seridó (séculos XVIII–
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ANPUH, 2015; LOPES, M. S. Escravidão na vila do príncipe, província do Rio Grande do
Norte (1850–1888). 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal; PEREIRA, A. d. M. Escravos em ação na comarca do Príncipe:
província do Rio Grande do Norte (1870–1888). 2014. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.
9
Biblioteca Nacional, Brasil (Hemeroteca Digital) — Diário de Pernambuco, ed. 286, 15 de
dezembro de 1874, p. 1.
10
Ibidem
58 Parnamirim, jan./jun. 2021

o povo acompanhasse “o movimento sedicioso apurado na Província visinha


[Paraíba]”11 .
O Diário do Rio de Janeiro não demorou a trazer novas notícias “desa-
gradáveis” da província do Rio Grande do Norte. Segundo o jornal em 14 de
dezembro na cidade de Goianinha, cerca de 300 homens entraram na casa de
câmara e cadeia e quebraram pesos e medidas. Além disso, tentou-se queimar
os arquivos públicos, entretanto foram impedidos por alguns policiais e pessoas
que o periódico classificou como “respeitáveis do logar”12 , o que indica o grau
de influência e talvez econômico destas.
As notícias reproduzidas pelos jornais de que “a maior parte dos sedicio-
sos eram sertanejos, desertores, criminosos e sentenciados”13 não são dignas de
total confiança, uma vez que estes estereótipos recaíam com grande frequên-
cia sob a arraia miúda e multiplicavam preconceitos. Ora, já (d)enunciamos a
participação de pessoas de cabedal ligadas a esse movimento14 .
O jornal D. Pedro II, da cidade de Fortaleza, em 24 de dezembro reproduziu
do jornal O conservador (RN) as notícias das agitações ocorridas no início de
dezembro de 1874 na província norte-rio-grandense. Na terceira página aca-
bou por reportar o discurso de que “a população de toda a província mostra-se
infensa aos invasores, e disposta a apoiar a acção da autoridade”15 , o que na
realidade não acontecia. Isto porque parte da população continuava a apoiar os
paraibanos revoltosos e a engrossar as fileiras sediciosas contra as determina-
ções imperiais. Talvez tal “população” a qual se referia a folha rio-grandense,
aliás da situação conservadora, não correspondesse ao todo, mas a uma parte
daqueles “respeitáveis do logar”16 , apenas uma parcela.
A povoação de Currais Novos (distante mais de 100 quilômetros da divisa
11
Não sabemos a procedência ou a veracidade desse boato, porém é estranho ao movimento
Quebra-quilos no geral que bandeiras e ideias republicanas fossem levantadas como forma de
reivindicação. Esta pode ter sido uma forma do presidente do Rio Grande do Norte alegar a
Lucena a urgência das ajudas que solicitou ao mesmo ou se foi algo peculiar daquele episó-
dio. Não há registros iguais a este nem relatos parecidos. Os protestos dos Quebra-quilos não
pretendiam sucumbir a ordem imperial vigente, aliás se caracterizava por um movimento com-
posto inclusive por gente do governo e por ser anti-fiscal. Isto nos leva a crer que tal “boato”,
portanto, não passou de uma artimanha do senhor Bandeira de Mello.
12
Biblioteca Nacional, Brasil (Hemeroteca Digital) — Diário do Rio de Janeiro, ed. 347, 16 de
dezembro de 1874, p. 1.
13
Ibidem, p. 1.
14
Ver “Gráfico 1” em BRITO, J. F. B. d. Quanto pesa o quilo? A adoção do Sistema Mé-
trico Decimal francês no Brasil e os Quebra-Quilos do Norte agrário (1862–1875). 2020. Tese
(Doutorado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. p. 171.
15
Biblioteca Nacional, Brasil (Hemeroteca Digital) — D. Pedro II, n. 34, 24 de dezembro de
1874, p. 2–3.
16
Biblioteca Nacional, Brasil (Hemeroteca Digital) — Diário do Rio de Janeiro, ed. 347, 16 de
dezembro de 1874, p. 1.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 59

com a Paraíba), na época pertencente ao município de Acari, foi invadida pe-


los Quebra-quilos que seguiram em marcha para a vila de Sant’Anna do Seridó
(hoje município de Santana do Matos), quase 60 quilômetros adiante. Nesta
ocasião, o juiz municipal e outras autoridades locais de Sant’Anna reuniram
100 homens a fim de frear o ímpeto dos sediciosos. Segundo o Diário de Per-
nambuco, até o dia 19 de dezembro nenhum agitador havia arriscado aden-
trar naquele lugar, de maneira a comemorar a iniciativa das pessoas locais em
organizar-se para repelir os revoltosos. Tal exemplo, congratulava ainda a re-
ferida folha noticiosa, “é digno de ser imitado e muito honra aos cidadãos que
tão espontanea e patrioticamente se empenham em defeza da ordem publica”17 .
A demonstração de resistência contra os avessos ao SMD representava a
frágil organização policial de cada uma dessas localidades distantes das capitais
provinciais. A falta de efetivos e de pessoas qualificadas não eram os únicos
problemas do aparato repressor imperial, especialmente nos espaços mais pro-
fundos do Norte Agrário retratado por Evaldo Cabral de Melo. Da deficiência
estrutural do estado imperial surgiam organizações particulares que se utiliza-
vam da força e da violência, era assim com os Quebra-quilos, era assim com
aqueles que voluntariamente pegavam em armas para repeli-los.
Sobre as agitações no Rio Grande do Norte, o jornal O Mossoroense deu
destaque ao diferente nome atribuído ao Quebra-quilos, movimento que se-
gundo o jornal chegou à região seridoense18 com outra designação. “Ronco
da abelha — He com este nome que já chegou no Seridó desta província a
revolução parahybana chamada – Quebra-Killos” [grifo da fonte]19 . A compa-
ração se faz notória sob o prisma da experiência da luta popular, já que ambas
as revoltas estiveram relacionadas à insatisfação da população pobre frente às
modificações das leis referentes aos registros de nascimento, batismo e óbito e
do censo geral — na ocasião o de 1851, barrado pelo Ronco dos revoltosos, e o
realizado em 1872, o primeiro do Brasil, apesar de questionáveis e polêmicas
sobre sua feitura (OLIVEIRA, 2005).
O mesmo periódico enunciou a existência de boatos que diziam respeito
a invasão da vila do Acary pelo “Ronco da Abelha” e de Jardim (hoje Jardim
de Piranhas, posto que a sua quase homônima Jardim do Seridó se chamava à

17
Biblioteca Nacional, Brasil (Hemeroteca Digital) — Diário de Pernambuco, ed. 04, 6 de
janeiro de 1875, p. 3.
18
Seridó é uma macrorregião do Rio Grande do Norte, que compreende atualmente aos mu-
nicípios de Acari, Carnaúba dos Dantas, Caicó, Cruzeta, Currais Novos, Equador, Ipueira, Jar-
dim de Piranhas, Jardim do Seridó, Ouro Branco, Parelhas, Santana do Seridó, São Fernando,
São João do Sabugi, São José do Seridó, Serra Negra do Norte e Timbaúba dos Batistas. Esta
região é caracterizada pela vegetação seca e pelo clima semiárido. Ver (ABRANTES, 2011).
19
Museu Histórico Lauro da Escóssia, Mossoró/RN — O Mossoroense, n. 99, 20 de dezembro
de 1874, p. 2.
60 Parnamirim, jan./jun. 2021

época apenas “Seridó”). Nesta última os Quebra-quilos festejaram suas ações


na feira e inutilizaram pesos e balanças “ao som de música e foguetes”20 , que
foi obrigada a tocar para e pelos sediciosos. Longe de representar uma mera
atividade lúdica, como nos alertou Maria Clementina Pereira Cunha21 , a festa
fez-se na expressão do descontentamento coletivo dos sediciosos em relação às
políticas imperiais. O som da banda marcial ecoava como vitória aos ouvidos
dos Quebra-quilos. Celebrava-se o descumprimento da lei métrica. Resistia-se
à disposição imposta de “cima para baixo”. (CUNHA, 2002, p. 13).
O Diário de Pernambuco, por sua vez, evidenciou as agitações dos Quebra-
quilos em 13 de dezembro de 1874 na povoação de Poço Limpo (pertencente
naquele tempo ao município de São Gonçalo, hoje grande Natal), lugar em que
os sediciosos atacaram os exemplares do metro, pesos e balanças e as casas
dos comerciantes locais. O jornal exemplifica o caso do comerciante português
Lourenço José Corrêa, que se negando a entregar pesos e medidas foi espan-
cado pelos revoltosos juntamente com o seu filho.22 Não eram raras as ameaças
endereçadas às autoridades e comerciantes locais, especialmente àqueles que se
mostravam guardiães dos interesses imperiais.
Poucos quilômetros de São Gonçalo, comerciantes da vila de Macaíba es-
tiveram igualmente sob a ameaça da turba. Todavia, há de se destacar que
havia uma diferença entre a perseguição aos comerciantes nascidos no Bra-
sil e aqueles provenientes de outras nações, o que se caracterizou em certos
casos como ações de xenofobia. Podemos inferir a respeito da existência de
preconceitos entre tais comerciantes locais com os de fora, mas também existia
a queixa dos brasileiros de que estrangeiros monopolizavam o comércio a reta-
lho, beneficiando-se ao enganarem os pequenos comerciantes, pois manejavam
habilmente os preços, açambarcando e especulando, assim como utilizavam os
novos padrões métricos, diferentemente dos primeiros.
Em correspondência de Bandeira de Mello ao presidente pernambucano Pe-
reira de Lucena, datada de 19 de dezembro de 1874, o primeiro comunicava a
invasão da vila de Sant’Anna do Mattos por um grupo composto por cerca de
200 indivíduos, que nos dizeres daquela autoridade eram “homens mal inten-

20
Museu Histórico Lauro da Escóssia, Mossoró/RN — O Mossoroense, n. 99, 20 de dezembro
de 1874, p. 2.
21
As festas, conforme Cunha, são hoje objeto de estudo da história social da cultura, com-
preendidas como manifestações, espaços de tensões e conflitos. Segundo a autora, por meio
delas o historiador “poderá espiar uma rica miríade de práticas, linguagens e costumes, des-
vendar disputas em torno de seus limites e legitimidades, ou da atribuição de significados, e
sentir as tensões latentes sob as formas lúdicas, [...] captar manifestações de dor, revolta, ale-
gria, presentes nos dias de festa como nos dias comuns”. (CUNHA, 2002, p. 12).
22
Biblioteca Nacional, Brasil (Hemeroteca Digital) — Diário de Pernambuco, ed. 293, 23 de
dezembro de 1874, p. 1.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 61

cionados”23 , cuja ordem obedeciam a um tal de Cipriano Lopes Pequeno. Em


Baía Formosa, à época povoação de Canguaretama, no dia 22 de dezembro “se-
diciosos conhecidos por quebra-kilos praticaram desordens, destruindo pesos
e medidas dos poucos estabelecimentos alli existentes”24 , conforme noticiou o
Diário de Pernambuco. Antônio Jeronymo, o delegado de polícia local, fez
frente ao movimento junto a 25 praças de linhas e o alferes Paula Moreira, o
que resultou na prisão de dois revoltosos, Manoel Egidio e Calisto de Araújo,
sob os quais se abriu inquérito.
Temia-se que a atuação dos Quebra-quilos adentrasse o centro da província
chegando as zonas mais distantes do litoral, as quais eram consideradas longe
dos olhos da justiça e da mão controladora do governo imperial, onde o poder
das autoridades públicas em reprimir os sediciosos encontrava grandes empe-
cilhos. Sant’Anna do Mattos era um forte indício de que a revolta poderia se
agravar no interior da província do Rio Grande do Norte.
Não demorou muito e o medo das autoridades havia tomado forma, visto
que logo os sediciosos começaram a quebrar as balanças e os pesos de vilas e
povoações do Seridó e do Alto Oeste potiguar25 . Publicou-se no jornal O mos-
soroense que a agitação contra o SMD chegara à vila de Apody já no dia 1
de janeiro de 1875. Em carta recebida pelo citado periódico, comunicou-se que
um grupo de populares percorreu as ruas e forçaram negociantes a entregar-
lhes medidas e pesos do sistema decimal. Outro alvo foi a casa do secretário
da câmara, conhecido por Joaquim José Carlos Noronha, o qual não se encon-
trava em sua residência, talvez tendo se evadido assim que soubera da ação dos
revoltosos, os quais apenas encontraram e rasgaram as tabelas de conversão
de medidas antigas para o sistema francês, assim tendo o referido funcionário
retirado previamente os papéis concernentes aos impostos da municipalidade.26
Onze dias depois, o mesmo jornal publicou a manchete intitulada “Quebra
kilos em Páu dos Ferros”, e noticiou a entrada de sediciosos — classificados no-
vamente como Ronco da Abelha, o que nos releva que a experiência de 1850
ainda estava viva na memória das autoridades locais — na povoação de Luís
Gomes. Foi descrito por um informante anônimo do jornal que “reuniram-se
mais de 600 homens[,] quase todos armados e rebentaram todos os pesos e
23
APEJE — Coleção correspondências entre presidentes de província, PP 53, p. 297.
24
Biblioteca Nacional, Brasil (Hemeroteca Digital) — Diário de Pernambuco, ed. 286, 15 de
dezembro de 1874, p. 3.
25
A região do Alto Oeste está geograficamente localizada no extremo oeste do Rio Grande
do Norte, zona fronteiriça entre Ceará e Paraíba. Hoje a região concentra 37 cidades, sendo
Pau dos Ferros considerada pelo IBGE (2008) o centro sub-regional, quer dizer, abaixo daquelas
metrópoles com área de influência regional, como Natal e Mossoró, por exemplo. (DANTAS;
SILVA, 2011).
26
Museu Histórico Lauro da Escóssia, Mossoró, RN — O Mossoroense, n. 101, 13 de janeiro
de 1875, p. 3.
62 Parnamirim, jan./jun. 2021

medidas que haviam naquela Povoação”27 . Isto porque, o movimento teria con-
tado com ajuda do subdelegado de polícia Joaquim Ferreira Pinto, assim como
do juiz de paz José Alexandre de Sá, acusados de andar “cabalando [tramando]
e convidando gente para isso”28 .
A diversidade dos envolvidos nos conflitos do Quebra-quilos é um impor-
tante aspecto dessa revolta. Isto quer dizer que não é um absurdo considerarmos
a união, mesmo que momentânea, de grupos sociais e economicamente distin-
tos, tais como agricultores e pequenos comerciantes a juízes e delegados de
polícia, como sugeriu o informante da folha O Mossoroense. Por isso, concor-
damos com Maria Verônica Secreto ao afirmar que “não vamos dizer que estes
[sediciosos] atuavam com total independência, nem que em alguma oportuni-
dade não recorreram a algum ‘padrinho poderoso’ para se protegerem, nem
que os liberais e ‘jesuítas’ não se regozijavam com a desgraça conservadora”
(SECRETO, 2011, p. 115).
Embora não tenhamos como afirmar que o autor da carta endereçada ao
jornal fosse ligado aos interesses do partido conservador ou liberal, podemos
inferir a partir de suas ilações que o mesmo tinha por objetivo incriminar opo-
sitores políticos, os quais também compunham o mundo do governo. Assim,
prosseguia o escritor que “na [povoação de] Victoria também deu-se a mesma
cousa no domingo passado, dizendo-se que os chefes foram Benedicto Pereira
da Silva e Manoel Soares; aquelle irmão do sub-delegado d’aqui e este irmão
do tenente-coronel Martiniano de S. Miguel, todos gente gente do governo 29 [grifo
do governo
governo!”
nosso].
Observemos que não precisamos saber se a “gente do governo” realmente
agiu em favor dos insurgentes, posto que tais revoltas contribuíam (in)diretamente
para o acirramento das rivalidades entre políticos locais em torno de benesses,
privilégios e cargos. Tanto poderiam agir em apoio aos Quebra-quilos para
prejudicarem os da situação, quanto os da situação acusarem os opositores de
participação, mesmo que estes não o fizessem. Subalternos ou não, estes enten-
diam que a quebra da normalidade, ou da “ordem pública” (como nos dizeres
das autoridades da época), era o momento ideal para acertar determinados as-
suntos. Nestas ocasiões poderiam emergir as tensões que antes se escondiam
na penumbra dos dias ordinários. Punham-se as forças políticas em disputa.30
27
Museu Histórico Lauro da Escóssia, Mossoró, RN — O Mossoroense, n. 101, 13 de janeiro
de 1875. p. 1.
28
Ibidem.
29
Museu Histórico Lauro da Escóssia, Mossoró, RN — O Mossoroense, n. 102, 24 de janeiro
de 1875, p. 1.
30
Na pequena povoação de Barriguda (hoje atual Alexandria), o subdelegado também foi
alvo das acusações do correspondente, atrelando a liderança do motim a autoridade policial do
lugar. Em tom dramático, o autor encerrou sua carta fazendo um apelo para que o governo
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 63

Ainda naquela semana outras ações perpetradas por grupos armados foram
registradas em Pau dos Ferros, extremo oeste da província norte rio-grandense.
Conforme o jornal Diário de Pernambuco, tais indivíduos eram advindos de
São João e Arrojado, povoações pertencentes à Sousa, vila paraibana que fazia
fronteira com o Rio Grande do Norte. Entre os dias 1 e 3 de janeiro, os distritos
de Luís Gomes e Victória, bem como Pau dos Ferros foram atacados. São Miguel
(RN), que faz fronteira com Icó (CE) também era preterida pelos sediciosos,
segundo a citada folha noticiosa. Nestes lugares foram destruídos os pesos e
medidas métricas dos mercados públicos e dos estabelecimentos particulares.31
Além da pouca ou qualquer resistência policial, era notória a dependência
das autoridades locais em relação ao envio de tropas e destacamentos as regiões
mais distantes da capital. A grande extensão do termo de Pau dos Ferros, por
exemplo, impossibilitou o efetivo deslocamento das autoridades policiais res-
ponsáveis por aquela jurisdição. Este fato inclusive, segundo o referido jornal,
motivou Joaquim Ferreira Pinto a pedir exoneração do cargo de delegado de
polícia. Todavia, há de se ressaltar que pesava contra ele acusações de ter faci-
litado ou feito “vista grossa” para que os revoltosos pudessem agir livremente.32
Para tanto, foram encaminhadas forças expedicionárias “sem perda de tempo”33
para combater os Quebra-quilos nos diferentes pontos invadidos. Embora se de-
sejasse de pronto sufocar as sedições, a falta de estrutura e pessoal revelou uma
grande vantagem dos incontinentes revoltosos que se antecipavam às investi-
das policiais. As tropas dos capitães Benevides e Pinto Castro obviamente não
chegariam a tempo de evitar ou prevenir as ações já cometidas.34
Parecia que o presidente da província norte-rio-grandense desconhecia os
ataques ocorridos no dia 3 de janeiro, uma vez que em nova correspondência de
Bandeira de Mello à Pereira de Lucena afirmou que “das participações officiaes
até esta data recebidas não consta que tenhão havido novos disturbios, nem
sido alterada a ordem e tranquilidade publica nesta província”35 . Por outro lado,
punisse severamente as autoridades políticas que, segundo ele, incitavam a população a co-
meterem desordens e crimes, afirmando que “os homens dos partidos dominantes não podiam
dar de si uma idéa de maior perversão e insensatez; pois são eles próprios que transviados na
carreira do crime procuraram o seu descredito e o do governo que os nomeou”. Ibidem, p. 1.
31
Biblioteca Nacional, Brasil (Hemeroteca Digital) — Diário de Pernambuco, ed. 21, 27 de
janeiro de 1875, p. 2.
32
Ibidem.
33
Ibidem.
34
O Diário de Pernambuco confirmava que em 12 de janeiro foram enviadas tropas que se
dividiram em duas frentes com a finalidade de combater os Quebra-quilos. Assim, destacava o
periódico: “ainda hontem de madrugada seguiram dous grandes destacamentos volantes para o
interior da Província, em direcções oppostas, um commandado pelo capitão Antonio Benevides
Seabra de Mello e outro pelo capitão Antonio Pinto de Moraes Castro”. Biblioteca Nacional,
Brasil (Hemeroteca Digital) — Diário de Pernambuco, ed. 12, 15 de janeiro de1875, p. 3.
35
APEJE — Coleção correspondências entre presidentes de província, PP 53, p. 304.
64 Parnamirim, jan./jun. 2021

reconhecia que a população ainda recusava o pagamento dos impostos criados,


assim como não admitia os novos pesos e medidas francesas. Encerrou sua
carta informando à Lucena do envio das forças expedicionárias ao interior da
província e de uma circular encaminhada as autoridades judiciárias a fim de
conter as futuras ações e julgar os culpados.
Em 13 de janeiro de 1875, uma nova carta chegou à Lucena, a qual infor-
mava sobre o estado lisonjeiro e pacífico da província do Rio Grande do Norte,
na qual “não consta que se desse alteração na ordem e tranquilidade em ponto
algum desta província não havendo mesmo receio de qualquer perturbação”36 .
Em fins de janeiro, Bandeira de Mello reduziu o contingente da Guarda Nacio-
nal, limitando-o a 50 praças37 , o que representava a certeza, por parte do presi-
dente norte-rio-grandense, de que as agitações não mais se repetiriam. Crasso
engano.
Apesar de quase sete meses sem registro de quaisquer atividades dos Quebra-
quilos, agosto de 1875 trouxe consigo vários protestos populares contra o de-
creto n. 2.556 de 1874. A lei do sorteio ou da cumbuca, como ficou conhecida,
pretendia profissionalizar o exército, de modo a reduzir a rejeição ao recruta-
mento, este estigmatizado pela população como algo cruel e injusto, especial-
mente ao longo da Guerra do Paraguai. Todavia, a troca da obrigatoriedade pela
forma de sorteio interpretada como uma atribuição injustificada trouxe ques-
tionamentos, uma vez que “rompia expectativas tradicionais quanto à forma
e aos objetivos do recrutamento, introduzindo novos elementos de incerteza”
(MENDES, 1999, p. 270).
No mês em questão a ordem pública estremeceu e já no dia 1 as vilas de Pa-
pary, Arês e Goianinha presenciaram as manifestações promovidas por grupos
de mulheres, que se prostraram à frente das juntas paroquiais armadas a cace-
tes e facas rasgaram os papéis concernentes ao alistamento militar. Segundo
Kim Richardson, tais grupos chegaram a ter mais de cinquenta mulheres em
Papary e Arês, sendo acompanhadas por cerca de 200 homens na de Goianinha.
Os trabalhos das juntas de recrutamento foram paralisados nestas localidades
(RICHARDSON, 2008, p. 133).
No dia 6 um grupo de mulheres e homens, por volta de 400 indivíduos,
interromperam por duas vezes os trabalhos da junta de alistamento na vila de
Canguaretama. Naquela ocasião, conforme o pároco Manoel Januário Bezerra
Cavalcanti, pessoas armadas de cacetes gritavam contra o recrutamento, cuja lei
era vista como “lei para captivar o povo”38 . O pároco relatou ainda que Antônio
36
APEJE — Coleção correspondências entre presidentes de província, PP 53. p. 395.
37
Arquivo Nacional — Códice 603, v. 5. Código de fundo NP. Coleção “Diversos códices
da antiga SDH”. Ofício de Bandeira de Mello ao ministro dos Negócios da Guerra, João José
Oliveira Junqueira, 30 de janeiro de 1875, p. 31.
38
Arquivo Nacional — Códice 603, v. 5. Código de fundo NP. Coleção “Diversos códices da
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 65

Hilário Pereira, homem pardo e morador do lugar capitaneava aquele grupo


sedicioso e ameaçava de morte as autoridades públicas ali instituídas, dentre
eles o juiz de direito, o juiz de paz, o vigário da freguesia assim como qualquer
um que auxiliasse os trabalhos da junta de recrutamento. Dizia Hilário Pereira
ser “o maior homem desta terra”.39
Apesar da tentativa de dissuadir os Quebra-quilos, não obtiveram êxito as
lideranças e autoridades locais, o que resultou na suspensão dos trabalhos da
junta de alistamento e no apelo do pároco para que a justiça empregasse força
a fim de que se pudesse proceder ao recrutamento. Segundo Maria Verônica
Secreto, a oposição à lei do recrutamento predominou no Rio Grande do Norte
e em outras províncias como São Paulo, Minas Gerais e Ceará mais do que os
ataques ao sistema métrico decimal, prevalecendo os grupos denominados de
rasga-listas (SECRETO, 2011, p. 81). Particularmente, acreditamos que no caso
do Rio Grande do Norte ambas as reivindicações ocorreram de modo mais ou
menos proporcional, sendo o ano de 1875 caracterizada pelos confrontos em
torno do odiado alistamento.
Os incidentes acima descritos não foram isolados. A situação novamente
saíra do controle das autoridades locais e a ordem pública estava mais uma vez
ameaçada. O presidente José Bernardo Galvão Alcoforado revelou o quadro
de preocupações que rondava o palacete provincial do Rio Grande do Norte
ao descrever, ao então ministro dos Negócios da Guerra, Duque de Caxias, as
agitações ocorridas nas vilas e povoações do território potiguar. Em ofício de 25
de agosto estão contidas algumas narrativas que dizem respeito aos ataques dos
Quebra-quilos às juntas paroquiais das vilas de São José e Canguaretama. Nesta
última, José Bernardo Galvão Alcoforado revelou que o movimento sedicioso
se apresentou de maneira “assustadora”40 nos dias 16, 17 e 18 de agosto.
No dia 16 do referido mês, a figura de Hilário Pereira reapareceu na docu-
mentação acompanhada pelo mesmo numeroso grupo de homens e mulheres.
Estas informações foram enunciadas no ofício de José Bernardo Galvão Alcofo-
rado quando, mais uma vez, o referido cabeça da sedição teria feito promessas
de assassinar o juiz de direito e os membros da junta paroquial de Canguare-
tama, caso se procedesse ao recrutamento. Julgavam os revoltosos que aquela
lei era na verdade uma “lei para captivar o povo”41 . Talvez por isso o pardo
Hilário tivesse tanta razão de sê-lo escravizado pelo alistamento posto que não
faltavam histórias sobre sujeitos reescravizados ou escravizados ilegalmente no
Brasil. A ameaça do cativeiro estava viva, mesmo para aqueles livres ou libertos
antiga SDH”, p. 53.
39
Arquivo Nacional — Códice 603, v. 5. Código de fundo NP. Coleção “Diversos códices da
antiga SDH”, p. 53.
40
Ibidem.
41
Ibidem.
66 Parnamirim, jan./jun. 2021

não era um fantasma, mas um dado real e que podia vir sob a forma de lista ou
cumbuca. Assim, precisava-se garantir a manutenção da liberdade, mesmo que
fosse preciso para isso desafiar as autoridades locais.42
Em vista das ameaças proferidas pelo líder sedicioso, o juiz de direito pôs em
diligência do primeiro um destacamento do exército liderado por João Ferreira
de Oliveira, cuja ação foi capaz de prender Hilário Pereira e mais 110 sediciosos.
Além disso, foi requisitada a presença do capitão João Paulo Martins Naninguer
nas vilas de São José e Canguaretama, com a finalidade de que o mesmo pudesse
garantir que a junta paroquial realizasse o alistamento, experiência que já havia
demonstrado sucesso em Goianinha devido a presença do militar e seu destaca-
mento.43 Todavia, não demorou para que o capitão Naninguer tivesse sua força
testada.
Já no dia 18 de agosto de 1875, novas agitações tomaram conta da vila de
Canguaretama. O juiz de direito deste termo logo adotou a iniciativa de nar-
rar ao presidente José Bernardo os novos incidentes envolvendo os sediciosos.
Antônio José de Amorim afirmou que recebeu a notícia de que um elevado nú-
mero de pessoas havia se reunido de vários pontos próximos a Canguaretama
com o intuito de assaltar a cadeia e impossibilitar os trabalhos da junta paro-
quial. Segundo o citado juiz, as autoridades locais foram informadas e estimu-
ladas pelo mesmo a tentarem dissuadir os revoltosos de seus intentos, porém
não obtiveram êxito.44
Conforme o meritíssimo juiz Antônio José de Amorim, apesar do envio de
forças destacadas para diferentes partes da vila e de se esvaziar a igreja (não fica
claro na fonte se foram retirados os documentos da junta de alistamento cuja
responsabilidade recaía sob os párocos, as pessoas que trabalhavam dentro da
igreja ou ambos), o conflito foi inevitável. Às nove horas da manhã travaram-se
as forças. O povo avançou sobre a força que respondeu com sabres e baionetas.
Ao fim, dispersou-se a multidão, de maneira que 19 prisões foram efetuadas e
nenhuma baixa policial houve ou foi relatada pelo juiz. A ação foi celebrada pe-
las autoridades locais. Às 13 horas, conforme o excelentíssimo José de Amorim,
a junta paroquial retomava seus trabalhos.45
O relato do capitão Naninguer enviado em ofício ao sr. Alcoforado acabou
por complementar a narrativa de José de Amorim e trouxe à tona mais informa-
42
A respeito da precariedade e a manutenção da liberdade especialmente para homens e
mulheres pobres de cor nas últimas décadas da escravidão no Brasil, ver CHALHOUB, S. Visões
da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
43
Arquivo Nacional — Códice 603, v. 5. Código de fundo NP. Coleção “Diversos códices da
antiga SDH”, p. 54.
44
Ibidem, p. 57–58.
45
Ibidem.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 67

ções sobre o conflito. Neste, segundo a referida autoridade militar, envolveram-


se cerca de 80 homens armados que estavam reunidos em uma povoação pró-
xima à Canguaretama (não é mencionada o nome desta), fato que, segundo ele,
motivou o senhor de engenho João de Albuquerque Maranhão Cunhaú, o ca-
pitão Affonso Leopoldo de Albuquerque Maranhão e o subdelegado Genuíno
Pereira de Farias a tentarem demover os sediciosos de seus intentos. Experi-
ência sem êxito, como narrado pelo juiz de direito de Canguaretama. Além de
confirmar a prisão dos 19 manifestantes, Naninguer mencionou em sua corres-
pondência a participação de uma mulher, descrita como “prêta já velha”46 , a
qual havia sido “esquecida” ou apagada da narrativa do supracitado juiz.
Entendemos que a participação de uma mulher negra (possivelmente livre
ou liberta, caso contrário seria descrita como escrava) nos movimentos contrá-
rios ao recrutamento não seja algo aleatório, pelo contrário. A historiografia
nos mostra que a sociedade brasileira oitocentista, apesar de romper com os
laços coloniais, um passado marcado pelo antigo regime, construiu suas bases
a partir da manutenção da ordem escravocrata, como bem nos alertou Már-
cia Menendes Motta (1998). Esta, conforme a autora em questão, investiu-se
do monopólio centrado na grande propriedade da terra e no controle sobre a
mão-de-obra escrava e do trabalho livre, ambos dominados pelo poder e vio-
lência dos senhores proprietários, como bem evidenciou José de Souza Martins
(2010).
Esta sociedade senhorial, que engendrava tanto cativos quanto pobres e li-
vres foi trazida ao debate historiográfico por Maria Sylvia Franco (1997), que, no
entanto, compreendia a parcela livre e pobre apenas como coadjuvante, mera
espectadora da história. Contrários a esta visão, Sidney Chalhoub (1990), que
se debruçou no estudo da precariedade da liberdade de pessoas de cor e pobres
(duas palavras interpretadas até hoje como sinônimos por algumas pessoas), e
Hebe Mattos, que analisou “as relações de dependência pessoal existiam e regu-
lavam as relações entre homens livres” (MATTOS, H. M., 1987, p. 89) no Brasil
da segunda metade do século XIX, são contrários a esta perspectiva, quer dizer,
a participação da “prêta já velha” é sintomática de um mundo duríssimo para
pessoas depauperadas e especialmente negras. Além disso, “a proximidade en-
tre o censo demográfico, os alistamentos do sorteio e o novo arrolamento de
escravos aumentava, certamente, as desconfianças quanto à ‘lei do cativeiro’”
(MENDES, 1999, p. 271).
Avaliamos que a ação da supracitada mulher negra contra o recrutamento
representasse um interesse específico de um grupo, e a existência de consciên-
cia de raça, quer dizer, do reconhecimento do lugar social marginalizado que
46
Arquivo Nacional — Códice 603, v. 5. Código de fundo NP. Coleção “Diversos códices da
antiga SDH”, p. 63.
68 Parnamirim, jan./jun. 2021

ocupava dentro daquela sociedade. Não podemos esquecer que população de


cor no Segundo Reinado continuava a ser a mais pobre e a força de trabalho era
composta pelos membros da família, incluindo mulheres e crianças. A ausência
de homens provocada pelo recrutamento, ameaçava ainda mais o sustento da
família e pesava sobre elas mais do que sobre qualquer outro grupo. Portanto,
temia-se o recrutamento, odiava-o ainda que fossem todos os nomes sorteados
ou jogados dentro de uma “mesma” cumbuca.
Três dias após o episódio em Canguaretama, o juiz de direito Antônio José
de Amorim informava José Bernardo a respeito do bom andamento dos traba-
lhos da junta paroquial, cujo alistamento procedera no dia 21 de agosto sem
interrupção, mesmo sendo este um dia de feira. Amorim atribuiu o sucesso dos
trabalhos da junta aos “cidadãos” João de Albuquerque Maranhão Cunhaú e
ao capitão Alferes Leopoldo de Albuquerque Maranhão, os quais, segundo ele,
prestaram “relevantes serviços a ordem ao sufocar o movimento não só com
o seu prestigio mais também dispendendo dinheiro na sustentação de não pe-
queno número de pessoas”47 .
Em outras palavras, podemos dizer que ambos os senhores Maranhão fi-
zeram valer tão somente o prestígio do nome de sua família, mas também do
poder econômico e político para debelar a revolta. Combatiam-se as insatisfa-
ções dos populares a partir da justificativa da ignorância do povo, garantiam-se
os privilégios dos senhores conservando a ordem no mundo dos trabalhadores,
uma ordem de cima para baixo.
A fim de fechar o cerco contra aqueles que se negavam a contribuir com o
alistamento, José Bernardo Galvão Alcoforado adotou medidas para retomar os
trabalhos das juntas paroquiais nas vilas e povoações do Rio Grande do Norte
em que houve problemas com os sediciosos. O presidente norte-rio-grandense
ordenava aos inspetores de quarteirão que

relacionassem todos os indivíduos residentes no seu quarteirão, com-


prehendidos os ausentes, que estivessem nas condições de serem
alistados e remetessem as listas com os esclarecimentos que por
destino obter ao Presidente da Junta Parochial, perante quem os
interessados deverião recorrer para provarem as isenções que tive-
rem em seu favor.48

Desenhava-se novamente um quadro de ordem e tranquilidade públicas,


passavam-se instruções para a retomada dos trabalhos das juntas de alistamen-
tos paroquiais de modo que os números e nomes levantados pudessem contem-
47
Arquivo Nacional — Códice 603, v. 5. Código de fundo NP. Coleção “Diversos códices da
antiga SDH”, p. 61.
48
Ibidem, p. 51.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 69

plar o máximo de indivíduos aptos ao sorteio. Desejava-se correr atrás do tempo


e do trabalho prejudicados pelas ações dos Quebra-quilos, os quais impediram
durante algum tempo que o recrutamento se realizasse. Entretanto, como de-
monstra a correspondência do juiz de direito Antônio José de Amorim a José
Bernardo Galvão Alcoforado, a ordem foi posta à prova novamente. No dia 29
de agosto a relativa tranquilidade foi quebrada e deu lugar a mais conflitos en-
tre as autoridades locais e militares contra os sediciosos. Conforme Amorim “O
povo apparentemente pacificado a surdina se preparava, a fim de que melhor-
mente levasse a muito seo louco commetimento de por todos os meios evitar o
alistamento”.49
A declaração do juiz de direito da vila de Canguaretama possibilita compre-
ender que as ações dos populares contrários ao recrutamento eram articuladas e
não aconteciam a qualquer momento, ou seja, tinha uma racionalidade e levava
em conta, especialmente, a capacidade das autoridades públicas em repeli-los
ou não, como se planejassem o melhor instante para a ação. Segundo Amorim,
as seis da noite populares se concentraram em frente ao engenho Bom Jardim
pertencente ao coronel Antônio Bento, era um “grande número de homens e
mulheres, que armados de cacete e faca, foice, machado, pistollas e espingar-
das, se dirigião á esta Vila”50 de Canguaretama, lugar em que se uniriam com
mais pessoas provenientes de uma povoação de nome Piau (hoje pertencente
ao município de Tibau do Sul, próximo à praia da Pipa).
Do outro lado, as tropas do capitão Naninguer se dividiram em duas frentes
sendo uma delas comandada pelo alferes Moreira, que querendo amedrontar
os revoltosos ordenou que fosse dada uma carga de baioneta a dez passos de
distância dos mesmos. Em reação, segundo os relatos do juiz Antônio José de
Amorim, descarregaram-se sobre a dita força “duzentos tiros”51 , o que motivou
uma nova ordem de Moreira para que a soldadesca fizesse fogo sobre os amo-
tinados. O conflito, segundo nos conta Amorim, resultou na debandada dos
sediciosos que tiveram 3 homens e 2 mulheres mortos e mais um machucado.
Do lado da força policial apenas 3 soldados feridos. Após a fulminante ação dos
liderados de Moreira, “não obstante o desaçocego publico, esta Junta perseguio
em seos trabalhos”52 , explicou o vigário Manuel Ferreira Borges, opinião que
confirmou o clima de agitação ainda presente na vila, conforme as palavras do
juiz Antônio Amorim.
Outras manifestações contrárias ao recrutamento no Rio Grande do Norte
ganharam ainda mais destaques no episódio conhecido como “Motim das Mu-
49
Arquivo Nacional — Códice 603, v. 5. Código de fundo NP. Coleção “Diversos códices da
antiga SDH”, p. 41.
50
Ibidem.
51
Ibidem.
52
Ibidem, p. 45
70 Parnamirim, jan./jun. 2021

lheres” ou “Guerra das Mulheres”, presentes na obra de Vingt-Un Rosado que


reúne fontes e bibliografia sobre o caso. Aliás, a historiografia nacional ainda
carece de pesquisas que deem ênfase a participação e agência das mulheres em
movimentos sociais no XIX no Brasil, mesmo o Motim das Mulheres foi pouco
explorado por estudiosos, talvez o único dessa natureza no recorte oitocentista.
A obra de Rosado agrupou registros e narrativas sobre o assunto, dentre eles
o do historiador Francisco Fausto de Souza que descreveu o conflito em Mos-
soró (RN), ocorrido em setembro de 1875, quando “senhoras das mais distintas e
respeitáveis famílias da cidade e do município, tendo à frente [...] Ana Floriano,
[que] dirigiu-se à casa do escrivão de juiz de Paz e exigindo deste, tomou os
papéis e livros concernentes ao sorteio para o exército e armada, rasgando-os”
(ROSADO, 1981, p. 2). Os estereótipos eram ainda mais reforçados por Romão
Filgueira que pretendia distinguir não apenas economicamente aquele grupo de
mulheres de classe econômica privilegiada, segundo ele eram “as Evas dos arra-
baldes” lideradas por Ana Floriano53 , descrita pelo autor como “tipo forte, olhos
azuis, cabelos louros, estatura além do comum para o seu sexo [...]”. (ROSADO,
1981, p. 3).
A par da polêmica e do uso que os intelectuais e políticos de Mossoró fizeram
da imagem de Ana Floriano quanto um “exemplar” de mulher mossoroense, um
símbolo da identidade da cidade (tal qual fizeram de Mossoró um “país” (CAR-
VALHO, 2012), dada a resistência ao bando de Lampião), o movimento contra o
recrutamento militar neste lugar reuniu cerca de 300 mulheres, conforme Ro-
mão Filgueira (ROSADO, 1981), o que difere dos números apresentados pelo
juiz de direito de Mossoró, que afirmou ser “um grupo de 50 a 100 mulheres
mal aconselhadas por seus maridos e parentes” (ROSADO, 1981).
Correto ou não, entendemos que o citado juiz, conforme nos alertou Câmara
Cascudo, tinha suas motivações para descaracterizar o movimento articulado
pelas mulheres, de maneira a acusá-las de manobradas e de pouco numerosas.
Compreende-se que o dito juiz tinha a obrigação de se reportar ao presidente da
província do Rio Grande do Norte, por isso se faz valer do recurso de minimizar
os acontecimentos, desenhando um cenário mais ameno.
Por fim, acreditamos que a presença das ações de contestação ao recruta-
mento na província do Rio Grande do Norte são um prolongamento dos protes-
tos encabeçados pelos Quebra-quilos. Corroboramos com Souto Maior, quando
este afirma que “na recusa violenta das populações norte-rio-grandenses ao alis-

53
O lugar de liderança ocupado por Ana Floriano não é unanimidade. O juiz de direito de
Mossoró à época, José Antônio Rodrigues, observou em 4 de setembro de 1875 que o ataque
das mulheres à junta paroquial da cidade mossoroense tivera como lideranças “Dona Maria
Filgueira” e “Dona Joaquina Maria de Góis”, além de “Ana de Rodrigues Braga”, conhecida por
Ana Floriano.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 71

tamento, não se poderia deixar de ver o efeito tardio da mecânica contestatória


dos Quebra-quilos” (MAIOR, 1978, p. 192).

Conclusões
A proposta de metrificação no Brasil, apesar de ser uma ideia formulada a partir
de conceitos que faziam parte do universo daqueles que compunham o mundo
do governo e da intelectualidade imperial, não conseguiu unanimidade mesmo
entre estes. A oposição ao metro não se fez apenas por parte da população pobre
e livre, achacada pelos primeiros de ignorantes, fez-se também por indivíduos
do mundo do governo que não aceitavam o SMD. Desejos e interesses particu-
lares ligou pobres, livres, escravos, militares, gente de batina e cabedal contra
o metro.
As ações dos Quebra-quilos na província do Rio Grande do Norte, em par-
ticular, terminariam de maneira semelhante ao que ocorrera nas províncias da
Paraíba, Pernambuco e Alagoas: com extrema violência das forças policiais,
recrutamentos e abertura de inquéritos. Isso comprova que a repressão ao mo-
vimento tomou as mesmas cores e, portanto, foi alvo de uma política imperial,
apesar de cada província dispor de estratégias particulares no que tange ao seu
combate. Se a Paraíba optou por colunas militares e canhoneira, o Rio Grande
do Norte, assim como Pernambuco e Alagoas preferiu guarnecer os lugares li-
mítrofes e com maior incidência de distúrbios.
Por outro lado, a circulação de notícias e a mobilidade dos sediciosos contrá-
rios ao SMD se configuraram como elementos dificultadores à manutenção da
ordem pública. A imposição do recrutamento, a carestia de alimentos engros-
sava o caldo da insatisfação população. Homens, mulheres, negros, pardos e até
indígenas foram registrados nas manifestações contra o governo Imperial. Não
se queria derrubar o governo. A multiplicidade de diferentes sujeitos, os quais
compartilhavam partes de suas agendas políticas nos mostra que a diversidades
de objetivos também se fez presente. Além de garantir a manutenção do tradi-
cional sistema de pesos e medidas, a diminuição dos impostos sobre os gêneros
básicos da alimentação foram pano de fundo para alguns sediciosos que luta-
vam em oposição ao recrutamento, a escravização ilegal ou a reescravização, os
quais tinham as paróquias e os livros de matrícula e alistamento como alvos de
suas ações.
Por fim, entendemos que as ações dos Quebra-quilos são resultado de uma
economia moral sertaneja, como bem destacou Verônica Secreto. Os quebra-
mentos dos instrumentos métricos, coletorias e cartórios são atos simbólicos,
formas de dizer às autoridades que não aceitavam o SMD, os impostos abusi-
vos e o recrutamento ilegítimo. A padronização dos alvos nos diz muito sobre
72 Parnamirim, jan./jun. 2021

a racionalidade destes protestos, e desmente o discurso espasmódico ou que


classifica esta revolta como resultado da ação de turbas. Os boatos, fofocas e
mexericos, por sua vez, desempenharam a importante função de levar os gritos
dos revoltosos a mais vilas, povoações e províncias, resultando na continuidade
dos antigos sistemas de pesos e medidas por muitas décadas.

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de Janeiro: Mauad e FAPERJ, 2011. ISBN 9788574783888.

Recebido em 25 fev. 2021.


Aprovado em 16 abr. 2021.
DE COMO AS LETRAS FORMAM UM CIDADÃO
Os ritos e símbolos da Primeira República na cidade de Parelhas-
RN (1928–1930)
Laísa Fernanda Santos de Farias1
Sebastião Genicarlos2
RESUMO: O trabalho que se apresenta, elenca enquanto temática principal a análise de Como referenciar?
FARIAS, L. F. S.;
como o Plano de Propaganda Contra o Analfabetismo, criado no primeiro mandato do GENICARLOS, S. De como
prefeito Florêncio Luciano na cidade de Parelhas, entre os anos de 1928 a 1930, trouxe as letras formam um
cidadão: os ritos e símbolos
para esse município algumas noções de progresso e civilidade impostos pela Primeira da Primeira República na
República. Assim, objetivamos com este texto, explorar os desejos de desenvolvimento cidade de Parelhas-RN
(1928–1930). Revista Galo,
para a cidade pensados por Florêncio Luciano, compreender em que medida este pro- n. 3, p. 75–91, 17 jul. 2021
jeto educativo promoveu novas formas de sociabilidades, e apontar como o discurso
desse prefeito estava ligado a uma rede de contatos e influências que pensavam a edu-
cação também a nível estadual e nacional. Logo, essa investigação foi possibilitada
pela exploração do discurso presente no relatório de mandato, apresentado em 1930
pelo prefeito supracitado, onde foram apontadas algumas intenções e alcances trazidos
pelo seu projeto educativo para os alunos parelhenses. Desta feita, com os resulta-
dos do aprofundamento da fonte aqui explorada, é perceptível elencar que a partir da
leitura e reflexão dessa parte da documentação do plano, aliada à bibliografia consul-
tada, constatamos a composição do espaço educacional parelhense alinhada à ideia de
modernização e inserção de novas sociabilidades.
Palavras-chave: Alfabetização. Cartografia educacional. Modernização. Sertão.

HOW THE LETTERS FORM A CITIZEN


The rites and symbols of the First Republic in the city of Parelhas-
RN (1928–1930)
ABSTRACT: The work that is giving to know, presents as its main theme an analysis
of how the Propaganda Against Illiteracy Plan, created during the first term of mayor
Florêncio Luciano in the town of Parelhas, between the years 1928 and 1930, brought
1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História UFRN-CERES, professora da
rede privada. ID Lattes: 4075.8724.6125.7574. ORCID: 0000-0002-2025-1259. E-mail: nanda-
farias07@gmail.com.
2
Mestre em antropologia, UFRN, professor da rede pública. ID Lattes: 7476.4847.6789.2937.
ORCID: 0000-0003-3529-2851. E-mail: sebastiaosantos710@gmail.com.

75
76 Parnamirim, jan./jun. 2021

to that municipality some notions of progress and civility imposed by the First Repub-
lic. Thus, with this text, we aim to explore the development wishes Florêncio Luciano
thought for the town; to understand to what extent that educational project promoted
new forms of sociability; and to point out how that mayor’s speech was linked to a
network of contacts and influences that also thought education at the level of the state
and of the nation. Therefore, this investigation was made possible by the exploration
of the discourse present in the mandate report, presented in 1930 by the aforemen-
tioned mayor, which pointed some intentions and the scope his educational project
brought for the students from Parelhas. This time, with the results of the deepening of
the source explored here, it is noticeable that from the reading and reflection of these
sources combined with the consulted bibliography, we can see the constitution of the
educational space of the town of Parelhas aligned with the idea of modernization and
the insertion of new sociability.
Keywords: Literacy. Educational cartography. Modernization. Sertão.

Os prelúdios do plano
Se era a escola a resistência manifesta ao ímpeto modernizador,
tornava-se imperioso mudá-la.
Clarice Nunes (1996)

Nos anos de 1920, a educação passou a ser propagandeada Brasil afora por
dois grandes motivos. O primeiro deles era erradicar o analfabetismo que ainda
imperava, sobretudo nos recantos mais longínquos do Rio de Janeiro, então ca-
pital da república, e dos demais centros urbanos brasileiros, gerando assim uma
espécie de otimismo pedagógico3 . A escola então, como desperta a historiadora
Clarice Nunes4 citada no início dessa narrativa, tornou-se um dos epicentros de
formação desse novo homem agora a serviço da República.
Já o segundo ponto, se deu pelo fato de que, estando um modelo de educação
estabelecido em um determinado local, o currículo escolar estava voltado para a
formação de um cidadão republicano, ou seja, a prática pedagógica não estaria
direcionada somente para o combate ao analfabetismo, mais do que isso, ela
3
(NAGLE, 2009, p. 261) Em seu trabalho Educação e Sociedade na Primeira República (2009),
este educador faz uma interpretação do quadro educacional brasileiro mediante o advento do
estado republicano, haja vista que o do país estava vivenciando a transição de um sistema agrá-
rio comercial para um sistema industrial.
4
A historiadora Clarice Nunes em seu trabalho: “Cultura escolar, modernidade pedagó-
gica e política educacional no espaço urbano carioca” que se encontra na obra Missionários do
progresso: médicos, engenheiros e educadores no Rio de Janeiro, 1870–1937 (1996), nos convida a
pensar a escola enquanto um espaço de condensação simbólica dos ideais republicanos, onde
os alunos seriam transformados em cidadãos da ordem e do progresso.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 77

tinha como propósito à formação da mentalidade que se colocaria serviço da


civilidade e do progresso.
Poderíamos nos debruçar a pesquisar outros motivos que levaram a disse-
minação deste processo educativo, porém, pensamos que os dois ensejos supra-
citados, traduzem as urgências de uma época em que o país estava saindo de
um modelo imperial e adentrando um período em que importava para os líderes
republicanos, formar cidadãos que estivessem em consonância e adequados às
mudanças sociais e urbanas que advinham da Europa. Esses ideais:

Eram inspirados no modelo puritano, ascético e europeu ga-


nharam corpo nas reformas sanitárias, pedagógicas e arquitetôni-
cas deste século. Esses valores foram aglutinados em formulações
filosóficas e científicas que procuravam ter junto a sociedade um
efeito moral, normatizador. A palavra de ordem é sintonizar-se com
a Europa, ou melhor, “civilizar-se” o mais rápido possível, de modo
que o país pudesse, o quanto antes, competir com no mercado in-
ternacional (HERSCHMANN; PEREIRA, 1994, p. 26).

Após os republicanos assumirem o poder, o direcionamento principal era o


de instruir a população a partir das diretrizes de transformações ocorridas na
Europa, no que se referiam ao cotidiano, à dinâmica urbana com as transforma-
ções das cidades, bem como na adaptação do homem para lidar com as novas
manifestações industriais e econômicas ocorridas naquele momento5 . “Urgia,
‘civilizar’ o país, modernizá-lo, espelhar as potências industriais e democrati-
zadas, e inseri-lo compulsória e firmemente no trânsito de capitais, produtos e
populações liberados pelo hemisfério norte”. (MARINS, 1998, p. 134).
Por meio disso, justificamos que o interesse em trabalhar essa temática,
relaciona-se ao fato de que, se havia um projeto educativo em Parelhas, recanto
sertanejo do Rio Grande do Norte, que estava ligado a uma perspectiva de for-
mação do povo brasileiro, compreende-se que podemos pensar o Sertão envolto
nas suas mais diversas antinomias, enquanto um projeto de modernidade.
A educação vinculada à instrução primária e nos modelos escolares que pas-
saram a se expandir pelo Brasil, funcionou enquanto uma mola mestre na reti-
rada do atraso e das heranças coloniais e imperiais ainda presentes neste novo
momento, o que no sertão do Seridó não seria diferente.
5
A chamada Revolução Científico-Tecnológica que ocorreu em meados do século XIX, mas
atingindo sua hegemonia no final de 1870, impulsionou a produção de novos potenciais ener-
géticos, novas formas de metalurgia e processos químicos, bem como a produção de artifícios
que facilitaram a comunicação, o transporte e o cotidiano das pessoas. Essa discussão está em:
SEVCENKO, N. O prelúdio Republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In :
(Org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 3. P. 7–
48.
78 Parnamirim, jan./jun. 2021

Na espacialidade aqui tratada, Manoel Dantas, por exemplo, que se destacou


no movimento republicano no sertão do Seridó e no estado do Rio Grande do
Norte, trouxe de sua formação acadêmica no Recife6 os ideários e os debates
ideológicos acerca do progresso e civilidade em busca de um novo homem para
o Seridó.

Um tempo mais acelerado, impulsionado por novos potenciais


energéticos e tecnológicos, em que a exigência de acertar os pontei-
ros brasileiros com o relógio global suscitou a hegemonia de discur-
sos técnicos, confiantes em representar a vitória inelutável do pro-
gresso e por isso dispostos a fazer valer a modernização a “qualquer
custo” (SEVCENKO, 1998, p. 27).

Nos ponteiros do relógio de educadores como Manuel Dantas7 , Diretor Ge-


ral de Instrução Pública, na década de 1920, e que escreveu diversos estudos e
ponderações8 tanto sobre a organização do ensino na capital do estado, como
também acerca dos processos de interiorização da educação via Escolas Rudi-
mentares, o tempo do homem seridoense deveria ser o da adequação aos ele-
mentos que a República estava buscando em relação ao desenvolvimento ur-
bano e antropológico do sertão do Seridó, com sustentação em esfera nacional.
Para este educador, o comportamento letárgico do homem sertanejo apa-
recia como um empecilho ao desenvolvimento do interior. A necessidade de
transformação deste personagem, apesar da importância dada à tradição, era
necessária. Com isso, a este homem era dada a tarefa de acompanhar as mu-
danças trazidas pela República, se adequando aos seus direitos e deveres de
cidadão, não tendo um comportamento pautado somente em suas tradições,
6
Segundo Macêdo (2005), ainda em sua obra A Penúltima Versão do Seridó: uma história do
regionalismo seridoense, a faculdade do Recife era um verdadeiro celeiro das ideias progressistas
e as teorias politicas e ideológicas do pensamento republicano. Logo, os seridoenses estudantes
dos cursos de Direito ou Medicina acabam trazendo todo esse arcabouço ideológico alinhado
ao pensamento e objetivos da Primeira República para o Seridó.
7
Manuel Dantas, caicoense, nasceu em 26 de abril de 1867 e faleceu em Natal em 15 de unho
de 1924. Foi advogado e juiz, devendo sua formação a faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais
pela Faculdade de Direito do Recife no ano de 1890 onde acabou sendo influenciado pelos ideais
republicanos e trazendo todo este arcabouço teórico e cientifico para o pensamento educacional
norte rio-grandense durante a sua atuação enquanto diretor geral de educação, pensando ainda
nas mudanças que esse novo pensar poderia trazer no tocante a mudança ou a adequação do
homem sertanejo ao modelo republicano.
8
Além de escrever desde o final do século XIX para o jornal O Povo, periódico esse que já
tinha um viés republicano, no âmbito educacional, Manuel Dantas se destaca por suas publica-
ções nas revistas do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, mais precisamente
na Revista Pedagógium onde publicou artigos como, Escolas Rudimentares, que será aprofun-
dado mais adiante.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 79

e constituindo-se assim enquanto um ser humano pensante e articulador dos


desejos progressistas daquele período.
Prontamente, a cultura latente do sertanejo pautada na memória e nas tra-
dições, acabaria atrapalhando o desenvolvimento e acabaria fossilizando-o no
passado. Com isso, o aspecto ruralizado do sertanejo, apesar de importante
como reconhecia Manoel Dantas, precisava ser readequado pela lei do pro-
gresso. Desse modo, podemos entender que:

O Brasil da Primeira República era também o país dividido en-


tre os “políticos bacharéis” e os “homens de ação”. A ruptura com
o atraso brasileiro significava, para muitos desses homens, a reor-
ganização, em bases racionais e técnicas, do trabalho agrícola, da
fixação do homem rural, dos instrumentos e agências de produção.
Embora majoritariamente rural, o Brasil já tomava contato com a
aceleração urbana, e, simultaneamente, com a precariedade do in-
vestimento em educação — fonte, àquela altura, primordial ao en-
fretamento da necessária qualificação para o trabalho. (BOMENY,
2014, p. 320).

Partindo desse pressuposto, os arranjos e mudanças sociais a partir da dis-


seminação de valores civis que tinham como intuito principal homogeneizar as
referências sociais do país em um discurso voltado para o progresso e civilidade,
também correspondiam ao momento em que o desenvolvimento intelectual das
elites seridoenses estava em franca ascensão por meio do contato com a Facul-
dade de Direito do Recife que se encontrava envolta nas discussões calorosas
acerca da propaganda republicana.
Esse debate não passou despercebido pela socióloga Nísia Trindade Lima
(2013) que, ao pesquisar acerca dos intelectuais brasileiros que pensaram o ser-
tão, não deixou de elencar o papel da República neste processo. Segundo a
autora:

Os primeiros anos da República foram palco de um expressivo


movimento de valorização do sertão, seja enquanto espaço a ser
incorporado ao esforço civilizatório das elites políticas do país, seja
como referência da autenticidade nacional. (LIMA, 2013, p. 114).

Pensando a partir dessa discussão e da necessidade de Manuel Dantas em


enquadrar o homem sertanejo a um projeto progressista, percebemos que as
contrariedades entre sertão e litoral não eram incongruentes, mas sim passíveis
de harmonização. E, neste caso, a educação converteu-se em um recurso que
poderia incorporar o interior a um projeto de Brasil.
80 Parnamirim, jan./jun. 2021

Por meio disso, as mensagens com ideias moralizantes e que seriam a partir
de agora amplamente propagadas pelas escolas primárias, e no caso do sertão,
pelas Escolas Rudimentares, continham a existência de diversas alegorias pa-
trióticas e ufanistas que incentivavam a modelação desse homem sertanejo.
Nas engrenagens deste processo, a República pretendia criar um modelo de
cidadão civilizado, entendedor da ordem vigente e que, juntamente com seu
governo, pudesse construir um país sobre a esteira do progresso e do desen-
volvimento urbano, higienista e instrucional. Os vislumbres desse ideário esta-
vam pautados na concepção de que seria encaminhada “à educação a função de
agente transformadora dos súditos brasileiros em cidadãos republicanos” (STA-
MATTO, 2005, p. 81).
Ao escolhermos elencar a tríade de desenvolvimento do país anteriormente
citada que se distribuiu em uma organização urbana, na higiene e educação,
convocamos em nossos estudos Herschmann e Pereira (1994), no que concerne
a problematizar as transformações das cidades republicanas por meio dos proje-
tos de organização dos espaços citadinos, em seu sistema de saúde ponderando
nos cuidados com o corpo, e ainda a expansão da educação na ideia da “confor-
mando mentalidades”9 .
No caso da última característica desse tripé de desenvolvimento de um Bra-
sil moderno, em que se sucedem os anos de 1920, a educação, objeto de aná-
lise desta narrativa, vem sendo pensada enquanto uma vertente da chegada da
modernidade em Parelhas-RN no final do período da Primeira República. Mo-
dernidade esta que, torna-se uma prática educativa quando da aplicação dos
conteúdos em sala de aula por meio de símbolos como a Bandeira, o Hino, e
a seleção de conteúdos para formar cidadãos que zelassem por seu país, e que
alimentando tal zelo, tivessem uma nova perspectiva de desenvolvimento para
o mesmo.
Partindo deste pressuposto, a narrativa em questão tem como principal ob-
jetivo, apresentar como o Plano de Propaganda Contra o Analfabetismo, evento
ocorrido em Parelhas-RN, no Sertão do Seridó, acompanhou os discursos nacio-
nais e promoveu uma educação pautada na disciplinarização de mentes e forma-
ção de cidadãos que passassem a seguir os trâmites impostos pelos governos re-
publicanos. Logo, usamos como material para exemplificar este processo, o re-
latório de mandato do prefeito Florêncio Luciano, articulador do plano, quando
relatou uma das festas cívicas realizadas na cidade, sendo esta elaborada pelos
professores e alunos deste projeto educacional.
9
O uso do termo conformando mentalidades, discutido por Herschmann e Pereira (1994) no
trabalho “A invenção do Brasil Moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20–30”,
compreende-se os ideais republicanos como progresso, civilidade, e novos comportamentos
que passaram a ser inculcados nos currículos escolares com o intuito de formar um cidadão
adequado aos trâmites deste novo período.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 81

Tudo isso será discutido por meio de um corpo investigativo que proble-
matiza os aspectos da Modernização a partir de Fredric Jameson (2005), David
Harvey (2002) e o próprio Marshal Berman (1986) que forneceu o suporte teó-
rico para investigar como na prática, se incorporaram as mudanças propostas
por meio do Plano de Propaganda Contra o Analfabetismo no espaço da ci-
dade de Parelhas. Além dos debates que envolvem as mudanças trazidas pela
República a partir de historiadores como José Murilo de Carvalho (1990) e Nico-
lau Sevcenko (1998), Herschmann e Pereira (1994), Nísia Trindade Lima (2013),
além de Veiga e Fonseca (2003), no que concernem as abordagens simbólicas da
formação do homem no período em discussão.
Sem mais, teríamos aspectos de modernização sendo aplicados não só numa
perspectiva física, ou seja, na construção de escolas, no uso do telégrafo, insta-
lação e ampliação da rede elétrica, assim como nos trâmites simbólicos distri-
buídos em textos trabalhados em sala de aula, o uso do hino, organização das
turmas, fardamento e desfiles cívicos que passaram a fazer parte das aulas e que
moldavam os alunos na busca pela formação de um novo homem sertanejo.

A república nas entrelinhas do plano


O Plano de Propaganda Contra ao Analfabetismo criado e articulado por Florên-
cio Luciano10 , prefeito que assumiu a administração municipal entre os anos de
1928 até 1930, passou a investir maciçamente na educação parelhense criando
desde as Escolas Rudimentares11 e consequentemente a isso fazendo uma série
de contratação de professores. Para tanto, o prefeito ainda investiu na época
em um curso preparatório para os docentes, e montou uma teia de vistoria pe-
dagógica que tinha como incumbência principal além de fazer recenseamentos,
mas também fiscalizar os andamentos das aulas, bem como a assiduidade dos
alunos12 .
10
Segundo o pesquisador local Tertuliano Pereira em seu folheto mensal; Memórias de
Parelhas: resumo de Vida e Obras, impresso pela gráfica Vilar em junho de 2018, Florêncio
Luciano nasceu na comunidade rural Boa Vista dos Lucianos, município de Parelhas, no dia 2 de
novembro de 1894, era filho do agricultor e artífice de fogueteiro José Luciano e entrou na vida
política em 1927 após o desligamento da cidade de Parelhas de Jardim de Seridó. (PEREIRA,
2018, p. 2).
11
Escolas Rudimentares refere-se ao investimento a um modelo escolar simples que tanto
poderia ser instalada em espaços já existentes de uma cidade, como também na construção de
alguns prédios. Neste local, o curso ofertado seria uma alfabetização inicial com leitura, escrita,
matemática, além das noções de conhecimentos gerais e instrução cívica, constituindo assim
um curso primário.
12
Para ter um detalhamento do que foi o Plano de Propaganda Contra o Analfabe-
tismo, acesse o trabalho: Florêncio Luciano e o Plano de Propaganda Contra o analfabe-
tismo: modernização pela educação no Sertão do Seridó Potiguar (1928–1929). Disponível em
82 Parnamirim, jan./jun. 2021

Este plano consistiu em eliminar o analfabetismo presente no município


de Parelhas e criou uma série de artifícios para que os seus objetivos fossem
concretizados. Desta forma, podemos dividir em três categorias a estrutura
utilizada por esse projeto educativo no desenrolar do seu processo, são elas:
as criações das Comissões Urbana, Rural e Central contra o analfabetismo que
teve um importante papel para demarcar os sujeitos que foram alfabetizados;
a criação das escolas e contratação de professores enquanto uma logística do
plano propriamente dito assim como as atividades pedagógicas realizadas; e as
instituições que passaram a fiscalizar o desenvolvimento desse plano.
No início de 1930 o então prefeito de Parelhas, Florêncio Luciano, faz um ba-
lanço do ano anterior do seu mandato. Abordando questões que foram amplia-
das naquele período desde a arborização da cidade, sua zona agrícola, instrução
pública, obras públicas, rodovias e entre outros aspectos do desenvolvimento
da respectiva urbe, esse gestor, conseguiu expressar em seu relato toda a sa-
tisfação de ter dado incentivo inicial para o progresso de uma antiga vila que
entrava no rol dos municípios do estado do Rio Grande do Norte. Ao iniciar seu
testemunho, é possível perceber essas questões, vejamos:

Para levar avante as idèas germinadas no meu cérebro, as quaes


eram promover o progresso dentro das esferas das nossas possibili-
dades, necessário foi promover o alevantamento das nossas rendas,
a arrecação das mesmas, porque entendo ser a base essencial para
promoverem-se os melhoramentos públicos pela evolução hodierna
do nosso povo. (RELATÓRIO, 1929, n.p.).

Diante do que foi abordado, Florêncio Luciano deixou clara a sua afeição
para o progresso da cidade, montando já para a efetivação deste, toda uma logís-
tica de arrecadação para promover os melhoramentos que, segundo ele, faziam
parte da evolução do povo parelhense. Questão essa que se relaciona com as
propostas sugeridas pelos governos republicanos e que o historiador José Mu-
rilo de Carvalho em sua obra A formação das Almas: o imaginário da República
no Brasil (1990) irá discutir no tocante às ideologias propagadas entre aqueles
que estariam a frente de todo e qualquer processo político. Com isso:

Os temas do interesse do indivíduo e de grupos, da nação, da


cidadania, encarnados na ideia de república, estavam no centro das
preocupações dos construtores da República brasileira. Como país
exportador de matérias-primas e importador de ideias instituições,

https://periodicos.ufrn.br/histela/article/view/19500, acesso em: 15 de abril de 2021.


REVISTA GALO, ano 2, n. 3 83

os modelos de república existentes na Europa e na América, espe-


cialmente nos Estados Unidos e na França, serviriam de referência
constante aos brasileiros. (CARVALHO, 1990, p. 18).

Com isso, é perceptível a relação das ideias aguçadas por Florêncio Luciano
acerca do progresso parelhense com as vertentes do desenvolvimento que impe-
ravam no Brasil naquele período. A preocupação dos líderes políticos nacionais,
como também do líder em questão era disseminar esses ideais pela população.
E, nisso, a educação se tornou peça fundamental para moldar principalmente os
analfabetos para buscar junto as instituições do estado, uma espécie de corrente
do desenvolvimento e progresso deste país. Desta feita, tratava-se de montar
uma rede de ensino no país que desse conta da formação do caráter do cidadão,
a sua moralidade, além dos sentimentos patrióticos enquanto a constituição de
uma identidade nacional
Ao falar especificamente do seu projeto educativo nesse relatório, o gestor
deixou clara a sua satisfação para com as conquistas conseguidas por meio do
seu plano até aquele momento, fazendo com que a Propaganda Contra o Anal-
fabetismo construísse novas atribuições na vida dos seus alunos. Com isso, este
político acenou:

Com a propaganda contra o analfabetismo, que levei avante no


município, contando com a colaboração do povo em geral de minha
terra, consegui elevar a matrícula nas escolas estaduaes municipaes
para mais de 600 alumnos. [. . . ] Instruir é educar, e sem educação
não podemos ingressar no caminho da civilização, pois é um dos re-
quisitos indispensáveis ao homem civilizado — saber ler e escrever
(LUCIANO, 1929, n.p).

Diante disso, entende-se que o prefeito trouxe para a sua discussão a ideia de
civilização, de instrução e de consequente a educação enquanto uma saída para
um novo modelo de sociedade. Para a república, o analfabetismo da imensa
população poderia representar um impedimento à construção de uma nação
moderna e civilizada que deveria ser pensada não só pelas instituições governa-
mentais como também pelo próprio povo, responsável pela continuidade deste
processo.
As perspectivas alimentadas e realizadas pelo prefeito correspondiam a um
retrato de um país delineado ao longo dos anos 20 e 30, mas que já vinham
surgindo em um Brasil de fins do século XIX a partir dos valores e modelos de
sociedade que uma elite dominante queria empregar.
Ao deixar claro que a organização citadina precisava de ordem, e que sem
ela não haveria progresso e evolução, Florêncio Luciano estava em sintonia com
84 Parnamirim, jan./jun. 2021

um projeto de Brasil que já vinha se esquematizando nas grandes capitais. Esses


ideais:

Eram inspirados no modelo puritano, ascético e europeu ga-


nharam corpo nas reformas sanitárias, pedagógicas e arquitetôni-
cas deste século. Esses valores foram aglutinados em formulações
filosóficas e científicas que procuravam ter junto a sociedade um
efeito moral, normatizador. A palavra de ordem é sintonizar-se com
a Europa, ou melhor, “civilizar-se” o mais rápido possível, de modo
que o país pudesse, o quanto antes, competir com no mercado in-
ternacional (HERSCHMANN; PEREIRA, 1994, p. 26).

Desse modo, é perceptível a relação das ideias aguçadas por Florêncio Luci-
ano acerca do progresso parelhense com as vertentes do desenvolvimento que
imperavam no Brasil naquele período. Em outro momento neste mesmo relató-
rio, o prefeito nos descreve acerca da realização de uma atividade no dia 15 de
novembro de 1929, em que o desperta para os resultados que já tinha conseguido
com seu projeto ao longo do mesmo ano. Neste documento, este personagem
relata a realização de uma festa cívica escolar alusiva ao dia 15 de novembro:

Tive a idéa, e levei a efeito com o fim exclusivamente de in-


centivar cada vez mais o ensino no município, promover uma festa
cívica-escolar no dia 15 de Novembro passado, data da proclama-
ção da Republica, reunindo nesta cidade, 505 alumnos, devidamente
uniformizados. [. . . ] Assim, na manhã daquele dia, Parelhas assis-
tiu um dos mais soberbos espetaculos, vendo desfilar em passeata
cívica, uniformizada e em ordem a mocidade esperançosa de nossa
terra, cuja festividade deixou um marco na história de Parelhas (LU-
CIANO, 1929, n.p).

Ao promover uma festa alusiva referente aos 15 de novembro, o prefeito bus-


cou antes de tudo elementos que faziam referência à legitimação dos regimes
políticos que tinham como base trazer aspectos do moderno. Neste sentido, a
República foi incisiva ao expandir símbolos, ritos e mitos que conseguissem fa-
zer com que a população obtivesse uma concepção de país e consequentemente
de progresso, de busca de adiantamento, civilidade. Com isso, ao trazermos o
exemplo da comemoração do dia 15 de novembro em 1929, pensamos que a ima-
gem consegue nos evocar como este processo de disciplinarização de mentes e
corpos estava acorrendo.
Observemos a fotografia na página 85. Nela o relato do prefeito Florêncio
Luciano se confirma. Nos corpos, posturas e simbologias como o uso do farda-
mento, além do próprio uso da bandeira, simbolizando o respeito e admiração
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 85

Figura 1 – Registro fotográfico da turma do professor Simião de Oliveira Mello em 1929.

Fonte: Arquivo particular do historiador local Tertuliano Pereira


Autor: Laísa Fernanda Santos de Farias utilizando do acervo do historiador local Tertuliano
Pereira.

pela República, fica clara a inscrição a expansão do projeto do referido prefeito.


Acima, o progresso e o desenvolvimento, abaixo, a terra batida e a pouca es-
trutura. De um lado, professor e crianças com outra perspectiva de cidade, ao
fundo, poucas casas e um cenário urbano que ainda carrega aspectos de um
ambiente rural, mas que naquele momento estava presenciando os primeiros
signos da modernidade através da Educação.
O resultado de uma modernidade baseada na construção ou manutenção de
uma escola acaba depositando na cidade uma série de artifícios. O Plano de
Propaganda Contra o Analfabetismo também acabou promovendo em Parelhas
a chegada de uma série de outros recursos que também facilitaria sua existência.
A luz elétrica representava para uma vila que acabava de se tornar cidade um
avanço, pensada também para melhorar o acesso e permanência dos alunos
deste plano nas escolas parelhenses. Neste sentido, “o conceito de modernidade,
característico deste conjunto de intervenções, sintetiza essas aspirações” (DIAS,
2012, p. 68).
Mas, eram nas salas de aulas que este processo ocorria com mais intensi-
dade. Para além do registro já apresentado e o próprio relato de Florêncio Luci-
86 Parnamirim, jan./jun. 2021

ano, apresentamos ainda o roteiro13 de uma festa alusiva ao dia 7 de Setembro


também do ano de 1929 que aconteceria no centro da cidade. Neste sentido,
dividido em quinze partes o itinerário de apresentação construído trazia desde
declamações de poesia, apresentações de pequenas peças de teatro e histórias
diversas, além de canções. Porém, o que nos chama atenção são as apresenta-
ções que diziam respeito ao:

Programma da festa 7 de setembro. 1929.


1ª Parte Cívica. 7 horas

I Hasteamento da Bandeira e Hynno a Bandeira;


II Preleção sobre a data, pelos professores e suas classes respec-
tivas;
III Recitativas de poesias patroticas.

II Parte. Recreativa. 19 ½ horas


No edifício do Cinema piranga.

I Belezzas do Brasil — Dialogo — pelas alumnas Maria Alice e


Guiomar Oliveira.

Neste trecho da documentação, encontramos a divisão de apresentações de


cunho cívico, onde a intenção era levar os alunos a declamarem os símbolos
patrióticos zelados pela República, e ainda uma parte mais recreativa como in-
titula o próprio documento, mas que mesmo assim não deixaria de enfatizar os
signos nacionais por meio das belezas do Brasil. Logo, percebemos que a confor-
mação de mentalidades já citadas acima em Herschmann e Pereira (1994), nos
ajuda a refletir como estas práticas educativas traduzem uma época, e ainda
demonstram uma necessidade para que o homem do republicano, ao contrá-
rio dos súditos do império, tivessem conhecimento da pátria que pertenciam e
soubessem construí-la a começar por sua consideração.
Estudiosos como Fredric Jameson (2005), David Harvey (2002) e o próprio
Marshal Berman (1986) tem dado suporte teórico para pensar a modernidade
enquanto um fenômeno social e tecnológico, o que nos ajudou a compreender
13
Este relato encontra-se no documento: Papéis Diversos Referentes à Instrução Pública e
festa de 15 de novembro de 1929, na caixa Receitas e Despesas de 1929 a 1930.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 87

neste trabalho, o espaço parelhense e as mudanças trazidas por meio do Plano


ao próprio sertão seridoense.
Harvey, por exemplo, destaca em sua obra Condição Pós-Moderna a se-
guinte questão:

A modernidade, por conseguinte, não apenas envolve uma im-


placável ruptura com todas e quaisquer condições históricas prece-
dentes, como é caracterizada por um interminável processo de rup-
turas e fragmentações internas inerentes. (HARVEY, 2002, p. 22).

Ao ligarmos essa condição defendida por Harvey ao Plano de Propaganda


Contra o Analfabetismo, abre-se a perspectiva para compreender o Sertão e
suas educabilidades enquanto a ruptura de um processo de atraso educacional
alertado pelo modelo de governo republicano e que seria resolvido por meio
da distribuição ou da fragmentação dessa ideia em diversas localidades, como a
própria cidade de Parelhas.
O Sertão aqui investigado por meio da educabilidade remete-se a um lugar
contemporâneo e consequentemente urbano, já que o projeto aqui elaborado
pensou intuitivamente no desenvolvimento da sua Zona Rural, bem como da
própria Urbe.
Em Fredric Jameson a discussão concentra-se em pensar esse Sertão aqui
representado enquanto um espaço de produção e mobilidade. Para este autor,
em sua obra Modernidade Singular: Ensaio sobre a ontologia do presente, destaca
a seguinte questão:

O Tropo da modernidade pode ser considerado naquele sentido


auto-referente, se não performativo, já que sua aparição sinaliza
a emergência um novo tipo de figura, uma quebra decisiva com a
forma prévia de um novo tipo de figurativismo, e é nessa medida um
sinal da própria existência, um significante que indica a si próprio
e cuja forma é o seu próprio conteúdo. (JAMESON, 2005, p. 45).

Diante do que foi exposto é necessário explicar inicialmente que, aproprian-


do-se do discurso de Jameson, este tropo presente no Plano era é o avanço da
cidade por meio da alfabetização dos seus cidadãos. Porém, outros signos da
modernidade também são encontrados no tocante a própria manutenção das
escolas nesse período.
A instalação da luz elétrica, por exemplo, faz parte deste processo, pois a
educação, neste contexto, notifica uma série de outros meios que até então não
eram vistos no Sertão. Com isso, pode-se citar o exemplo do documento refe-
rente à instalação da luz elétrica nos salões do Barão do Rio Branco. Temos a
seguinte abordagem:
88 Parnamirim, jan./jun. 2021

Os abaixo assinados, Silva e Dantas, vêm com o presente pe-


dir a V.S. se digne de mandar pagar aos mesmos a importância de
106$900...?, proveniente de material e mão de obra de uma insta-
lação de luz elétrica nos salões do grupo Escolar “Barão do Rio
Branco” e feita pelos suplicantes, conforme documento junto. Nes-
tes termos, P. defirimento14 . (RECEITAS, 1929, n.p).

A partir do relato documental acima, fica visível a problematização do autor


Fredric Jameson ao identificar o que é o tropo da modernidade. A forma do
próprio conteúdo identifica a emergência de um novo tipo de figura, ou seja, de
um novo tipo de característica dada a um determinado lugar. Ao concatenar a
sua problematização com a manutenção do grupo escolar acima cita, temos um
novo tipo de performance para ler o Sertão.
Nesta oportunidade, a cidade de Parelhas se constitui enquanto um lócus de
experiência de modernidade. Esses equipamentos expressavam novas formas
técnicas, de avanços científicos, além de empregar outra cadência de vida, neste
caso, participativa e facilitadora da rotina da educação.
Convoca-se ainda para entender a modernidade enquanto presença no Ser-
tão, o Filósofo Marshall Berman em seu trabalho Tudo que é sólido se desman-
cha no ar. Compreendendo que a modernidade atrelada à vida urbana só é
possível quando a cidade se torna o próprio instrumento de argumentação.
Prontamente, são experiências de vidas e espaços que são compartilhados
por todos e dessas experiências surge uma amplitude de visões e ideias que vi-
sam tornar as pessoas sujeitos e objetos desse processo. Com isso, “ser moderno
é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento,
autotransformação e transformação das coisas em redor — mas ao mesmo tempo
ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.” (BER-
MAN, 1986, p. 15).

Algumas conclusões
Chegando ao final desta discussão, é importante deixar claro que este escrito
faz parte de um projeto dissertativo que ainda está em construção e que ainda
não consegue elencar resultados assertivos sobre o Plano de Propaganda Con-
tra o Analfabetismo. Porém, por meio das leituras aqui realizadas, temos a pri-
meira conclusão sobre o desenrolar deste projeto. A cidade e seus espaços que
14
Abaixo assinado feito para o Prefeito Florêncio Luciano liberasse verba para a instalação
da luz elétrica no grupo escolar Barão do Rio Branco. Informação encontrada no documento
referente à Receita de 1929 encontrado na caixa: Receitas de 1929, no arquivo da prefeitura
municipal de Parelhas.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 89

geralmente tem seu processo modernizador atrelado ao desenvolvimento dos


projetos de urbanização, aqui vem sendo investigado e repensado por meio da
educação, ela é quem traz esse processo modernizador.
Logo, o discurso do prefeito Florêncio Luciano, expresso em seu Relatório de
mandato de 1930, que discorria sobre progresso, civilidade e desenvolvimento,
nos traz uma das possibilidades do crescimento de Parelhas por meio também
da educação, e não só pelas reformas urbanas características nos anos 20.
Com isso, o Plano de Propaganda Contra o Analfabetismo elaborado por
Florêncio Luciano e seus condescendentes torna-se um gesto de contestação, re-
futação e problematização aos discursos impregnados sobre o Sertão enquanto
um lugar atrasado e obsoleto onde o aspecto rural prevalecesse em relação ao
urbano, questão essa que é completamente errônea se pensarmos no desenvol-
vimento das cidades nordestinas que aumentam após a década de 70, mas que já
privilegiavam seu desenvolvimento por projetos como o de Florêncio Luciano
ainda no início do século XX.

Considerações finais

Quando se fala em experiência educativa, não interessa aqui uma memória in-
dividual daquilo que foi vivido, mas sim, de um conjunto de metodologias que
alcançou um vultoso número de pessoas. A educação não é um processo singu-
lar, mas sim pensado em abarcar um todo, logo a alfabetização de uma pessoa
não tiraria o atraso instrucional de uma população e nem tampouco a transfor-
maria em um modelo de sociedade voltada para o progresso e civilidade, só se
mesma fosse pensada numa coletividade como assim o fez o Plano de Propa-
ganda Contra o Analfabetismo.
Chegando ao final desta narrativa, acreditamos que ao citar uma pequena
parte de uma vasta documentação sobre o Plano de Propaganda Contra o Anal-
fabetismo, esperamos ter conseguido mostrar ao leitor como em Parelhas-RN
se constituiu uma experiência educativa. Logo, são experiências de vidas e alfa-
betização que são compartilhados por todos e desses experimentos, surge uma
amplitude de visões e ideias que visam tornar as pessoas sujeitos e objetos desse
processo que foi a educação na primeira República.
O Plano de Propaganda Contra o Analfabetismo acabou se efetivando e se
perpetuando nas instalações de prédios escolares, nos materiais distribuídos
aos alunos, nos recenseamentos para matricular os educandos ou ainda nos
próprios desfiles cívicos que acabaram sendo internalizados nas reminiscências
tanto daqueles que viveram a época, quanto daqueles que cresceram sabendo
que seus pais ou avós foram alfabetizados por meio dos objetivos deste plano
90 Parnamirim, jan./jun. 2021

ou ainda sabendo das histórias das professoras que alfabetizou algum membro
de sua família.
Ademais, no período em que o sobredito plano esteve em vigor, o instrumen-
tal arregimentado para o seu funcionamento teve como resultado indireto um
conhecimento mais nítido da realidade populacional do jovem município pare-
lhense. Uma vez que, além da questão demográfica, com atenção especial para
os jovens, público alvo do intento educador, houve a mobilização e o emprego
dos poucos letrados aí residentes e a modernidade marcou indelevelmente sua
presença por meio do telégrafo, da eletricidade e da própria construção de pré-
dios escolares, símbolo maior da vida moderna, tanto no espaço urbano, quanto
na zona rural. Temos então, a produção de uma cultura material que faz refe-
rência um projeto de desenvolvimento da cidade pensado inicialmente por seu
viés educativo.

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Recebido em 5 abr. 2021.


Aprovado em 18 abr. 2021.
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MATRIZ DE SANTA LUZIA NA
CIDADE DE MOSSORÓ-RN
Arthur Ebert Dantas dos Santos1
Jackson Luiz Fernandes Adelino2
Lara Raquel de Souza e Maia3
Valdeci dos Santos Júnior4
RESUMO: Partindo de motivos culturais e religiosos, a maioria dos municípios bra- Como referenciar?
SANTOS, A. E. D. et al. A
sileiros escolhe um santo católico para apadrinhar aquele local, assim, abençoando-os institucionalização da
com sua determinada “graça”. A cidade de Mossoró, do estado do Rio Grande do Norte Matriz de Santa Luzia na
cidade de Mossoró-RN.
tem como padroeira Santa Luzia. O presente artigo pretende realizar a discussão acerca Revista Galo, n. 3, p.
da institucionalização da matriz de Santa Luzia, no município de Mossoró-RN, e de que 93–105, 17 jul. 2021
forma esse processo esteve relacionado à elevação do povoado à condição de freguesia.
A metodologia utilizada consiste na análise de discursos historiográficos produzidos
acerca do tema, bem como a utilização de fontes eclesiásticas, como documentos de
transações financeiras e construções de capelas, a fim de compreender quais os aspec-
tos socioculturais que contribuíram à consolidação da referida santa como padroeira
de Mossoró.
Palavras-chave: Mossoró. História Eclesiástica. Rio Grande do Norte. Século XIX.
Santa Luzia.

THE INSTITUTIONALIZATION OF MATRIZ DE SANTA LUZIA


IN THE CITY OF MOSSORÓ-RN
ABSTRACT: Thanks to cultural and religious reasons, most Brazilian municipalities
choose a Patron Saint for blessing the place with their “grace”. The city of Mossoró,
in the state of Rio Grande do Norte, has Saint Lucy as its patron. This article aims to
discuss the institutionalization of Matriz de Santa Luzia (St. Lucy’s Mother Church),
in the municipality of Mossoró-RN, and how that process related to the elevation of
1
Discente do curso de Licenciatura em História da UERN. ID Lattes: 1007.7175.0723.9191.
ORCID: 0000-0002-8150-0706. E-mail: arthur.ebert40@gmail.com.
2
Discente do curso de Licenciatura em História da UERN. ID Lattes: 9611.7379.1926.1408.
E-mail: jacksonadelino@alu.uern.br.
3
Discente do curso de Licenciatura em História da UERN. ID Lattes: 3966.1343.1569.5403.
E-mail: laramaia@alu.uern.com.
4
Professor Adjunto IV da UERN. ID Lattes: 5748.3825.9902.4802. ORCID: 0000-0002-5314-
4943. E-mail: valdecisantosjr@hotmail.com.

93
94 Parnamirim, jan./jun. 2021

the village to the status of freguesia. The used methodology consists on analysis of
historiographic speeches related to the topic, as well as the use of ecclesiastical sources
in order to understand which socio-cultural aspects contributed to the consolidation
of the aforementioned saint as patron of Mossoró.
Keywords: Mossoró. Ecclesiastical History. Rio Grande do Norte. 19th Century. Santa
Luzia.

Introdução
O impacto da Igreja Católica ao longo da história da humanidade é enorme.
Desde a Idade Medieval ela se estabeleceu como uma instituição de forte poder
e influência onde estivesse. Mesmo durante a sua crise com as Reformas Pro-
testantes, ela se manteve firme em seu papel de domínio, principalmente nas
colônias do período. A América, por exemplo, foi um local que ela conseguiu se
firmar bem (tanto nas colônias espanholas quanto nas portuguesas), já que as
Metrópoles, no início da colonização, faziam questão de utilizar a religião como
forma de domínio sobre os nativos.
Por ser um órgão tão presente no cotidiano colonial, acabou influenciando
na forma como a dinâmica social se estruturou, incluindo o “desenho” das ci-
dades nas colônias. Isso aconteceu por, muitas vezes, a Coroa, em especial a
portuguesa, não se preocupou tanto em elaborar um planejamento urbano para
aquela região, e a Igreja Católica como já possuía suas diretrizes, e atrelada às
suas missões de evangelização, acabavam, intencionalmente ou não, formando
povoados que posteriormente se transformaram em cidades.
Porém, apesar de serem da mesma instituição, a atuação da Igreja Católica
na formação do espaço colonial variava de acordo com a Metrópole (Espanha
ou Portugal). Nas colônias espanholas, por exemplo, a Coroa e a Igreja Católica
conjuntamente se preocupavam com a organização da cidade, e seguiam o plano
xadrez determinado pela Lei das Índias5 . Segundo Medeiros (2010):

Nas cidades hispano-americanas, as igrejas e os prédios ofici-


ais são grandes, muito maiores e mais elaborados do que do lado
brasileiro, superdimensionados para o tamanho e a população das
cidades. O resultado é uma cidade densa, compacta, pequena, e com
pouca vegetação. (MEDEIROS, 2010, p. 59).
5
Considerada a primeira legislação urbanística da Idade Moderna, a lei instituída por Fi-
lipe II, no ano de 1573, fez uma “associação entre os princípios das ideais renascentistas, as
influências do Tratado de Vitrúvio e as realizações concretizadas na América”. Ver mais em:
DANTAS, A. C. M. Cidades coloniais americanas. Arquitextos, n. 50, 2004. Disponível em:
<https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.050/566>.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 95

Já no caso das colônias portuguesas (incluindo o Brasil), a Igreja influen-


ciava muito na urbanização, mas não da forma como acontecia na América
Espanhola, e sim de uma forma desordenada. Como a Coroa Portuguesa não
possuía a preocupação de fazer um planejamento urbano, e também por con-
tar com dinheiro insuficiente para investimentos assim, esse papel ficou com
a Igreja Católica, que possuía seus regimentos para a construção de templos
religiosos, e com os beneficiários responsáveis pelas suas Sesmarias, que de-
veriam desenvolver a região. A Igreja possuía já em 1707 (quando foi redigido,
mas publicado apenas em 1719), um planejamento para quando fosse necessário
construir paróquias novas:

Conforme direito Canônico, as Igrejas se devem fundar, e edifi-


car em lugares decentes, e acommodados, pelo que mandamos, que
havendo-se de edificar de novo alguma Igreja parochial em nosso
Arcebispado, se edifique em sítio alto, e lugar decente, livre de hu-
midade, e desviado, quando possível de lugares imundos e sórdi-
dos. . . 6

Ou seja, dessa forma, como as igrejas eram construídas nos lugares com um
padrão habitacional mais bem definido, e com a Coroa não se preocupando com
isso, “era a partir da igreja que surgia às ruas, e não o contrário” (PARENTE,
1998, p. 195).
Medeiros (2010), baseando-se em Bittar, Mendes e Veríssimo (2007) divide as
ocupações religiosas no Brasil em três fases: a primeira (século XVI até o XVII)
foi predominada pela presença dos Colégios de Jesuítas na formação de cidades;
a segunda (início do século XVII até o século XVIII) teve como característica
os grandes conventos das ordens religiosas; a última (todo o século XVIII) se
caracterizou pela construção de igrejas e capelas no interior como forma de
abrir os cultos de irmandades e confrarias, consolidando assim a dominação do
interior do território brasileiro.
No caso da Capitania do Rio Grande (atualmente, Rio Grande do Norte)
essa prática de construção de capelas se tornou muito comum no século XVIII.
O sertão da Capitania começou a ser mais povoado nesse período, pois estavam
acontecendo muitos conflitos por sesmeiros de outras regiões (como a Bahia,
por exemplo) estavam querendo terras na região e isso estava desagradando os
fazendeiros. Então, intensificou-se a cobrança para que os sesmeiros beneficia-
dos com a terra ocupassem-a e produzissem nela. Assim, com a fomentação no
comércio da região foi-se criando várias rotas e pontos comerciais que posteri-
ormente tornaram-se vilas (MONTEIRO, 2000).
6
Documento “Constituiçoens primeyras do Arcebispado da Bahia feytas. . . ”, publicado em
1719. (MARX, 1991, p. 22 apud PARENTE, 1998, p. 195–196).
96 Parnamirim, jan./jun. 2021

Uma cidade que provavelmente passou por esses dois processos (o religioso
e o comercial) foi Mossoró, como destaca Monteiro (2000, p. 83). Tendo em
vista que a fundação de Mossoró data de 1852, um ponto muito importante de
se destacar é o papel que a capela de Santa Luzia teve dentro desse processo,
tendo em vista que ela data de 1772. A formação da própria capela também
sugere a que a teoria apresentada por Monteiro é plausível, tendo em vista que
ela surgiu no sítio que levava o nome da Santa:

Na ribeira de Mossoró em 1739, já era conhecido pelo nome


de Santa Luzia o sítio onde se acha edificado a cidade de Mossoró,
provando-se isto por uma carta de data e Sesmaria concedida ao Ca-
pitão João do Vale Bezerra, de uma das terras em um córrego grande
que deságua no rio Mossoró chamado Saco Grande (hoje Açude do
Saco) junto de Santa Luzia, em abril daquele ano. (SOUZA, 2010,
p. 52).

De acordo com Souza (2010), a capela de Santa Luzia foi elevada à nomeação
de “freguesia independente” em 1842:

Em 1842, em virtude da Lei Provincial Nº 87 de 27 de outubro, a


capela de Santa Luzia de Mossoró, filial da do Apodi, foi declarada
Freguesia independente; e posta em concurso, o Padre Antônio Jo-
aquim, que ainda era diácono, submetendo-se a dito concurso, foi
aprovado e promovido Pároco colado da nova Freguesia da qual
só tomou posse em 1844, assistida pelos seus irmãos de hábito os
padres Francisco Longino Guilherme de Melo, Leonardo de Freitas
Costa, José Antônio Lopes da Silveira e Florêncio Gomes de Oli-
veira." (SOUZA, 2010, p. 131).

É interessante notarmos que o processo de formação da localidade de Mos-


soró sempre esteve envolto a questões religiosas: "Em 1852, pela lei Provincial
nº 246 de 15 de março, foi a povoação de Santa Luzia elevada à categoria de Vila
e Criado município, para cujo ato muito influiu o Padre Rodrigues, que já era
conhecido na Província, como político de prestígio na localidade de sua residên-
cia." (SOUZA, 2010, p. 135). O autor ainda versa sobre como era a situação da
referida freguesia, bem como as dinâmicas sociais e econômicas aqui presentes:

A povoação de Santa Luzia consistia em um pequeno quadro de


casas de construção péssima e sem arquitetura, a maior parte casas
de taipa, em frente da pequena Capela, um pouco deteriorada, com
o teto quase todo abaixo e qual havia sido construída em 1772 pelo
Sargento-mór Antônio de Souza Machado. A nova Freguesia era
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 97

pobre; o comércio quase nulo; os poucos negociantes que haviam


traziam do Aracati as mercadorias em costas de animais; agricul-
tura pouca, consistindo a sua maior riqueza na indústria pastoril,
cujo principais fazendeiros eram os membros das famílias denomi-
nadas — ‘Camboa’, ‘Guilherme’ e ‘Ausentes’ — as mais numerosas
do lugar segundo a tradição." (SOUZA, 2010, p. 132).

Como podemos perceber na citação acima, a povoação de Santa Luzia era


pequena, pouco desenvolvida, com poucas habitações e, consequentemente,
poucos habitantes. Em relação a sua economia, sua arrecadação era insufici-
ente fazendo com que o crescimento da vila ficasse comprometido. Como já
citado, sua formação está ligada a questões religiosas, visto que assim como
aconteceu em cidades como São Roque, cidade do Estado de São Paulo, e Caru-
aru, cidade do Estado da Paraíba, a cidade de Mossoró, até então vila, também
surgiu nos arredores de uma capela.
Sobre a influência exercida pela religião em grupos menos abastados, Facó
(1972, p. 9) dirá que: “A única forma de consciência do mundo, da natureza,
da sociedade, da vida, que possuíam as populações interioranas, era dada pela
religião ou por seitas nascidas nas próprias comunidades rurais, variantes do
catolicismo.”. Assim, percebe-se que a estruturalização das moradias em torno
da Capela de Santa Luzia, foi um ato baseado, e guiado, pela fé de seus mo-
radores, sendo este uma ação bastante comum no interior do Nordeste, assim
como o “apadrinhamento” da localidade por um santo, no caso de Mossoró, a
padroeira tornou-se, no século XX, Santa Luzia, a virgem de Siracusa.

Desenvolvimento
A localidade do sítio de Santa Luzia teve dois principais donos, o capitão Teo-
dorico da Rocha, anterior a 1739, e em 1754 até 1770, o sargento-mór da Ribeira,
José de Oliveira Leite (SOUZA, 2010, p. 53). Em 1770 quem assumiu o sítio de
Santa Luzia foi o Sargento-mór Antônio de Souza Machado; no mesmo ano,
ele e sua esposa, D. Rosa Fernandes, começaram a buscar a construção da ca-
pela, que levaria o mesmo nome do sítio. De acordo com Fausto de Souza, a
construção da capela data do ano de 1772:

Em 5 de agosto de 1772 por Provisão assinada pelo reverendo


Padre Inácio de Araújo Gondim, Vigário Colado da Freguesia de
Santo Amaro de Jaboatão, de Pernambuco, então visitador dos ser-
tões do Norte, foi concedida licença ao mesmo Sargento mór Antó-
nio de Sousa Machado e sua mulher, por assim haverem requerido,
98 Parnamirim, jan./jun. 2021

para erigirem uma capela tendo como invocação Santa Luzia, na ri-
beira de Mossoró da mencionada freguesia, autorizando o referido
visitador, na aludida Provisão [. . . ]. Essa capela foi construída, de
pedra e cal, no mesmo ano de 1772, e no mesmo lugar aonde se acha
hoje edificada a matriz de Mossoró pelo referido Sargento-mór que
com ela despendeu a quantia de 590$770 rs. (SOUZA, 2010, p. 54).

No momento de sua fundação, a igreja era pertencente à Freguesia de Nossa


Senhora da Conceição e de São João Batista das Várzeas do Apodi.
No ano de 1842, 120 anos após a capela ser erguida, a mesma é elevada ao
status de Matriz (SOUZA, 2010, p. 57), todavia, apesar do sítio e a capela leva-
rem o nome de Santa Luzia, a mesma não era a padroeira ou figura religiosa da
localidade ainda, visto que a escolha de um padroeiro dependia da sensibilidade
dos moradores aliados ao simbolismo que o santo representava para aquela lo-
calidade. A seguir podemos ler uma citação da obra de Fausto de Souza, onde
ele nos expõe a transcrição de um documento da Igreja de Mossoró:

Até 1854 só existia em Mossoró uma irmandade religiosa — a


de Nossa Senhora do Rosário — dos homens pretos, criada segundo
presumimos em 1786. Em 1855, porém, o Padre Antonio Joaquim
criou a irmandade da Senhora Santa Luzia, Padroeira da Fregue-
sia, conforme se vê no documento que se segue, cópia de um livro
da igreja de Mossoró: “Ata da primeira reunião e institucionaliza-
ção da irmandade da Senhora Santa Luzia, Orago desta Freguesia
da Vila de Mossoró, com a baixo se declara: — Aos dois dias do
mês de Fevereiro do ano de mil oitocentos e cinquenta e cinco, no
corpo da Igreja Matriz desta Freguesia de Mossoró, pelas nove ho-
ras e meia da manhã do sobredito dia, antes da missa Conventual,
se acha reunido grande concurso de povo, conforme o convite feito
pelo Reverendo Vigário da Freguesia Antonio Joaquim Rodrigues á
estação de varias missas conventuais a fim de organizar-se uma ir-
mandande da Senhora Santa Luzia, Orago desta Freguesia de Mos-
soró, e achando o mesmo vigário boa vontade em seus fregueses
para o fim convocado, mandou colocar no corpo da Igreja Matriz,
mesa e assentos e tomou assento com grande parte de seus fregue-
ses, e em seguida se procedeu ao alisamento em caderno, o qual
deve ser transferido para um livro, logo que haja e foram escritos
ou alistados no caderno mais de duzentos nomes de indivíduos de
um e outro sexo; concluindo o alistamento tratou-se do encargo de
organizar os artigos de compromisso, e foram todos concordes que,
querendo o respectivo Vigário encarregar-se desse trabalho, fica-
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 99

rão satisfeitos pelo que foi o trabalho aceito. [. . . ]” (SOUZA, 2010,


p. 147–148).

Analisando o documento em questão, Fausto de Souza afirma que existia em


Mossoró a irmandade religiosa de Nossa Senhora do Rosário dos homens pre-
tos, criada, de acordo com o autor, aproximadamente no ano de 1786 (SOUZA,
2010, p. 147). Como podemos interpretar, a irmandade existia antes da funda-
ção da Irmandade da Senhora Santa Luzia, o que muito provavelmente deveria
representar a antiga padroeira da Freguesia, antes da escolha de Santa Luzia.
O grande ponto é: por que a capela havia deixado de ser uma freguesia de
Apodi e se tornado uma matriz? Como foi esse processo e quem esteve por
trás? O estudioso Luís Câmara Cascudo defende a tese de que o processo de
elevação da capela para Matriz foi um ponto importantíssimo para que poste-
riormente Mossoró se tornasse um município de fato (CASCUDO, 2010, p. 54).
Isso se sustenta tendo em vista que elevar-se ao posto de Matriz depende de um
comércio pelo menos estável para sustentar o local. Então, mais que um marco
religioso, tornar-se Matriz era também um marco econômico, visto que as Ma-
trizes, geralmente, eram construídas em cidades que possuíam certa influência
comercial para sua região.
No Acervo Oswaldo Lamartine7 , presente na Coleção Mossoroense, é pos-
sível achar o livro História de Mossoró, escrito por Francisco Fausto de Souza.
Esse livro traz alguns documentos muito importantes que podem auxiliar na
pesquisa, para que seja possível entender como era essa relação de poder que o
sucesso da igreja traria ao vilarejo e vice-versa.
Inicialmente, para a construção da capela gastou-se um grande valor (exatos
590$770 rs, como consta no livro de SOUZA, 2010, p. 54). Com o falecimento do
Sargento-mór Antonio de Souza Machado no fim do século, foi feita uma visita
e nela analisada as contas da capela, onde foi constatado que o fundador estava
devendo 24$400 réis à capela (ou seja, também à Matriz em Apodi), enquanto
a capela estava devendo ao seu administrador 41$290 réis. Basicamente, ao
fim do século XVIII a Capela de Santa Luzia estava “em crise”, com um saldo
negativo. A partir desta informação podemos identificar o quanto se apostava
na construção e fundação de uma capela que representasse a “diocese local”,
além de que mesmo com a edificação da estrutura, a capela estava passando
por uma crise, talvez representando a falta de identificação dos fiéis da freguesia
para com a Santa.
Porém, de acordo com os dados que Souza (2010, p. 58) traz, a capela teve
pelo menos outros três administradores antes de ser elevada ao patamar de
Matriz. Com o passar dos anos, e analisando as contas, foi possível ver que
7
Disponível em https://colecaomossoroense.org.br/site/acervo-oswaldo-
lamartine/.
100 Parnamirim, jan./jun. 2021

houve uma melhora financeira, passando a receber muitas doações, e até mesmo
pessoas “devendo” à paróquia. E essa melhoria não se dava somente em forma
de dinheiro, mas também em terras e animais para a pecuária, como é possível
ver no trecho da reportagem de Francisco Fausto para “O Nordeste”, publicada
em 15 de maio de 1929:

O patrimônio da Capela de Santa Luzia, em 1842 quando foi ele-


vada a categoria de Matriz, era o seguinte: uma légua de terra em
quadro no sítio “Canto do Junco”, doada por Domingos Fernandes
e sua mulher; um pedaço de terra no sítio “Santa Luzia”, a come-
çar do Córrego da Calheira (que hoje chamam da Rua dos Caval-
canti) até Macacos, arrendando as terras do defunto José da Costa
de Oliveira Barca, doada em 1801 por D. Rosa Fernandes, viúva do
Sargento-mór Souza Machado; uma porção de terra no lugar Maca-
cos, deixadas em testamento à mesma santa, por Manoel da Costa
de Oliveira Barca, vulgo Manoel Ferreira, falecido em Recife; uma
sorte de terras no Riacho Grande do Juazeiro que deu a pagamento
à santa, Francisco da Costa Correia; uma casa na povoação, junto
da capela doada por Manoel Ferreira, a qual em 1820, segundo uma
declaração do Procurador João Joaquim de Melo servia de moradia
do capelão. Também tinha a santa, gados situados em Santa Luzia
e na barra de Mossoró, etc.

Outro ponto importante para que fosse possível a elevação para Matriz eram
os materiais que estavam dispostos na capela para a realização de eventos re-
ligiosos no local. A partir dos relatórios de controle da Matriz, relacionados
ao tempo em que esta era Capela, relata-se que desde a criação da capela até
o ano de 1816 aconteceram sete visitas de clérigos para constatar a situação
da capela, como estava as alfaias e ornamentos. Na primeira visita registrada,
em 1775, a relação feita pelo Visitador Alexandre Bernardino dos Reis constava
uma imagem da milagrosa Senhora Santa Luzia, um crucifixo para o altar, um
permanente xamalete branco, uma alva de pano de linho, dois corporais e um
sanguinho, uma toalha, uma cálice de prata, um missal novo com mola, uma
imagem do Senhor, uma imagem de São Gonçalo, uma toalha para o altar e
uma pedra d’ara (SOUZA, 2010, p. 66).
Já na segunda visita, em 1779, realizada por Joaquim Monteiro da Rocha,
mostrou um inventário com bem mais recursos: uma igreja feita de pedra e cal,
uma imagem no altar-mór de Santa Luzia, uma do Senhor Crucificado, uma ima-
gem de Nossa Senhora do Rosário em seu altar, uma pedra d’ara, uma frontal
do chamaleto do altar-mór, duas toalhas do dito altar, de bertanha; um orna-
mento do xamaleto, com alva, um m. cordão, um frontal do xamalete e toalha
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 101

de bertanha no altar o Rosário, um cálice prata, dois copos e dois saguinhos,


um par de galhetas de estanho e um vaso de comunhão, três vaqueras de ferro;
uma imagem de Santa Luzia.
Quando foram apresentadas as petições para que Santa Luzia de Mossoró
fosse uma Freguesia independente, o Bispo Dom João da Purificação Marques
Perdigão respondeu que seria, sim, possível à criação da Freguesia, desde que
“esta igreja estiver preparada para ser Matriz, possuindo ao mesmo tempo as
utensilias, alfaias e paramentos necessários para a administração dos Sacra-
mentos” (CASCUDO, 2010, p. 62). Apesar de não haver as documentações que
foram apresentadas por Antônio Francisco Fraga Júnior, é sabido que foram
suficientes para a criação da Freguesia de Santa Luzia, no ano de 1842.

Elevação à freguesia
Cascudo (2010) aponta que um dos principais nomes para a concretização da
capela de Santa Luzia em Matriz foi Antônio Francisco Fraga Júnior, conhecido
como Fraguinha, personalidade de confiança dos moradores. Fraga recorre ao
Bispo Diocesano, dom João da Purificação Marques Perdigão. Todavia, este
último não podia criar Freguesia, apenas poderia aprovar criações, visto que,
como aponta Fausto de Souza, a criação de Freguesias era um assunto legis-
lativo, e por consequência, o processo foi direcionado à Comissão de Negócios
Eclesiásticos e mais partes, que pertencia à Assembléia (CASCUDO, 2010, p. 50).
O processo tramitava entre a Assembléia Legislativa e a aprovação ou desapro-
vação do Bispo Diocesano. Então Fraga, como versa Câmara Cascudo, “na ago-
nia do sonho” (CASCUDO, 2010, p. 51) apresenta uma petição à Assembleia no
ano de 1839, a qual se encontra transcrita na obra de Cascudo:

Os habitantes da Povoação de S. Luzia do Mossoró desta Pro-


víncia, representados na presente Petição por Antonio Francisco
Fraga Junior chegam a esta Assembleia reclamando um benefício
que a vista das circunstâncias parece merecer a justiça de seus le-
gisladores, o qual passa a expor: Distando quinze léguas da Matriz
da Vila do Apodi, cuja Freguesia pertence aquela Povoação, lhe fica
por esta distância e mau caminho, máxime pelo inverno assaz pe-
noso os recursos espirituais, tendo sucedido já pela demora deles se
finarem pessoas sem receberem esses alimentos que caracterizam o
Cristo que tem abraçado a Doutrina Católica, Apostólica, Romana,
que felizmente professa-se no Império do Brasil. [. . . ] Para a boa
tranquilidade das consciências dos habitantes da mesma povoação,
é de suma necessidade que a Capela ali existente seja elevada a Ma-
triz com a nominação de Freguesia de Santa Luzia do Mossoró- pela
102 Parnamirim, jan./jun. 2021

razão de que sendo Matriz há de ter Pároco, e tendo Pároco, os re-


cursos são prontos, por não embaraçar a isto os motivos que vêem
de ponderar. A Capela por seu asseio, decência, apartamentos e
mais necessários é digna de ser elevada a categoria de Matriz, e
conquanto a Câmara respectiva afirme ocupar só setecentas almas
de Comunhão, os habitantes da Povoação sem temer de errarem,
dizem que fixada a divisa da Freguesia pelos pontos que passam a
indigitar, pode conter pouco mais ou menos quatro mil almas. [. . . ]
Enfim os habitantes de Mossoró contam com o apoio da assembleia
e lisojeam-se com a expedição do pedido. (CASCUDO, 2010, p. 51–
52).

A petição se estende por várias linhas, mas os pontos que desejamos ressal-
tar foram expostos na citação acima. Por se tratar de um assunto religioso, Câ-
mara Cascudo aponta que as Câmaras Municipais interessadas nesse processo
não podiam se opor, mas podiam dar suas opiniões em relação aos “inconveni-
entes da causa, falando sobre limites propostos, número de almas de comunhão
que lhe ficam pertencendo” (CASCUDO, 2010, p. 50), tal qual podemos conferir
no discurso de defesa que Fraga coloca, onde ele faz referência a questão das
almas de comunhão. Bem como podemos conferir a questão da religiosidade
e da economia, quando o mesmo cita que se elevada à categoria de Matriz, a
capela contará com a presença de um Pároco, e por consequência, a chegada de
recursos advindos do poder eclesiástico se torna mais fácil, tendo em vista que
até aquele momento esses recursos iam para a Matriz em Apodi, e de lá eram
encaminhados para a capela.
Na primeira petição, o parecer foi negativo, dado cinco dias após o pedido,
tendo o argumento de que isso envolveria a mudança de limites das Freguesias
de Apodi, Campo Grande e Princesa (CASCUDO, 2010, p. 53). Porém, Fraga
Júnior apresentou, no ano seguinte, outra petição com a base argumentativa
praticamente igual à do ano anterior. Mas, paralelamente, outros moradores do
povoado em comunidades próximas também fizeram uma petição contra argu-
mentando que não era necessária essa nova Freguesia, tendo em vista que, para
eles, as funções exercidas pela Matriz de Apodi estavam sendo cumpridas de-
vidamente. Ambas as petições foram apuradas, mas o parecer para o pedido de
Fraga Júnior foi negado novamente, mas dessa vez por não haver a permissão
do Bispo. Assim como foi ressaltado, muito provavelmente, as razões que leva-
ram os moradores de povoados vizinhos a construir uma nova petição, agora
desaprovando a elevação da Capela, seria uma possível separação de territórios,
o que poderia influir no contingente que a Matriz de Apodi conseguia reunir,
visto que sues fieis estavam satisfeitos com a atuação da Matriz.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 103

Seguiram-se as discussões na Assembleia. Um parecer positivo surge em


nome de Dom João da Purificação Marques Perdigão, em 1841:

Ilmº, Snrº. Examinando o requerimento o documento que V.S.


menciona no Ofício que Nos dirigis em data de 17 d´outubro de
1840. que ora Nos foi apresentado, à cerca da criação de uma nova
Freguesia de Santa Luzia de Mossoró, parece-nos que pode ser cri-
ada esta Freguesia, depois que esta igreja estiver preparada para
ser Matriz, possuindo ao mesmo tempo as utensilias alfaias, e pa-
ramentos necessárias para a administração dos Sacramentos.
Queira V. S. levar ao conhecimento d´Assembleia Legislativa
dessa Província este Nosso parecer para sua inteligência.
Deus Guarde a V.S. muitos anos. Seminário Episcopal d´Olinda
23 de Novembro de 1841. (CASCUDO, 2010, p. 61–62)

Importante ressaltar que, em um primeiro momento, foram negadas as pe-


tições que tinham como objetivo elevar a Vila a Freguesia, pois aparentemente
uma Freguesia precisa possuir certo aparato e dispor de uma estrutura que su-
porte as atividades desempenhadas na Matriz, como a celebração rotineira de
missas e o acolhimento de um maior número de fieis. Entretanto, como pode-
mos ver na citação de Câmara Cascudo, a Assembleia deu parecer positivo ao
constatar que a localidade em questão tinha chances de alcançar os patamares
aceitáveis para tal criação da nova Freguesia, logo, elevando a capela à Matriz.
Podemos constatar a partir da citação de que transformar a igreja em uma
Matriz era essencial à elevação do povoado em Freguesia, e que também era de
suma importância a futura Matriz possuir aporte material para a administração
das atividades sacramentais. Fraga Júnior reuniu os documentos necessários e
solicitou a aprovação que foi conseguida, como podemos ver no trecho a seguir:

O Alferes Alexandre de Souza Rocha, Administrador da Igreja


Capela de S. Luzia de Mossoró em virtude da Lei; Atesto que a Ca-
pela de S. Luzia desta povoação tem todos os paramentos e alfaias
que necessite uma Matriz e não precisa de reparos nenhum, já se
acha pronta, e decente, é quanto sei, e posso atestar em fé de ver-
dade. Mossoró 8 de setembro de 1842.

ALEXANDRE DE SOUZA ROCHA

N. 187.
Pg Cento e vinte reis de Selo.
Natal 19 de setembro de 1842.
ALCOSTA. SIABRA DE MELLO. (CASCUDO, 2010, p. 65).
104 Parnamirim, jan./jun. 2021

Após esse parecer positivo, Fraga Júnior em 1842, e no dia 24 de outubro é


elevada à categoria de Matriz a antiga Capela de Santa Luzia, como podemos
ver na citação a seguir:

D. Manoel d’Assis Mascarenhas, Presidente da Província do Rio


Grande do Norte. Faço saber a todos os seus Habitantes que a As-
sembleia Legislativa Provincial Decretou, e eu Sancionei a Resolu-
ção seguinte: Art. 1º - Fica desmembrada da Freguesia do Apodi,
e elevada à Categoria de Matriz a Filial Capela de S. Luzia de Mos-
soró, conservando a mesma Fábrica, e Guizamento, que a Matriz de
que é desmembrada. (CASCUDO, 2010, p. 66).

Vale citar também outros pontos importantes presentes nesta resolução,


como os limites do povoado de Mossoró e sua incorporação ao Município da
Vila da Princesa, sendo, atualmente, o município de Assú. Em 15 de março de
1852, através da Lei nº 246, o até então povoado de Mossoró adquire sua au-
tonomia e se torna município, assim, se desincorporando da Comarca de Assú.
Passados quase dois séculos, a influência religiosa, e econômica, exercida pela
Matriz, hoje Catedral, de Santa Luzia, continuam sendo poderosos fatores den-
tro da cultura da cidade. Onde, a festa de celebração à Padroeira é um dos
maiores eventos religiosos do Estado do Rio Grande do Norte, movimentando
milhares de fiéis de todo o Brasil e aquecendo a economia mossoroense.

Conclusão
Através da análise da documentação e dos discursos relacionados à transfor-
mação do povoado em Freguesia independente e a Capela de Santa Luzia em
Matriz, podemos afirmar que ambos os processos estiveram extremamente as-
sociados, pois a elevação da capela à condição de matriz foi um fator que im-
plicou diretamente para o sítio de Santa Luzia recebesse o título de Freguesia
independente em 1842. Vale ressaltar que além de auxiliar na condição de Fre-
guesia independente, o status de Matriz conferiu ao então povoado de Mossoró
uma maior atenção econômica, e independência em vários âmbitos antes atre-
lados à Freguesia do Apodi.
A conquista da nomeação de Freguesia independente se deu através da rei-
vindicação por parte dos moradores do povoado na Assembleia Legislativa,
tendo esta que passar pela aprovação da Assembleia, do Bispo e das outras
Freguesias e povoados. Sendo assim, nota-se que o caso de Mossoró segue a
questão afirmada por Gomes Parente, de que era a partir da igreja que surgia a
cidade (PARENTE, 1998, p. 195).
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 105

No quesito metodológico, é de suma importância ressaltar as contribuições


das produções de Câmara Cascudo e Francisco Fausto de Souza, ambas do ano
de 2010, para a escrita deste trabalho, visto que os documentos apresentados no
artigo são citações de transcrições presentes nas obras de ambos.

Referências
CASCUDO, L. C. Notas e Documentos para a História de Mossoró.
Mossoró: Coleção Mossoroense, 2010. Edição especial para o Acervo Virtual
Oswaldo Lamartine de Faria. Disponível em:
<https://colecaomossoroense.org.br/site/wp-
content/uploads/2018/07/Notas-e-Documentos-Para-a-
Hist%C3%B3ria-de-Mossor%C3%B3.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2020.
DANTAS, A. C. M. Cidades coloniais americanas. Arquitextos, n. 50, 2004.
Disponível em: <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/
arquitextos/05.050/566>.
FACÓ, R. Cangaceiros e fanáticos. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1972.
MARX, M. Cidade no Brasil, terra de quem? São Paulo: Edusp, 1991.
MEDEIROS, A. P. G. Igreja e religiosidade na urbanização de cidades coloniais
nas Américas, nos séculos XVI a XVIII. Revista Urutágua, n. 21, 2010.
MONTEIRO, D. M. Caminhos, fazendas, vilas e missões: a Capitania e a
consolidação da colonização portuguesa (século XVIII). In .
Introdução à história do Rio Grande do Norte. Natal: EDUFRN, 2000.
PARENTE, T. G. O papel da Igreja nas formações das cidades. Revista Clio
Histórica, v. 17, n. 1, 1998.
SOUZA, F. F. História de Mossoró. Mossoró: Coleção Mossoroense, 2010.
Edição especial para o Acervo Virtual Oswaldo Lamartine de Faria. Disponível
em: <https://colecaomossoroense.org.br/site/wp-
content/uploads/2018/07/HISTORIA-DE-MOSSORO.pdf>. Acesso em: 3
dez. 2020.

Recebido em 13 jan. 2021.


Aprovado em 16 abr. 2021.
“VENCIDO O NEW LOOK1 ”
Resistências femininas a Christian Dior e as suas modas (Natal/RN,
1948–1953)
João Vieira Neto2
Joel Carlos de Souza Andrade3
RESUMO: Discute o estilo “new look” desenhado pelo estilista francês Christian Dior Como referenciar?
VIEIRA NETO, J.;
em 1947, e como este foi apropriado e criticado pelas moças em Natal durante os anos ANDRADE, J. C. S. “Vencido
de 1948–1953, a partir do periódico potiguar Diário de Natal. No caso do francês, suas o New Look”: resistências
femininas a Christian Dior
reportagens destacaram a sua ousadia em relação à criação visto que a situação mundial e as suas modas (Natal/RN,
estava desfavorável à moda em virtude da economia fragilizada, causada pela Segunda 1948–1953). Revista Galo,
n. 3, p. 107–124, 17 jul. 2021
Guerra Mundial. Entretanto, as intempéries econômicas não foram suficientes para que
Dior suspendesse suas criações, e apresentasse uma nova silhueta, a qual acentuava a
feminilidade. Entre as notícias, é possível perceber resistências através do discurso jor-
nalístico, devido os problemas econômicos. Metodologicamente, o estudo constitui-se
a partir de consultas ao Diário de Natal, e análise de autores como Gilles Lipovetsky
(1989), Medeiros Filho (2014) e Luca (2009), essenciais para a tessitura do estudo em
questão. As informações sobre a moda feminina eram refletidas entre 1948–1950 no
periódico na seção “Notícias da Moda” e expunha notícias acerca do modismo vigente,
marcado pela criação de Christian Dior. A despeito do descontamento das natalenses,
no contexto pós Segunda Guerra Mundial, as criações do estilista não foram interrom-
pidas e bem como suas apropriações por tais moças resistentes.
Palavras-chave: Imprensa. História da Moda. Cidade do Natal.

1
Em tradução literal, new look significa “novo olhar”, tal termo foi designado por Carmel
Snow, repórter norte-americana da revista Vogue, quando foi cobrir a coleção de lançamento
da marca Dior. Termo que será abordado de forma mais profunda no decorrer do trabalho.
2
Discente do curso de Licenciatura em História. Bolsista IC/Propesp/UFRN. ID Lattes:
9127.3680.8474.7839. ORCID: 0000-0001-7244-4573. E-mail: jvieiran00@gmail.com.
3
Professor do Departamento de História/CERES/UFRN e do Mestrado em História dos
Sertões/UFRN. ID Lattes: 6752.7281.1456.8336. ORCID: 0000-0003-2141-0212. E-mail: jocade-
soan@yahoo.com.br.

107
108 Parnamirim, jan./jun. 2021

THE NEW LOOK VANQUISHED


Women’s resistance to Christian Dior and his fashions (Natal/RN,
1948–1953)
ABSTRACT: It discusses the “new look” style designed by the French designer Chris-
tian Dior in 1947, and how it was appropriated and criticized by the girls in Natal during
the years 1948–1953, from the Rio Grande do Norte newspaper Diário de Natal. In the
case of the French, his reports highlighted his boldness in relation to creation, since
the world situation was unfavorable to fashion due to the fragile economy, caused by
the Second World War. However, the economic maelstrom was not enough for Dior to
suspend his creations, and to present a new silhouette, which accentuated femininity.
Among the news, it is possible to perceive resistance through the journalistic discourse,
due to economic problems. Methodologically, the study is constituted by consulta-
tions with the Diário de Natal, and analysis of authors such as Gilles Lipovetsky (1989),
Medeiros Filho (2014) and Luca (2009), who are essential for the design of the study
in question. Information about women’s fashion was reflected between 1948–1950 in
the newspaper, at the section “Notícias da Moda” (News of Fashion), which exposed
news about the fad of the time, marked by the creation of Christian Dior. Despite the
Natalense discontent, in the post-World War II context, the stylist’s creations were not
interrupted and neither were his appropriations by such resistant girls.
Keywords: Press. History of Fashion. City of Natal.

Riscando o croqui4 , riscando uma introdução


“Nos trajes, posturas e gostos se encontram em uma interface entre os mais
variados elementos simbólicos que edificam as sociedades” (SILVA; MONTE-
LEONE; DEBOM, 2019, p. 14). A partir deste fragmento, constante no livro A
história na moda, a moda na história, os autores expressaram uma característica
acerca do estudo das vestes: o estudo das sociedades por meio do trabalho com
as roupas, os fios dos tecidos culturais, econômicos e sociais encontram-se na
teia que configura a pesquisa com a roupa e a moda.
Neste sentido, Calanca (2008) argumenta que a “moda é oposta ao costume
visto que a primeira se configura enquanto conflito temporal, do antigo e do
contemporâneo, pela inconstância, ao passo que o costume é marcado pela per-
petuação, pela continuidade: alude numa primeira instância, a uma dicotomia
temporal entre o ‘velho’ e o ‘novo’, entre o presente e o passado, entre imobili-
dade e mobilidade” (CALANCA, 2008, p. 11). Através das concepções da autora
citadas anteriormente percebe-se que o sistema da moda se encontra imerso
4
Termo utilizado para referir-se a desenho, molde.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 109

em uma dicotomia, um embate entre a tradição e a efemeridade, assim, os en-


frentamentos concernentes ao new look perpassam também por essas questões
temporais.
Compreendida enquanto sistema, logo, compreendida pela perspectiva his-
tórica, a moda floresceu durante o Renascimento entre as décadas de 1340 e
1350, de acordo com Gilles Lipovetsky (1989). Em seu livro O Império do Efê-
mero: a moda e os seus destinos na sociedade moderna, o filósofo expõe que tal
sistema surgiu na Europa moderna a partir da oposição entre os burgueses mais
jovens e os mais velhos, enquanto sistema econômico, social e, sobretudo, cul-
tural. Ainda que, segundo o autor, “a questão da moda não faz furor no mundo
intelectual” (LIPOVETSKY, 1989, p. 13) a moda é passível de ser objeto de es-
tudo, da Sociologia, Economia, Filosofia, Antropologia, do Direito e da História,
como no presente estudo. Em nossa contemporaneidade, como argumenta a
historiadora Maria do Carmo Teixeira Rainho (2015), as pesquisas em moda, na
perspectiva histórica, cresceram a partir dos cursos superiores na área de moda,
bem como os programas de pós-graduação. Talvez, a moda esteja fazendo furor
no mundo intelectual, contradizendo o que afirmara Lipovetsky à época em que
publicara o seu trabalho.
Assim, enquanto fonte histórica, a moda permite o conhecimento de so-
ciedades anteriores, as culturas dominantes e dominadas, bem como as formas
que os indivíduos tensionavam socialmente para se destacarem socialmente por
meio de seus trajes, permite identificar as reminiscências das roupas passadas,
as quais ainda se fazem presentes e se perpetuam na contemporaneidade. Logo,
nada mais contemporâneo do que a moda, conforme afirma Giorgio Agamben,
pois “aquilo que define a moda é que ela introduz no tempo uma peculiar des-
continuidade que o divide segundo a sua atualidade ou inatualidade, o seu estar
ou o seu não-estar-mais-na-moda” (2009, p. 66).
Através de Agamben, entende-se que a contemporaneidade se materializa
na moda, em virtude de (des)ordem temporal que a mesma instaurou desde o
seu florescer no Renascimento, no caso do new look, a revolução se deu em
virtude da transformação da silhueta feminina, aspecto que ainda será tratado
neste trabalho.
Considerando o caráter de fonte, que a moda performa, somou-se ao corpus
documental a pesquisa em periódicos, mais especificamente o jornal potiguar
Diário de Natal, veículo de imprensa a principal ferramenta para a tessitura do
presente estudo. Para tanto, Tânia Regina de Luca problematiza, em História dos
nos, e por meio dos periódicos, as questões relacionadas ao trato com as fontes
hemerográficas. Estes registros são recentes para o uso da História visto que sua
exploração se iniciara na década de 1970, sofrendo resistências em virtude da
subjetividade dos jornais, dos seus discursos tendenciosos, e sobretudo os seus
silêncios. É que antes da virada historiográfica da década de 1970, os histori-
110 Parnamirim, jan./jun. 2021

adores preocupavam-se essencialmente com a verdade, a qual estava presente


somente nos documentos ditos oficiais.
Entretanto, apesar das resistências que os jornais e revistas sofreram para
serem utilizados pelos historiadores, de Luca ressalta que “a ênfase em certos
temas, a linguagem e a natureza do conteúdo tampouco se dissociam do pú-
blico que o jornal ou revista pretende atingir” (LUCA, 2009, p. 140). A partir de
tal consideração, uma característica marcante da imprensa, a qual relaciona-se
diretamente com as proposições desta pesquisa, concerne ao direcionamento
dos discursos produzidos por jornais, para estratos sociais específicos, neste
caso em especial, às leitoras do Diário de Natal, entre os anos de 1948–1953.
Nesta pesquisa, o periódico retratava as modas, noticiava as natalenses sobre
as tendências estrangeiras assim como corroboravam nas resistências que as pa-
risienses, novaiorquinas e cariocas tinham ao new look, tais concepções agiam
diretamente no imaginário das natalenses — que tanto resistiam quanto consu-
miam tais modas.
Desta forma, através dos discursos jornalísticos dotados de subjetividade,
insere-se uma das problemáticas que permeiam o presente estudo: como tais
discursos performavam-se no jornal analisado, tendo em vista que o caráter do
Diário de Natal era de ser um jornal político, mas ainda assim temáticas como
moda se fizeram presentes. Por meio desta perspectiva política, a pesquisa deste
periódico tornou-se mais complexa visto que o enfoque do Diário de Natal era
trabalhar em sua maioria com acontecimentos políticos, enaltecendo as rea-
lizações de grandes homens, considerados importantes para a história do Rio
Grande do Norte. Uma peculiaridade também desta pesquisa, pois volta os seus
olhares e interesses para tecer uma outra história de Natal e do Rio Grande do
Norte, não preocupada no positivismo falocêntrico, mas tendo outras priorida-
des (moda, resistência) e apresentando outras possibilidades para a historiogra-
fia potiguar.
Deste modo, o presente estudo enveredar-se-á pelas casas de costura fran-
cesas, exaltando como as modas eram apropriadas ao passo que eram rejeitadas
pelas moças, em um movimento de apatia externa a qual desembocava inter-
namente e influenciava as natalenses em suas formas de se apresentar publica-
mente. Ainda que o trabalho em questão, enquanto um patchwork 5 , constrói-se
por meio das fontes hemerográficas, não é considerado um estudo sobre im-
prensa de moda, pois, como citado anteriormente, o caráter do periódico anali-
sado era político. A delimitação temporal ocorreu a partir das primeiras ocor-
rências do Diário de Natal (disponíveis na Hemeroteca Digital), no ano de 1948,

5
De acordo com o Dicionário online de português, patchwork performa-se enquanto te-
cido com retalhos, no sentido deste trabalho, assume a definição de elementos díspares que se
combinam, logo, moda, jornais e o Rio Grande do Norte.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 111

enquanto marco inicial, ainda que o modelo new look houvesse sido desenhado
no ano anterior, em 1947, e como marco final o ano de 1953, pois foram quando
as últimas ocorrências sobre o costureiro e estilista francês Christian Dior apa-
receram no periódico.
Mesmo que o new look houvesse sido criado em 1947, marcando a década
de 1950 como a silhueta clássica, tal tendência transcendeu os limites dos “anos
de ouro” e permaneceu nas décadas posteriores, assinalando a importância de
Dior e de sua maison6 na indústria e na história da moda.
Tal enfoque se apresenta como relevante para a historiografia potiguar, tendo
em vista a carência em estudos históricos sobre as vestes, o costurar e suas re-
lações de apropriação e releituras face aos costumes da sociedade. Portanto, a
despeito de ser uma reflexão inicial, esta abordagem aponta para a relevância e
riqueza históricas destes estudos no âmbito de uma história da moda.
Como forma de aprimorar a compreensão acerca das temáticas que serviram
de tema para a tessitura do trabalho em questão, o mesmo será fragmentado em
seções menores: “Christian Dior pelas páginas natalenses”, a qual abordaremos
a presença do francês entre os anos analisados, percebendo principalmente a
resistência feminina atrelada a ele e às suas criações; “New Look: revolução
e resistência”, onde compreenderemos como o new look foi representado no
Diário de Natal, principalmente a divergência de opiniões femininas frente ao
modelo em questão e ao sistema da moda, em virtude da situação econômica
acometida pelos conflitos armados da Segunda Guerra Mundial, uma tendên-
cia que estava entre a recusa e a sedução das moças natalenses; e “Notícias da
Moda, uma seção de modos e modas”, por meio da análise de tal fragmento
do jornal, identificaremos como a seção “Notícias da Moda” era responsável
não somente por apresentar as tendências dominantes e que surgiam na indús-
tria da moda, mas principalmente os discursos desta seção atrelados às roupas
e ao comportamento feminino, como tal parte do jornal conseguia moldar o
imaginário das natalenses entre os anos de 1948–1953, haja vista a capacidade
formativa e informativa dos jornais daquela época.

Christian Dior pelas páginas natalenses

O cerne desta exposição não é debruçar-se sobre a vida e obra de Christian Dior,
mas explorar a sua principal criação, e como esta foi apropriada e, sobretudo,
recusada pelas natalenses entre o fim da década de 1940 e início da de 1950,
entretanto, consideramos válida uma breve contextualização acerca do estilista
6
Maison, termo em francês para referir-se à casa. No tocante à maison Dior, equivale-se à
casa de costura do estilista francês.
112 Parnamirim, jan./jun. 2021

para que os reflexos dele e do new look na imprensa natalense, tornassem-se


mais explícitos e compreensíveis.
Em sua dissertação de mestrado, intitulada Arremedando Dior: a moda do
New Look em São João do Sabugi-RN (anos 1950), Medeiros Filho (2014) argu-
menta que Christian Dior era natural de Granville na Normandia, nasceu em
1905, numa família burguesa, desde criança havia despertado para o desenho,
sobretudo o de máscaras, estudou Ciências Políticas em Paris, ainda que tivesse
o desejo de cursar Belas Artes. Ao chegar na “capital da moda”, não obteve
êxito com a política e, para sobreviver, decidiu trabalhar com moda. Passou a
desenhar e vender croquis para jornais parisienses, até que conseguiu notorie-
dade e foi contratado por Robert Piguet, para o seu ateliê, em seguida, trabalhou
para o também modista Lucien Lelong até que conseguiu que Marcel Boussac
financiasse a abertura de sua casa de moda.
Embora estivesse entre os modistas e os comerciantes de tecidos, a inserção
de Christian Dior na indústria da moda não foi fácil, principalmente quando
lançou a sua coleção de estreia em 1947, em virtude dos problemas econômicos
sofridos pela França do pós guerra. Segundo Medeiros Filho, “a entrada de Dior
no restrito círculo dos criadores de moda na capital francesa deu-se com o cho-
que da invenção de um estilo espalhafatoso, contrário às tendências restritivas
que vigoravam desde a Segunda Guerra Mundial” (2014, p. 115).
Por meio da citação, percebemos que Dior emergiu enquanto um revoluci-
onário da moda, o qual abandonou o estilo sóbrio e simplificado, para instaurar
uma nova ordem estética, a ordem do exagero, refletida nas amplas e rodadas
saias que compuseram o new look.

Dior surpreendeu o mundo em 1947, lançando sua primeira co-


leção de moda, inicialmente chamada Linha Corola, depois apeli-
dada New Look. A grande tendência que apresentou era a de uma
exagerada forma feminina, em que a silhueta era construída artifi-
cialmente através de gasto extravagante de tecido (MEDEIROS FI-
LHO, 2014, p. 115).

Identificamos que Christian Dior, como costureiro e estilista, apresentou-se


para a sociedade parisiense bem como para a indústria da moda, enquanto um
revolucionário do estilo, revolucionário das formas estéticas, bem como que o
nome da coleção de lançamento não era New Look, e sim Linha Corola. Entre-
tanto, mediante o sucesso daquela tendência a partir da publicidade de moda,
por jornais e principalmente revistas de moda, não somente as francesas, mas
sobretudo as estadunidenses como a Vogue. Neste sentido, Crane (2006) nos
ajuda a pensar acerca da disseminação da moda por meio desses veículos mi-
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 113

diáticos pois as consumidoras da moda poderiam ter acesso àquelas roupas,


àquelas modas, ainda que não vestissem necessariamente um modelo de Dior.
A autora em questão, em A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade
das roupas, ainda revela que Dior é considerado fundamental para a indústria da
moda em virtude da propagação da sua maison, por meio do perfume. Segundo
Crane, no período posterior à Segunda Guerra Mundial, as maisons de alta-
costura francesas passaram por momentos delicados, em virtude da contenção
de gastos com futilidades como roupas e sapatos, e principalmente devido à uma
nova tendência que crescia e tornava-se oposta à alta-costura, que era o prêt-à-
porter 7 . Por meio do prêt-à-porter, um segmento crescente na indústria da moda,
a alta-costura precisou reinventar-se frente não somente à competição, mas com
o risco de desaparecer. Face ao novo desafio, uma alternativa amplamente usada
pela maison Dior foi o licenciamento de produtos, como considera Crane:

A principal fonte de renda das empresas anteriores à guerra que


sobreviveram, bem como das novas empresas que entraram no mer-
cado depois dessa época foram os royalties8 obtidos pelo licencia-
mento de uma diversidade produtos, que iam de roupas a aparelhos
domésticos (2006, p. 286).

Deste modo, compreendemos que Dior, para além do costureiro e estilista


que revolucionou a moda e a silhueta feminina, assinalando o estilo clássico
dos anos 1950, era também uma marca e principalmente um produto que ge-
rava lucro por meio do comércio de itens que carregavam consigo a patente ou
a marca Dior. Crane ressalta que a maison Dior que era uma marca de alta-
costura, frente às intempéries econômicas ocasionadas pela Segunda Guerra
Mundial que passou a produzir também os seus itens de prêt-à-porter.
Pelas páginas natalenses, o estilista Christian Dior foi retratado a partir das
suas criações, como grandes brincos com correntes e pedras coloridas, atre-
lado a grandes nomes da alta-costura, como Pierre Balmain, onde apareciam
enquanto lançadores de tendências extravagantes e exóticas, advindas de Paris
que terminavam por desembocar em Natal. Deste modo, é possível perceber
as relações estabelecidas entre o sistema da moda e as diferentes localizações.
Dior ainda apareceu relacionado ao desfile promovido pelo Museu de Arte de
São Paulo (MASP) em 1952, por Pietro Maria Bardi, o qual importou da França
a coleção daquele ano da maison Dior para o evento que inauguraria a seção de
costumes do museu.
7
Produção em série de roupas, comercializadas em lojas. Não eram consideradas objetos
artísticos, como as roupas de alta-costura. Eram peças mais simplificadas, ainda que acompa-
nhassem a moda.
8
8
114 Parnamirim, jan./jun. 2021

Segundo o periódico, Christian Dior presenciou o baile promovido pelo tam-


bém estilista francês Jacques Fath. Este havia se inspirado no carnaval brasi-
leiro e apresentou na ocasião modelos produzidos a partir do algodão Seridó,
iniciativas promovidas pelo jornalista Assis Chateaubriand com o claro obje-
tivo de integralizar o “ouro branco” potiguar ao resto do Brasil e do mundo. Na
reportagem intitulada “O “show” de Jacques Fath (1952)”, de Chateaubriand,
Dior apareceu atrelado ao evento de tamanha importância para a moda fran-
cesa, mas o que chama mais atenção é que aquele estilista já havia utilizado o
algodão seridoense, conforme relata o jornalista: “É que ali se vão apresentar,
pela primeira vez, na Europa, os tecidos brasileiros do algodão de fibra longa
do Nordeste. A primeira tentativa se fez com o costureiro Christian Dior, faz
dois anos”. Enquanto Fath estaria estrando publicamente a fibra do mocó, Dior
já a tinha usado em 1950, e aparentemente não apresentou suas criações.
Pelas ocorrências relativas a Christian Dior, o jornal apresenta silêncios no
tocante à sua vida particular. Dior conseguiu seu destaque na indústria da moda
por remodelar as formas femininas, excluindo os cortes mais sérios das vestes
das damas, contudo, ainda que o estilista tivesse reformado a silhueta femi-
nina durante a década de 1950, as moças mostraram-se apáticas e resistentes
às suas modas, logo, a partir destas resistências que o trabalho em questão se
construiu. Deste modo, considerou-se pertinente a contextualização das ocor-
rências acerca do costureiro para o presente estudo, visto que permitiu com-
preender o seu lugar de destaque na sociedade parisiense, bem como os elos
entre Paris e Natal, como no caso em tela. Posteriormente, as matérias relacio-
nadas ao estilista passaram a serem referentes às oposições femininas frente às
modas produzidas pela maison Dior. Assim, o new look estava imerso em uma
dubiedade, entre a revolução estética, da silhueta feminina e a resistência das
mulheres no tocante aos novos modos de se apresentar em público.

New Look, revolução e resistência


Trabalhar com o new look tornou-se uma possibilidade de perceber a dubiedade
entre a revolução e a resistência. Revolução, pois quando Christian Dior dese-
nhou o seu modelo, em 1947, transformou a silhueta feminina, que até aquela
altura era masculinizada. Em virtude dos problemas ocasionados pela 2ª Guerra
Mundial e tal conflito demandava capital exclusivo para suprir suas dependên-
cias, e não havia espaço para o exagero com roupas e superficialidades, como
argumenta Medeiros Filho: “sobriedade e praticidade são palavras de ordem na
busca do vestuário feminino adequado durante os tempos nebulosos da pre-
sença alemã em solo francês, com o fim dos exageros nos vestidos, nos acessó-
rios e até na pintura das unhas e do rosto” (MEDEIROS FILHO, 2014, p. 103).
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 115

Logo, conforme pondera este historiador, o sistema de moda estaria consequen-


temente fadado ao fracasso, ou ao menos ao esquecimento, durante os primeiros
anos posteriores ao conflito armado.
Ainda que as situações econômica e social estivessem comprometidas, o
costureiro e estilista não mediu esforços para revolucionar a indústria da moda,
apresentando uma nova silhueta, abandonando as formas masculinas e retas, e
adotando saias amplas, rodadas, peguilhadas, combinadas ao tailleur 9 , como na
imagem a seguir (figura 1).
Figura 1 – New Look

Fonte: Pochna (2000, p. 20 apud MEDEIROS FILHO, 2014, p. 58).

Através da imagem acima, percebe-se as características do new look: cintura


fina e marcada, ancas largas, saia comprida e rodada e chapéu complementar.
De acordo com Medeiros Filho (2014), o new look foi o primeiro modelo a tomar
proporções mundiais, o que se confirma quando se analisa periódicos como os
que circularam no estado do Rio Grande do Norte, como o Diário de Natal, foto-
grafias do período e até mesmo revistas que não desembocavam nas localidades
mais remotas, a exemplo da revista O Cruzeiro, também fonte para este estudo.
Neste sentido, a tendência que transcendeu a década de 1950 e repercutiu
em temporalidades posteriores, como a década de 1960, com algumas variações,
era formado por:

os corpetes eram armados com barbatanas e, a partir de cinturas


muito justas, abriam-se amplas saias, lembrando as corolas das flo-
res. As saias poderiam ser pregueadas, franzidas, drapeadas ou nes-
gadas, sempre forradas com tule para darem o efeito de armação,
9
Conjunto de casaco e saia, ajustado à cintura, adaptado do vestuário masculino para a
mulher. (MEDEIROS FILHO, 2014, p. 229).
116 Parnamirim, jan./jun. 2021

resultando na forma corolácea de uma cúpula (MEDEIROS FILHO,


2014, p. 116).

Portanto, através das palavras de Medeiros Filho infere-se que a coleção


tinha inspiração nas corolas de flores, prezando pela demarcação das formas
femininas a partir de corpetes e quadris apertados, os quais definiam o ideal
corpóreo das mulheres, em consonância com a inspiração de Dior que reme-
morava o século XIX, sobretudo com as anquinhas usadas por baixo das saias
rodadas.
Deste modo, ainda que houvesse revo-
lucionado não somente as formas estéticas,
Dior conseguiu transformar o sistema da
moda. Em consonância, a partir do new look
conseguiu inimigos, resistentes não apenas
às suas modas escandalosas, rodadas e exa-
cerbadamente femininas, mas resistentes a
pessoa de Christian Dior, como faz refletir
o título do presente texto “resistências fe-
mininas a Christian Dior e as suas modas”,
como foi percebida pelo jornal Diário de Na-
tal. Tratando-se das resistências, o jornal
apresenta principalmente acerca dos proble-
mas econômicos, questão trabalhada a se-
guir.
Entre as páginas natalenses, apresenta-
ram-se as mais diversas explicações para que
Figura 2 – Reportagem as mulheres não adotassem o novo estilo, in-
“Os modistas france-
zes decretam a morte
fluenciadas pelas moças de Paris, de Nova
do ‘New Look’ e lan- York e do Rio de Janeiro. Dentre os moti-
çam o ‘New New’”. vos, o clima e as condições climáticas do Bra-
Fonte: Biblioteca Na-
sil. Chamou a atenção que as matérias, so-
cional, Brasil (Heme- bretudo as primeiras analisadas, já entoavam
roteca Digital) — Diá- oposições ao modismo, como no caso da re-
rio de Natal, ano 1948, portagem que retratava a morte do new look e
ed. 01658, 26 set. 1948. o nascimento do “new new”, o novo estilo era
uma resposta dos estilistas franceses a Ch-
ristian Dior (figura 2): “o traje completo quer
modificar inteiramente as novas linhas da elegância feminina: vestido sem de-
cote, pescoço saindo da gola, busto alto, talhe alto e fino, as cadeiras bem am-
plas, as mangas redondas e estreitas e a saia direita sem pregas”. Por meio do
fragmento da reportagem, é possível identificar aspectos como a mudança, mais
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 117

uma vez da silhueta feminina, com mangas bufantes, saias retas, assim como o
discurso acerca da elegância a qual o “new new” traria para as moças, onde é
possível perceber uma crítica escancarada a Dior e ao new look.
A reportagem apresenta o lança-
mento do modismo supracitado imerso
em um contexto econômico caótico em
virtude do pós-guerra. Mesmo assim,
não foi empecilho para a ditadura da
moda, a qual impôs saias compridas e ca-
ras. É que a moda então se baseava no ca-
pital, produzindo modelos caros e não se
preocupando com a elegância feminina. Figura 3 – Artigo “Ven-
Em 1949, dois anos após a apresen- cido o ‘New Look’”.
tação do new look, era publicada uma Fonte: Biblioteca Na-
reportagem intitulada “Vencido o New cional, Brasil (Heme-
Look” (figura 3), escrita por Eva Lordello. roteca Digital) — Diá-
De acordo com a matéria, o new look rio de Natal, ano 1949,
estava saindo de moda, pois as anqui- ed. 01768, 23 jan. 1949.
nhas estavam sendo abandonadas junto
das saias compridas que davam às mulhe-
res cinturas mais finas, é possível perceber que a repórter “agradeceu” por essa
moda estar indo embora por dois fatores: a questão econômica, que o Brasil
e Natal ocupavam: “os preços das fazendas sobem dia a dia, a manutenção de
uma ‘toillete’ graciosa custa cada vez mais caro. As saias compridas e rodadas
não poderão ser mantidas por mais tempo”. E as condições tropicais não só do
país como da capital, quando argumentou que para o new look eram necessá-
rios 5 metros de tecido, como moças tropicais e de situação econômica mediana,
talvez não conseguissem usar esses vestidos diariamente.
Lordello (1949) ainda argumentava que o modismo estava fora de moda, até
mesmo em Paris, pois a tendência requeria muitos metros de tecido: “tantas
saias, tantos babados, tantas rendas e tantas fitas, um Deus nos acuda de acces-
sorios quase inuteis, tirando a graciosidade da silhueta, ou deformando outras
de si mesmas, propensas a poucos panos”. Percebe-se a apatia da repórter em
relação ao new look, no fragmento em questão o qual ela expressava sua in-
satisfação quando argumentou acerca dos excessos, que acabavam por tornar
aquela peça feia, consequentemente a mulher também enfeirar-se-ia. Medi-
ante Lordello, as mulheres queriam sempre o novo, o contemporâneo, e aque-
les modelos de Christian Dior já estavam ultrapassados. Em consonância com
a overdose estética que o estilista havia lançado dois anos atrás, Loredello con-
tinuava suas resistências argumentando que as saias amplas eram empecilhos
para o transporte: “nesses onibus superlotados, movimentar-se com tanto pano
118 Parnamirim, jan./jun. 2021

equivale-se a fazer uma verdadeira ginastica”; percebe-se a dificuldade até de


se movimentar com tal criação extravagante.
Outro exemplo das críticas a Dior, que esteve presente no jornal, foi a de
Bárbara Miller (1953). A repórter retratava sobre a resistência das secretárias
nova-iorquinas, face à última moda lançada pelo estilista, a saia recém-lançada,
que era muito curta: “’só temos duas mãos: uma para escrever e outra para
segurar a saia e cobrir os joelhos”. Nesta matéria, é possível perceber que Dior
estava retornando à moda de 1920, com saias mais curtas, com 40 cm do chão,
evidenciando que a matéria retratava a resistência feminina não somente ao
new look, mas a Christian Dior e às suas criações. As novas saias estavam mais
curtas, e a jornalista indagava acerca da receptividade, se o estilista conseguiria
lançar as saias no mercado e se estas seriam bem aceitas pelas moças, tendo em
vista o tamanho das peças.
Na mesma reportagem aparece uma “entrevista” com Christian Dior, ou ao
menos perguntas para o estilista, sobre as críticas que estava recebendo. As-
sim, questionado sobre a inovação estética, o costureiro disse que se vivia uma
nova era. A resistência foi sentida não apenas pelas natalenses, mas por outros
modistas (não foi informado se eram de Paris ou de outros lugares), que se mos-
traram apáticos à criação do francês. Como as críticas direcionavam-se às saias
curtas, a reportagem acreditava que essa moda não pegaria, sobretudo pelas
secretárias de Nova York para quem as novas peças atrapalhavam o trabalho.
Portanto, as tramas do sistema da moda, durante os anos de 1948–53, esta-
vam desfavoráveis não somente ao new look, criação de Christian Dior, mas ao
estilista e também às modas por ele produzidas. Estas resistências serão apre-
sentadas outras, ainda que dialoguem diretamente com o new look, mas que não
receberam dos jornais a expressão “new look”, podemos inferir que trata-se do
modismo criado pelo francês, pelas características principalmente das saias ro-
dadas. Neste sentido, soma-se à tessitura do texto em questão, as apropriações
das moças, presentes principalmente na seção “Notícias da Moda”, entre os anos
de 1948–1950, bem como as reportagens que retrataram os conflitos entre saias
mais curtas e/ou mais compridas. Assim, pode-se inferir que as novas modas,
de saias de comprimento reduzido, e as mais alongadas também receberam in-
fluências diretas das criações de Dior.
A partir das reportagens analisadas, percebe-se que entrava em conflito os
gostos e os discursos jornalísticos, para tanto, Calanca acerca do gosto, diz
que: “o gosto, portanto, define-se como faculdade de julgar desinteressada-
mente um objeto ou uma representação mediante um prazer ou um desprazer”
(CALANCA, 2008, p. 93). A partir de Calanca, identifica-se que os embates no
tocante ao new look em Natal, perpassaram o gosto, das que escreviam as ma-
térias jornalísticas, mas também das moças que faziam o uso do estilo, logo,
infere-se que o gosto pelo new look variava entre as jornalistas que resistiam
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 119

e reprovavam a tendência e, sobretudo, as natalenses que adotaram tal moda.


Em consonância, insere-se na discussão, o conceito de gosto, amplamente uti-
lizado por Medeiros Filho, quando compreende que as moças em São João do
Sabugi não vestiram diretamente o new look, mas o arremedaram mediante as
suas condições (climáticas, econômicas, culturais).

Notícias da Moda, uma seção de modos e modas


Durante os anos de 1948–50 no Diário de Natal, as moças que quisessem se
informar sobre as efemeridades da moda leriam a seção “Notícias da Moda”, na
página feminina do periódico. Por entre as páginas da seção de modos e modas,
as moças atualizar-se-iam acerca das tendências, dos desfiles estrangeiros, dos
comprimentos das saias e os conflitos que estes tamanhos ocasionariam. Neste
sentido, ainda que os jornais silenciem, nas suas páginas percebeu-se que tal
seção vigorou apenas por três anos, pois após 1950 as reportagens sobre moda
não apareceram mais naquela coluna, mas dispersas no periódico.
Outrossim, a seção supracitada servia apenas como informativo no tocante
aos modismos e novidades estrangeiras que aportavam em Natal, mas de for-
madora de opinião sobre o que as moças deveriam vestir. Definia-se o que era
considerado atual, os usos que seriam apropriados, as resistências mediante os
parâmetros morais e estéticos, se cobririam e se embelezariam a partir das si-
lhuetas retas e esguias ou das amplas e rodadas saias. Pelas páginas, foi possível
identificar que o conflito entre o comprimento das saias estava imerso também
quando Christian Dior lançou o new look o que estendeu as resistências ao es-
tilista e não somente à sua clássica e revolucionária criação.
Nas primeiras ocorrências que retratavam sobre as saias curtas e compri-
das, ainda em 1948, é possível inferir que a dúvida instaurada acerca dos com-
primentos, fazia-se presente entre os cortes masculinizados e retilíneos, sem
muitas curvas, formando uma silhueta séria e sóbria, ou mais cortes afemina-
dos, enaltecendo a feminilidade, através de ancas, drapeados e saias rodadas.
Tais tendências eram importadas de Paris, e ainda que advindas da capital da
moda, não agradavam a todos, sobretudo pelo tamanho das saias, mais curtas,
pouco abaixo do joelho. Para além das saias, outra tendência que estava acarre-
tando reprovações estéticas era o uso de calças inspiradas nas maisons Balmain,
Hermés, Lanvin, que apresentavam calças para as mulheres como símbolo de
modernidade.
Tais frivolidades da moda, que desagradavam tantos, eram como as estra-
nhezas do tempo da guerra, com os cortes totalmente diferentes, não eram mais
masculinizados e sim com pregas e drapeados, como mostra a reportagem da
seção abordada no tópico em questão: “as prezas, os drapeados são os carac-
120 Parnamirim, jan./jun. 2021

terísticos dessa tendência suntuosa.” Por meio do fragmento da reportagem, é


possível perceber que as novidades eram opostas àqueles que preferiam a sim-
plicidade dos trajes, da silhueta sisuda, evidenciando que a moda não estava
sendo bem aceita por todos, pois os novos padrões eram totalmente diferentes
dos anteriores, uma verdadeira revolução estética.
As tentativas em resgatar o comprimento das saias mais compridas não es-
tavam vigorando, pois era inconveniente para o ano de 1948. Logo, apesar de
opostas às saias longas e armadas, o jornal mostrava que as moças não deveriam
fazer o uso de saias muito curtas. Entretanto, “não nos referimos é claro, aos
vestidos demasiadamente curtos com que certas senhoras de fartas carnes e de
não menos avultadas banhas timbram em usar, dando assim uma demonstração
eloquente de falta de tato e de equilíbrio.” Através do fragmento da reportagem,
percebeu-se que, de acordo com o Diário de Natal, as mulheres não deveriam
usar grandes e compridas saias, tampouco saias muito curtas, que exibissem de-
mais suas fartas carnes. Pela concepção do periódico, o comprimento ideal seria
pouco abaixo do joelho, visto que estas saias eram mais confortáveis, e ideais
para mulheres que precisavam trabalhar fora de casa, pois não eram complica-
das de se movimentarem, além de diferenciarem dos homens já que não eram
tão parecidas com as vestes masculinas. É perceptível que o jornal também se
colocava no papel de ditar a opinião pública, como o caso de formar o ima-
ginário feminino acerca das roupas mais adequadas para sair de casa e para
trabalhar.
Ainda sobre a extensão das saias, e em consonância com o corpo feminino,
Rosa Kaliweyer (1948) em “A batalha das modas da primavera em Paris”, retra-
tou que “a linha apresenta-se esguia. A cintura fina e flexível. O busto redondo
e alto”. As formas femininas deveriam ser, deste modo, a partir da reportagem,
finas com bustos que destacassem os seios e os elevassem. Para além dessas ca-
racterísticas, na mesma reportagem, Kaliweywer ressaltava que imperava entre
as mulheres o uso de saias rodadas, mesmo que algumas usassem as saias mais
justas ao corpo, as godets10 se sobressaíam, percebe-se assim que as resistên-
cias a Christian Dior e às suas modas não eram totalmente aplicadas, pois uma
de suas criações e disseminações foram as saias godets, que segundo a reporta-
gem em questão estavam sendo amplamente apropriadas “apesar de se verem
muitos modelos com saias estreitas, as rodadas predominam e oferecem maior
variedade.”11 Por meio dos amplos usos, o mercado era mais variado para as
godets.
Atrelada às saias godets, Kaliweyer argumentava que as pregas, pinças e

10
Medeiros Filho (2014) compreende as saias godês, ou godets, enquanto fragmentos trian-
gulares do tecido das saias o que as torna mais largas e dão o efeito de saia rodada.
11
Ibidem.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 121

franzidos se combinavam com muitos babados e tecidos, confeccionadas em


tafetá, mousselines12 , rendas e bordados, em tons pastel de azul e rosa, na repor-
tagem aparece menção às saias que encurtaram em 25 centímetros. É nítida as
relações diretas com o modelo de Christian Dior, refletidas nas pregas, rendas,
babados assim como no tamanho da saia.
Em consonância com as noções de saias mais curtas ou compridas, uma re-
portagem da seção “Notícias da Moda”, retratava que a moda em 1949 estava
sendo diferente das anteriores em virtude das resistências, logo, encontravam-
se mulheres com saias rodadas e saias retas, estas últimas não haviam se adap-
tado ou rendido à moda das primeiras: “E com os ‘panneaus’13 soltos, drapea-
dos, plissados, notas embelezadouras da silhueta estreita; com a ampliação da
saia leva para traz, o que no tailleur, o casaco repete.” Pode-se perceber que
a tendência das pregas estava sendo a preferida entre as mulheres, presentes
também nos casacos, sobretudo entre os tailleurs, os quais contrastavam com
as saias estreitas.
Face ao caráter cíclico da moda, o periódico tratava o retorno à moda dos
vestidos com o comprimento abaixo do joelho, onde as mulheres o trajavam
exibindo elegância, sobretudo quando eram usados de noite, as saias eram ro-
dadas e estampadas, combinados com um corpete que ajudava na modelação do
corpo, os quais tinham Paris como maior centro de referência para a moda bra-
sileira e, no caso de Natal, os arremedos franceses que a capital potiguar fazia
em relação à capital francesa. Percebe-se ainda que a moda das saias rodadas
ainda imperava, principalmente para as moças irem para os bailes noturnos, a
silhueta estava em transformação, transformação que não é especificada pelo
jornal.
As saias longas não vigoraram por tanto tempo. No começo assim que es-
sas surgiram foram criticadas pelo tanto de pano que necessitavam, impossibili-
tando os movimentos femininos, os vestidos grandes foram tão revolucionários,
pois transformaram a ordem estética vigente por dez anos, que era das saias cur-
tas. Com a Segunda Guerra o cenário indumentário transfigurou-se, visto que o
estilista Christian Dior substituiu a masculinidade dos trajes femininos, muito
presentes na década de 1940, com o conflito armado tal situação mudou com
a volta das saias curtas, assim, ainda que as mulheres não estivessem anima-
das com a moda, o inverno de 1949, estava chegando e as mulheres precisavam
de roupas da moda, moda essa que havia ampliado as possibilidades de saias,
godets, rodadas, com pregas, lisas, estampadas.

12
Segundo Medeiros Filho (2014), mousselines corresponde à tecidos frágeis, utilizados para
a feitura de indumentárias íntimas.
13
Termo em francês que foi usado para referir-se a tecido leve, no caso da reportagem os
tecidos das saias.
122 Parnamirim, jan./jun. 2021

As modas estrangeiras eram de vestidos mais compridos, mas quando estes


chegavam no Brasil eram arremedados e diminuído, um exemplo das efemeri-
dades e arremedos, como explicitado no fragmento a seguir:

O tempo das saias compridas morreu com a falências de certas


teorias retrógradas que limitavam á mulher todas as suas possibi-
lidades e aspirações e, compreendendo isso, assim como sendo a
aceitação sem raciocínio, de todas as imposições da moda, o índice
de uma mentalidade de que elas, de possuídas, ao analisarem por
todos os prismas da moda da saia comprida, resolveram protestar,
conservando os seus vestidos sincrónicos com a vida dinamica e li-
berta de certos preconceitos retrógrados que caracterizam nossos
dias.

Pode-se inferir a partir do fragmento de reportagem que as saias compridas


eram opressoras das mulheres e dos seus movimentos. Já o abandono de tal
tendência e adoção de saias mais curtas poderia significar o abandono de tais
opressões que limitavam os movimentos.

Alguns retoques finais


À guisa de conclusão, em função do exposto, compreende-se que as resistências
ao new look foram importadas da Europa, dos Estados Unidos, e de outras loca-
lidades do Brasil como o Rio de Janeiro, e terminaram por desembocar em Natal,
influenciando as leitoras do Diário de Natal a se vestirem, comportarem, recu-
sarem e aceitarem certas tendências. Além de tal concepção, é possível argu-
mentar que as resistências ocorreram ao passo de que as apropriações também
estiveram presentes na sociedade natalense, pois pelas reportagens foi possí-
vel identificar tais conflitos entre as moças que eram contrárias e as que eram
favoráveis ao modismo.
O estilista e costureiro francês Christian Dior foi o principal alvo das críti-
cas e resistências das matérias analisadas na presente exposição pelos seguintes
motivos: demanda de muitos metros de tecido para a confecção das amplas e
rodadas saias, dificuldade de se movimentar, problemas no transporte público,
clima inadequado para o novo modismo. Ainda assim, com tais manifestações
avessas a Dior, o estilista consagrou-se no mercado de alta-costura francesa,
influenciando o mercado da moda mundial com a combinação de saias godets,
e tailleur. Os escritos acerca da moda eram registrados, sobretudo entre 1948–
1950 na seção “Notícias da Moda”, que era responsável por formar o pensa-
mento relacionado aos novos cortes e silhuetas bem como intervir no cotidiano
potiguar.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 123

Logo, a história que aqui foi retratada pelo periódico proporciona a com-
preensão de outras histórias do Rio Grande do Norte, não somente calcadas
nos jogos políticos das oligarquias, mas também numa história pelas tramas
dos costumes, das costuras, das tendências e efemeridades, evidenciando a ne-
cessidade de se conhecer, pesquisar e estudar sobre os discursos da moda, suas
possibilidades, e neste caso em específico, as resistências.

Referências
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AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução:
Vinicius Nicastro Honesco. Chapecó, SC: Argos, 2009.
CALANCA, D. História social da moda. São Paulo: Senac, 2008.
CHATEAUBRIAND, A. O “show” de Jacques Fath. Diário de Natal, Natal,
p. 3, 24 jul. 1952.
CRANE, D. Moda e escolhas de vestuário em dois séculos. In .A
moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São Paulo:
Senac, 2006.
CURTAS ou compridas? Diário de Natal, Natal, p. 9–100, 18 jan. 1948.
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Natal, Natal, p. 9, 16 mai. 1948.
LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a moda e seu destino nas
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LUCA, T. R. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, C. B.
(Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.
MEDEIROS FILHO, J. Q. Arremedando Dior: a moda do new look em São
João do Sabugi-RN (anos 1950). 2014. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal do Campina Grande, Campina Grande, PB.
MILLER, B. A luta contra Christian Dior: contrarias as secretárias á nova
moda de sáia curta. Diário de Natal, Natal, p. 2, 12 ago. 1953.
OS MODISTAS francezes decretam a morte do “New Look” e lançam o “New
New”. Diário de Natal, Natal, p. 9, 26 set. 1948.
NOTÍCIAS da moda. Diário de Natal, Natal, p. 9, 11 jan. 1948.
NOTÍCIAS da moda. Diário de Natal, Natal, p. 12, 12 jun. 1948.
124 Parnamirim, jan./jun. 2021

RAINHO, M. C. T. A moda como campo de estudos do historiador: balanço da


produção acadêmica no Brasil. In: COLÓQUIO DE MODA, 11., 2015, Curitiba.
Anais. Curitiba: [s.n.], 2015. v. 1.
SILVA, C. B.; MONTELEONE, J.; DEBOM, P. (Org.). A História na Moda, a
Moda na História. São Paulo: Alameda, 2019. v. 1.

Recebido em 15 abr. 2021.


Aprovado em 19 abr. 2021.
OS CAMINHOS E OS DESDOBRAMENTOS DA VIDA, TRAJETÓ-
RIA POLÍTICA E DOS DISCURSOS E PRONUNCIAMENTOS DE
DINARTE MARIZ
Larisse Santos Bernardo1
Jailma Maria de Lima2
RESUMO: O presente trabalho tem por desígnio traçar os percursos analíticos da traje- Como referenciar?
BERNARDO, L. S.;
tória de vida e política, como também das reverberações acerca dos discursos e pronun- LIMA, J. M. Os caminhos e
ciamentos a partir da figura eminente de Dinarte de Medeiros Mariz. Político este que os desdobramentos da vida,
trajetória política e dos
se firmou no cenário da política nacional e, que por sua vez, deixou marcas registradas discursos e
na política potiguar a partir de suas raízes no Seridó norte-rio-grandense. Nessa pers- pronunciamentos de
Dinarte Mariz. Revista
pectiva o desenvolvimento da narrativa se dará através de um viés que traçará sua vida Galo, n. 3, p. 125–139, 17
política mostrando as alianças criadas, os degraus percorridos por Dinarte, levando em jul. 2021
consideração que antes de se tornar figura política, ele foi comerciante e agropecua-
rista, experiências que corroboraram para o seu fortalecimento na vida política. Assim,
a partir desses encaminhamentos busca-se concernir o porquê da manutenção no ima-
ginário político e social em torno da figura pública, uma vez que o mesmo conquistou
impulsividade pública ocupando vários cargos, entre os quais, prefeito da cidade de
Caicó, governador do Estado do Rio Grande do Norte e Senador da República.
Palavras-chave: Dinarte Mariz. Vida. Trajetória Política. Discursos.

WAYS AND UNFOLDINGS OF DINARTE MARIZ’S LIFE, POLIT-


ICAL TRAJECTORY, SPEECHES, AND PRONOUNCEMENTS.

ABSTRACT: This work aims to trace the analytical paths of life and politics, as well
as the reverberations about the speeches and pronouncements by the eminent figure
of Dinarte de Medeiros Mariz. Politician who was established in the national politics
scene and, in turn, left his mark etched in the potiguar politics starting from its roots
in Seridó of Rio Grande do Norte. In this perspective, the narrative development will
take place through a bias that will trace his political life showing created alliances, the
steps taken by Dinarte, taking into account that, before becoming a political figure, he
1
Mestranda em História dos Sertões (UFRN-CERES, Caicó). ID Lattes: 8111.2333.0951.3952.
ORCID: 0000-0001-8427-7303. E-mail: larissesantosbernardo@yahoo.com.br.
2
Professora de História do Departamento de História na UFRN-CERES, Caicó. ID Lattes:
7070.0102.8841.6835. ORCID: 0000-0001-8689-1753. Orientadora da referida pesquisa.

125
126 Parnamirim, jan./jun. 2021

was a trader and farmer, experiences that corroborated for strengthening of his politi-
cal life. Thus, based on these referrals, we seek to concern the reason why the political
and social imaginary maintains around that public figure, since he gained public im-
pulsiveness by occupying various positions, among which, mayor of Caicó, governor
of the State of Rio Grande do Norte and Senator of the Republic.
Keywords: Dinarte Mariz. Life. Political trajectory. Speeches.

Introdução
O presente trabalho tem por desígnio traçar os percursos analíticos da traje-
tória de vida e política, como também das reverberações acerca dos discursos
e pronunciamentos a partir da figura eminente de Dinarte de Medeiros Mariz.
Político este que se firmou no cenário da política nacional e, que por sua vez,
deixou marcas registradas na política potiguar a partir de suas raízes no Seridó
norte-rio-grandense.
Para isso, é necessário primordialmente apresentar a pessoa de Dinarte de
Medeiro Mariz3 , assim registrado, mais conhecido por seu segundo sobrenome
Mariz. Observando a vida e sua trajetória política, o artigo intitulado Período
Republicano da fundação José Augusto, o mesmo descreve que Dinarte de Medei-
ros Mariz, nasceu na Fazenda Solidão em Serra Negra-RN4 no dia 23 de agosto
de 1903, filho de Manuel Mariz Filho e de Maria Cândida de Medeiros Mariz o
quinto entre quatorze filhos do casal. Seu avô, José Bernardo de Medeiros, foi
constituinte em 1891 e ocupou uma cadeira no Senado Federal de 1890 a 1907.
Com vinte e um anos de idade, Dinarte Mariz contrai matrimônio com Diva
Wanderley, filha de Virgolino Pereira Monteiro, comerciante no setor pecuário
e político de Campina Grande-PB.
Ainda em se tratando sobre a trajetória de vida de Dinarte Mariz, é neces-
sário discorrer brevemente sobre sua escolaridade, uma vez que, o mesmo não
chegou a cursar o ensino superior, o que levou a afirmar várias vezes que ele
era formado na escola da vida. Assim, Mariz teve:

O seu primeiro professor foi Arthéfio Bezerra, no Grupo Escolar


Coronel Mariz, em Serra Negra. Estudou aritmética, leitura e aná-
lise sintática, que na época se dizia análise lógica. Foi para Caicó
3
Ver em: Maia (2005, p. 220)
4
[. . . ] O professor Vergniaud Lamartine Monteiro explica o nome da região no semi-árido
nordestino: “Os primeiros batedores da região, localizados na fralda sudeste da serra, verifi-
caram serem as suas encostas acentuadas noruegas, as quais davam à serra aquele lugar, ao
tempo imerso em vegetação sombria e matarias virgens, um aspecto negro”. Na região, além da
vegetação de menor porte, convivem o juazeiro, a oiticica, a jurema, o angico e o pau-d’arco. É
o coração do Seridó. (LIMA, D. C., 2003, p. 39–40).
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 127

e, no Grupo Escolar Senador Guerra, concluiu o primário com o


professor Pedro Gurgel de Amaral. Foi sempre o primeiro aluno
da classe. Lá, aprendeu cantar o hino de Sant’Ana, a história da
cidade, viu a beleza plástica no desfile da irmandade do Rosário,
viveu o encanto místico da região. (LIMA, N. T., 2013, p. 41).

Ao concebermos sua descendência política, compreendemos que a mesma


integra parte de uma parentela que conseguiu se manter no poder. Segundo
Linda Lewin:

A parentela está associada a uma organização social e estava


subjacente à base da rede de parentes e amigos de um político. O
núcleo dos seguidores políticos que a ele se vinculam de maneira
personalística, constituindo os membros de sua parentela. Os mem-
bros deste grupo de base familiar organizavam localmente o eleito-
rado para fornecer-lhe os votos, defendiam seus interesses partidá-
rios em seu município natal e os serviam lealmente em que ingres-
savam por nomeação. (LEWIN, 1993, p. 113).

Antes de adentrarmos sobre a vida política de Mariz, é de bom grado expla-


nar, por sua vez, a ocupação do mesmo antes de enveredar na carreira política.
Então, Dinarte de Medeiros Mariz foi um remanescente da cultura algodoeira
e da pecuária, ou seja, um comerciante que por sua vez comandava política e
economicamente a região do Seridó. Mediante esse contexto, ficou evidente que
sucedeu partir da região habitada pelo referido acima, precisamente, da cidade
de Caicó, que fica localizada no Estado do Rio Grande do Norte (RN), na região
Seridó5 . Assim, foi através desse lugar que propiciou a criação de um grupo
oligárquico6 — familiar, que apareceu com o desenvolvimento da cotonicultura,
5
O Seridó é uma civilização solidária. Desde que consideremos civilização num conceito
menos amplo que os que se aplicam à nação. Região desfavorecida pelo clima, nuvens e chão,
é beneficiada pelo homem, sua vontade, sua decisão. E pelas bênçãos de Deus. (LIMA, D. C.,
2003, p. 57).
A civilização do Seridó é uma herança cultural que se baseia em vontade coletiva, impossível
de ser medida, incomensurável. Tem por base suas propriedades rurais que são historicamente
unidades autônomas, sustentadas pela produção de gado, pela produção agrícola e pelos peixes
que povoam as centenas de pequenos açudes cavados pela mão do homem. (LIMA, D. C., 2003,
p. 57–58).
6
A oligarquia se compõe necessariamente daquele grupo minoritário que, por meio da di-
visão organizacional do poder, logra ocupar posições institucionais que lhe permitem tomar
decisões que afetam os interesses coletivos de forma infensa a controle. (COUTO, 2012, p. 48).
Essa concepção da “classe política” é importante na construção de um conceito descritivo de
oligarquia porque é ela que permite pensar nos “oligarcas” como um grupo de poder específico
e na “oligarquia” como a forma de predomínio desse grupo, que se distingue dos demais não
128 Parnamirim, jan./jun. 2021

representado pelo seu líder maior, o coronel, José Bernardo de Medeiros.7


Seu primeiro ato político se deu no ano de 1927, com apenas 24 anos de
idade, quando solicitou a intendência, ou seja, a prefeitura da cidade de Serra
Negra do Norte. Esta reivindicação, por sua vez, não obteve resultados, uma
vez que, a família na época pensou que não era a vez dele, fato que o deixou
bastante angustiado, caso este que foi confirmado por Olavo de Medeiros Filho:

Conversando certa vez no alpendre da fazenda Solidão, pergun-


tei a Dinarte Mariz quais os motivos que o teriam levado a participar
da Revolução de 1930, sendo ele parente e conterrâneo do Gover-
nador Juvenal Lamartine de Faria, deposto pela referida Revolução,
dando uma risada, afirmou-me Dinarte Mariz que tudo teria ori-
gem em um pedido que ele fizera a Juvenal Lamartine propondo-se
a ser prefeito de sua querida cidade Serra Negra do Norte. O pedido
provocou gargalhadas em Juvenal, que descartou a pretensão do pa-
rente, pessoa que, segundo ele, não preenchia as condições exigidas
para ocupar a chefia da edilidade. (LIMA, D. C., 2003, p. 166).

Então em 1929, durante o governo de Washington Luís (1926–1930), era co-


merciante de algodão em Caicó (RN), e ingressou na Aliança Liberal8 — agrupa-
mento político oposicionista formado basicamente pelos partidos republicanos
mineiro e gaúcho, pelo Partido Democrático (PD) paulista e pelo situacionismo
paraibano apoiando a candidatura de Getúlio Vargas e João Pessoa à presidên-
cia e vice-presidência da República nas eleições de março de 1930. Contudo,
o candidato eleito foi Júlio Prestes, apoiado pelo presidente Washington Luís.
A derrota de Vargas, aliada ao assassinato de João Pessoa no mês de julho em
Recife, provocou a eclosão do movimento revolucionário de outubro de 1930,
ao qual o então Dinarte Mariz sob o comando do capitão do exército Abelardo
Torres da Silva Castro participou da revolução no Rio Grande do Norte.
Adentrando nos caminhos políticos já introduzidos anteriormente acima,
Dinarte de Medeiros Mariz deu continuidade aos seus engajamentos na polí-
por sua origem de classe, mas pelo papel organizacional específico que desempenha. (COUTO,
2012, p. 48).
Aqueles que se profissionalizam como dirigentes partidários, retirando dessa condição seus
ganhos e seu status, mas também desfrutando de condições diferenciadas de poder organiza-
cional, rapidamente adquirem as condições para se formarem uma oligarquia. O que permite
a sua transformação em oligarcas não é apenas a sua conversão em profissionais da política
(embora esta seja uma condição necessária), mas a detenção de um poder na organização não
desfrutado pelos demais. Noutros termos, a organização é capturada pelos dirigentes, e isto é
o que lhes converte em oligarcas. (COUTO, 2012, p. 48).
7
Ver em: Lamartine (2003, p. 187)
8
A Aliança Liberal foi formada em 1929 por setores dissidentes da oligarquia paulista e
mineira insatisfeita com o sistema excludente. (SPINELLI, sd., p. 15).
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 129

tica, uma vez que, passou a se posicionar favoravelmente a Revolução de 1930,


participou ativamente de todos os movimentos armados a posteriori como a
Revolução Constitucionalista de 1932 em São Paulo, a Intentona Comunista de
19359 , combatendo os comunistas no Rio Grande do Norte, esteve presente nas
conspirações contra a ditadura varguistas e outro momento importante foi a
participação da fase preparatória da Revolução de 1964. Dessa forma, segundo
Jailma Maria de Lima “[. . . ] A ênfase dada a sua própria trajetória é a de um
revolucionário, que articula nos bastidores, mas também que está na linha de
frente de alguns episódios [. . . ]”. (LIMA, J. M., 2013, p. 11).

Dinarte Mariz: vida, político e seus discursos


Dinarte Mariz assim como ficou conhecido, ingressou na vida pública com seu
primeiro cargo político como prefeito da cidade de Caicó, aos 27 anos de idade,
cargo do qual se afastou após dois anos em face de seu apoio ao Movimento
Constitucionalista de 1932, o que lhe valeu três prisões no Rio de Janeiro. Como
homem bem articulado e inquieto que era, de volta ao seu estado natal fundou
o jornal “A Razão” e foi um dos fundadores do Partido Popular ao tempo em
que prosperavam seus negócios com o algodão. Mediante ao desenvolvimento
do mesmo nos atos políticos, e através de seu forte desempenho como figura
política exerceu o mandato de senador por quatro vezes, tendo sido a última
por escolha indireta do presidente da República. Nessa linha de influência por
mais de uma vez, foi 1º secretário do Senado, um dos cargos mais importantes
daquela Casa legislativa.
Nessa trajetória e dentro desse contexto, Dinarte Mariz não parou e seguiu
em frente com suas articulações e artimanhas para conseguir seus objetivos.
Com alianças familiares e proximidades políticas, principalmente, com o seu
primo José Augusto Bezerra de Medeiros10 , fundou o partido da União Demo-
crática Nacional (UDN), este instituído oficialmente em nível nacional em 7 de
9
Em março de 1935 foi criada no Brasil a Aliança Nacional Libertadora (ANL), organização
política cujo presidente de honra era o líder comunista Luís Carlos Prestes. Inspirada no modelo
das frentes populares que surgiram na Europa para impedir o avanço do nazi-fascismo, a ANL
defendia propostas nacionalistas e tinha como uma de suas bandeiras a luta pela reforma agrá-
ria. Em agosto, a organização intensificou os preparativos para um movimento armado com o
objetivo de derrubar Vargas do poder e instalar um governo popular chefiado por Luís Carlos
Prestes. Iniciado com levantes militares em várias regiões, o movimento deveria contar com
o apoio do operariado, que desencadearia greves em todo o território nacional. O primeiro le-
vante militar foi deflagrado no dia 23 de novembro de 1935, na cidade de Natal. No dia seguinte,
outra sublevação militar ocorreu em Recife. No dia 27, a revolta eclodiu no Rio de Janeiro, então
Distrito Federal.
10
Este por sua vez, ex-governador do Estado do Rio Grande do Norte e com forças políticas
na região do Seridó.
130 Parnamirim, jan./jun. 2021

abril de 1945, que por sua vez, congregava forças diversas e até antagônicas,
em uma extensa frente de oposição ao governo Vargas. Sobre a composição e
as alianças do partido:

Presidente: José Augusto; vice-presidente: Dinarte Mariz; se-


cretários: Luiz Antonio dos Santos Lima e Djalma Marinho; tesou-
reiro: Severino Alves Bila. O diretório possuía ainda uma comissão
de articulação com o interior e uma comissão de imprensa. Os Diá-
rios Associados estavam representados por Edilson Varela e Amé-
rico de Oliveira Costa. (O Diário, Natal, 6 de jul. 1945, p. 1).

Então, nesse período para além da criação e fundação do partido da UDN,


Dinarte Mariz lançou-se a candidato ao Senado pela UDN, este por sua vez,
não alcançou êxito no pleito eleitoral de 1945. Portanto, Dinarte Mariz foi um
homem destemido, com personalidade forte e que não media esforços para al-
cançar seus objetivos. No ano de 1950 lança sua candidatura ao governo do
Estado do Rio Grande do Norte, mas, em acordo com José Augusto Varela não
concorreu as eleições, e sim, voltando a concorrer ao Senado Federal na legenda
da UDN, que por sua vez, saiu novamente derrotado.
No pleito de 1954 Dinarte Mariz, favorecido por um acordo firmado com seu
adversário, o pessedista Georgino Avelino, elegeu-se senador pelo Rio Grande
do Norte como candidato da coligação UDN-PSP-PSD. Pouco tempo depois de
assumir a cadeira como senador, Mariz em fevereiro de 1955 lançou sua can-
didatura ao governo do Estado do RN com o apoio do Presidente da República
João Café Filho, obtendo resultados positivos. Portanto, no pleito de outubro
de 1955 foi eleito governador do Rio Grande do Norte.11
A partir desse contexto, outro fator importante ao se debruçar e dialogar é
acerca de outros rumos que desembocaram na trajetória política de Mariz. É
nessa perspectiva que cabe aqui abordar o que existiu de desavenças e disputas
no Rio Grande do norte. Nesse contexto, Dinarte Mariz foi o precursor de uma
disputa ferrenha que existe no Rio grande do Norte, rivalidade essa conhecida
através dos partidos, Vermelho x Verde. A origem desta rixa de cores de partido
veio na década de 60, quando o Governo do Estado foi disputado por Aluízio
Alves e Dinarte Mariz, período que surgiu a Ditadura Militar e, consequente-
mente, os partidos MDB e Arena. Portanto, partindo dessa premissa o referido
político se constituiu de forma precisa com objetivos formados que permitiu
alcançar visibilidade não somente na política como também construindo uma
representação de homem do povo. Com base em Chartier:
11
Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biog
rafico/dinarte-de-medeiros-mariz. Acesso em 03 abr. 2021.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 131

As percepções do social não são de forma alguma discursos neu-


tros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas)
que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas
menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar
para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. [. . . ] As
lutas de representações rem tanta importância como as lutas econô-
micas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo im-
põe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores
que são os seus, e o seu domínio. Ocupar-se dos conflitos de classi-
ficações ou de delimitações não e, portanto, afastar-se do social —
como julgou durante muito tempo uma história de vistas demasi-
ado curtas —, muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos
de afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente
materiais. (CHARTIER, 1990, p. 17).

Ao discorrer e se propor analisar a construção da representação da figura


pública do ex-governador do Rio Grande do Norte e do ex-senador da Repú-
blica, que por sua vez ficou viva nos seridoenses e potiguares, faz-se necessário
discorrer a respeito do conceito de representação desenvolvido por Roger Char-
tier. Para isso, Chartier aborda o conceito de representação coletiva, ele destaca
que ambos se associam a três aspecto com o mundo social:

Primeiro, o trabalho de classificação e de recorte que produz as


configurações intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é con-
traditoriamente construída pelos diferentes grupos que compõem
uma sociedade; em seguida, as práticas que visam a fazer reconhe-
cer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de estar
no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posi-
ção; enfim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças às
quais “representantes” (instâncias coletivas ou indivíduos singula-
res) marcam de modo visível e perpetuado a existência do grupo,
da comunidade ou da classe. (CHARTIER, 1990, p. 73).

Na busca do entendimento das representações, a história cultural afasta-se


de uma história social baseada nas lutas econômicas, e busca estudar a socie-
dade das estratégias baseadas simbólicas manifestadas pelas classes, grupos e
meios sociais. Sobre o conceito de representação, vemos que a princípio de-
mostrava o que estava ausente, posteriormente vemos a associação dessa ao
que está presente. Sobre a função da representação, o autor aborda que:

Todas visam, com efeito, a fazer com que a coisa não tenha exis-
tência senão na imagem que a exibe, com que a representação mas-
132 Parnamirim, jan./jun. 2021

care ao invés de designar adequadamente o que é seu referente. A


relação de representação é assim turvada pela fragilidade da ima-
ginação, que faz com que se tome o engodo pela verdade, que con-
sidera os sinais visíveis como indícios seguros de uma realidade
que não existe. Assim desviada, a representação transforma- se em
máquina de fabricar respeito e submissão, em um instrumento que
produz uma imposição interiorizada, necessária lá onde falta o pos-
sível recurso à força bruta. (CHARTIER, 1990, p. 75).

Para além da construção que se edificou de Dinarte Mariz e a priori discu-


tida, um outro fator importante a respeito da conjuntura política nos pleitos
eleitorais são os discursos e pronunciamentos feitos pelo então estadista Ma-
riz. São diversos momentos que observamos o posicionamento político do qual
Dinarte possuiu, uma vez que, o mesmo em uma de suas várias entrevistas que
deu, diz a seguinte frase: “O mundo é grande de se ver e eu já vi de tudo. Mas
eu vejo tudo a partir de Caicó”12 . Com essa frase ele quis dizer que mesmo
sendo um homem viajado, conhecedor do mundo não esqueceu o lugar que lhe
ensinou a voar por outros ares, assim não desmemoriando suas raízes.
Para compreendermos o tema acerca da construção e a trajetória político e
social de Dinarte Mariz, é por sua vez necessário versar acerca dos seus pronun-
ciamentos e posicionamentos políticos para com o povo potiguar. Para tanto, é
imprescindível que se tenha um olhar voltado para os discursos, uma vez que, os
mesmos perpassam pela sociedade e são entendidos e assimilados de formas di-
ferentes, de maneira que se tem a necessidade de serem abordados e explorados
para que possam, por sua vez, servirem de elementos textuais e embasamento
para o desenvolvimento na composição dos caminhos percorridos e alcançados
pelo referido político Dinarte Mariz.
Nesse contexto, pensar as sociedades e seus diferentes discursos produzi-
dos é segundo Foucault “[. . . ] ao mesmo tempo controlada, selecionada, orga-
nizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função
conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar
sua pesada e temível materialidade”. (FOUCAULT, 1996, p. 8–9). Isso parte da
premissa da qual temos conhecimento da nossa sociedade e de que há posicio-
namentos de exclusão e de impedimentos quanto aos posicionamentos de um
determinado discurso, visto que nem todos tem o direito de dizer tudo, como
também falar de tudo em qualquer âmbito.
Então diante dessa conjuntura, a sociedade se priva de pôr em prática cer-
tos tipos de discursos uma vez que elas se comportam de maneira em que estão
pautados os discursos que são favoráveis a determinado tipo de assunto. Então,
12
Vem em: D. C. Lima (2003, p. 70)
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 133

segue assim um ritual de direito privilegiado ou de exclusão quanto ao sujeito


que quer falar, e esta exclusão da qual se encontra dentro dos discursos é com-
preendida por Foucault como um tipo de interdição. Dentro desse caminho de
afastamento e o seu ligamento com o impedimento, é possível observar que tais
discursos estão embasados e voltados para a sexualidade, como também sobre
política. Segundo Foucault:

[. . . ] como se o discurso, longe de ser elemento transparente


ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica,
fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, al-
guns de seus mais temíveis poderes. Por mais que o discurso seja
aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem re-
velam logo rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder.
Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso — como a psi-
canálise nos mostrou — não é simplesmente aquilo que manifesta
(ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e
visto que — isto a história não cessa de nos ensinar — o discurso
não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual
nos queremos apoderar. (FOUCAULT, 1996, p. 9–10).

Ainda em se tratando da análise do discurso, outro ponto discorrido por


Foucault associado ao discurso é por sua vez, o ato de exclusão dos discursos,
uma vez que, este está na oposição entre o verdadeiro e o falso. Essa problema-
tização aparece a partir do momento em que surgem questionamentos acerca
do qual foi, qual é através dos levantamentos sobre os discursos, e estes no que
lhes diz respeito estiveram presentes por vários séculos da nossa história. En-
tão, segundo Foucault “[. . . ] é um tipo de separação que rege nossa vontade de
saber, então é talvez algo como um sistema de exclusão (sistema histórico, ins-
titucionalmente constrangedor) que vemos desenhar-se”. (FOUCAULT, 1996,
p. 14). Dessa forma, a exclusão e a separação se constituíram com total certeza,
isso com base nos discursos dos poetas gregos do século VI que buscavam a
veracidade dos discursos.

[. . . ] o discurso verdadeiro no sentido forte e valorizado do


termo, o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror,
aquele ao qual era preciso submeter-se porque ele reinava, era o
discurso pronunciado por quem de direito e conforme o ritual re-
querido; era o discurso que pronunciava a justiça e a atribuía a cada
qual sua parte; era o discurso que, profetizando o futuro, não so-
mente anunciava o que ia se passar, mas contribuía para a sua re-
alização, suscitava a adesão dos homens e se tramava assim com
134 Parnamirim, jan./jun. 2021

destino. [. . . ] Hesíodo e Platão uma certa divisão e estabeleceu,


separando o discurso verdadeiro e discurso falso; separando nova
visto que, doravante, o discurso verdadeiro não é mais o discurso
precioso e desejável, visto que não é mais o discurso ligado ao exer-
cício do poder. (FOUCAULT, 1996, p. 14–15).

Nessa perspectiva, para além das análises acerca dos discursos com base
na exclusão, interdição e separação a partir das problematizações dos mesmos
através dos discursos do exterior e do interior, Foucault aponta que tem outra
existência de um grupo do qual está presente nos seus procedimentos, e este
por sua vez, proporciona o controle dos discursos, não no ponto de controlar o
seu poder e nem de conjurar suas aparições, mas “[. . . ] trata-se de determinar as
condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam
certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso
a eles. [. . . ] ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas
exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo”. (FOUCAULT, 1996,
p. 37).
Dessa forma, as análises e abordagens pautadas por Michel Foucault dis-
corre sobre os discursos presentes nas diferentes sociedades a partir de suas
várias vertentes como a exclusão, a interdição, a separação e os seus proce-
dimentos de como eles devem ser vistos e analisados. Diante disso, Foucault
mostra que:

O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade


nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim,
tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso
pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coi-
sas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar
à interioridade silenciosa da consciência de si. (FOUCAULT, 1996,
p. 49).

Portanto, os discursos seguem o caminho da verdade a qual se encontra den-


tro de qualquer manifestação das sociedades que os utilizam para demonstrar
seus posicionamentos e ensejos de uma determinada situação. Assim, pode-se
dizer que todo discurso tem seu próprio significado.
Atrelado aos discursos e pronunciamentos de Dinarte Mariz, no livro inti-
tulado “Dinarte Mariz vida e luta de um potiguar” de Agaciel da Silva Maia, traz
em seu contexto os memoráveis discursos feitos no Senado Federal, dos quais
muito bem elogiado pelo referido autor, e que tem como conteúdo os mais di-
versos que são entre eles: reverenciando a memórias de ex-companheiros polí-
ticos, questões voltadas para a seca no Nordeste, bem como a problematização
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 135

da economia nordestina e por fim comemorações aos 80 anos do mesmo e da


criação da Universidade Federal do Rio grande do Norte.13 Assim, diz Dinarte:

Devo dizer a todos que esta casa foi para mim mais do que uma
universidade, porque talvez se tivesse passado por uma universi-
dade, não teria conseguido aprender tanto, receber tantos ensina-
mentos capazes de me tornar um servidor, um cativo da coisa pú-
blica, em defesa do povo brasileiro e, sobretudo, da democracia,
sempre cambaleante, que nos oferece momentos, às vezes, de eu-
foria, mas que foge quando pensamos em construir um patrimônio
para as gerações que vêm. (MAIA, 2005, p. 173–174).

Dinarte Mariz, em seus pronunciamentos trazia também um discurso que


pairava críticas e questionamentos para os seus colegas políticos, dos quais
apresentava diretamente ao Senado Federal, quando assim apontava que todos
aqueles que faziam parte daquela referida casa deveriam lutar e buscar o melhor
para o povo e para o Brasil, e não serem apenas aqueles políticos individualistas.
Assim em um de seus discursos no Senado Federal diz:

Congresso amortecido não é congresso; Congresso que briga


por coisas pequeninas, sem pensar no futuro do país, não é con-
gresso; Congresso só se afirma quando defende idéias, princípios
e as grandes causas quando a nação está em risco. Este é o Con-
gresso que eu gostaria de ver. Este é o Congresso que nós precisa-
mos, nesta hora, convocar. Os partidos políticos estão aí, as brigas
são internas, mas há uma coisa maior do que as brigas dentro dos
partidos: é o interesse maior, é o interesse da Nação. Porque se não
nos capacitarmos disso, pior do que tem acontecido acontecerá. E
então nós cairemos diante do povo, sem poder dar uma explica-
ção e muito menos encontrar caminhos para que, amanhã o povo
possa crer e voltar as vistas para nos apoiar, prejudicando as gera-
ções que hão de chegar para a grande caminhada do futuro. (MAIA,
2005, p. 185).

Diante disso, dialogando com Foucault a partir do conceito de discurso por


ele desenvolvido, ao se deparar com a apropriação do discurso, vemos que Fou-
cault cita a educação como sendo um dos veículos dessa manifestação, tendo
13
“[. . . ] ano de 1958 tornar-se-ia um marco referencial na cultura e na educação norte-
rio-grandense, pois foi no dia 5 de junho desse ano que Dinarte Mariz criou a Universidade
Do Rio Grande do Norte, depois federalizada. E não hesitou em construir modernos centros
educacionais em Mossoró e em Caicó, dotando-os dos mais avançados recursos pedagógicos da
época.” (MAIA, 2005, p. 38).
136 Parnamirim, jan./jun. 2021

vista que é um modo “democrático” de ventilar os pensamentos e embates po-


líticos de determinadas épocas e espaços. Assim, o autor completa o raciocínio
com um pensamento que “todo o sistema de educação é uma maneira política
de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os
poderes que eles trazem consigo” (FOUCAULT, 1996, p. 44).
Portanto, nesse mesmo contexto, Foucault analisa o ritual de ventilação das
palavras, que por sua vez, o autor aponta que as sociedades do discurso e os gru-
pos doutrinários andam imbricados, servindo assim de apoio um para o outro,
para poderem alcançar o objetivo maior que é as apropriações sociais desses
pensamentos considerados verdadeiros. Buscando a definição do discurso, o
autor mostra que esta parte da leitura do mundo, ou seja, é mesmo a releitura
dos pensamentos que circulam sobre a sociedade. Desse modo, vemos que:

O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade


nascendo diante de seis próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim,
tomar a forma de discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso
pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coi-
sas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar
à interioridade silenciosa da consciência de si. (FOUCAULT, 1996,
p. 49).

Como anteriormente discutido, Foucault aborda a educação como sendo o


meio mais sensato para se pôr em prática os discursos na sociedade. Sabemos
que se tem uma extensa significação da palavra educação, uma vez que, a mesma
traz um significado amplo o que aqui permite explanar o posicionamento acerca
de educação a partir dos discursos de Dinarte Mariz, tendo em vista que, o
mesmo era um admirador ferrenho da educação. No entanto, mesmo não tendo
concluído o ensino superior, concluiu penas o curso primário, ele tinha con-
vicção de que sem a educação não há povo desenvolvido. Segundo Maia, “[...]
Reconhecia na educação a chave para o progresso social. São suas estas pala-
vras: “Só na educação uma nação encontrará caminhos para a solução dos seus
problemas e felicidade de seu povo.” (MAIA, 2005, p. 39).
Dando continuidade aos discursos a respeito da educação, um outro discurso
feito por Dinarte Mariz no Senado Federal em 18 de outubro de 1983, sobre os 25
anos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Para o mesmo, a criação
da Universidade foi de grande relevância para o Estado do Rio Grande do Norte,
visto que teria formação superior e uma notável instituição pública, porquanto,
“Não sei se devemos considerar mais importante o projeto ou o processo, se a
Universidade é, primacialmente, uma fonte produtora de conhecimento de uma
força geradora de inquietação intelectual, condição primeira para a renovação
do saber e a tecnologia.” (MAIA, 2005, p. 200). Assim, fica perceptível a rele-
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 137

vância da mesma e Dinarte Mariz se posicionou: “Importa acrescentar que a


Universidade não apenas forma pesquisadores, mas apresenta resultados mate-
riais e insofismáveis do esforço de pesquisa atualmente desenvolvido.” (MAIA,
2005, p. 200).
Concomitantemente, Dinarte Mariz discursava a partir das observações e
dos anseios que para ele estava inserido dentro das necessidades que o povo
carecia, pois via nesse trajeto de comunicação uma ponte positiva para seus
objetivos. Assim, através do embasamento na educação, envereda a construção
da sua imagem, uma vez que, ao pensar na edificação de uma sociedade diz que
“Entregue-se às universidades regionais a tarefa de pesquisar as nossas riquezas
e identificar a vocação do nosso povo, construtor de uma civilização tropical.”
(LIMA, D. C., 2003, p. 67). Desse modo, é compreensível que no decurso dos seus
posicionamentos a educação é a chave principal para cuidar da saúde, cultura e
economia, pois “Só na educação uma nação encontrará caminhos para a solução
dos seus problemas e felicidade do seu povo.” (LIMA, D. C., 2003, p. 66).

Considerações finais
Corroborando com os trabalhos já desenvolvidos sobre “Dinarte Mariz”, o refe-
rido escrito aqui desenvolvido, busca levar o leitor a um momento de reflexão
sobre um homem que tem suas origens na Fazenda Solidão município de Serra
Negra do Norte, localizada no interior do Seridó e que por determinação, con-
vicção de seus objetivos e muito esforço, se tornou um protagonista da história
política no período das oligarquias, comprovando assim a relevância no cenário
potiguar e nacional. No decorrer da construção dessa narrativa, temos a certeza
que muito mais está para ser descrito e pesquisado sobre a figura eminente de
Dinarte Mariz, visto que, essa obra é uma escrita inicial que mostra a proposta
de como será importante descrever a história desse líder político, e, é sabido
relatar que por se tratar de um personagem conhecido no meio político, esse
trabalho irá apenas ser mais um contribuinte na formação de ideias que res-
saltam a importância que esse homem público possuiu para o Rio Grande do
Norte.
Por fim, notadamente percebe-se que Dinarte Mariz até os tempos atuais
é um personagem político que deixou marcas importantes na administração
pública, visto que além de ser bem articulado politicamente, foi exemplo de
respeito, solidariedade. Dessa forma, fica claro através dos seus registros apre-
sentados em alguns de seus discursos e de seus escritos. Portanto, cabe salientar
que é uma figura tão marcante que em cada cidade do interior iremos encon-
trar uma rua com seu nome, ou uma estátua, ou um busto em praça pública, a
história de Dinarte é cultura, memória, identidade.
138 Parnamirim, jan./jun. 2021

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Recebido em 30 mar. 2021.


Aprovado em 24 abr. 2021.
FRENTES DE TRABALHO E LIGAS CAMPONESAS
Movimentos populares, conflitos e sobrevivência (1960–1976)
João Paulo de Lima Silva1
RESUMO: Este artigo procura abordar as ações estabelecidas nas Frentes de Trabalho Como referenciar?
SILVA, J. P. L. Frentes de
no Rio Grande do Norte e as Ligas Camponesas em Pernambuco. Espaços de resistên- trabalho e ligas
cia e conflitos, onde os retirantes da seca a partir do programa norte americano Ali- camponesas: movimentos
populares, conflitos e
ança para o Progresso se estabelecem como agentes modernizadores através de suas sobrevivência (1960–1976).
funções voltadas à construção de obras emergenciais. A partir da obra de Henrique Revista Galo, n. 3, p.
141–153, 17 jul. 2021
Alonso, “Criar Ilhas de Sanidade: os Estados Unidos e a Aliança para o Progresso no
Brasil (1961–1966)”, o documentário norte americano “The Troubled Land” de 1961 que
aborda o tema das Ligas Camponesas no interior pernambucano, e matérias publica-
das no Diário de Natal entre 1960 e 1970, foi possibilitada a ampliação do repertório
investigativo sobre tal temática. Os resultados mostram que as muitas intervenções re-
alizadas entre as décadas de 1960 e meados de 1970 surgiram como paliativas diante das
intempéries climáticas nordestinas, além do reflexo da proposta modernizadora estabe-
lecida pelos Estados Unidos da América aos países que aderissem ao programa. Diante
dos fatos, a população necessitada, que buscava aflita por um meio de sobrevivência,
encontrou nas ações da elite oligárquica, ainda que não em definitivo, uma solução.
Palavras-chave: Aliança para o Progresso. Modernização. Nordeste.

WORK FRONTS AND PEASANT LEAGUES


Popular movements, conflicts and survival (1960–1976)
ABSTRACT: This article seeks to address the actions established in the Work Fronts in
Rio Grande do Norte and the Peasant Leagues in Pernambuco. Resistance and conflicts
spaces where migrants fleeing the drought, due to the U.S. program Aliança para o
Progresso, establish themselves as modernizing agents through their functions aimed
at the construction of emergency works. Based on the Henrique Alonso’s work “Criar
Ilhas de Sanidade: os Estados Unidos e a Aliança para o Progresso no Brasil (1961–
1966)”, on the 1961 U.S. documentary film “The Troubled Land”, that addresses the
Peasant Leagues in the interior of Pernambuco, and on articles published in the Diário
1
Graduado em História (UFRN-CERES, Caicó), Especialista em História dos Sertões (UFRN-
CERES, Caicó), mestrando no Programa de Pós-Graduação em História dos Sertões do (UFRN-
CERES, Caicó). ID Lattes: 8111.2333.0951.3952. ORCID: 0000-0002-4254-8571. E-mail: joaopau-
lojp31@hotmail.com. Sob orientação da Prof.ª Drª. Jailma Maria de Lima

141
142 Parnamirim, jan./jun. 2021

de Natal between 1960 and 1970, it was possible to expand the investigative repertoire
on the topic. The results show the many interventions carried out between the 1960s
and the mid-1970s emerged as palliatives in the face of northeastern climatic hazards,
in addition to the modernizing proposal established by the United States of America
for countries that joined the program. In view of the facts, the needy population, who
in distress were looking for means of surviving, found in oligarchic elite actions, even
if not definitively, a solution.
Keywords: Alliance for Progress. Modernization. North East.

Introdução
No início da década de 1960, quando a América Latina tornou-se a primeira pri-
oridade da agenda externa dos Estados Unidos haja vista tenha sido considerada
como a “região mais perigosa do mundo”, a administração do então presidente
John Fitzgerald Kennedy utilizou-se fartamente daquela construção discursiva
para criar a Aliança para o Progresso (PEREIRA, 2005, p. 25–26).
A Aliança para o Progresso surgiu propagandeada como um programa de
ajuda humanitária, onde regiões mais empobrecidas receberam ajuda alimen-
tícia e financeira. Esses países assumiram como compromisso quitar parte dos
empréstimos realizados a médio ou longo prazo, como também, cumprir me-
tas nas áreas da educação e construção. Ampliar o número de salas de aulas e
construir açudes e estradas apareceu no âmago dessas negociações.
Se a América Latina era vista como a região mais perigosa do mundo, de-
vido sua importância geopolítica, o Nordeste brasileiro ficou conhecido como
uma região explosiva, não apenas por ser a região mais empobrecida do país,
como também o lugar onde a ameaça comunista era mais fortemente estabele-
cida. Perigoessemais evidente em Pernambuco, onde as Ligas Camponesas e o
governador Miguel Arraes não escondiam uma forte postura antiamericana.
A partir desse enlace, objetivamos uma abordagem que envolva e torne com-
preensíveis as ações estabelecidas nas Frentes de Trabalho no Rio Grande do
Norte e as Ligas Camponesas em Pernambuco. Uma vez que esses espaços de
resistência e conflitos, ao tornarem os retirantes da seca os principais agen-
tes mobilizadores dos conflitos, também, a partir do programa norte americano
Aliança para o Progresso e as ações ditas modernizadoras, os tornam vítimas
e, ao mesmo tempo um entrave para a sociedade. Muitas lacunas precisam ser
preenchidas.
Eric Hobsbawm descreve o sentimento antiamericano como uma forma de
preocupação da identidade nacional. A chegada de muitos imigrantes aos Es-
tados Unidos na metade do século XIX estimulou a criação de uma imagem
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 143

do cidadão norte-americano. O “bom americano” deveria demonstrar seu pa-


triotismo através de rituais formais e informais afirmando todo tipo de ideal
convencional e institucional estabelecido como característica que reafirmasse
sua condição (HOBSBAWM, 1984, p. 288).
Ao observarmos a fala do autor, percebemos o surgimento desse sentimento
antiamericano tendo início no interior do próprio país norte americano, onde
para ser visto como tal bastava que houvesse um pensamento de oposição a
qualquer que fosse o termo da política estadunidense. Atitude essa que atra-
vessou suas fronteiras e foi demonstrada também de forma muito hostil por
vários países por onde passaram suas comitivas.
A produção historiográfica que informa sobre o tema2 , ao ser confrontada
com matérias do jornal Diário de Natal das décadas entre 1960 e 1970 se tornou
insuficiente, uma vez que ambos os recursos apontam informações distintas,
de certo modo tal fato se torna relevante, uma vez que nos é possibilitada uma
ampliação de fatos e contestações sobre o tema discorrido.
A partir da pesquisa que fizemos podemos verificar que, as muitas inter-
venções realizadas entre as décadas de 1960 e meados de 1970 surgem como
um paliativo diante das intempéries climáticas nordestinas, além do reflexo da
proposta de modernização estabelecida pelos Estados Unidos da América aos
países que aderissem ao programa.
O Brasil foi o país latino-americano que mais recebeu investimentos do en-
tão novo programa de política externa e o Nordeste foi o alvo principal da Ali-
ança no Brasil (PEREIRA, 2005, p. 6).
Certamente os Estados Unidos observavam a situação de miséria formulada
pela seca um campo fértil para a proliferação de seus ideais. À medida que o
convênio beneficiava a população necessitada e, de certo modo a classe política,
uma ampla ocupação norte americana ia acontecendo gradualmente nas áreas
atendidas por programas.

O antiamericanismo nas Ligas Camponesas


Recife, a capital de Pernambuco está localizada na Zona Metropolitana e no iní-
cio dos anos de 1960 a cidade foi considerada como “o centro dos grandes pro-
2
Sobre os impactos da Aliança para o Progresso no Nordeste do Brasil, ver informações ex-
traídas de PEREIRA, H. A. A. R. Criar ilhas de sanidade: os Estados Unidos e a Aliança para o
Progresso no Brasil (1961–1966). 2005. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade
Católica, São Paulo. Neste trabalho, o autor examina a política externa norte-americana para
a América Latina em geral, em particular para o Brasil durante a década de 1960. O foco do
trabalho foi a Aliança para o Progresso no Brasil, com destaque para a atuação do programa
na região Nordeste e no Rio Grande do Norte. O capítulo cinco realiza o estudo dos conflitos e
aproximações entre a Aliança para o Progresso e a Política e o governo Aluísio Alves.
144 Parnamirim, jan./jun. 2021

blemas relacionados à pobreza encontrados no Nordeste” (PAGE, 1972, p. 30).


Entre as várias dificuldades que assolavam Recife, talvez o mais grave fosse
o habitacional. Boa parte da população mais carente era composta de retirantes
provenientes da Zona da Mata e Sertão que perambulavam na esperança de
melhores condições de vida.
Ao chegarem à cidade essas pessoas eram apresentadas a um cenário sem
grandes expectativas. Fatores como a desigualdade social, e as condições pre-
cárias de trabalho acentuavam ainda mais a péssima condição dos menos fa-
vorecidos, que viam como último refúgio buscar emprego na região do açúcar,
localizada na Zona da Mata, e onde se encontrava grande parte do latifúndio
responsável pela exploração do trabalhador rural.
O problema foi agravado com a modernização do campo ou quando os po-
deres dos senhores de engenho começaram a ser dividido com os usineiros. A
instalação das indústrias de açúcar na região transformou os engenhos em for-
necedores de matéria-prima para as usinas. O refino industrializado provocou
a venda de muitos engenhos. Desta forma, os industriais do açúcar passaram a
acumular poderes econômicos e políticos em Pernambuco (PAGE, 1972, p. 37).
A estrutura fundiária provocou diretamente o problema da fome. Josué de
Castro descreve que isto foi resultado da organização socioeconômica instalada
não só em Pernambuco como em todo Nordeste:

O que se verifica no Nordeste açucareiro é que a fome de que


sofrem suas populações é produto exclusivo do seu tipo de orga-
nização econômica, da exploração econômica de tipo colonial [. . . ]
em torno da monocultura do açúcar. A fome aparecendo como uma
espécie de subproduto da economia da cana e os famintos como
uma forma de bagaço de sua estrutura social: o bagaço humano do
latifúndio açucareiro (CASTRO, 1975, p. 73).

O autor aborda o problema da fome como um resultado da monocultura do


açúcar, pois a região oferecia condições climáticas e de solo propícias para o
cultivo de gêneros destinados à alimentação da população. Aliado a isso, essa
monocultura renunciou a produção de outros alimentos agravando a situação
local.
A insatisfação por parte dos trabalhadores serviu de estopim para o início
dos movimentos de revolta encabeçados por líderes que emergiam contra os
grandes latifundiários e as ações do governo americano por observarem nisso
um conjunto de ideias que cada vez mais aprisionava e empobrecia os trabalha-
dores.
Nesse contexto destacaram-se os trabalhadores rurais, que liderados por
Francisco Julião, um atuante advogado, político, filho de pessoas influentes na
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 145

agricultura e inspirados por Fidel Castro e Mao-Tsé-Tung, começou a chamar a


atenção de governos estrangeiros, e principalmente grandes latifundiários lo-
cais que viram aos poucos os seus antigos regimes de poder sendo menospre-
zados.
A repercussão foi tanta que em setembro de 1960 o jornalista do The New
York Times, Tad Szulc, desembarcou no Recife para coletar informações sobre
os desdobramentos das Ligas Camponesas em Pernambuco. Procurou conhe-
cer a atmosfera local através de visitas in loco e coletando dados durante uma
semana. Ao retornar aos Estados Unidos publicou as informações coletadas no
jornal entre os meses de outubro e novembro sendo a primeira de muitas re-
portagens reproduzida em capa. O tom sensacionalista reproduzido pelo autor
apontou para uma situação caótica em pleno desenvolvimento assinalando para
uma possível situação revolucionária cada vez mais latente em toda vastidão
pobre do Nordeste (BARROS, 2017, p. 62).
O documentário “The Troubled Land” retratou os trabalhadores que compu-
nham as Ligas Camponesas como homens ignorantes por natureza, pertencen-
tes a uma estatística onde trabalhar para sobreviver era o único direito que pos-
suíam. Em alguns momentos a fala dos personagens traduz a educação como
algo muito distante, uma realidade totalmente estagnada, onde o discurso do
senhor do latifúndio era a única lei.
Michel Foucault aponta a questão educacional como um dos meios pelo qual
chegamos à apropriação social dos discursos. Entender a educação como o ins-
trumento articulador para que todo indivíduo, em uma sociedade como a nossa,
possa ter acesso a qualquer tipo de discurso, torna a sua utilização indispensável
nas mais diversas áreas, e, também, no âmbito das lutas sociais. Nesse sentido, a
educação seria uma maneira política de modificar a realidade dos trabalhadores,
porém o medo era uma constante entre eles (FOUCAULT, 2012, p. 43–44).
Durante determinada cena, os tiros de Constâncio Maranhão diante da câ-
mera mostraram bem o poder secular do latifúndio. É contra isso que Francisco
Julião vai se posicionar negativamente, e, buscar a partir de um discurso hu-
manitário e persuasivo, realizar um chamamento revolucionário. É mais um
político que, assim como os estadunidenses, descobriu a importância das Ligas
para as contendas políticas.
As ações do governo norte americano voltadas para impedir qualquer que
fosse a iniciativa de cunho comunista, sempre estiveram voltadas mais dire-
tamente para Recife. Como já citado, o estado de Pernambuco possuía certa
postura antiamericana, fosse através do comportamento das ligas camponesas
e seus líderes ou do próprio governador. Fato esse que pedia uma maior vigilân-
cia levando, por exemplo, à instalação do mais importante escritório da Aliança
para o Progresso estar situado em Recife, o que culminava com a frequente
visita de comitivas norte-americanas. Tal fato não ocorreu no Rio Grande do
146 Parnamirim, jan./jun. 2021

Norte, uma vez que, o governo potiguar nutria de certa proximidade ideológica
com os Estados Unidos da América.

A seca pede, a força do latifúndio ordena


Era contra toda essa situação que Francisco Julião se posicionava, alertando os
trabalhadores e despertando a ira dos grandes latifundiários.
A historiadora norte-americana Jan Knippers Black afirma que a ajuda norte-
americana ao Nordeste do Brasil não foi motivada pela pobreza existente na
região, mas, resultado das mobilizações sociais das Ligas Camponesas e do seu
líder Francisco Julião (BLACK, 2009, p. 161).
Muito convincente essa afirmação se realmente analisarmos o fato de que,
qualquer projeto estabelecido no Nordeste seria estreitamente relacionado à
seca. Uma vez que geralmente eram apresentados como solução para os pro-
blemas advindos da estiagem. Existia sempre uma apropriação pelas classes
proprietárias de modo a buscar, através de seus discursos ocultos, manter seus
privilégios locais e assegurar espaços ameaçados, tendo em vista a ascensão de
outros grupos.
As ações da Aliança voltadas à agricultura brasileira vivenciaram ao longo
da década de 1960 uma série de processos, que vão desde a ascensão dos mo-
vimentos sociais rurais cada vez mais organizados, passando pelas ferrenhas
discussões em torno da reforma agrária e da modernização, desembocando na
formação do Complexo Agroindustrial Brasileiro (CAI). O programa estaduni-
dense lançado por Kennedy integrou de forma mais direta ou indireta, todos
esses processos, deixando a marca de sua ingerência na agricultura brasileira
(NATIVIDADE, 2018, p. 21).
A temática envolvendo a reforma agrária e consequentemente seu desen-
volvimento, foi algo que gerou muitos conflitos entre os líderes dos movimen-
tos sociais, seus adeptos e os grandes latifundiáros no Nordeste. Tais conflitos
ocorreram com tanta frequencia e brutalidade que despertaram a atenção da
crítica norteamenricana. Para melhor argumentar tais fatos, temos como fonte
audiovisual o já citado documentário “The Troubled Land”, traduzido para o
português como “A terra problemática”, o documentário produzido no Brasil a
mando do governo estadunidense em 1961, mostrou de forma concreta como
era o tratamento entre os chamados coronéis da terra e seus empregados.
Filmado em Pernambuco, o filme mostrou como era a vida dos cortadores de
cana-de-açúcar na fazenda do latifundiário Constâncio Maranhão, um homem
com arma em punho, que se dizia simples, e ao mesmo tempo dava tiros para o
ar enquanto falava que, “aquilo”, era o que teriam aqueles trabalhadores que o
desobedecessem.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 147

Em cenas posteriores, Francisco Julião, grande nome das ligas camponesas,


sempre é visto discursando em locais de grande impacto popular: feiras livres
e canaviais. Sempre utilizando uma fala em tom encorajador, ele se dirige aà
classe trabalhadora para que esses se libertassem dos abusos de seus senhores.
O documentário foi produzido para a rede de televisão estadunidense ABC,
que escolheram o Nordeste como cenário perfeito para documentar o suposto
surgimento de uma “Nova Cuba”, os perigos da atuação de Francisco Julião
sobre a massa camponesa. Uma atitude premeditada, uma vez que, posterior-
mente tais fatos registrados justificarião perante a opinião pública, o apoio dado
ao golpe militar no Brasil, fato ocorrido no mesmo ano de exibição do filme.

Frentes de Trabalho resistência e sobrevivência


O Nordeste desde a implantação da Aliança para o Progresso no Brasil ocupou
espaço privilegiado nas agendas dos governos brasileiro e norte-americano. En-
tretanto, muitos anos antes do início daquele programa de política externa, a
região já havia recebido atenção prioritária, tanto nos Estados Unidos como no
Brasil (PEREIRA, 2005, p. 288).
Desde o final do século XIX, o Nordeste tornou-se um problema de reper-
cussão nacional, os efeitos da seca eram o que caracterizavam essa região. Visto
como um campo fértil para a realização de futuros enlaces políticos, diversos
investimentos foram realizados e muitas instituições criadas com o intuito de
gerir toda a situação.
Entretanto, como afirma Celso Furtado em uma de suas obras sobre o tema,
essa ação do Estado não resultou em melhorias para a população que era vi-
timada pelas secas. Nesse sentido, como observa o autor, os investimentos fe-
derais no Nordeste desde a década de 1950 para combater o problema da seca
“foi desviado de seu autêntico objetivo social para transformarem-se em instru-
mento de consolidação dos latifúndios de pecuária, ameaçados em suas próprias
bases pelas grandes calamidades sociais em que se haviam transformado as se-
cas” (FURTADO, 1985, p. 22).
No Nordeste, o Rio Grande do Norte foi o ponto preferencial de atuação
da Aliança para o Progresso. Visto como a principal “Ilha de sanidade”, ex-
pressão criada pelo embaixador norte-americano Lincoln Gordon, para nomear
os benefícios que os Estados Unidos através do Programa Aliança para o Pro-
gresso poderiam ofertar para o Nordeste, Brasil e América Latina (PEREIRA,
2005, p. 27).
O estado possuía uma localização geográfica vista como estratégica no que
diz respeito à prevenção e possíveis investiduras comunistas. Esse fato foi de-
cisivo para que a comitiva responsável pela articulação do programa norte-
148 Parnamirim, jan./jun. 2021

americano visualizasse a referida região como a melhor porta de entrada e pos-


sível campo de permanência das tropas e ideais anticomunistas, oportunizando
com isso, um elo junto à administração Aluízio Alves (1961–1966) que colheu
significativos frutos políticos.
No Rio Grande do Norte as manifestações populares, compostas também por
trabalhadores insatisfeitos se mostraram mais tímidas, tendo em vista que es-
sas funcionavam como uma forma de ocupação para esses flagelados que viam
nas Frentes de Trabalho, talvez de forma ingênua, uma área em crescimento,
além de seu único refúgio de sobrevivência, de início tudo funcionou de forma
organizada e pacífica. Sobre a função dessas organizações trabalhista e conse-
quentemente emergenciais, Duarte nos explica:

As medidas de enfrentamento dos efeitos da escassez de recur-


sos hídricos seguiam três frentes: a intensificação na construção
de açudes e outras obras complementares, o aumento da constru-
ção de estradas de rodagem e de ferro e o incentivo à emigração
para outros estados, principalmente nas áreas onde o desemprego
assumiu grandes proporções, garantindo a ocupação e os meios de
subsistência da população (DUARTE, 2002, p. 33).

Constam nos acervos da Paróquia de Santana em Caicó, no Rio Grande


do Norte, documentos referentes à administração das frentes de trabalho por
parte do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) e pelo De-
partamento de Estradas de Rodagens (DER). Neles, encontramos a composição
das Frentes. Isso partindo do montante de operários, as condições de trabalho,
desde as atividades desenvolvidas, até como estes eram conceituados a partir
do trabalho.
Em um relatório produzido no ano de 1976, encontramos dado como, jor-
nada de trabalho de 8 horas diárias registra com assinatura de ponto, salário
líquido da época referente a 502 cruzeiros, sendo estes já descontados impostos
referentes ao Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), pago quinzenal-
mente em moeda, na própria Frente de Trabalho e não na cidade onde estivesse
localizada. Isso certamente se deu pela dificuldade de locomoção desses traba-
lhadores até a zona urbana.3
Havia uma lista de itens a ser evitado, e entre eles destacava-se a presença
de menores/escolaridade, certamente alegando que os menores de acordo com
3
O documento manuscrito (relatório) encontra-se no Acervo de documentos da Paróquia da
Diocese de Caicó. No primeiro andar do Centro Pastoral Dom Wagner, depositados em pastas
plásticas e armários de ferro. Os documentos do acervo não se encontram enumerados por se
encontrarem em processo de catalogação. Acesso em 02 maio 2018.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 149

suas idades deveriam estar frequentando as séries escolares e não atuando nas
Frentes.
Podemos observar no documento as prioridades que deveriam ser respeita-
das ao se compor os grupos de trabalhadores. Entre elas estão, que os homens
deveriam ser casados, solteiros arrimo4 de família, e menores com mais de 14
anos/arrimo.
Nesses relatórios o homem era tratado como um sujeito que possui valores
reconhecidos pelos chefes, sendo estes; respeitador, dóceis, pacíficos, trabalha-
dores, inteligentes e que, se sentem honrados pelo trabalho, não podendo por
isso ficar parados. Essas eram as impressões que deveriam ser enviadas aos es-
critórios que geriam o programa, quando na verdade a situação nas Frentes de
Trabalho começava a se agravar.
Criadas a partir do Programa Alimentos para a Paz para buscar de solu-
ções para os problemas da pobreza, no entanto, com o passar dos anos e, diante
da seca cada vez mais frequente, estas passaram a ser não só o único refúgio
dos mais necessitados, bem como um grande comércio para os mais abastados.
Assim sendo, qualquer que fosse a ameaça de fim destas, a população de flagela-
dos ficava temerosa e angustiada por notícias, a demora por declarações gerou
o clima de tensão que se alastrou pelo Estado.
Boatos de que o trabalho estava sendo improdutivo e que suas atividades
iriam parar fez com que tivesse início uma onda de invasões e saques por várias
cidades do Nordeste. A situação se agravou, pois o salário se tornou insuficiente
para o sustento, e até mesmo o alimento recebido como parte do pagamento
chegou a ser vendido e os filhos desses trabalhadores passaram a virar pedintes
como forma de complementar uma renda para tantas necessidades.
A situação se tornou cada vez mais inflamável. A seca deixou de ser um
problema natural e começou a ser tratado como um problema econômico. No
meio de tudo isso, uma massa desesperada que não media esforços para obter
uma solução a seu favor. As manchetes dos jornais eram claras e cada vez mais
traziam fatos que representavam o desespero dos flagelados e a falta de interesse
dos políticos em resolver a situação.
Diante da situação, Edward Thompson colabora com suas ideias ao nos dizer
que:

Em todas as sociedades, naturalmente, há um duplo compo-


nente essencial: o controle político e o protesto, ou mesmo a rebe-
lião. Os donos do poder representam seu teatro de majestade, su-
4
Diz-se da pessoa que dá proteção, auxílio ou amparo. No caso do documento, quando o
homem é solteiro e responsável pelo sustento de uma família e, quando se é menor, mas está
protegido por seus familiares. Ver: BUENO, S. Minidicionário da língua portuguesa. 3. ed.
São Paulo: FTD, 2016.
150 Parnamirim, jan./jun. 2021

perstição, poder, riqueza e justiça sublime. Os pobres encenam seu


contrateatro, ocupando o cenário das ruas dos mercados e empre-
gando o simbolismo do protesto e do ridículo (THOMPSON, 2001,
p. 239–234).

Um dos muitos fatos que narram essa história e compuseram as páginas dos
jornais locais, foi quando no ano de 1967, não suportando mais a situação de mi-
séria e descaso, 700 homens que há dias aguardavam em Santa Cruz no interior
do Rio Grande do Norte ser alistados pelo escritório da SUDENE, não obtendo
resposta que deveria vir da cidade de Natal, como informou o prefeito Clodo-
aldo Medeiros, por volta das 15 horas iniciou os saques à cidade. Um depósito
no centro foi o primeiro saqueado, suas portas foram arrombadas, pessoas fo-
ram pisoteadas e durante 15 minutos as pessoas subtraíram todos os gêneros
alimentícios do local. Dalí a população faminta buscou novos lugares para re-
petir a cena, e só encerrariam o episódio após intervenção da polícia que por
ordem do delegado controlou os saques.5
O cenário composto para o futuro imediato do Nordeste era apocalíptico.
As pressões sociais tornaram-se explosivas e evidenciaram ser um risco para
a segurança interna do Brasil. Para o governo norte-americano, a conjuntura
atual favorecia a possibilidade de uma segunda Revolução Cubana, desta vez
em solo brasileiro.
As Frentes de Trabalho continuaram sendo mantidas com recursos vindos
da Aliança destinados aos flagelados, no entanto, agora as Frentes conviviam,
não só com a fome, a má administração e a exploração, também aumentaram os
problemas de saúde resultado das péssimas condições às quais estavam expostos
os trabalhadores nesses locais.
Mesmo diante de tantas irregularidades e fatalidades, o homem sertanejo
teve de ser apresentado a aquele que seria o seu maior medo, o fim das Frentes
de Trabalho. Em novembro de 1970, foi noticiado que a SUDENE iniciaria as
dispensas. O Ministro do Interior José Costa Cavalcante declarou que, agora os
flagelados teriam mais um dia de folga remunerado, para que pudessem prepa-
rar as suas terras para o inverno que segundo eles se aproximava. Ele afirmou
ao Diário de Natal que:

“a desmobilização das frentes de trabalho em todo o Nordeste


será em ordem progressiva, dependendo apenas, das chuvas que
forem caindo em toda a região. Inicialmente, vamos dar mais um

5
OPERAÇÃO saque. Diário de Natal, Natal, p. 10, 24 jan. 1967. Acesso em 17 ago. 2018.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 151

dia de folga ao flagelado para ele ter melhores condições de preparar


sua terra e aguardar o inverno de 1971.”6

Não demorou muito, o Diário de Natal noticiou a desarticulação de todas


as Frentes de Trabalho existentes no Rio Grande do Norte desde o dia anterior.
As notícias foram que tudo aconteceu normalmente, que as últimas 13 frentes
existentes no Estado, englobando um total de 10 mil homens foram desmobi-
lizadas na mais completa ordem, e que agora, o Estado seria beneficiado com
bens, como por exemplo, viaturas que antes serviam à SUDENE como forma
de apoio. Os discursos oficiais surgidos acerca dos flagelados encerraram como
que quisessem calar uma longa jornada de fome, dor e morte. As Frentes de
Trabalho não deixaram de existir em definitivo, pois com o agravamento de
outras secas, essas tornaram a surgir em menor número e proporções, porém
ainda abastecidas pelo Programa Alimentos Para a Paz, que mesmo com o pe-
ríodo de desarticulação das Frentes, ainda enviavam os mantimentos para que
estes fossem utilizados junto às comunidades carentes7 .
O governo agora estava sob a tutela de Cortez Pereira. Candidato também
eleito com a promessa de modernizar o estado e promover apoio aos movi-
mentos populares nacionalistas. Os mesmos que apoiaram o governo Aluízio
Alvese tempos depois foram apontados como subversivos. Ao mesmo tempo
em que Aluízio rompeu com esses movimentos populares que o apoiaram em
1960, foi retomando as velhas práticas conservadoras e oligárquicas que tanto
tinha condenado durante a campanha eleitoral. O fato é que essa prática ainda
perdurou o suficiente, mostrando que no momento da desarticulação das Fren-
tes de Trabalho, nem uma relação em prol dessa massa de desempregados foi
tomada.

Considerações Finais
Estudar lugares de resistência e conflitos populares entre as décadas de 1960 e
1970 nos remete à observação de como tantos arranjos e desarranjos que com-
puseram essas ações, em grande parte do percurso, se atrelaram às imagens de
poder e autoridade por agentes que se sobrepuseram aos marginalizados.
A literatura memorial e acadêmica encontrada sobre esse período nos mos-
tra personagens oligárquicos e populistas, como é o caso de Aluízio Alves e
Constâncio Maranhão, considerados “tradicionais” cada um no seu respectivo
meio. Além disso, trata da modernização elaborada a partir dos investimentos
6
SUDENE começou dispensas nas “frentes de trabalho”. Diário de Natal, Natal, p. 4, 19
nov. 1970. Acesso em 17 ago. 2018.
7
SEM ANORMALIDADES, frentes de trabalho foram extintas. Diário de Natal, Natal, p. 1,
16 abr. 1971. Acesso em 17 ago. 2018.
152 Parnamirim, jan./jun. 2021

por parte da Aliança para o Progresso, mas também, nos mostra uma moderni-
zação meramente emergencial e paliativa.
Ainda dispomos de poucas fontes acessíveis onde possamos nos aprofundar
nos pormenores desse período. Porém, o que possuímos se faz suficiente para,
de início, ampliarmos a pesquisa de novas contribuições para essa literatura,
sempre problematizando dúvidas e aprimorando conceitos.

Referências
BARROS, V. G. G. A pobreza como estopim da revolução: análises sobre a
atuação da Aliança Para o Progresso em Pernambuco (1959–1964). 2017.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco,
Recife.
BLACK, J. K. A Penetração dos Estados Unidos no Brasil. Recife:
Massangana, 2009.
CASTRO, J. Sete palmos de terra e um caixão. Lisboa: Seara Nova, 1975.
DUARTE, R. S. (Org.). A seca de 1958: uma avaliação pelo ETENE. Fortaleza e
Recife: Banco do Nordeste e Fundação Joaquim Nabuco, 2002. v. 1. (Série
Estudos sobre as Secas no Nordeste).
FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France,
pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução:
Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 2012.
FURTADO, C. A fantasia organizada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
HOBSBAWM, E. A produção em massa de tradições: Europa, 1870 a 1914. In:
HOBSBAWM, E.; RANGER, T. (Org.). A invenção das tradições. Rio de
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NATIVIDADE, M. M. A Aliança para o Progresso no Brasil: influência
estadunidense na educação e pesquisa para o campo (1961–1970). 2018. Tese
(Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói.
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Rio de Janeiro: Record, 1972.
PEREIRA, H. A. A. R. Criar ilhas de sanidade: os Estados Unidos e a Aliança
para o Progresso no Brasil (1961–1966). 2005. Tese (Doutorado em História) –
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 153

. Os Estados Unidos e a Aliança para o Progresso no Brasil. In:


SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 24., 2007, São Leopoldo, RS. Anais.
São Leopoldo, RS: Unisinos, 2007. Disponível em:
<https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-
01/1548210562_6e029caab2e80377151564eb23c49db4.pdf>.
RELATÓRIODO Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS).
[S.l.: s.n.], 1976. Arquivo da Paróquia da Diocese de Caicó.
SEM ANORMALIDADES, frentes de trabalho foram extintas. Diário de
Natal, Natal, p. 1, 16 abr. 1971.
SUDENE começou dispensas nas “frentes de trabalho”. Diário de Natal,
Natal, p. 4, 19 nov. 1970.
THOMPSON, E. P. A história vista de baixo: folclore, antropologia e história
social. In: NEGRO A. L.; SILVA, S. (Org.). As Peculiaridades dos Ingleses e
outros artigos. Campinas: Unicamp, 2001.
THE TROUBLED land. Produção e direção de Helen Jean Rogers. Recife: ABC
Studios, 1961.

Recebido em 18 mar. 2021.


Aprovado em 13 abr. 2021.
O DIÁRIO DE NATAL
O papel da imprensa potiguar na circulação das notícias do Pro-
jeto Baixo-Açu (1975–1979)
Maiara Brenda Rodrigues de Brito1
RESUMO: O presente texto fala do uso da mídia local para a divulgação do Projeto Como referenciar?
BRITO, M. B. R. O Diário de
Baixo Açu, no Estado do Rio Grande do Norte. Considerando as possibilidades de aná- Natal: o papel da imprensa
lises históricas permitidas pela fonte jornalística, o presente trabalho faz uso do perió- potiguar na circulação das
notícias do Projeto
dico O Diário de Natal (1975–1979) para entender algumas informações e discursos que Baixo-Açu (1975–1979).
circularam sobre o projeto modernizador, que objetivava combater às secas dos sertões Revista Galo, n. 3, p.
155–168, 17 jul. 2021
do Estado potiguar. Metodologicamente, o trabalho fundamenta-se na revisão da lite-
ratura, de cunho acadêmico e regional sobre o Projeto Baixo Açu, incluindo a seleção
de textos sobre modernidade e sertões. Houve a consulta online do periódico O Diário
de Natal e tudo será analisado via Análise do Discurso.
Palavras-chave: Periódicos. Discurso. Modernidade.

O DIÁRIO DE NATAL
The role of Rio Grande do Norte press in the circulation of news
of Baixo-Açu project (1975–1979)

ABSTRACT: This text talks about the use of local media for the dissemination of
Baixo-Açu project in the state of Rio Grande do Norte. Considering the possibilities
of historical analysis allowed by the journalistic source, the present work makes use
of the newspaper O Diário de Natal (1975–1979) to understand some information and
speeches that circulated about the modernizing project that aimed to combat drought in
the backlands of the state of Rio Grande do Norte. Methodologically, the work is based
on a literature review of academic and regional nature about the Baixo-Açu project,
including the selection of texts about modernity and backcountry. There was an on-
line consultation of the journal O Diário de Natal and everything will be analyzed via
Discourse Analysis.
Keywords: Periodical. Speech. Modernity.

1
Mestranda em História dos Sertões (UFRN-CERES, Caicó). ID Lattes: 7133.7861.6580.5891.
ORCID: 0000-0003-3708-6533. E-mail: maiara.brendaaa@hotmail.com.

155
156 Parnamirim, jan./jun. 2021

Introdução

O jornal é um importante meio de comunicação social, pois apresenta diferentes


informações ao leitor como: economia, política, educação, anúncios, assuntos
populares e policias. Os periódicos foram reconhecidos como fonte histórica a
partir de um movimento crítico e intelectual promovido pela Escola do Anna-
les2 , durante o século XX. No Brasil até 1970, poucos trabalhos utilizavam desse
material como fonte para discutir a história nacional.
As primeiras experiências do uso dos jornais, enquanto fonte primária, fo-
ram marcadas por desconfianças. Havia uma preocupação por parte dos es-
tudiosos no tocante à qualidade do material oferecido por essas fontes. Não
sabiam até que ponto esses periódicos sofriam intervenções e pronunciavam os
interesses de instituições, grupos econômicos, financeiros e governamentais.
O século XX marcou um período de grande mudança para imprensa. O apri-
moramento das técnicas permitirá a profissionalização dos jornais e a agilidade
na impressão, bem como o barateamento dos mesmos. Houve modificação na
distribuição dos conteúdos, na estruturação das produções e surgiu a necessi-
dade de mão de obra especializada como “repórteres, desenhistas, fotógrafos,
articulistas, redatores, críticos, revisores, além dos operários encarregados da
impressão propriamente dita” (LUCA, 2005, p. 138). Em síntese, os aspectos fí-
sicos dos jornais foram modificando-se ao longo do tempo. A estruturação e
divisão de conteúdo, as relações com a publicidade, mercado e público também
são mutáveis, tendo em vista os objetivos a serem alcançados. Desta forma,
vemos que as “condições materiais e técnicas em si são dotadas de historici-
dade, mas que se engatam a contextos socioculturais específicos” (LUCA, 2005,
p. 138).
Com o avanço do tempo, verifica-se a importância dos jornais para o enten-
dimento de novos objetos de estudos. Temos a apropriação de textos literários
para a abordagem de assuntos sociais diversos, inclusive para veiculação de
ideia de luta. Além de “gênero, etnia, raça, identidade, modos de vida, experi-
ência e prática políticas cotidianas, formas de lazer” (LUCA, 2005, p. 119–120),
esse recurso servia como “veículo privilegiado para divulgar seus manifestos”
(LUCA, 2005, p. 125), fossem esses políticos ou sociais. Verificamos que é ne-
cessário associar cada material e produção ao seu contexto. Assim como é obri-
gatório problematizar aspectos como os recursos econômicos e tecnológicos
disponíveis.

2
Lapuente (2016) aponta que a partir de 1930 a Escola do Annales faz críticas à concep-
ção de que os jornais eram inadequados para o estudo do passado. A terceira geração dessa
corrente historiográfica abraçou os novos aportes teóricos e abriu oportunidades para novas
contribuições documentais, como os periódicos.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 157

Considerando as possibilidades de análises históricas permitidas pela fonte


jornalística, optamos pelo uso do periódico potiguar O Diário de Natal para
entender algumas informações que circularam sobre um evento que ocorreu no
interior do Rio Grande do Norte, a implantação do Projeto Baixo Açu.
O Projeto Baixo-Açu foi uma política pública modernizadora3 , direcionada
para a microrregião do Vale do Açu4 , interior do Estado do Rio Grande do Norte,
que objetivava amenizar as consequências dos ciclos de estiagens do interior
do estado. A ideia da construção da barragem Armando Ribeiro Gonçalves,
remonta a primeira metade do século XX, quando em 1937, o atual DNOCS au-
torizou o início de estudos para a identificação de um espaço apropriado para
tal obra. Em 1971, o vale do Açu foi o espaço indicado para a instalação da
barragem. No entanto, o projeto Baixo-Açu saiu do papel somente em 13 de ju-
lho de 1975, com o Decreto de número 76.046, durante o governo do presidente
Ernest Geisel.
Dividido em três etapas, essa ação implicou no barramento do leito do rio
Piranhas-Açu5 .A primeira fase do projeto, consistia na construção da barragem
Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves, que atualmente é o maior reservatório
artificial do estado. A segunda etapa caracterizaria a implementação de um
programa de irrigação, e a terceira seria a instalação de um espaço voltado para
atividades pesqueiras nas águas represadas.
A construção da barragem foi realizada entre os anos de 1979 e 1983, a sua
inauguração contou com presença de consideráveis políticos do Estado e com o
presidente da República da época, João Batista de Figueiredo6 . Como notabili-
zava o projeto, algumas cidades foram atingidas e tiveram comunidades rurais
inundadas, é o caso de Jucurutu, Açu e Ipanguaçu. A cidade de São Rafael, além
de sofrer com a inundação dos espaços rurais, vivenciou a deslocamento do seu
núcleo urbano. A execução desse projeto trouxe efeitos múltiplos aos indiví-
3
A ideia de política pública modernizadora dentro deste estudo, parte das discussões de
Andrade (2007). Esta pensa as intervenções no espaço citadino de Caicó, cidade localizada no
interior do Rio Grande do Norte, por meio da eletricidade, automóvel, imprensa. Em período
correlato que Caicó buscava transforma-se, inspirado em grandes centros urbanos nacionais
e internacionais, presenciava a permanecia de velhos costumes dado pelas secas e presença
dos flagelados. Dessa forma, a modernização pensada para o Baixo-Açu é aquela que traduz o
combate contra às secas no Nordeste por meio de intervenções espaciais realizadas pelos órgãos
IOCS, IFOCS, DNOCS.
4
A microrregião do Vale do Açu, fica localizada na mesorregião Oeste Potiguar e é composta
por nove municípios: Assú, Alto dos Rodrigues, Itajá, Ipanguaçu, Jucurutu, Pendências, Porto
do Mangue e São Rafael.
5
O rio Piranhas/Açu, nasce na Serra do Bongá, município de Bonito de Santa Fé, Estado da
Paraíba, e desemboca no município de Macau, litoral do Rio Grande do Norte. Seus principais
afluentes são: rios Espinhara, Picuí e Seridó.
6
Souza (2011) e Pinheiro (2018) apontam o referido recorte de tempo, para a construção da
barragem.
158 Parnamirim, jan./jun. 2021

duos e espaços afetados, havendo assim a necessidade de compreender fatos


específicos que tangem esse contexto que marcado por profundas discursões e
incertezas.
Baseando-se na Análise do Discurso, o referido trabalho analisa publicações
de cunho acadêmico e regional que investigam a temática Projeto Baixo Açu.
O objetivo dessa pesquisa é pensar a circulação das notícias sobre essa obra e
entender que tipo de discurso7 era veiculado pelo periódico O Diário de Natal.
Também analisaremos as ideias modernizadoras lançadas para o Vale do Açu,
buscando entender que tipo de sertão8 era apresentado por esse jornal.

Desenvolvimento

Desde do início do século XX, o Vale do Açu foi objeto de estudos9 que inves-
tigavam as condições do solo semiárido brasileiro. Procuravam espaços que
possibilitassem intervenções hídricas e que ajudasse no combate à seca, ques-
tão essa que ainda é considerado um dos maiores problemas nacionais, com
destaque para a região Nordeste. Identificado a condição do solo favorável ao
aproveitamento da agropecuária e reconhecido como um celeiro econômico no
interior no estado10 , o Vale do Açu passou a ser alvo de políticas públicas ao
longo do tempo.

7
Conceito discutido a partir da obra de Foucault (2002). O texto retrata uma aula inaugural
realizada no dia 2 de dezembro de 1970 no Collége da França. Fala sobre o discurso, como esse
é construído, interpretado e repassado dentro de uma instituição e/ou meio social. O autor
aponta que o discurso é um elemento marcado por controle, seleção, organização e distribuído
por meio de procedimentos que procura conservar seus interesses e fugir dos perigos. Também
lembra que esses procedimentos de interdição estão relacionados ao desejo e poder.
8
O conceito de Sertão será discutido a partir de reflexões e autores como Amado (1995);
Moraes (2003) e Neves (2003), e versará sobre os aspectos simbólicos e ideológicos, desenvolvido
ao longo do tempo, que pensa esse termo como categoria espacial, referenciando regiões e
espaços marcados pela pobreza, seca e carentes de intervenções modernizadoras.
9
Em seus estudos, Pinheiro (2018) aponta que em 1910 o IOCS publicou as investigações do
geólogo e engenheiro Roderic Crandall sobre o Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Esse do-
cumento referência a bacia Piranhas-Açu e caracteriza um dos primeiros estudos sistemáticos,
sob a responsabilidade do IOCS que falou sobre o Vale do Açu. O engenheiro Crandall apontou
aquele espaço como um lugar potencialmente irrigável. Afim de entender cientificamente os
sertões, a IOCS também contratou o engenheiro hidrólogo Geraldo A. Warring. Este percorreu
o semiárido entre 1910 e 1912 e apontou duas áreas irrigáveis na bacia do rio Açu, a primeira
ao longo do curso do próprio rio Açu e o outro no vale que segue aos longos dos rios Piranhas
e do Peixe.
10
O reconhecimento do Vale do Açu, como um espaço propício para intervenções técnicas,
foi inicialmente apontado pelos estudiosos da IOCS, posteriormente retomada na década de
1930 pelos técnicos da IFOCS e por fim, pelos profissionais do DNOCS.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 159

Em 1910 a “Inspetoria de Obras Contra as secas (IOCS)11 publicou o primeiro


relatório técnico que incluía discussões a respeito da Várzea do Açu. A ideia,
entretanto, só viria a tomar corpo na década de 1940, com o projeto de constru-
ção da barragem de Oiticica” (PINHEIRO, 2018, p. 15). O projeto da barragem
de Oiticica foi germinado no final da década de 1930. Os estudos retomados
na região do Baixo Vale do Açu, objetivava definir o local para a construção
de um grande reservatório que auxiliasse na disciplinaridade do rio Piranhas.
Essa intervenção implicaria na garantia de água para todo o ano, combatendo
assim o período de estiagem, a violência das enchentes durante o inverno e in-
citaria a produção da agricultura baseada na irrigação. Em 21 de outubro de
1954 foi publicado um Decreto Presidencial de nº 36. 370, o mesmo indicava a
desapropriação de uma área de 143.063.500 m3 no município de Jucurutu, para
a construção de uma barragem.
O projeto da barragem de Oiticica foi interrompido “quer por falta de verbas,
quer pela mudança de abordagem do DNOCS, ou até pela falta de empenho dos
gestores públicos, e talvez por esses e mais outros conjugados, mas o interesse
pela irrigação do Vale do Açu nunca foi de todo abandonado” (PINHEIRO, 2018,
p. 130). Diante dos fatos, vimos outro surgir, o Projeto Baixo Açu e como já
mencionado, este previa a construção da barragem Armando Ribeiro Gonsalves,
próximo da cidade de Açu. Direcionado ao Vale do Açu, este projeto foi uma
política pública que ficou marcado por um discurso de caráter modernizador. O
mesmo objetivava amenizar as consequências dos ciclos de estiagens do interior
do estado e a construção do lago artificial que aconteceu entre 1979 e 1983.
Retomando a fonte principal do nosso estudo, o jornal O Diário de Natal,
vemos que os discursos que rodeiam o Projeto Baixo Açu, tocam os interesses
de instituições e carregam a carga simbólica construída para o sertão nordes-
tino ao longo do tempo, no tocante ao combate do atraso da região. A partir
deste periódico, analisaremos quais as principais notícias que circularam no Rio
Grade do Norte, durante o período de 1975 até 1980.
O Diário de Natal é um jornal potiguar que foi fundado em 1939. Inicial-
mente intitulado de “O Diário”, o mesmo teve como idealizadores Rivaldo Pi-
nheiro, Waldemar Araújo, Aderbal França e Djalma Maranhão. A partir de 1945,
o periódico passou a integrar o Diário Associados S/A12 e em 1947 teve o nome
modificado para “Diário de Natal”. O jornal circulou por mais 70 anos e in-
formava sobre fatos diversos. Por muito tempo, foi considerado uma grande
11
Criada no contexto do governo de Nilo Peçanha (1909-1910), a IOCS foi transformada em
1919 em Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) e posteriormente no de 1945 em
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS).
12
Diário Associados S/A é uma empresa de mídia da impressa fundada na década de 1920
no Brasil pelo jornalista Assis Chateaubriand. A trajetória desse grupo teve início quando Cha-
teaubriand adquiriu o impresso O jornal. Este circulava no Rio de Janeiro.
160 Parnamirim, jan./jun. 2021

referência editorial para diferentes áreas como administração pública, política,


economia, artes. O Periódico foi extinto em 2012, em razão da nova realidade
jornalística dada pela emergência da internet13 .
Acerca do projeto Baixo Açu, o periódico trouxe notícias diversas. Essas
tangiam todos os aspectos e falas dos envolvidos nesse evento que marcou a
história da açudagem do Rio Grande do Norte. Intitulado “DNOCS termina
projeto para irrigar Piranhas”14 a matéria do ano 1975, expõe aos seus leitores
o projeto em estudo. Constatamos a apresentação dos objetivos a serem alcan-
çados. A notícia decorre sobre o tempo de estudo, as ações que serão realizadas
pelo DNOCS, o tempo do processo e os benefícios oferecidos à população, como
emprego. A empregabilidade anunciada paira pelo processo de execução do
projeto e pelas atividades econômicas projetadas, como a agricultura irrigada e
o setor da psicultura.
No mesmo ano, é anunciado a implantação de seis grandes projetos para o
Estado que relacionava açudagem à agricultura irrigada. A edição 09870(1)15
afirmavam que todas as atividades pensadas para as cidades de Cruzeta, Pau
dos ferros, São João do Sabugi, Apodi, São Rafael e Ceará-Mirim estariam con-
cluídas no intervalo de quatro anos de 1975 até 1979. Focando no nosso assunto
principal que é o Projeto Baixo Açu, afirmamos que a execução do mesmo extra-
polou a data prevista, tendo em vista que a Nova São Rafael foi concluída no ano
de 1983. Vale lembrar que a realocação desse espaço citadino estava envolvida
no projeto principal. Os resultados destes, almejavam valores expressivos:

[. . . ]A barragem do Baixo-Açu terá 17 mil hectares irrigados,


com um volume de 2,3 bilhões de metros cúbicos d’água — duas ve-
zes a capacidade do Itans [. . . ] O projeto Cruzeta está em conclusão
no Vale de Piranhas [. . . ] O assentamento é de 24 famílias, devendo
produzir 910 toneladas de banana, 156 de laranja, 62 de alho, 312
de tomate, 195 de cebola 105 de feijão, 281 de milho, 232 de oleagi-
nosas, 20 de carne e 31 toneladas de leite. O projeto Ceará-Mirim
[. . . ] Serão irrigados 12 mil hectares para hortaliças, cereais e pas-
tagens. O Projeto Itans-Sabugi está em fase final de implantação e
será concluído em março de 1976. Vai ter uma área irrigada de 1.026
hectares, destinado a produzir 938 toneladas de uva, 805 de bana-
nas, 138 de laranja, 355 de tomate, 1076 de cebola. O projeto Pau
13
Informação extraída do site: http://ftp.editora.ufrn.br/handle/123456789/1
456?subject_page=10. Acesso em 29 out. 2020.
14
Acervo Digital da Biblioteca Nacional [BNDigital] — DNOCS termina projeto para irrigar
piranhas. Diário de Natal, Natal. p. 5. 9 jan. 1975.
15
BNDigital — DNOCS implantará seis grandes projetos no RN. Diário de Natal, Natal. p. 5.
19 jul. 1975.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 161

dos Ferros produzirá 222 toneladas de uva, 1860 de banana, 1040 de


cebola, 260 de laranja, 1040 de tomate, 650 de cebola, 1768 de milho,
num total de 8.938 toneladas de gêneros [. . . ]16

O Baixo Açu foi implantado durante um contexto político marcado por dis-
curso desenvolvimentista, que apontava para eficiência técnica e administração
moderna. Como fruto desses pensamentos surgiram uma série de programas e
planos para a sociedade brasileira, entre eles destacamos o II Plano Nacional de
Desenvolvimento17 . Implantado em 1975, este previa que até 1980, a sociedade
brasileira alcançasse um patamar de industrialização e modernidade. Defendia
que o desenvolvimento da sociedade, estaria atrelado à uma política de em-
prego, projetando o recebimento de salários, a elevação consumo e aumento da
economia. A qualificação da mão de obra seria dada por meio de educação e
treinamento profissional. Entre tantas ideias apresentadas e sensíveis ao nosso
estudo, a integração do Brasil ao mercado mundial para a exportação de produ-
tos manufaturados e primários, saltam os nossos olhos. Os produtos frutos dos
sistemas de irrigação seria para o consumo nacional e internacional, escoado
para fora do país, por meio desta relação econômica prevista.
A implantação desse projeto de açudagem no Rio Grande do Norte, rela-
ciona-se com o discurso da problemática da seca no Nordeste. Tema sensível
desse local, que possui a caatinga como vegetação predominante e está inserida
no contexto do clima semiárido. Pensar o sertão dessa região, é permear numa
categoria espacial, marcada por construções simbólicas e ideológicas. Durante
o século XIX, “sertão” assumiu duas significações, “um associado a ideia de se-
miárido; outra priorizando atividades econômicas e padrões de sociabilidade,
articulado à pecuária” (NEVES, 2003, p. 155–156). Ambos sentidos, traduzia
uma ideia espacial e passou a referenciar espaços do interior, desérticos e pouco
habitado.
Por caracterizar-se pela construção de um imaginário, o sertão reúne “um
conjunto de juízos e valores adaptáveis a diferentes discursos e a distintos pro-
jetos” (MORAES, 2003, p. 3) intervencionistas, sobretudo aqueles que defendem
a superação da “condição sertaneja” 18 . Desta forma, Morais afirma que, “o ser-
tão é qualificado para ser superado” (MORAES, 2003, p. 4). Diante do exposto,
vemos que a Barragem Armando Ribeiro Gonçalves traduzia essa ideia de su-
peração da seca do Nordeste.
16
BNDigital — DNOCS implantará seis grandes projetos no RN. Diário de Natal, Natal. p. 5.
19 jul. 1975.
17
Informação extraída de: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verb
ete-tematico/plano-nacional-de-desenvolvimento-pnd. Acesso em 30 out. 2020.
18
Ideia exposta por Moraes (2003) em discursão do texto “O sertão: um outro geográfico”.
162 Parnamirim, jan./jun. 2021

O uso da imprensa escrita é fonte importante para o estudo da sociedade,


como também para identificar os discursos que evocam o sertão. Em 1976, na
edição 10148(1)19 a implantação do setor de irrigação no Vale do Açu é nova-
mente noticiada. A repetição da informação denota a complexidade do projeto
que estava em andamento, mas também revela a necessidade de potencializar
um espaço fértil no sertão, o Vale do Açu. Desse modo, o Projeto Baixo-Açu re-
flete a ideia de modernização que os técnicos tinham para o sertão nordestino,
que era a açudagem junto ao setor de irrigação.

Paralelamente a construção da barragem, o DNOCS vai implan-


tar um projeto de irrigação com a finalidade se quadruplicar a pro-
dução hort-fruti-granjeira do Vale do Açu — um dos maiores vales
secos mais produtivos do Nordeste. Ontem à noite em Açu, técni-
cos do DNOCS e da Secretaria de Trabalho explicaram os objeti-
vos do projeto aos agricultores da região. O projeto denominado
“Baixo-Açu” — desapropriação de terras, construção de barragem e
implantação de um programa de irrigação-está orçado em Cr$ 720
milhões, segundo informações do ministro do Interior, Sr. Rangel
Reis, quando esteve pela última vez no Estado. Será um dos maiores
projetos do Governo Federal na região nordestina.20

O sertão é um lugar assinalado por um conjunto de discursos. Esses ele-


mentos de anunciações, são marcados por controle, seleção, organização e é
distribuído por meio de procedimentos que procuram conservar seus interes-
ses e fugir dos perigos. Esses procedimentos de interdições, estão relacionados
ao desejo e poder. Por vezes, esses mecanismos são perceptíveis na mídia, pois
os jornais se adequam ao contexto histórico social no qual está inserido. Inti-
tulada “Ulisses critica projeto do Açu e pede mudanças”21 , em 1977 vemos um
posicionamento crítico a esse projeto, essa notícia evidenciou no Diário de Na-
tal pontos negativos que atingiria parte da população.
Ulisses Potiguar22 , na época deputado do Rio Grande do Norte e membro da
19
BNDigital — Diretor do DNOCS vai dizer tudo que será feito no vale do Açu. Diário de
Natal, Natal. p. 8. 24 set. 1976.
20
Ibidem.
21
BNDigital — Ulisses critica projeto do Açu e pede mudanças. Diário de Natal, Natal. p. 13.
1 nov. 1977.
22
Ulisses Bezerra Potiguar, nasceu em Parelhas (RN) e foi deputado federal entre 1975 até
1979. Filiou-se à Aliança Renovadora Nacional (Arena), após contexto da extinção dos partidos
políticos através do Ato Institucional n° 2 e instauração do bipartidarismo. Informações extraí-
das do site: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico
/ulisses-bezerra-potiguar. Acesso em 2 nov. 2020.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 163

Arena23 , proferiu um discurso na Câmara Federal, mostrando-se contrário ao


modo como estava acontecendo a implantação do Projeto Baixo Açu. Sua fala
evidenciou problemas sociais graves que ocorreriam com o implante do Baixo
Açu, caso não houvesse reformulações. Este dizia que parte do espaço afetado
seria transformado em minifúndios, “seguramente antieconômicos”.
Ulisses Potiguar defendia mudanças no projeto como “o aproveitamento dos
reservatórios já existentes na região: Mendubim, Piató, Ponta Grande, com 400
mil metros cúbicos, além do grande lençol freático, na extensão de 30 quilô-
metros em centenas de poços em funcionamento com 16 mil metros cúbicos
horários”. O mesmo afirmou que essas revisões implicariam na redução de uma
série de problemas como: destruição de fruteiras, carnaubeiras, erosão do solo,
destruição de cidades e habitações, entre outros. Vale pensar que o discurso
do deputado em análise é significativo aos estudos que envolvem a temática do
Projeto Baixo Açu, pois parte das problemáticas previstas por ele, são pontos
de partida para entender reflexos negativos deste projeto. Vejamos:

Com esta reivindicação aceita, afirmam os colonos, evitaria um


problema social mais extenso; destruição de cidades e habitações,
construídas em padrões modernos; a destruição de milhares de fru-
teiras já produzindo e exportando somas vultuosas e a erradicação
de milhões de carnaubeiras, produzindo anualmente cerca de um
milhão e 200 mil quilos de cera de quatro tipos, exportando, cri-
ando divisas, dando emprego durante seis meses, acima do salário
local a 60 por cento do vale. A medida evitaria também problemas
de erosão; deslocamento sem destino de 30 mil cabeças de animais,
bovinos, ovinos, caprinos, cavalares e muares; desabrigo a 70m por
cento da população, acima de 70 50 anos de idade e abaixo de 18,
nos dois sexos; submersão das jazidas de mármore e o prejuízo aos
direitos humanos. Ulisses Potiguar concluiu seu pronunciamento
na Câmara afirmando não possuir propósitos contestatórios: “estou
demostrando apenas minha viva repulsa a esses métodos e princí-
pios, esperando que as reivindicações dos meus conterrâneos sejam
atendidas pelas autoridades responsáveis desses Projeto tão danoso
aos interesses as regiões.”24
23
Partido intitulado de Aliança Renovadora Nacional (Arena). O mesmo era de caráter con-
servador e de sustentação ao regime militar brasileiro, que foi instalado no país em abril de
1964. Informações extraídas do site: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/
verbete-biografico/ulisses-bezerra-potiguar. Acesso em 2 nov. 2020.
24
BNDigital — Ulisses critica projeto do Açu e pede mudanças. Diário de Natal, Natal. p. 13.
1 nov. 1977.
164 Parnamirim, jan./jun. 2021

Os jornais possuem relação de poder. Eles estão imbricados com o público


e por isso são formadores de opinião pública. Por esse motivo, nem sempre
apresentam todas as informações que envolvem determinados fatos. Em abril
do ano 197825 foi divulgado a concorrência para a construção da primeira etapa
para execução do Projeto Baixo Açu. Segundo as notícias, várias firmas na-
cionais e internacionais estavam concorrendo à vaga. “A firma vencedora da
concorrência pública, arcará com financiamento total da obra, cuja barragem
terá altura máxima de quarenta metros, inundando quarenta mil hectares de
terra.”26
Os procedimentos que envolveram o concurso para a construção do reser-
vatório foram suspensos por um “mandado de segurança impetrado pelas cons-
trutoras Empresa Industrial Técnica S/A (EIT) e Queiroz Galvão, eliminadas do
julgamento na segunda etapa.”27 Segundo o noticiário, essas teriam sido eli-
minadas “na abertura dos envelopes contendo proposta técnicas e, insatisfeitas
com o resultado, que beneficiou e a firma mineira Andrade Gutierez.”28 Esse
evento implicou no retardamento do início da obra, pois:

De acordo com as declarações de João Batista Marques de Souza,


diretor geral adjunto do Departamento Nacional de Obras Contra
as Secas (DNOCS), responsável pela obra, não existia ainda uma
previsão para a conclusão da concorrência, vez que a comissão de
licitação está aguardando a decisão judicial, já tendo enviado res-
postas à perguntas formuladas pelo juiz. As construtoras foram
eliminadas na abertura dos envelopes contendo proposta técnicas
e, insatisfeitas com o resultado, que beneficiou e firma mineira An-
drade Gutierez, resolveram unir-se, impetrando o mandado de se-
gurança. Para João Batista M Marques de Souza, realmente a firma
mineira seria beneficiada com a eliminação antecipada de suas con-
correntes, afirmando: “pelo menos a idéia que se tem aqui é esta”.
Enquanto o problema não se resolve, diminui cada vez mais a pos-
sibilidade de a obra ser construída dentro do prazo previsto.29

O ano de 1979 foi marcado por diversos debates que envolveu a construção
do reservatório. Parte desses questionamentos e resistência, saíram de gru-
25
BNDigital — Concorrência para barragem do Açu será esta semana. Diário de Natal, Natal.
p. 4. 11 jul. 1978.
26
Ibidem.
27
BNDigital — Barragem do Açu: Conclusão da concorrência agora depende da justiça. Diá-
rio de Natal, Natal. p. 4. 19 jul. 1978.
28
Ibidem.
29
BNDigital — Concorrência para barragem do Açu será esta semana. Diário de Natal, Natal.
p. 4. 11 jul. 1978.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 165

pos defensores dos indivíduos diretamente afetados pelas realocações e inde-


nizações, em virtude do alagamento da área habitada. A igreja católica do Rio
Grande Norte foi um dos principais órgãos atuantes nessa luta, sobretudo nas
causas que envolviam a cidade de São Rafael30 , espaço citadino totalmente rea-
locado em virtude da construção da barragem.
Na edição 10649(1)31 , o chefe do 1º Distrito de Engenharia Rural do DNOCS,
Carlos Queiroz afirmou que a construção do reservatório era irreversível e que
“com Mario Andreazza à frente do Ministério do Interior ninguém vai impedi-
la”. Mas uma vez, constatamos a dominação sobre esse espaço, pois “ultrapassar
a condição sertaneja é a meta implícita dos discursos que buscam levantar e
explicar a sua essência” (MORAES, 2003, p. 4).
Nesse ano podemos ver o tamanho da força e interesse dos grupos que es-
tavam à frente da implantação do Baixo Açu. Em entrevista, Carlos Queiroz
apontou que o governo federal estaria presente na obra, por meio de uma co-
missão executiva nomeada pelo Ministro do Interior, Mario Andreazza. Esse
grupo seria formado pelo “engenheiro Eldan Veloso (presidente) Carlos Quei-
roz, (substituto do presidente) e outro engenheiro do DNOCS, [que] montaria
um escritório em Natal”32 , afim de facilitar o trabalho da comissão que seria fis-
calizar e supervisionar a obra. Desse modo, o Diário de Natal também noticiou
a formação de uma comissão executiva para as obras da Barragem Armando
Ribeiro Gonçalves e pontuou as novas estimativas de custos para a realização
da mesma. Vejamos:

[. . . ] uma comissão executiva nomeada pelo Ministro do Inte-


rior, Mario Andreazza, em entrevista coletiva realizada na tarde de
ontem, no 4º andar do Edifício Café Filho, nas Rocas, Carlos Quei-
roz acrescentou ainda que dentro de 30 dias deverá ser dado início
à construção da Barragem Armando Ribeiro Gonsalves, a cargo da
empresa “Andrade Guiterez”, de Minas Gerais. O prazo de con-
clusão é de três anos e custo de estimativo fica de 1 bilhão e 400
milhões de cruzeiro incluído o projeto de irrigação, colonização e
indenização das terras, desapropriadas pelo DNOCS.
Uma comissão executiva, nomeada pelo Ministro do Interior,
estará em Natal na próxima semana para supervisionar e fiscali-
zar a execução do projeto de irrigação no Rio Grande do Norte. A
comissão terá todos os poderes sobre o andamento das obras da
30
A cidade de São Rafael foi totalmente realocada no ano 1983. A cidade foi totalmente
construída e era citada no jornal como Nova São Rafael.
31
BNDigital — DNOCS reafirma que barragem vem mesmo. Diário de Natal, Natal. p. 7. 13
jan. 1979.
32
Ibidem.
166 Parnamirim, jan./jun. 2021

Barragem Armando Ribeiro Gonsalves e uma verba de 400 milhões


de cruzeiro já está liberada para o início dos trabalhos[. . . ]33

A circulação das notícias sobre as etapas da execução do Projeto Baixo-Açu,


era de suma importância para todos os envolvidos. Pois informava a população
sobre os trâmites da obra e auxiliava na ratificação de ideias como a de supe-
ração dos problemas das secas por meio de intervenções técnicas. Desse modo,
as notícias também serviram para evacuar discursos sobre a referida obra.
A construção do discurso manifesta a necessidade de mostrar uma verdade,
e a propagação do mesmo é conduzido por forças, interesses e instituições. As-
sim, é necessário atentar para o espaço de atuação dos periódicos, considerando
aspectos como contextos sociais e políticos que envolvem o Estado e o País.
Dessa forma, Foucault (2002) nos lembra que a política é um tema sensível, e o
modo como o mesmo é abordado, pode gerar fortes impactos no âmbito social.
Considerando a temática em estudo, vemos que as notícias dadas pelo Diário de
Natal sobre o Projeto Baixo-Açu, causavam ebulição no meio social, sobretudo
no Vale do Açu, espaço diretamente afetado pelas intervenções.

Considerações finais
A mídia transforma fatos sociais em notícias. O profissional dessa área é res-
ponsável por organizar seu espaço de fala atendendo critérios como: contexto
sociopolítico, postura política, ética profissional e o principal, seu público alvo,
o leitor. Para todo modo, os jornais e os seus profissionais, exercem papeis fun-
damentais na sociedade, pois apresentam e discutem os mais variados temas
que tocam o cotidiano das pessoas.
Os jornais impressos foi um dos veículos de comunicação mais utilizados
pela sociedade, durante o período estudado. Através do Diário de Natal, a popu-
lação potiguar teve acesso as notícias diversas a respeito da execução do Projeto
Baixo-Açu. Além dos interesses políticos, a população pôde manifestar as suas
dificuldades e frustações no decorrer da execução da mesma.
Enquanto fonte histórica para a temática vimos que foi possível detectar os
discursos que tocam o sertão, enquanto uma categoria simbólica, imaginária
e geográfica, carregada de estereótipos. O sertão do Rio Grande do Norte, es-
pecificamente a região do Vale do Açu, era um espaço fértil dentro do espaço
potiguar, que passou por estudos para ser potencializado. Projetaram assim, a
superação da condição sertaneja de espaços circundantes ao rio Piranhas-Açu
33
BNDigital — DNOCS reafirma que barragem vem mesmo. Diário de Natal, Natal. p. 7. 13
jan. 1979.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 167

através da açudagem e perenização do curso da água do mesmo. Assim, a con-


dição discursiva desses enredos configurava-se por apresentar uma estrutura
moderna no sertão potiguar.

Referências
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168 Parnamirim, jan./jun. 2021

WEBER, D. M. Metodologia para pesquisa em imprensa: experiências através


d’O Paladino. Signos, Lajeado, RS, v. 33, n. 1, p. 9–21, 2012.

Recebido em 15 mar. 2021.


Aprovado em 15 abr. 2021.
COMEMORAR A POSSE DE THOMAZ DE ARAÚJO
A construção de um lugar para o Seridó na memória histórica do
Rio Grande do Norte
Bruno Balbino Aires da Costa1
RESUMO: O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte foi criado no Como referenciar?
COSTA, B. B. A.
início do século XX, com o objetivo precípuo de construir um lugar para o estado na Comemorar a posse de
memória nacional. Uma das estratégias utilizadas pelos sócios da referida agremiação Thomaz de Araújo: a
construção de um lugar
para a consecução desse projeto foi o de organizar e promover diversos atos comemo- para o Seridó na memória
rativos. Uma das datas celebradas foi o primeiro centenário da posse constitucional histórica do Rio Grande do
Norte. Revista Galo, n. 3,
do capitão Thomaz de Araújo Pereira, no cargo de primeiro presidente da província. p. 169–182, 17 jul. 2021
Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo analisar as condições de emergên-
cia desse ato comemorativo levado a cabo pela agremiação, evidenciando a topografia
de interesses envolvidos nessa engenharia memorialística. Parte-se da hipótese de que
os elementos políticos presentes no interior do instituto, e, também, fora dele, foram
fundamentais para a conformação desse arranjo comemorativo.
Palavras-chave: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Memória.
Comemoração.

CELEBRATING THE INAUGURATION OF THOMAZ DE ARAÚJO


The building of a place for Seridó in the historical memory of Rio
Grande do Norte

ABSTRACT: The Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte was created in
the early twentieth century, with the primary objective of building a place for the state
in national memory. Among the strategies used by that institute for the achieve their
goal was to organize and promote various commemorative acts. One of the dates cele-
brated was the first centenary of the constitutional inauguration of Captain Thomaz de
Araújo Pereira as the first president of the province. In that sense, this article aims to
analyze the emergency conditions of that commemorative act carried out by the asso-
ciation, showing a topography of interests involved in that memorialistic engineering.
1
Doutor em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (PPGH/UFRGS). Professor do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia
do Rio Grande do Norte (IFRN), campus Canguaretama. ID Lattes: 6237.2531.8338.2621. ORCID:
0000-0003-3538-182X. E-mail: bruno.aires@ifrn.edu.br.

169
170 Parnamirim, jan./jun. 2021

We start with the hypothesis that the political elements present in the institute, and
outside, were fundamental on shaping this commemorative arrangement.
Keywords: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Memory. Com-
memoration

Introdução
Thomaz de Araújo Pereira nasceu na região do Seridó, mais precisamente, no
atual município de Acari em 1765, e ali faleceu em 1847 (LYRA, 1921, p. 815).
Descendia de um dos primeiros povoadores que — vindos da Borborema, na
Paraíba, no começo do século XVIII — povoaram a região de Acari2 . Seu avô, o
português, Thomaz de Araújo Pereira, o primeiro dos três homônimos, fundou
a fazenda de São Pedro em Acari, formando uma numerosa descendência que,
mais tarde, consolidou-se como uma elite agrária do sertão do Rio Grande do
Norte (MACEDO, 2012, p. 53). Thomaz de Araújo Pereira, o neto, adveio dessa
elite rural do sertão norte-rio-grandense, a qual, via de regra, compôs a própria
aristocracia política da região (MACEDO, 2012, p. 53). Como corolário do sta-
tus econômico e político da sua família, Thomaz de Araújo Pereira foi investido
com uma patente militar das milícias, tornando-se, em 1799, tenente, e pro-
movido, posteriormente, a capitão-mor da Primeira Companhia de Cavalaria de
Ordenança da Vila do Príncipe, hoje município de Caicó, em 1806 — “itinerário
social comum à linhagem rica dos fazendeiros seridoenses.” (MACEDO, 2012,
p. 54).
Em 3 de dezembro de 1821, Thomaz de Araújo Pereira foi eleito como um
dos membros da primeira Junta governativa da província do Rio Grande do
Norte (LYRA, 1907, p. 224). Com a organização do estado nacional, logo após a
Independência do Brasil, Thomaz de Araújo Pereira foi nomeado presidente da
província em 25 de novembro de 1823. Todavia, o político seridoense adiou o
quanto pôde a cerimônia de sua posse, o qual se realizou apenas em 5 de maio
de 1824.3 Seu governo foi fugaz, durou apenas cinco meses. Tal efemeridade es-
tava diretamente relacionada ao cenário político muito turbulento na província
do Rio Grande do Norte desde a Revolução de 1817. As forças políticas da pro-
víncia estavam frequentemente em rota de colisão devido às ferrenhas disputas
pelo poder. Apesar do intento do presidente de província em promover a esta-
bilidade da ordem pública, Thomaz de Araújo Pereira não conseguiu amenizar
2
DISCURSO. . . (1923–1925, p. 180).
3
“Dependeria de um bom inverno a posse do primeiro presidente da Província do Rio
Grande do Norte. Para empreender a longa marcha — em torno de 60 léguas — a cavalo até
a capital, o provecto fazendeiro da ribeira do Acauã condicionava a viagem a Natal ao volume
abundante de capim para suas montarias.” (MACEDO, 2012, p. 51).
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 171

as desavenças entre os grupos políticos da província, levando as próprias tropas


de linha ignorarem sua autoridade. Consoante Tavares de Lyra, três meses de-
pois do início do seu governo, o batalhão de linha depunha na sua frente, o seu
commandante, João Marques de Carvalho, nomeado a 19 de fevereiro de 1824:
“esse acto era o prenuncio de maiores e mais lamentaveis perturbações.” (LYRA,
1907, p. 240) Não conseguindo dominar a anarquia, Thomaz Pereira de Araújo
demitia-se da presidência da província em 8 de setembro de 1824, retirando-se
para Acari. (LYRA, 1907, p. 240)
A despeito da efemeridade do governo de Thomaz Pereira de Araújo e de sua
pouca notabilidade política na presidência da província, o Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) decidiu comemorar o centenário da
sua posse. Diante disso, uma questão imperiosamente se coloca: o que explica
o interesse dos sócios do IHGRN em rememorar a posse de Thomaz Pereira de
Araújo? O presente artigo tem como objetivo analisar as condições de emer-
gência desse ato comemorativo levado a cabo pela agremiação, evidenciando a
topografia de interesses envolvidos nessa engenharia memorialística. Parte-se
da hipótese de que os elementos políticos presentes no interior do IHGRN, e,
também, fora dele, foram fundamentais para a consecução desse arranjo come-
morativo.

O significado político da comemoração

O IHGRN foi criado em 29 de março de 1902, com o objetivo precípuo de cons-


truir a memória histórico do Rio Grande do Norte.4 Para isso, lançou mão de
três estratégias: a escrita da História, a biografia e a comemoração. Para atender
aos interesses específicos deste artigo, dedicarei, apenas, a essa última.
A comemoração estava na ordem do dia do IHGRN. Segundo o estatuto da
instituição, especificamente, em seu artigo 59, capítulo 10, cabia aos sócios do
sodalício “solemnizar qualquer data historica” (ESTATUTOS. . . , 1903, p. 22). Ao
longo primeiros 25 anos de sua existência, o IHGRN organizou a comemoração
dos centenários de nascimento de Duque de Caxias e de D. Pedro II, o 89º e
100º aniversários do fuzilamento de Frei Miguelinho e os centenários da Revo-
lução Republicana, da Independência nacional e a posse do presidente Thomaz
de Araújo. De certa forma, cada ato comemorativo refletia um conjunto de inte-
resses específicos que atendia as demandas políticas e sociais requeridas pelas

4
Cf. COSTA, B. B. A. “A casa da memória norte-rio-grandense”: o IHGRN e a constru-
ção do lugar do Rio Grande do Norte na memória nacional (1902–1927). 2017. Tese (Doutorado
em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre
172 Parnamirim, jan./jun. 2021

instituições governamentais do Rio Grande do Norte e do Brasil 5 . Com a co-


memoração da posse de Thomaz de Araújo não foi diferente.
No dia 13 de abril de 1924, o presidente do IHGRN, Pedro Soares de Araújo,
resolvera convocar uma sessão extraordinária para deliberar acerca da come-
moração do 1º centenário da posse constitucional do capitão Thomaz de Araújo
Pereira, no cargo de primeiro presidente da província do Rio Grande do Norte
(ACTA. . . , 1923–1925, p. 264). Para justificar a comemoração, Nestor Lima con-
siderava que o Rio Grande do Norte, a exemplo de outros estados, deveria ce-
lebrar o início de sua existência constitucional como parte integrante da nação
brasileira (ACTA. . . , 1923–1925, p. 265). É preciso ressaltar que rememorava-se
a data de criação da primeira Constituição do país, outorgada pelo imperador D.
Pedro I, em 1824, apesar de tê-lo feito de modo autoritário, e que essa celebra-
ção fez parte da “onda comemoracionista” que invadiu o país, especialmente, na
década de 20, com os eventos comemorativos dos centenários da Independência
do Brasil em 1922, e o do natalício de D. Pedro II, em 1925. No início da década
de 1920, a memória imperial já não representava mais uma ameaça ao regime
republicano (RODRIGUES, 2013). Nesse período, nenhum intelectual e/ou polí-
tico cogitava a pertinência de uma restauração monárquica: “No Brasil de 1922,
o Império era uma nostalgia, jamais um projeto.” (ENDERS, 2014, p. 339). O fim
do banimento da família imperial e a transladação dos restos mortais do impe-
rador D. Pedro II e de Tereza Christina para o país, nos anos 20, significavam, ao
mesmo tempo, que a memória monárquica não representava mais risco algum
e o regime republicano poderia, de agora em diante, reintegrar o passado mo-
nárquico à memória nacional, “fortalecendo, simbolicamente o próprio ideário
republicano.” (SANDES, 2000, p. 193).
Com efeito, a celebração da posse de Thomaz de Araújo Pereira tinha uma
certa ligação com o comemoracionismo em torno da Constituição de 1824, mas
não era apenas isso. Para os sócios do IHGRN, a questão dizia respeito a algo
que ia além da semântica da representação política de 1824.
O interesse em comemorar a posse constitucional de Thomaz de Araújo
possuía um significado simbólico importante para o IHGRN, uma vez que a ce-
lebração era uma forma de rememorar a origem do estado como uma unidade
federativa independente, já que antes da emancipação do Brasil, o Rio Grande
do Norte era uma capitania submetida a Paraíba, juridicamente, e a Pernam-
buco, economicamente e politicamente. Para todos os efeitos, comemorar o
primeiro governo constitucional do Rio Grande do Norte e a posse do seu pri-
meiro presidente significavam celebrar sua autonomia política. (DISCURSO. . . ,

5
Cf. COSTA, B. B. A. “A casa da memória norte-rio-grandense”: o IHGRN e a constru-
ção do lugar do Rio Grande do Norte na memória nacional (1902–1927). 2017. Tese (Doutorado
em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 173

1923–1925, p. 176). Contudo, a comemoração possuía também um significado


político.
Na década de 20, políticos do Seridó, especificamente, José Augusto Bezerra
de Medeiros e Juvenal Lamartine6 , ascenderam ao governo do estado. Desde
o início dos anos 10, os coronéis do Seridó já despontavam como forças políti-
cas em ascensão no Rio Grande do Norte, representando, inclusive, a principal
contraposição à oligarquia Albuquerque Maranhão. (MACEDO, 2012, p. 209).
Esta emergência dos coronéis do Seridó no cenário político estadual foi possí-
vel graças ao enriquecimento das elites agrárias da região ligadas à produção
algodoeira.
A Primeira Guerra Mundial possibilitou um reordenamento na economia
do Rio Grande do Norte. Nas décadas de 10 e 20, o maior volume de riqueza do
estado provinha do setor da cotonicultura, sendo a região do Seridó a principal
produtora do algodão do Rio Grande do Norte (SPINELLI, 1996, p. 50). O cres-
cimento econômico da cotonicultura implicou diretamente no fortalecimento
político dos coronéis da região, doravante, interessados em assumir a liderança
do governo estadual.
Em 1913, o grupo dos Albuquerque Maranhão articulava-se para, mais uma
vez, indicar um candidato que estivesse diretamente ligado aos interesses po-
líticos da oligarquia. Todavia, as lideranças políticas seridoenses, reunidas em
torno dos deputados José Augusto Bezerra de Medeiros e Juvenal Lamartine,
opuseram a articulação orquestrada pela família Albuquerque Maranhão, não
mais aceitando incondicionalmente a indicação proposta pelo último governa-
dor da oligarquia, Alberto Maranhão (MACEDO, 2012, p. 208). José Augusto
e Juvenal Lamartine orquestraram um acordo dos coronéis do Seridó em torno
da candidatura de Joaquim Ferreira Chaves, contrariando a indicação dos Al-
6
José Augusto Bezerra de Medeiros nasceu em 22 de setembro de 1884 no atual município
de Caicó-RN. Em 1903, José Augusto Bezerra de Medeiros bacharelou-se pela Faculdade de Di-
reito do Recife (FDR), ocupando cargos públicos de Procurador da República, Fiscal de Governo
Federal, diretor do Atheneu Norte-Rio-Grandense, Juiz de direito da comarca de Caicó, chefe de
Política Interino e Secretário de estado no governo de Ferreira Chaves. Exerceu, ainda, manda-
tos na política estadual, na condição de deputado federal de 1913 a 1923, senador da república
de 1928 a 1930 e na governadoria do Estado entre 1924 a 1927. Além de político, José Augusto
era um intelectual. Escreveu vários livros, tomando como tema central o Seridó. O seu com-
panheiro político, Juvenal Lamartine de Faria nasceu em 9 de agosto de 1874, no município de
Serra Negro do Norte. Estudou no Atheneu-Norte-Rio-Grandense e graduou-se em direito pela
FDR, em dezembro de 1897. Foi professor de geografia e vice-diretor do Atheneu Norte-Rio-
Grandense em 1898. Exerceu vários cargos na magistratura pública e na política do estado. Foi
juiz de direito, vice-governador do Rio Grande do Norte (1904–1906), deputado federal (1906),
senador da república (1927) e governador do estado (1928–1930). Assim como José Augusto, Ju-
venal Lamartine escreveu vários livros sobre o Seridó, tornando-se, ao lado de Manoel Dantas,
José Augusto, Oswaldo Lamartine, um dos grandes intelectuais que tomaram a referida região
como objeto de estudo. (MEDEIROS NETA, 2007).
174 Parnamirim, jan./jun. 2021

buquerque Maranhão (MACEDO, 2012, p. 208–209). Apoiado pela elite econô-


mica e política seridoense, Ferreira Chaves ganhou as eleições de 1913, adminis-
trando o estado entre 1914 a 1920, pondo fim a chefia dos Albuquerque Mara-
nhão no governo estadual. Com a vitória de Chaves, o grupo político seridoense
dava sinais claros de sua expressão no cenário político estadual.
Terminado o seu governo, Ferreira Chaves conseguiu emplacar a candida-
tura do seu sucessor, Antônio José de Mello e Souza, vitorioso no pleito de 1920.
Todavia, a vitória não representou a consolidação do grupo de Ferreira Cha-
ves no poder político do estado. Em 1923, o ex-governador não conseguiu dar
continuidade as suas pretensões políticas no governo executivo. Nesse ano, as
lideranças seridoenses articularam-se junto a Arthur Bernardes, o apoio à can-
didatura de José Augusto para o governo do Rio Grande do Norte, sepultando
as pretensões de Ferreira Chaves de mais um mandato (SPINELLI, 1996, p. 20).
Apoiado pelo presidente da República e pela coalisão de lideranças políticas do
Seridó, José Augusto Bezerra de Medeiros fora eleito em 1923, inaugurando,
ainda que por um tempo curto, a chefia seridoense no governo do Rio Grande
do Norte.7
Assim como o grupo Albuquerque Maranhão, José Augusto Bezerra de Me-
deiros utilizou-se do passado como uma forma de legitimação política. A come-
moração do centenário da posse de Thomaz de Araújo Pereira é um exemplo
disso. Em outras palavras, a celebração da posse do primeiro presidente da pro-
víncia do Rio Grande do Norte representou um uso político do passado.

A comemoração da posse de Thomaz de Araújo Pereira e os


usos políticos do passado
A comemoração do centenário teve como principal patrocinador o governo do
estado do Rio Grande do Norte que, como em outras ocasiões, delegou ao IH-
GRN a tarefa de organizá-la.8 É preciso acrescentar, ainda, que a celebração
contou com as expensas da intendência municipal de Natal, a qual era gover-
nada pelo letrado e político seridoense, Manoel Dantas. Os poderes executivos
do estado e da capital, dirigidos por seridoenses, estavam comprometidos em
agenciar a celebração do centenário de posse do ancestral político do Seridó.
A solenidade contou com uma sessão magna, realizada pelo IHGRN, no sa-
lão nobre do Palácio do governo, e com a afixação de uma placa de bronze,
7
José Augusto Bezerra de Medeiros governou o Rio Grande do Norte entre 1924 e 1927.
Posteriormente, conseguiu eleger o seu sucessor político, Juvenal Lamartine que governou o
estado entre 1928 e 1930, tendo sido deposto do poder devido à Revolução de 1930.
8
Além do governo do estado, a Intendência do município de Natal também colaborou com
o festejo. (O 1º CENTENARIO. . . , 1923–1925, p. 172–173).
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 175

contendo o nome da praça Thomaz de Araújo e as datas de 1824 e 1924 (O 1º


CENTENARIO. . . , 1923–1925, p. 172–173). As expensas da placa ficaram por
conta do poder público estadual e a nomeação do antigo largo fronteiro ao quar-
tel do exército para praça Thomaz de Araújo Pereira ficou a cargo da intendência
municipal da capital do estado (O 1º CENTENARIO. . . , 1923–1925, p. 172–173).
A inauguração da placa reuniu autoridades políticas do Rio Grande do Norte e
da capital, bem como representantes religiosos, militares e o povo, um ato de
“grande romaria cívica”, segundo os sócios do instituto (O 1º CENTENARIO. . . ,
1923–1925, p. 174). Como de praxe, após o desencerramento da bandeira, um
membro do IHGRN ficava responsável pelo pronunciamento do discurso em
alusão à celebração. O vice-orador da agremiação, Nestor Lima, encarregou-se
dessa empresa.
De antemão, Nestor Lima explicava aos seus ouvintes qual seria o enfo-
que do seu discurso: “devo fazer aqui tão somente a justificação do motivo por
que é este o local escolhido para guardar o nome e, mais tarde, o monumento
do valoroso patriarca seridoense” (O 1º CENTENARIO. . . , 1923–1925, p. 194).
Segundo Nestor Lima, a praça havia sido palco de um levante, ocorrido em se-
tembro de 1824, contra o presidente da província, Thomaz de Araújo Pereira.
Não conseguindo dissuadir a tropa de linha, o político seridoense resolveu re-
nunciar o poder em setembro daquele ano, voltando para a terra do seu berço,
Acari (O 1º CENTENARIO. . . , 1923–1925, p. 194). É interessante notar que a
praça é considerada como um marco não de luta, mas sim de renúncia. O que
se destaca é a resignação de Thomaz de Araújo Pereira em defender o seu posto
político. Para Nestor Lima, era dessa atitude do presidente de província que os
norte-rio-grandenses deveriam rememorar: “Foi na recordação desse gesto de
desprendimento que a Intendencia de Natal, atendendo ao appello do Instituto
Historico, deu o nome de «Thomaz de Araujo» á praça em que nos achamos”
(O 1º CENTENARIO. . . , 1923–1925, p. 195).
Com efeito, o discurso de Nestor Lima tinha como escopo reabilitar a ima-
gem de Thomaz de Araújo Pereira severamente criticada por Augusto Tavares
de Lyra. Em seu artigo Algumas notas sobre a história política do Rio Grande do
Norte, publicado, em 1907, pela revista do IHGRN, Tavares de Lyra havia afir-
mado que Thomaz de Araújo Pereira não era o nome mais indicado para go-
vernar a província naquela ocasião, em grande medida, por causa da sua idade
avançada, da sua cegueira e das “ligações politicas que tinha, fazendo-o partida-
rio intransigente, eram condições que contribuiam para não ser elle o preferido
naquella quadra de paixões exaltadas, de odios e de desejos de desforras” (LYRA,
1907, p. 240). Para Tavares de Lyra, a figura de Thomaz de Araújo Pereira era
impotente para promover a estabilidade da ordem pública na província (LYRA,
1907, p. 240). Somado a isso, a força armada, as tropas de linha, sobrepunha-se
à lei e a autoridade constituída. Nesse sentido, a ação de Thomaz de Araújo
176 Parnamirim, jan./jun. 2021

de Pereira foi lida por ele não como um ato de desprendimento, mas de anu-
lação do seu próprio poder por uma força que era maior do que a autoridade
nele investida. Para Tavares de Lyra, em vez de resignação, Thomaz de Araújo
Pereira demitiu-se do cargo por querer fugir das responsabilidades “que lhe ad-
viriam de uma situação que se aggravava e que não podia remediar” (LYRA,
1907, p. 240). A interpretação de Tavares de Lyra parece indicar que o primeiro
presidente, além de inapto para o cargo, havia agido por um ato de covardia ou
de medo. Esta leitura de Tavares de Lyra foi reforçada em seu livro História do
Rio Grande do Norte, publicado em 1921. Neste livro, especificamente, no capí-
tulo 7, intitulado Acontecimentos que precederam e se seguiram á Independencia.
Juntas Governativas. — Confederação do Equador. — Posse e governo do primeiro
Presidente, Augusto Tavares de Lyra reproduzia uma tradição oral que suposta-
mente afirmava que Thomaz de Araújo havia se ausentado de Natal dentro de
um barril que fez transportar à cabeça de um escravo — o qual conduziu-o até
um lugar em que estaria a salvo e em condições de utilizar-se de um transporte
em direção a Acari — depois de sofrer algumas ameaças de índios de Extremoz
ou de uma família chamada Matta-quiri: “essa tradição pode e deve ser verda-
deira” (LYRA, 1921, p. 533). A oralidade é convocada para provar o argumento
de Tavares de Lyra de que Thomaz de Araújo receava o encontro com aqueles
grupos na capital da província, antes mesmo de tomar a decisão de deixar a
presidência. Mais uma vez, a narrativa de Tavares de Lyra parece sugerir que
Thomaz de Araújo Pereira tinha uma tendência a capitulação em situações que
lhe traziam alguma ameaça iminente. É possível que foi a partir dessa imagem
de Thomaz de Araújo construída por Tavares de Lyra que Nestor Lima inten-
tou desconstruir. Em contraposição ao possível pusilânime ou medroso, Nestor
Lima conferiu ao primeiro presidente da província a imagem de abnegado.
Pela primeira vez, os sócios do IHGRN laureavam não a luta ou a vitória de
um personagem norte-rio-grandense, mas a sua abnegação. Com o intento de
tornar sagrada essa memória materializada na praça, Nestor Lima comparou-a
ao gólgota, onde Jesus Cristo havia padecido, e a estátua de Tiradentes na cidade
de Ouro Preto. Desde o início da República era comum construir um imaginário
sagrado aos heróis republicanos. Não é por acaso que a imagem de Tiradentes
esteve associada à de Cristo (CARVALHO, 1990). O gesto de Nestor Lima é pa-
recido com os republicanos dos primeiros anos do novo regime. A preocupação
era semelhante: sacralizar a memória. Para Nestor Lima, o desprendimento de
Thomaz de Araújo era equivalente ao ato do “martírio cruento da cruz” e a ex-
posição da cabeça de Tiradentes em praça pública. A cruz de Cristo e a estátua
de Tiradentes seriam a materialização sacra da memória dos dois mártires. Se-
melhantemente, a praça Thomaz de Araújo Pereira rememoraria o ato sacrificial
do “brio do tradicional político sertanejo” (LYRA, 1921, p. 533). O sacrifício do
primeiro presidente de província do Rio Grande do Norte não consistia na sua
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 177

morte em favor do povo norte-rio-grandense ou por um ideal, mas sim no custo


do seu brio, de seu gesto de não resistir aos seus opositores. Nesse sentido, a
inauguração da praça em decorrência da comemoração da posse do presidente
de província era um ato de justiça para com a sua memória, um cumprimento
de um dever dos rio-grandenses do norte do presente para com o seu passado
(LYRA, 1921, p. 533). A comemoração estava associada ao dever de memória
e ao ato de justiça do presente em relação ao passado. Dessa forma, o dever
de memória é o dever de fazer justiça, pela lembrança, ao passado, isto é, a um
outro que não a si (RICŒUR, 2007, p. 101).
Além do discurso de Nestor Lima, o IHGRN empreendeu mais uma alocução
em homenagem ao centenário de posse de Thomaz de Araújo Pereira. Na sessão
magna, o discurso ficou a cargo de Manoel Dantas. Além de ser o orador oficial
da agremiação, Manoel Dantas possuía outras credenciais que o encaminhavam
para a tarefa. O sócio do IHGRN era um letrado seridoense comprometido com
a produção do saber sobre a região do Seridó e do homem sertanejo.9 Thomaz de
Araújo Pereira era uma personagem importante da memória seridoense, nesse
aspecto, falar sobre ele era invocar um tipo representativo da própria memó-
ria histórica da região, uma vez que o avô do primeiro presidente da província
tinha contribuído para a colonização e povoamento do Seridó. Além disso, é
preciso citar que Manoel Dantas, José Augusto Bezerra de Medeiros e Juvenal
Lamartine, enredados por lanços de parentescos, descendiam da família de Tho-
maz de Araújo Pereira (MEDEIROS NETA, 2007, p. 29). Assim, havia todo um
interesse por parte desses três sócios do IHGRN de celebrar o centenário da
posse do primeiro presidente da província. Comemorar a posse de Thomaz de
Araújo era evidenciar o lugar do homem seridoense na construção da memó-
ria histórica do Rio Grande do Norte. É por esse motivo que Manoel Dantas, ao
dirigir-se ao governador José Augusto Bezerra de Medeiros em seu discurso, fez
questão de destacá-lo como “descendente de Thomaz de Araujo, o primeiro fi-
lho da zona do Seridó que preside os destinos do estado no regime republicano.”
(DISCURSO. . . , 1923–1925, p. 177). Há uma clara associação entre o primeiro
presidente da província e o primeiro governador seridoense a governar o estado.
É aqui que percebemos nitidamente o uso político do passado. José Augusto Be-
zerra de Medeiros é colocado como um laço de continuidade entre o passado e
o presente, evidenciando, a contribuição seridoense na própria história política
do Rio Grande do Norte. Dessa forma, o poder político do presente era respal-
dado pela evidência histórica do passado, o qual apontava para a ancestralidade
do governador seridoense. Em um momento de emergência dos políticos seri-
9
Cf. MACEDO, M. K. A penúltima versão do Seridó: uma história do regionalismo se-
ridoense. Natal e Campina Grande: EDUFRN e EDUEPB, 2012; e MEDEIROS NETA, O. M. Ser
(Tão) Seridó em suas cartografias espaciais. 2007. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.
178 Parnamirim, jan./jun. 2021

doenses no cenário político do estado, nada mais legitimador e simbólico do


que mostrar a continuidade do passado no presente. A comemoração ganha
uma significação importante, nesse processo de legitimação política.
Antes de tratar propriamente do objeto da celebração, Manoel Dantas es-
clarece aos convidados e aos seus consócios do IHGRN que o seu discurso não
obedecia ao rigor histórico (DISCURSO. . . , 1923–1925, p. 177). O orador do Ins-
tituto estabelece, então, a diferença entre o discurso comemoracionista e o texto
historiográfico. A distinção estabelecida por ele é simples: o trabalho histori-
ográfico consiste no uso de documentos e do expediente da pesquisa para fa-
lar sobre um determinado acontecimento histórico. A comemoração trata do
passado, mas, sem necessariamente, estar preso ao rigor do texto historiográ-
fico. Manoel Dantas esclarece ao seu auditório: “fica esta illustre assemblèa
privada de ouvir e julgar um estudo rigorosamente histórico.” (DISCURSO. . . ,
1923–1925, p. 176). Manoel Dantas deixa claro que apesar da falta de pesquisa e
documentos e do rigor do texto historiográfico, o seu texto comemoracionista
não pretendia se enquadrar no domínio da fantasia (DISCURSO. . . , 1923–1925,
p. 175). Em outros termos, Manoel Dantas evidenciava que seu discurso trataria
do passado de maneira superficial, mas não ficcional.
Para Manoel Dantas, a comemoração do centenário da posse de Thomaz de
Araújo considerava por um lado, a importância do fato em si e, por outro, a
do indivíduo que o personificou (DISCURSO. . . , 1923–1925, p. 178). Isso signi-
fica dizer que a comemoração tratava da emergência do governo constitucio-
nal da antiga província e como esta foi possível a partir da personalidade do
seu primeiro presidente. Consoante o orador, as divergências e o acirramento
dos grupos políticos do Rio Grande do Norte, logo após a organização do es-
tado nacional, levaram o governo imperial a nomear Thomaz de Araújo como
o primeiro presidente da província. Segundo Manoel Dantas, tal nomeação foi
devida à personalidade e ao caráter de Thomaz de Araújo, demonstrados na elei-
ção anterior para a junta governativa da província, em meados de 1823. Dessa
maneira, a personalidade do político seridoense garantiu que o governo do Im-
pério pudesse conferir ao Rio Grande do Norte o seu primeiro presidente de
província. É, nesses termos, que o fato em si e o indivíduo estavam diretamente
entrelaçados. Contudo, Thomaz de Araújo Pereira não é somente o primeiro
presidente da província do Rio Grande do Norte. Mais do que isso, ele é a evi-
dência da determinação benéfica dos homens do Seridó nos negócios públicos
do Rio Grande do Norte (DISCURSO. . . , 1923–1925, p. 178). Aqui encontra-se o
elemento central do discurso de Manoel Dantas, qual seja, construir o lugar para
o Seridó na elaboração da memória histórica do estado. Além disso, Thomaz de
Araújo Pereira representava a constituição sui generis do povo seridoense.
Conforme Manoel Dantas, o núcleo de povoamento do Seridó foi um dos
últimos a ser formado no Rio Grande do Norte. Como já foi mencionado, o avô
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 179

de Thomaz de Araújo Pereira teria sido um dos seus fundadores (DISCURSO. . . ,


1923–1925, p. 178). Nesse processo de formação, os habitantes do Seridó teriam
estabelecido um contato maior com a Paraíba e Pernambuco, o que redundou na
adoção de hábitos mais pacíficos, desconhecendo as rivalidades da família que
dariam origem ao cangaceirismo, segundo Manoel Dantas. O contato com as
capitanias vizinhas possibilitou uma certa cultura intelectual em relação às ou-
tras áreas do alto sertão. Manoel Dantas destaca a formação intelectual e liberal
de alguns homens do sertão, especialmente, os padres, que se entrincheiraram
nas revoluções (DISCURSO. . . , 1923–1925, p. 182). Conforme o orador oficial
do Instituto, Thomaz de Araújo Pereira formara o seu caráter em contato com
estes homens. Apesar de inculto, o primeiro presidente da província era um
homem que tinha visão de instrução e de progresso: “Tal era o homem, a quem
o Governo do Imperio confiou a primeira presidencia do Rio Grande do Norte.”
(DISCURSO. . . , 1923–1925, p. 182).
Depois de laurear a personalidade de Thomaz de Araújo Pereira, Manoel
Dantas empenha-se em reabilitar a imagem do seu ancestral. A hesitação de-
monstrada por ele nas questões políticas relativas à província é explicada pela
sua personalidade, isto é, pelo emprego do seu bom senso diante de um ce-
nário político totalmente hostil, ao qual o Rio Grande do Norte se encontrava
(DISCURSO. . . , 1923–1925, p. 184). O malogro da administração do primeiro
presidente apontado por Augusto Tavares de Lyra é ligeiramente justificado
por Manoel Dantas pela própria dificuldade inerente à instabilidade política da
província e pelo modus operandi com que geria o Rio Grande do Norte (DIS-
CURSO. . . , 1923–1925, p. 185). Todavia, para o orador, o seu insucesso admi-
nistrativo na presidência da província não apagara os atos sociais que realizara
na zona do Seridó (DISCURSO. . . , 1923–1925, p. 187). Ao contrário de Tava-
res de Lyra, Manoel Dantas concluía o seu discurso reforçando que Thomaz
de Araújo, a despeito da falta de grandes feitos e importantes melhoramentos
para a província, havia estabelecido um governo forte, másculo (DISCURSO. . . ,
1923–1925, p. 193). Ora, a caracterização do governo de Thomas de Araújo Pe-
reira como sendo uma expressão da sua virilidade ou masculinidade demonstra
o diálogo de Manoel Dantas com a produção discursiva em torno da figura do
nordestino, tipo regional esse que estava sendo gestado na década de 1920 (AL-
BUQUERQUE JR, 2013, p. 207–209). Assim como os discursos elaborados nesse
enredo do nordestino, Manoel Dantas constrói uma imagem da personalidade
de Thomaz de Araújo Pereira a partir dos elementos que identificariam esse
tipo regional, apresentando-o como um homem imerso em uma sociabilidade
tradicional e, acima de tudo, marcado pelos atributos masculinos. Thomaz de
Araújo seria a encarnação da senilidade e da virilidade do homem público do
Rio Grande do Norte, por essa razão que a leitura de sua postura pusilânime ou
vacilante deveria ser desconstruída. Afinal de contas, o primeiro presidente da
180 Parnamirim, jan./jun. 2021

província representava o seridoense, expressão do tipo sertanejo.

Considerações finais
A comemoração do centenário da posse de Thomaz de Araújo demonstra o inte-
resse dos seridoenses em construir um lugar para região na memória histórica
do Rio Grande do Norte — que estava sendo gestada no final do século XIX
e início do século XIX. No limiar da República, letrados e políticos norte-rio-
grandenses também se preocuparam em urdir narrativas que instituíssem um
lugar para o Rio Grande do Norte na elaboração da memória nacional. O inte-
resse por essa questão fez parte das estratégias políticas do grupo familiar que
ascendeu ao governo do estado, no momento da Proclamação da República: os
Albuquerque Maranhão — liderados por Pedro Velho.10 No final do século XIX
e início do XX, a família Albuquerque Maranhão concebeu e mobilizou estraté-
gias discursivas para a produção da identidade histórica, territorial e étnica do
Rio Grande do Norte.11 Contudo, esse projeto identitário estava sendo dispu-
tado por três grupos familiares que exerciam uma espécie de domínio político
em diferentes regiões do estado, a saber: Mossoró, Natal e o Seridó.12 No en-
tanto, é o grupo político dos Albuquerque Maranhão que elabora, a partir da
centralidade da cidade de Natal, a narrativa em torno do que seria a identidade
histórica e espacial norte-rio-grandense, a despeito da existência de outras pro-
duções concorrentes, oriundas das classes políticas e intelectuais de Mossoró e
do Seridó. Isso significa dizer que, assim como a memória nacional, a memória
histórica potiguar estava em disputa.
A ala seridoense do Instituto, formada pelos sócios: José Augusto, Manoel
Dantas, Juvenal Lamartine, encampou um projeto de construir um lugar para
o Seridó na memória histórica norte-rio-grandense. Os discursos comemoraci-
onistas mostram o movimento de desconstrução da própria historiografia pro-
duzida pelo IHGRN no início do século XX, mais especificamente, ao texto
de Tavares de Lyra sobre Thomaz de Araújo Pereira. Nos anos de 1920, ele
encontrava-se longe das atividades do IHGRN. Tavares de Lyra nunca se ma-
nifestou quanto à reabilitação da imagem de Thomaz de Araújo Pereira. Não
10
Cf. BUENO, A. C. Visões de República: idéias e práticas políticas no Rio Grande do
Norte (1880–1895). Natal: EDUFRN, 2002; e SOUZA, I. A República velha no Rio Grande do
Norte: 1889–1930. Natal: EDUFRN, 2008.
11
Para compreender as estratégias espaciais das elites norte-rio-grandenses do início do
século XX, conferir: PEIXOTO, R. A. Espacialidades e estratégias de produção identitária no
Rio Grande do Norte no início do século XX. in: Nas trilhas da representação: trabalhos
sobre a relação entre história, poder e espaços. Organização: R. A. PEIXOTO. Natal: EDUFRN,
2012. p. 13–36.
12
Ibidem p. 34.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 181

houve qualquer debate em torno da figura do primeiro presidente de provín-


cia. Os políticos seridoenses puderam, sem mais problemas, construir sua ver-
são sobre um dos seus personagens históricos. A comemoração organizada
pelo IHGRN foi uma ótima oportunidade para realizar tal empreendimento,
afinal, a Instituição possuía um outro mecenas, pela primeira vez, um gover-
nador oriundo do sertão norte-rio-grandense. Essa circunstância política era
uma ocasião perfeita para se instituir uma outra narrativa para o passado do
Rio Grande do Norte, dessa vez, destacando um lugar central para o Seridó na
memória histórica do estado.

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Goiânia: UFG e Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira, 2000.
SOUZA, I. A República velha no Rio Grande do Norte: 1889–1930. Natal:
EDUFRN, 2008.
SPINELLI, J. A. Coronéis e Oligarquias no Rio Grande do Norte: (Primeira
República) e outros estudos. Natal: EDUFRN, 2010.
. Getúlio Vargas e a oligarquia potiguar: 1930–1935. Natal:
EDUFRN, 1996.

Recebido em 31 mar. 2021.


Aprovado em 16 abr. 2021.
O CONTEXTO SOBRE O USO DE SUBSTÂNCIAS LÍCITAS E ILÍ-
CITAS EM CAICÓ, RIO GRANDE DO NORTE
Allyson Iquesac Santos de Brito1
Helder Alexandre Medeiros de Macedo2
RESUMO: O presente trabalho tem como norteamento analisar as medidas proibi- Como referenciar?
BRITO, A. I. S.;
cionistas de substâncias e seus impactos na realidade de Caicó — sertão norte-rio- MACEDO, H. A. M. O
grandense, no ano de 2017. Por entendermos que o sertão é um espaço que não está contexto sobre o uso de
substâncias lícitas e ilícitas
preso a um determinado tempo, o analisaremos através da contemporaneidade. Desse em Caicó, Rio Grande do
modo, contemplando o conceito de “Sertão Contemporâneo”. Afim de construir um Norte. Revista Galo, n. 3,
p. 183–194, 17 jul. 2021
trabalho historiográfico sobre a contemporaneidade no Rio Grande do Norte, teremos
como alguns objetivos, identificar quais elementos são desdobrados na sociedade caico-
ense em 2017, a partir do Proibicionismo, exercido pelo Estado brasileiro; problematizar
a garantia de direitos sociais, de indivíduos, e civis perante a legislação e movimentos
sociais. Como aporte metodológico, utilizaremos da Análise do Discurso para obser-
var os desdobramentos encontrados nas respostas de um questionário disponibilizado
online nas redes sociais do autor, nos apresentam. O questionário obteve sessenta (60)
respostas referentes ao uso e consumo de substâncias consideradas atualmente como
lícitas e ilícitas, como também, atenta para dados pessoais como orientação sexual,
identidade de gênero, etnia, entre outros dados, se estes sofreram com algum tipo de
repressão policial, de instituições privadas e/ou públicas e abuso de autoridade.
Palavras-chave: Sertão norte-rio-grandense. Proibicionismo. Discurso. Contempora-
neidade.

THE CONTEXT OF LEGAL AND ILLEGAL SUBSTANCES USAGE


IN CAICÓ, RIO GRANDE DO NORTE
ABSTRACT: This work aims to analyze the prohibitionist measures of substances
and their impacts on the reality of Caicó — Rio Grande do Norte sertão, in 2017. As we
1
Graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte — UFRN, campus
CERES, em Caicó-RN. ID Lattes: 7011.1103.8491.3539. ORCID: 0000-0002-7249-632X. E-mail:
allysonkesac@hotmail.com.
2
Historiador e professor de História. Atualmente é Professor do Departamento de História
do CERES, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, lecionando no Campus de Caicó.
Atua como Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em História do CERES-
UFRN/Mestrado em História dos Sertões e como Colaborador do Programa de Pós-Graduação
em História do CCHLA-UFRN/Mestrado em História e Espaços. ID Lattes: 8883.6377.0370.4518.
ORCID: 0000-0002-5967-7636.

183
184 Parnamirim, jan./jun. 2021

understand that the sertão is a space that is not tied to a certain time, we will analyze
it through contemporaneity. In this way, contemplating the concept of “Contempo-
rary Sertão”. In order to build a historiographic work on contemporary times in Rio
Grande do Norte, we will have as some of the objectives, to identify which elements
are unfolded in Caico’s society in 2017, based on Prohibitionism the Brazilian State
exercised; to problematize the guarantee of social, individual, and civil rights before
legislation and social movements. As a methodological contribution, we will use Dis-
course Analysis to observe the developments found in the responses to a questionnaire
available online on the author’s social networks, they present us. The questionnaire
obtained sixty (60) responses regarding the use and consumption of substances cur-
rently considered to be legal and illegal, as well as looking at personal data such as
sexual orientation, gender identity, ethnicity, among other data, if they suffered from
any type of police, private and/or public repression and abuse of authority.
Keywords: Sertão norte-rio-grandense. Prohibitionism. Discourse. Contemporaneity.

Introdução: a historicidade do proibicionismo a partir de


1960
Iniciamos realçando a importância da Constituição de 1988 que é estabelecida
juntamente com a democracia e eleições diretas após a nação brasileira sofrer a
cassação de direitos sociais, fundamentais e políticos com a Ditadura Militar por
vinte e um (21) anos. Pretendemos evidenciar o proibicionismo, como um dos
problemas do tempo presente que deve e merece atenção e discussões diante de
seus contemporâneos, pois, não há como solucioná-los através de ideias e ideais
de líderes do passado — os quais demonstram com o tempo histórico, que suas
medidas são paliativas e não pragmáticas e eficientes.
Do olhar historiográfico acrescentamos a perspectiva do uso de substâncias,
atualmente, consideradas ilícitas no Brasil. Os Estados Unidos também entram
no debate deste trabalho por entendermos que as medidas governamentais deste
país, sejam elas pautadas pela saúde, economia, pelos interesses políticos, entre
outros, pelo racismo enraizado nos discursos de poder, são essenciais para per-
cebermos como a conhecida “guerra às drogas” inicia-se e impulsiona, através
de influência, países como o Brasil.
A partir de 1960 encontramos nas resistências das juventudes norte-americanas,
o fim pela guerra, principalmente, a do Vietnã. Assim como, o fortalecimento da
contracultura organizada por movimentos sociais: das pessoas negras, LGBTQ+,
das mulheres com o feminismo, e dos hippies (GRANT, 2014).
Chamamos a atenção para as medidas proibicionistas governamentais dos
Estados Unidos por sua estreita relação ainda com o Brasil no período de 1970:
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 185

Em plena ditadura militar brasileira enquanto na presidência norte-americana,


estava Richard Nixon, declarador da guerra às drogas. Pautando a medida atra-
vés do discurso de que as drogas deveriam ser consideradas inimigas da nação,
Nixon clamou por mudanças. Ao considerá-las inimigas, novos alvos foram fei-
tos como o combate ao tráfico e seus traficantes, o que desencadeou em proces-
sos judiciais e militares de enfrentamento ao uso de substâncias, de usuários, de
suas autonomias como cidadãos e seus direitos fundamentais como humanos.
Por isso, analisaremos o conceito de discurso, trabalhando também sobre
o interesse central de nossas pesquisas que são os sujeitos propagadores e re-
ceptores do ato de falar — carregado de simbologia, constituídos “por discursos
historicamente produzidos e modificados; assim como o discurso, o sujeito está
em constante produção, é marcado por movências.” (FERNANDES, 2012, p. 16).
Analisar o discurso nos propõe perceber essas mudanças constantes. Atra-
vés do site oficial online da CNN, encontramos uma declaração de John Ehrli-
chman, ex-chefe de política interna de Nixon, ao jornal Dan Harun:

Nós sabíamos que não poderíamos tornar ilegal ser contra a


guerra (às drogas) ou negros, mas (poderíamos) fazer com que o
público associasse os hippies à maconha e aos negros com heroína.
E então criminalizando ambos fortemente, nós poderíamos pertur-
bar essas comunidades.3

Levando em consideração a declaração de John Ehrlichman, e a ação que o


presidente estadunidense resolveu ter diante de um problema social complexo
como o da proibição ou não de substâncias, ambas são analisadas pelo caráter
político, racial, de classe e de inviabilização dos direitos humanos.
Atentamos para o discurso feito por um presidente de uma nação poderosa
militarmente e economicamente, para perceber o privilégio e autoridade que
o mesmo exerce, pois, assim, pode-se realizar procedimentos externos de con-
trole e delimitar o discurso. Neste caso, controlar e distinguir americanos de
imigrantes, entre outras distinções, a de americanos brancos, de americanos
negros.

Por meio da interdição, são estabelecidos os direitos e as proibi-


ções em relação ao ato de falar e também ao que pode ser falado. O
objeto do discurso define, assim, o lugar do dizer e o direito de falar
privilegiado ou exclusivo de algum(ns) sujeito(s) em detrimento de
outro(s). (FERNANDES, 2012, p. 48).
3
Disponível em: https://amp.cnn.com/cnn/2016/03/23/politics/john-ehrli
chman-richard-nixon-drug-war-blacks-hippie/index.html?__twitter_impre
ssion=true, acesso em 27 abr. 2019.
186 Parnamirim, jan./jun. 2021

Tendo em vista os números relacionados ao encarceramento no período


(COLETIVO DAR, 2016, p. 182) e a fala do ex-chefe de política interna do go-
verno supracitado, partimos da análise dos dados, para adentrarmos ao sujeito
de poder que exerce sua autonomia perante sua vida e corpo — Foucault deno-
mina essa ação de biopoder (FERNANDES, 2012), o qual se desdobra nos sujeitos
em diversas formas encontradas, seja de um sujeito/governo sobre outro, seja
as técnicas e cuidados de um sujeito sobre si.
O discurso vem carregado de conceitos e palavras chaves que muitas vezes
nos fazem nos perder em meio a sua complexidade. Assim, deixamos de nos
aprofundar cientificamente, e tomamos tais discursos como verdadeiros, únicos
e absolutos sobre determinado(s) assunto(s) e esquecemos que estes são criados
por pessoas e desencadeados em outras.
Os impactos analisados por consequência do proibicionismo imposto, cons-
tituem interesses do âmbito religioso, judiciário, legislativo, executivo, farma-
cêutico, escolar, familiar, medicinal, penitenciário, social, entre outros, do pró-
prio indivíduo com sua autonomia sob sua vida privada.
Por isso, acreditamos na multidisciplinaridade — entendida como um campo
que abarca diversas disciplinas como o Direito, a própria História, Ciências So-
ciais, Economia, Serviço Social, entre outras, áreas da saúde como Enfermagem
e Medicina —, pois observamos que

o poder organiza-se em torno da vida; há, portanto, uma biopo-


lítica investida de biopoderes [. . . ] o poder implica também liber-
dade e possibilidade de resistência, cuja existência só é possível em
sujeitos livres. (FERNANDES, 2012, p. 52).

O proibicionismo em Caicó-RN
As interrogações iniciais que pautam o tema e a localidade escolhida, diz res-
peito às experiências pessoais do autor em 20144 , e assim, ao observar que exis-
tem áreas nas vidas dos cidadãos em que o Estado5 brasileiro, regido por uma
Constituição Federal de 1988 — pautando a igualdade entre os seus perante a
Lei —, pode causar mais problemas para sua sociedade do que propriamente
resolvê-los. Mesmo sendo o grande controlador da vida privada de seus cida-
dãos, por assim vivermos em uma democracia, o Estado não pode ser um con-
4
No ano em questão, o autor estava no último ano do ensino médio e passou por uma
das primeiras perdas familiares. O seu primo faleceu após ser covardemente assassinado por
policiais.
5
Composto por burguesia, exército, legislação, administração e impostos. (KOSELLECK,
2006).
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 187

trolador totalitário dessas pessoas, e sim, parciais, mantendo o papel executivo,


legislador e judiciário.
Pretendemos identificar quais elementos são desdobrados na sociedade cai-
coense no ano de 2017, a partir da proibição, pelo Estado, de substâncias con-
sideradas ilícitas. A percepção das medidas tomados pelo Estado brasileiro so-
bre a temática proposta será discutida através do conceito de proibicionismo
— entendido como um discurso “narcofóbico”, assim proposto por Henrique
Carneiro (2018). Ou seja, um discurso antidrogas pautados por interesses de
grupos sociais, sejam esses políticos, econômicos, e medicinais interligados à
historicidade de acontecimentos de cunho nacional e internacional.
Com a graduação iniciada em 2016 em licenciatura em História pela UFRN,
campus CERES, na cidade de Caicó-RN, o autor esteve em contato com a história
da cultura, da vida pública e privada, dos direitos fundamentais dos indivíduos,
dos movimentos sociais como o da etnia negra, indígena, e de diversas outras
do Ocidente ao Oriente. Com o olhar acadêmico direcionado ao proibicionismo
para compreender a dualidade existente entre as substâncias, estas, divididas
em lícitas e ilícitas, nos demonstrou o impacto causado pela nomenclatura e
principalmente pela legislação brasileira, a qual vamos nos ater.
A partir dos fatos históricos apontados, nos debruçaremos em como a proi-
bição de substâncias afetam a sociedade através do caráter social. Por meio
dessa perspectiva, discutiremos os aspectos apontados e os desdobramentos das
medidas proibicionistas a partir do tempo presente na cidade de Caicó, locali-
zada no Rio Grande do Norte, Brasil.
Desse modo, evidenciamos um questionário disponibilizado online nas re-
des sociais do autor, por volta do ano de 2017, cujo os objetivos seriam o de
identificar sujeitos anônimos usuários de substâncias lícitas e ilícitas na cidade
supracitada. Assim como, colher dados e histórias pessoais referente ao uso
dessas substâncias que agora servem como fontes para a construção deste ar-
tigo6 .

Resultados
Para aproximar as informações obtidas de cunho internacional e nacional pelos
estudos expostos acima, vamos intercalar a bibliografia estudada à história local
e aos resultados de uma pesquisa realizada em Caicó, no Rio Grande do Norte
6
Em 2017, o autor estava no seu segundo ano de graduação em História e percebeu que,
pelo curso, conseguiria trabalhar com o tema da proibição intercalando com a realidade em
que está vivendo na contemporaneidade da cidade em que mora (Caicó-RN). Sob orientação do
professor Dr. Helder Alexandre de Medeiros Macedo, os primeiros passos foram dados para a
construção final deste artigo, sendo a principal fonte utilizada, o questionário online.
188 Parnamirim, jan./jun. 2021

no ano de 2017, por meio de um questionário online disponibilizado nas redes


sociais dos autores que obteve sessenta (60) respostas.
A metodologia utilizada para compreender as respostas é a de Análise do
Discurso (2005), o qual “requer fazer aparecer os aspectos referentes à forma
de existência social dos sujeitos tendo em vista os aspectos linguísticos, soci-
ais e históricos que engendram sua constituição nas formações discursivas, na
formação e transformação desses sujeitos e objetos que constituem”. (FERNAN-
DES, 2012, p. 30).
O questionário foi formulado com a finalidade de identificar e/ou mapear
indivíduos que fizessem o uso de substâncias lícitas, ilícitas, se estes se consi-
deram usuários (entendidos por fazerem o uso diário ou não as substâncias),
suas relações com o ambiente jurídico, político e social no que diz respeito à
repressão e opressão advinda de corporações policiais e instituições privadas,
assim como, abuso de autoridade na cidade de Caicó-RN.
Outro importante objetivo que adquirimos através do questionário, foi o
de também, aproximar a realidade social presente ao discurso acadêmico, e por
isso, a Análise do Discurso se faz presente na metodologia a fim de discutir sobre
a autonomia dos indivíduos, suas práticas, vivências, e o uso de substâncias.
Feita a discussão sobre a aproximação do discurso acadêmico ao popular,
e das inovações culturais, políticas, entre tantas outras que carregam o sertão
contemporâneo, apresentamos os dados sobre a pesquisa realizada em 2017, dis-
ponibilizada online, criada e executada pelo autor, para observar como a teoria
se insere no ambiente da prática em moradores de cidades identificadas em que
os mesmos (os usuários de substâncias ilícitas e lícitas), se encontram.
Portanto, devemos discutir as generalizações e não as receber como imu-
táveis, recaídas para o senso comum, mesmo que haja certos padrões que se
repetem em relação a algum tema/problemática.
Mapeando a localidade dos entrevistados, 39 pessoas moram na cidade de
Caicó, no Rio Grande do Norte. Ainda no interior do estado potiguar, 2 se en-
contram em Acari, 1 em Cruzeta, 2 em Currais Novos, 1 em Florânia, 1 em
Jardim (sem identificar se seria Jardim do Seridó ou Jardim de Piranhas), 1 em
Jardim do Seridó, 1 em São João do Seridó, 1 em Macaíba. Para a capital Natal
tivemos 4 pessoas. Para territórios exteriores ao do Rio Grande do Norte, 1 no
estado do Maranhão, 1 em Pedra Lavrada no estado da Paraíba, 1 em Piracicaba
- São Paulo, 1 em São Paulo (sem identificar se seria o estado ou a capital), 1 em
Salvador, 1 em Santa Luzia no estado da Paraíba, e por fim, 1 em Teófilo Antoni,
Minas Gerais.
Partindo para a análise étnico-racial, 33 pessoas, que correspondem a 55% do
total da pesquisa, identificaram-se como brancas; 20 como pardas, enquanto 6
como negros, e 1 de etnia indígena. Como identidade de gênero tivemos 27 mu-
lheres, 32 homens, 1 transgênero. Os entrevistados também foram questionados
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 189

por sua orientação sexual a qual se resume a: 16 bissexuais, 13 homossexuais,


26 heterossexuais, 4 pansexuais, e 1 não definido.
A repressão policial e de instituições também foram questionadas na pes-
quisa, com as seguintes situações: perguntamos aos entrevistados se sofreram
abuso de autoridade vinda de um policial, e obtivemos que 34 pessoas respon-
deram que não sofreram abuso. Em contrapartida, 26 pessoas afirmaram ter so-
frido esse tipo de abuso vindo de membros das corporações policiais. Quando
abrangemos a questão para a repressão vinda de um civil, autoridade ou insti-
tuição pública ou privada, 39 pessoas afirmam sentirem a repressão, enquanto
19 pessoas não chegaram a terem contato com esse autoritarismo e, 3 pessoas
não conseguem identificar se passaram por esse caso.
Outro tipo de controle do discurso e exclusão, traz, não somente regras de
entre os momentos em que alguém pode falar, mas sim, há rejeição, distinção
e separação do que é um discurso considerado “verdadeiro/normal”, de um dis-
curso “sem razão/anormal”. O exemplo dado é o da razão, tida como verdade e
dita pelos “normais” em oposição à loucura, aos loucos. Logo, “cabe à verdade,
por exemplo, definir a loucura, identificar o louco, e, por conseguinte, justificar
a interdição”. (FERNANDES, 2012, p. 48).
Tendo o poder em todas as instâncias entre os sujeitos, o mesmo tanto im-
plica e/ou requer a resistência. Por isso, acreditamos que as pessoas que utili-
zam de alguma substância ilícita em um contexto estatal proibicionista, como é
o caso dos entrevistados, implica em ser um ato de resistência.

“Procurando focalizar o poder em micro instâncias, Foucault


refere-se a formas de oposição ao poder, isto é, formas de resis-
tência que constituem lutas antiautoritárias [. . . ] Todas essas lutas
contestam formas de poder e têm lugar no cotidiano dos indivíduos,
pois são justamente o que os caracteriza em termos identitários e
os tornam sujeitos. São também lutas contra a sujeição, contra for-
mas de subjetivação e contra a submissão.” (FERNANDES, 2012,
p. 56–57).

As pessoas entrevistadas no questionário online variam de faixa etária entre


16 e 29 anos. Entre elas, pelo menos duas começaram a utilizar das substâncias
psicoativas a partir dos doze anos de idade enquanto treze pessoas iniciaram aos
14 anos, e onze pessoas iniciaram aos 15 anos. Nos referimos às últimas faixas
etárias citadas com atenção para identificar que o proibicionismo, seus métodos
de pertencimento no sistema de guerra às drogas, e as próprias substâncias
chegam aos menores de idade com maior rapidez do que aos de maioridade
penal, logo, demonstrando que tais medidas paliativas são ineficientes.
190 Parnamirim, jan./jun. 2021

Quando questionados quais as primeiras substâncias psicoativas ilegais que


utilizaram, obtemos a contagem de 49 pessoas para a maconha, 22 para o loló,
4 para cocaína, 7 para ecstasy, 1 para crack e 1 para uma outra substância que
não estava entre as listadas acima, as quais estavam designadas para múltiplas
escolhas.
Contudo, em busca de compreender se os entrevistados se consideram usuá-
rios diários ou não de produtos ilícitos, 50% declararam que são usuários, en-
quanto 40% afirmam que não são; 10% ficaram em dúvida. Quando a pergunta
é direcionada para os produtos lícitos como cigarro e álcool, o número de usuá-
rios diários em comparação ao ilícito aumenta 8%, enquanto os não-usuários
diminuem 9%, e a dúvida sobre a questão permanece estável com 10%.
Logo, “interessa ao analista do discurso refletir sobre como essas relações
tão complexas integram os discursos, asseveram a constituição do sujeito dis-
cursivo e apontam para construções identitárias próprias aos sujeitos.” (FER-
NANDES, 2012, p. 59).

Discussão: O sertão contemporâneo em destaque


As observações feitas sobre o espaço e tempo a serem trabalhados nos oferecem
um olhar diferenciado tanto para a historiografia quanto para o conhecimento
popular de que as complicações da legislação proibicionista não está intrinsica-
mente interligado somente aos grandes centros urbanos.
O estudo histórico aqui desenvolvido está “muito mais ligado ao complexo
de uma fabricação específica e coletiva do que estatuto de efeito de uma filosofia
pessoal ou à ressurgência de uma ‘realidade’ passada. É o produto de um lugar.”
(CERTEAU, 1982, p. 57).
As universidades devem ser defendidas como um lugar feito para discussões
e debates sobre diferentes ideias baseadas pela expansão cientificista, longe da
neutralidade e do silêncio. A dupla função da Universidade está interligada à
discursos que são e que não são permitidos aos debates. Desse modo, ao excluí-
los, fica representado “o papel de uma censura com relação aos postulados pre-
sentes (sociais, econômicos, políticos) na análise.” (CERTEAU, 1982, p. 63).
Não está mais para a História e para o ofício do historiador, ser construída/construir
a narrativa apenas a partir do centro, de um modo totalizante, global. Assim,
devemos observar outros elementos, fontes e fatos históricos sem cair nas ge-
neralizações, pois, tanto a História quanto o historiador mantêm sua essência:
a de serem críticos (CERTEAU, 1982).
Construiremos nossa narrativa histórica ao aproximá-la da realidade do dis-
curso regionalista para começarmos o debate sobre a crise “dos padrões tradi-
cionais de sociabilidade que possibilitaram a emergência de um novo olhar em
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 191

relação ao espaço, uma nova sensibilidade social em relação à Nação.” (ALBU-


QUERQUE JR, 2009, p. 52).
Neste caso, os códigos de sociabilidades diante do século XIX e início do
XX, em relação ao proibicionismo, devem ser questionadas na contemporanei-
dade a fim de percebermos se ainda são as melhores medidas diante das exigên-
cias sociais em detrimento da realidade, pois, buscamos nas partes, nas escalas
territoriais-políticas-socais menores, “a compreensão do todo, já que se vê a
nação como um organismo composto por diversas partes, que deviam ser indi-
vidualizadas e identificadas.” (ALBUQUERQUE JR, 2009, p. 53).
Os usuários de substâncias ilegais estão sendo colocados às margens do cen-
tro irradiador de poder: sua autonomia e direitos estão sendo violados perante
suas decisões sobre o seu corpo e vida, enquanto usuários de substâncias lí-
citas que muitas vezes também consomem substâncias ilícitas, mantêm suas
autonomias intactas. Por isso, “o discurso regionalista não pode ser reduzido
a enunciação de sujeitos individuais, de sujeitos fundantes, mas sim a sujeitos
institucionais.” (ALBUQUERQUE JR, 2009, p. 61).
Adentramos ao século XX, como o século definidor de um proibicionismo
que atenta não somente para a proibição do contato de sujeitos com as drogas,
mas também, que confronta de forma bélica, repressiva e autoritária tanto usuá-
rios quanto os comerciantes (taxados posteriormente de traficantes). Pouco me-
nos de trinta anos após a abolição da escravidão no Brasil, em 1915, a maconha
estava associada como uma vingança dos negros (africanos) sobre os brancos
civilizados: Uma evidência do racismo estrutural em que o século XX estava in-
serido, e que ainda no século XXI, não está dissolvido. Em 1930, o terreno para a
proibição da maconha tornava-se fértil ao passo que, em 1936 tivemos a criação
da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), subordinado
ao Ministério das Relações Exteriores. (BRANDÃO, 2014).

Destacamos que as necessidades econômicas levam inúmeros


agricultores a se envolverem com o cultivo desta planta, notada-
mente em áreas marcadas pela baixa umidade e por poucas chuvas
mal distribuídas ao longo do ano, ou seja, este cultivo representa
uma alternativa real de manutenção financeira para quem vive no
sertão nordestino. (BRANDÃO, 2014, p. 5).

Tendo sido feita a contextualização para chegarmos aos sertões, acrescenta-


mos que segundo Janaína Amado (1995), a categoria de “sertão” foi criada pelos
portugueses que colonizaram o Novo Mundo, um destes mundos, em questão
atual e específica, está o Brasil. Assim, o espaço em contraposição à Europa, foi
denominado assim: “espaços desconhecidos, inaccessíveis, isolados, perigosos,
dominados pela natureza bruta, e habitados por bárbaros, hereges, infiéis, onde
192 Parnamirim, jan./jun. 2021

não haviam chegado as benesses da religião, da civilização e da cultura.” (p.


149).
Em contraposição a esta ideia eurocêntrica, chegamos ao conceito de ser-
tões contemporâneos (ALBUQUERQUE JR, 2014), o qual trataremos de cons-
truir uma história visando a espacialidade sertaneja por meio da crise “dos pa-
drões tradicionais de sociabilidade que possibilitaram a emergência de um novo
olhar em relação ao espaço, uma nova sensibilidade social em relação à Nação.”
(ALBUQUERQUE JR, 2009, p. 52).
Partindo dessa perspectiva do contemporâneo, do presente, reconhecemos
o espaço e a temporalidade dos sertões nordestinos como plural, abarcador de
multiplicidade de realidades, de diferenças e diversidades, e não, um espaço
homogêneo, o qual não sofre mudanças sociais, políticas, econômicas, jurídicas,
culturais e históricas através da coleta e análise das respostas do questionário.

Atentar para o sertão como a definição feita acima, é, portanto,


um gesto político da maior importância. É romper com as imagens
e enunciados estereotipados, rotineiros, naturalizados, repetitivos,
clichês sobre o sertão, a começar por enunciar a sua pluralidade
interna. (ALBUQUERQUE JR, 2016, p. 43).

Confrontar o olhar tradicional sobre o sertão, é o ato de observar critica-


mente o discurso proposto, a fim de discutir a quem este discurso dá poder e
autonomia — tais elementos se destacam em “privilégios econômicos, políticos
e sociais e repor dadas relações e hierarquias sociais, dentro e fora do espaço
nomeado sertão.” (ALBUQUERQUE JR, 2016, p. 43). O proibicionismo encon-
trado nas fontes é a construção da base deste trabalho para observar os sertões
como contemporâneos, assim como, explicitado acima.

Considerações finais
Vale ressaltar que os dados da pesquisa são referentes a sessenta pessoas, entre
sua maioria, pessoas sertanejas que divididas por estados e municípios, cin-
quenta e quatro delas são do Rio Grande do Norte. Com este artigo acrescenta-
mos algumas páginas a mais na História do Rio Grande do Norte e dos sertões
do Brasil.

“Nesse sentido, o que está em questão não é o corpo, mas o


sujeito de ação, produzido por uma exterioridade social, cultural e
política. E isto se aplica a todo sujeito uma vez que a exterioridade
atua sempre, por meio de discursos, na produção da subjetividade,
e o sujeito é um efeito da subjetividade.” (FERNANDES, 2012, p. 60).
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 193

Este questionário não tem a pretensão de ser um discurso generalizante di-


ante da dimensão que é o território brasileiro e internacional, mas sim, esta-
belecer um diálogo de aproximação da Academia com as classes exteriores e
interiores a ela. Os dados obtidos através do questionário, como os supracita-
dos, nos revelam uma outra perspectiva de estudos direcionada aos sertões do
Rio Grande do Norte, e de outras partes do Brasil.
Compreendemos os discursos são produzidos, administrados e interpreta-
dos, ou seja, não estão soltos sem finalidade e interesses de grupos sociais.

O discurso é assim palavra em movimento, prática de lingua-


gem: com o estudo do discurso, observa-se o homem falando. [. . . ]
Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanên-
cia e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do
homem e da realidade em que ele vive. (ORLANDI, 1999, p. 15).

Concluímos, agradecendo pela leitura, esperando que o estudo tenha gerado


debate, afim de que, ocorram mais contribuições. Pretendemos continuar os es-
tudos sobre a temática abordada, principalmente, por termos materiais que nos
lançam para o poder do discurso, da contemporaneidade, do proibicionismo, e
essencialmente, o da História.

Referências
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Recebido em 15 abr. 2021.


Aprovado em 19 abr. 2021.
O SILENCIO DOS CABOCLOS
Notas sobre catimbozeiros perseguidos no Rio Grande do Norte
Rômulo Henrique P. Angélico1
RESUMO: O Catimbó-Jurema é uma tradição de matriz indígena oriunda do nordeste Como referenciar?
ANGÉLICO, R. H. P. O
brasileiro. Ao longo dos séculos, índios juremeiros e seus descendentes caboclos foram silêncio dos caboclos: notas
vítimas de uma série de perseguições devido ao conjunto de crenças e práticas ceri- sobre catimbozeiros
perseguidos no Rio Grande
moniais que compõem esse universo ser classificado, por autoridades católicas e laicas, do Norte. Revista Galo,
feitiçaria. No território do Rio Grande do Norte a repressão aos cultos de matriz indí- n. 3, p. 195–205, 17 jul. 2021
gena parece ter sido considerável, entretanto, poucos relatos sobreviveram ao tempo.
O presente artigo tem o objetivo de analisar casos que permaneceram na memória de
veneráveis caboclos e em fontes específicas. O método utilizado foi o diálogo com jure-
meiros e a pesquisa bibliográfica. O artigo conclui que, embora a repressão ao Catimbó
tenha se estendido do século XVI ao início XX, a tradição permanece viva em nosso
Estado — preservando elementos ancestrais autóctones.
Palavras-chave: Jurema. Índios. Tradição. Ancestralidade.

THE SILENCE OF CABOCLOS


Notes on persecuted catimbozeiros in Rio Grande do Norte

ABSTRACT: Catimbó-Jurema is a tradition of indigenous origin from the northeast


of Brazil. Over the centuries, juremeiros indians and their caboclos descendants were
victims of a series of persecutions due to the set of beliefs and ceremonial practices that
make up this universe to be classified, by Catholic and secular authorities, witchcraft.
In the territory of Rio Grande do Norte, the repression against indigenous cults seems
to have been considerable, however, few reports have survived over time. This article
aims to analyze cases that remained in the memory of venerable caboclos and in spe-
cific sources. The method used was dialogue with jurists and bibliographic research.
The article concludes that, although the repression against Catimbó extended from the
16th to the beginning of the 20th century, the tradition remains alive in our state —
preserving indigenous ancestral elements.
Keywords: Jurema. Indians. Tradition. Ancestrality.
1
Licenciado e bacharel em História pela UFRN, especialista em Ciências da Religião pela
UERN, é servidor público na função de professor na SEEC-RN. ID Lattes: 4638.4633.1693.5766.
ORCID: 0000-0002-0515-0222. E-mail: romulo_livreiro@hotmail.com.

195
196 Parnamirim, jan./jun. 2021

Se nos determinarmos a conversar, durante alguns dias, com um número


considerável de pessoas, sobre as comumente chamadas “religiões afro-brasi-
leiras”, perceberemos que boa parte dos indivíduos com os quais dialogamos não
consegue diferenciar Candomblé, Umbanda e Catimbó. As pessoas geralmente
consideram essas três religiões, surgidas em tempos e espaços distintos, como
uma só e mesma coisa.
Sendo o Candomblé, em linhas gerais, uma tradição de matriz africana, che-
gada ao Brasil durante o período colonial, caracterizada pelo culto aos orixás
(personificações das misteriosas forças da natureza e, ao mesmo tempo, ances-
trais divinizados); e a Umbanda uma religião nascida no sudeste brasileiro no
início do século XX (agregando em um único corpo ritualístico e cosmogônico
o culto aos orixás e elementos provenientes de tradições indígenas, judaico-
cristãs, kardecistas e orientais); é o Catimbó (também chamado Jurema Sagrada,
Catimbó-Jurema, Jurema e Culto aos Senhores Mestres), por sua vez, legado in-
dígena que sobrevive ao tempo e resiste às inovações e mudanças que o tempo
traz.
O Catimbó, assim como o Candomblé, possui uma história marcada por per-
seguições e proibições ocorridas principalmente durante o período colonial —
época em que diversos pajés, índios, índias e caboclos, tiveram suas ocas quei-
madas, seus corpos mutilados e suas vidas condenadas por reverenciar, con-
forme seu universo cultural e conjunto de crenças, os espíritos que acredita-
vam proteger suas comunidades e por praticar um tipo característico de magia
medicinal que envolvia, simultaneamente, a defumação com ervas, a ingestão
de bebidas sacramentais e a evocação de forças da floresta. Essas práticas fo-
ram consideradas feitiçaria e não tardaram em ser condenadas pelo colonizador
adventício. Porém, à margem da sociedade colonial, malgrado as proibições e
perseguições sofridas, o Catimbó permaneceu vivo e, com o tempo, à medida
que chegavam ao território brasileiro povos de origens diversas (cada grupo
com seu respectivo conjunto de valores e crenças), os antigos cultos à Jurema
assimilaram aspectos objetivos, subjetivos e simbólicos, de matrizes distintas —
tornando-se um culto, ou antes uma religião (uma vez que possui a capacidade
de religar seus devotos às suas concepções de sagrado e ancestralidade) híbrida,
cabocla, cujas raízes e principais práticas remontam aos povos autóctones do
sertão nordestino, mas que ultrapassou os séculos, alcançando Império e Repú-
blica.
Por mais que as perseguições ocorridas, em sua maioria, tenham sido quase
completamente esquecidas, deixaram fragmentos na memória de antigos mes-
tres de Jurema (alguns dos quais conheci pessoalmente e enriqueceram, com
suas memórias, este artigo). Ademais, excertos foram citados por autores que
extraíram de poucas fontes escritas do passado determinadas notas relaciona-
das à tortura, prisão e mortes de índios e caboclos — sendo objetivo deste ar-
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 197

tigo analisar alguns desses poucos casos, quase perdidos, especialmente os que
ocorreram no território do Rio Grande do Norte.
Conforme o processo colonizador ganhava corpo, se expandia e fortalecia,
os índios eram aldeados e submetidos à tutela estrangeira. Em paralelo à “ca-
boclização” e integração de nativos de etnias distintas em comunidades sujeitas
à autoridade da Igreja e da Coroa Portuguesa, elementos de origem africana
e europeia chegavam em número crescente ao território brasileiro. Regiões
como Pernambuco e Bahia, que possuíam portos apropriados à vinda de es-
cravos africanos, receberam um grande número de negros que, com o tempo,
tanto assimilaram elementos materiais e imateriais de origem indígena quanto
transmitiram-lhes aspectos de sua própria cultura.
Na então Capitania do Rio Grande, o processo escravocrata se deu de modo
singular: como aqui não havia porto apropriado à escravidão africana, os se-
nhores de engenho e fazendeiros que pretendessem possuir “negros da Guiné”
teriam que compra-los pelo dobro do preço a escravocratas de outras regiões.
Por isso, senhores locais preferiam aprisionar e escravizar “negros da terra”
(índios acusados de rebeldia ou de atentar contra o cristianismo e o Estado por-
tuguês) — o que lhes saía menos custoso. Consequentemente, a quantidade de
afrodescendentes no território do Rio Grande do Norte foi consideravelmente
pequena, se comparada à presença negra em Pernambuco e Bahia e, por con-
seguinte, o culto à Jurema que se desenvolveu no estado em que vivemos foi,
durante muito tempo, marcado principalmente por elementos indígenas, cris-
tãos e judaicos.
Como a maioria dos pesquisadores que trataram do Catimbó-Jurema deu
preferência ao estudo de suas manifestações conforme se formaram e ocorre-
ram em Pernambuco, Paraíba e Ceará, o Catimbó norte-rio-grandense e seus
processos de formação e desenvolvimento permanecem pouco conhecidos. Por
outro lado, a presença de centros espíritas e de terreiros de Umbanda no estado
do Rio Grande do Norte, a partir do final da primeira metade do século XX,
com o subsequente surgimento e expansão das federações de Umbanda e Can-
domblé em nosso estado, exerceram consideráveis influências sobre os centros
e casas que cultuavam a Jurema — de modo que os rituais mais próximos das
antigas pajelanças foram e continuam sendo, vagarosa mas progressivamente,
substituídos por elementos de matriz africana e brasileira (compreendamos que
o Candomblé é africano, a Umbanda é brasileira e o Catimbó é ameríndio — sua
presença é muito mais antiga que a formação das estruturas políticas e econô-
micas que definiram o Brasil).
Meus contatos iniciais com o Catimbó ocorreram entre os anos de 2005 e
2012 — época em que tive a oportunidade de participar de inúmeras sessões de
Catimbó-Jurema em terreiros de Canguaretama (município localizado no litoral
sul do Rio Grande do Norte), visitar comunidades indígenas (o Amarelão, em
198 Parnamirim, jan./jun. 2021

João Câmara; o Katu dos Eleutérios, em Canguaretama, e a Aldeia Trabanda,


em Baía Formosa, foram as aldeias visitadas na época), conversar com mestres,
mestras e pajés (o sacerdote de Jurema, em ambiente não-indígena, é chamados
“mestre”; em aldeias, “pajé”). Foi, por sinal, no final desse período que me tornei
mestre e assumi a direção do Centro Cultural e Espiritualista Casa Sol Nascente
do Rei Malunguinho (terreiro que se localizava no limite entre Parnamirim e
Macaíba, cuja existência durou cerca de sete anos).
O início daqueles contatos ocorreu sem qualquer intenção de envolvimento
afetivo: foram movidos por uma feira de ciências que tinha como objetivo apre-
sentar as religiões existentes em Canguaretama (na época eu lecionava Cultura
e Economia do Rio Grande do Norte, na Escola Estadual Juarez Rabelo). A Se-
cretaria de Educação do município apresentava o tema (único a ser abordado
por todas as escolas) e o assunto do ano letivo de 2005 foi “religiões de Cangua-
retama”. Me surpreendi ao perceber que os grupos de todas as escolas decidiram
abordar exclusivamente o cristianismo em suas vertentes católica e protestante.
Então, em conversa com o diretor da citada escola, me prontifiquei a abordar o
Candomblé (na época eu não conhecia as semelhanças e diferenças existentes
entre o Culto aos Orixás, a Umbanda e o Catimbó)
Saímos, eu e um grupo de quatorze alunos e alunas, à procura de um Can-
domblé (que não encontramos). Porém, um professor nos levou a uma casa,
localizada em área periférica, na qual, nos fundos, havia um centro em que
ocorriam as “mesas espíritas” (“mesa” é o nome que as sessões de Catimbó re-
cebem em alguns centros). Chegamos no Centro Mestre Pena Branca e Estrela
do Mar — então dirigido por Maria Ivonete da Silva Santana, mais conhecida
como Neta — no momento em que ocorria uma sessão: a mestra estava por
trás de uma mesa grande, coberta com toalha branca, sobre a qual havia livros,
flores, terço, velas e um copo com água (chamado “princesa” nos terreiros). À
sua esquerda havia outra mesa, com velas, rosas e estátuas representando os
Mestres (as entidades espirituais que atuam nas sessões também são chamadas
“Mestres”, “caboclos” e “encantados”).
Ao longo da sessão, os Mestres vinham e se manifestavam através da mestra
Neta. Conversavam com as pessoas que se encontravam no local, receitavam
plantas e tratamentos para doenças específicas, desmanchavam malefícios má-
gicos, transmitiam força aos doentes, bebiam cachaça e fumavam — utilizando,
inclusive, cachaça e fumaça de cachimbo em trabalhos de cura à guisa de anti-
gos pajés (sempre que sentia ser necessário, um Mestre dava uma “fumaçada”
em um doente objetivando a cura). Essas defumações mágico-medicinais, em
Tupi Antigo (língua falada pelos nativos do litoral norte-rio-grandense à época
inicial da colonização), são chamadas ka’átimbor, (palavra que em português
pode ser traduzida da seguinte forma: ka’á, “mato” e timbor, “fumaça”, em ou-
tras palavras, “fumaça de mato”, defumação).
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 199

Dentre as ervas utilizadas nas defumações, encontra-se, presente em todos


os terreiros e em inúmeros trabalhos e cerimônias, desde épocas remotas, o Ta-
baco. Na Capitania do Rio Grande, foi de uso constante entre os povos do litoral
e do sertão: vegetal reverenciado por seres humanos e entidades espirituais —
sendo ele próprio, nos mitos Kariri, chamado Badzé, reconhecido como ente
espiritual descido dos céus em forma de planta, senhor da floresta e dos en-
cantos. No litoral, os pajés Potiguara fumavam pra curar e para transmitir aos
guerreiros o “espírito da força”; os Tarairiú e Chumimy (Kariri que recusavam
a conversão à fé cristã) evocavam espíritos, abençoavam casais e fertilizavam o
solo com sua fumaça.
Mas dentre os vegetais sagrados presentes no Catimbó há um que está acima
de todos: a Jurema Preta. Planta mágica por excelência, utilizada em diversos
preparos medicinais do universo popular indígena-caboclo, cujo poder de cura
e proteção espiritual parece não ter limites. Pinturas rupestres apontam à pos-
sibilidade de um culto à Jurema ancestral entre os índios do sertão; Olavo de
Medeiros Filho e Luís da Câmara Cascudo disseram algo sobre uma bebida,
produzida com o citado vegetal, capaz de levar os índios a visitar mundos espi-
rituais e interagir com seus habitantes. Foi, provavelmente, essa característica,
esse potencial da Jurema, que a tornou o “vegetal mestre” por excelência entre
os povos indígenas e seus descendentes. Hoje, “Jurema”, no universo mítico-
cultural autóctone, além de vegetal sagrado é o nome de um Reino (um mundo
espiritual) formado por reinos menores, cidades e aldeias, nos quais vivem as
entidades espirituais que se manifestam nas sessões; é o nome de uma cabocla,
ente espiritual e protetor; o nome de uma bebida sagrada, sacramental, comun-
gada em determinadas sessões; e um dos nomes da tradição em si.
O encontro com Neta mudou minha vida. Graças a ele me encontrei. Dei
início a uma pesquisa, bibliográfica e de campo, que não tem dia nem hora para
acabar; e independente dos preconceitos que sofri, em diversos momentos e lu-
gares, me assumi catimbozeiro. À proporção que interagia com casas, terreiros
e comunidades indígenas e caboclas nas quais se cultuava a Jurema, conheci
detalhes objetivos e subjetivos da tradição — até que, após ter obtido sucesso
em um trabalho de cura realizado com fumaça, um catimbó, fui reconhecido
juremeiro por uma outra mestra: a senhora Zélia Maria, dirigente do Terreiro
Tupinambá.
Resumindo o que até agora foi exposto, podemos dizer que o que atualmente
chamamos Catimbó-Jurema, Jurema Sagrada, Culto aos Senhores Mestres ou
Catimbó, é uma tradição de matriz indígena — talvez uma das mais antigas
do continente Americano — que, independentemente dos influxos europeus e
africanos sofridos ao longo do tempo, possui como principais características
elementos de origem indígena: culto à Jurema Preta, considerada um vegetal
sagrado em torno do qual gravitam outras plantas e seres espirituais; espíritos
200 Parnamirim, jan./jun. 2021

que, além de homens e mulheres, são pássaros, animais, seres marítimos e guar-
diões da floresta; defumações mágico-medicinais e evocatórias; comunhão de
bebidas vegetais capazes de expandir a consciência, dentre outras. Particular-
mente, considero o Catimbó uma verdadeira religião. Utilizo o termo “religião”
porque, como todas as outras, ele não deixa de ter seus meios de nos religar à
Divindade (a Deus, à Natureza, às concepções caboclas de “divino” e “sagrado”).
Possui, além disso, uma série de ritos, inclusive breves liturgias, com base nos
quais transcorrem as sessões (as chamadas “mesas altas”, “mesas baixas”, “mesas
rasteiras” e “giras de Jurema”, conforme o propósito do mestre, as necessidades
dos devotos e os costumes do centro).
Como todas as religiões, os catimbozeiros cultuam entes espirituais. Esses
seres são pássaros, cobras e outros animais sagrados, espíritos de plantas, almas
de grandes pajés e índios guerreiros; além dos chamados mestres e mestras:
inteligências de antigos curandeiros, raizeiros, parteiras, feiticeiros e bruxas,
alguns dos quais oriundos de Portugal ou África, considerados seres humanos
que, em algum momento de suas vidas, entraram em contato com a “ciência do
índio” e passaram a trabalhar na Jurema.
Durante a colonização do território brasileiro, à margem dos diversos alde-
amentos nos quais se aproximaram índios de etnias a princípio rivais; e devido
à presença cada vez maior de judeus marranos, africanos de diversas nações,
bruxas e feiticeiros degredados, sacerdotes católicos e missionários protestan-
tes, os cultos à Jurema assumiram novas expressões conquanto assimilavam
elementos adventícios.
Com o tempo, ao lado das pajelanças indígenas, o caldeamento colonial ge-
rou as pajelanças caboclas — cujas primeiras manifestações foram as chamadas
“santidades”: cerimônias realizadas por índios e portugueses nas quais pajés uti-
lizavam trajes sacerdotais católicos e batizavam seguidores, bebiam, fumavam
e entravam em êxtase. A Igreja Católica, por sua vez, perseguiu diversos “des-
cimentos”: evocações de entidades espirituais que “desciam” sobre os mestres
e pajés mediante grandes defumações de tabaco e ingestão de bebida Jurema.
Além desses ocorreram os “adjuntos de Jurema”, realizados às escondidas, no
meio das matas, por índios e caboclos; o “ritual caboclo” em que se bebia Jurema
e cantava para santos católicos e seres encantados; o “Ritual Tapuia” no qual
os caboclos ficavam nus, comiam carne crua com mel e corriam pelas matas
de Canguaretama e Goianinha, durante o transe; e, finalmente, o Catimbó dos
mestres juremeiros, em que antigos fundamentos de matriz indígena coexis-
tem com práticas cabalísticas, bruxaria e feitiçaria ibérica, caracteres africanos
e catolicismo popular.
O Catimbó-Jurema resistiu ao tempo. Algumas das inúmeras perseguições
a que os membros de nossa tradição foram submetidos, desde o albor da co-
lonização, ocorridas no território do Rio Grande do Norte, permaneceram nas
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 201

memórias de alguns mestres e mestras — alguns dos quais tive a honra de co-
nhecer. Como quase nenhuma historiografia sobre esses acossamentos foram
realizadas até então, esses fatos tendem a desaparecer para sempre, tanto da
história quanto da memória popular.
Se a princípio os sacerdotes católicos designados à catequese não reprimi-
ram com veemência os índios relutantes, com o tempo as perseguições se tor-
naram muito violentas — uma vez que parte dos nativos resistia em abandonar
costumes e práticas antigas e, por outro lado, indígenas convertidos tinham di-
ficuldade em abrir mão de seus conjuntos originários de crenças. Os jesuítas,
geralmente, não exerciam violência em sua repressão aos índios resistentes; já
os padres barbadinhos, de origem italiana, catequistas dos sertões, reprimiram
de modo muito violento os índios Kariri categorizados de feiticeiros. Nos Anais
da Biblioteca Nacional há relatos de acontecimentos ocorridos em 1761, nas pro-
ximidades do Rio São Francisco, no território do Ceará, relacionados a índios
mortos sem qualquer julgamento — assassinados por missionários. Capuchi-
nhos italianos, por sua vez, torturaram nativos batizados e aldeados, residentes
nas missões, e queimaram seus corpos. Anos antes, em 1717, o índio João da
Costa havia sido capado e açoitado, após o quê teve seu cadáver arrastado e
queimado. As cinzas foram cobertas por terra. O mesmo destino tiveram as ín-
dias Theodora, Narciza, Francisca, Andreaza e Izabel (SIQUEIRA, 1978, p. 103–
104).
Em precioso trabalho intitulado Religião como Tradução: missionários, Tupi
e Tapuia no Brasil colonial, Cristina Pompa (2003, p. 379–406) apresenta, ao tra-
tar da ação catequética nas aldeias do sertão nordestino, o modo de agir utili-
zado por padres de diversas ordens para reprimir indígenas que se esforçavam
em preservar suas crenças e práticas mágico-medicinais e oraculares ancestrais
— assim como as festas em honra às antigas divindades: queimavam ocas sa-
gradas, destruíam instrumentos e objetos ritualísticos, chicoteavam nativos e
batiam-lhes com palmatória. Nesse contexto as fugas eram frequentes. Du-
rante os séculos XVII e XVIII vários índios se embrenharam nas matas para,
longe dos aldeamentos, tentar reconstruir locais de culto e sustentar valores e
mitos originários.
Como sabemos, o território do Rio Grande do Norte, durante a colonização,
foi habitado por três grandes grupos indígenas: no litoral viviam os Potiguara
(partícipes do grande tronco linguístico-cultural Tupi); e nos sertões viviam as
nações Tarairiú e Chumimy (ambas subdivididas em diversas comunidades que
quase sempre recebiam os nomes de suas lideranças). Por mais que houvesse
distinções e peculiaridades em seus universos cosmogônicos e espirituais, aque-
les nativos possuíram crenças, ritos e práticas muito próximas cujos fragmentos
permanecem vivos no Catimbó-Jurema dos dias atuais — fato que observei na
Jurema cultuada no litoral de nosso estado, principalmente nos municípios de
202 Parnamirim, jan./jun. 2021

Canguaretama e Goianinha, região sobre a qual me concentrei durante os sete


primeiros anos de pesquisas.
Conforme sucedeu em outras regiões do nordeste brasileiro, as persegui-
ções a índios e caboclos juremeiros ocorridas em território norte-rio-grandense
ultrapassaram o período colonial. Se entre os séculos XVI e XVIII, 33 índios
e mamelucos quedaram, de fato, presos pela Inquisição, apenas no oitocentos
foram denunciados 273 índios e descendentes por diversas razões, principal-
mente por beber Jurema e “descer demônios” em meio a toques de maracás e
cantigas nativas. Entre os denunciados se encontravam: a índia Antônia Guira-
gasu que “tomava umas grandes fumaçadas de tabaco de cachimbo até ficar fora
de si” e “invocava os demônios que lhe respondiam várias perguntas do outro
mundo” (RESENDE, 2011 apud ANGÉLICO, 2020, p. 55); e o Payaku Gaudêncio
(tronco linguístico cultural Tarairiú), denunciado em 1756 por “feitiçaria” e por
ter matado magicamente cerca de 50 pessoas — com o auxílio de intérpretes
(Gaudêncio não falava português) ele afirmou ser feiticeiro e disse que “todas
as vezes que bebia jurema ou angico lhe apareciam várias figuras horrendas”
(CRUZ; SANTOS, 2010 apud ANGÉLICO, 2020, p. 55).
O Angico, assim como a Jurema, é uma das plantas sagradas mais citadas em
cânticos ritualísticos e utilizadas, nas comunidades juremeiras, na manipulação
de diversas medicinas tradicionais. Os povos autóctones preparavam, como
visto, uma bebida enteógena com raízes da Jurema Preta; e com as sementes
de Angico produziam um rapé (chamado Yopo) que, inalado, além de comba-
ter males relacionados a problemas respiratórios, também alterava o estado de
consciência provocando determinadas visões.
A medicina aborígine, por estar relacionada à crença na atuação de espí-
ritos (que a Inquisição categorizava de demônios), teve seu aspecto mágico-
cerimonial combatido — tendo sido as fórmulas tradicionais de confecção de
diversos salvatérios, tão bem guardadas e escondidas pelos nativos que finda-
ram perdidas.
Luís da Câmara Cascudo cita o caso do índio Antônio, falecido, confesso e
sacramentado, em dois de julho de 1758, sepultado no adro da Igreja de Nossa
Senhora da Apresentação. Antônio, que tinha aproximadamente 22 anos de
idade, esteve preso na cidade do Natal em razão de sumário realizado contra os
índios encontrados em “adjunto de jurema, que se diz supersticioso”, na “Aldea
do Mepibú”. Sobre os adjuntos de Jurema, Cascudo escreveu: “Uma festa secreta
dessa indiada, no século XVIII, dizia-se ‘adjunto de jurema’. Adjunto é reunião,
sessão, agrupamento. Faziam a bebida com a jurema e bebiam-na em meio de
cerimônias que não deixaram rasto” (1978, p. 27–28).
A memória popular afirma que, em algumas ocasiões, os juremeiros mortos
eram desenterrados pela polícia e tinham seus corpos queimados. Se a causa
para a queima era supersticiosa ou uma forma simbólica de repressão, não sa-
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 203

bemos. No caso de Antônio, por mais que tenha sido enterrado, após confissão
e sacramento, no adro de uma igreja, o triste fato de ter sido preso e morrer em
consequência de um adjunto de jurema aponta para a existência de violentas
ações repressivas aos juremeiros no Rio Grande do Norte.
Um dos casos mais interessantes de juremeiros perseguidos no Rio Grande
do Norte, foi o ocorrido com Manoel Remígio (no bairro atualmente chamado
Tirol), relatado no jornal A REPÚBLICA de 27 de outubro de 1900 — citado por
Sérgio Santiago em Ritual Umbandista (1973, p. 15–16), do qual transcrevo-o
integralmente.

Ontem por volta da meia noite a Polícia fez uma boa colheita.
Foi o caso que o indivíduo de nome Manoel Remígio do Nascimento,
antigo profissional de “feitiçaria”, tinha convocado uma sessão para
o esquisito local, próximo à lagoa, conhecida por a Lagoa de Ma-
noel Felipe, cerca de meia légua distante desta cidade, o que efeti-
vamente se realizou.
O velho pajé, vendo-se face a face com um agente policial cora-
joso e enérgico, assim desautorado e interrompido em meio da ses-
são magna, onde a alquimia de par com a encenação mágica tinha
boquiaberta e presa toda a assistência, composta de onze pessoas,
tentou nesse lance oferecer alguma resistência. . .
Preso o Remígio e mais os seus crentes foram conduzidos a
esta Capital à presença do Dr. Francisco Carlos, que como salu-
tar ensinamento ao Pajé natalense, apesar do seu misterioso saber,
mandou-o repousar das fadigas, lá no palácio do Cabo André.

Como pode ser percebido, durante cerca de quatrocentos anos, índios e ca-
boclos não encontraram paz. Por mais que se esforçassem, não havia sossego
à realização de ritos ancestres ou local no qual conseguissem realiza-los com
o mínimo de segurança. A ridicularização e humilhação de Manoel Remígio e
dos que assistiam sua pajelança é objetivamente exposta nas páginas do citado
periódico.
Casos de perseguição policial como o acima citado parecem ter sido co-
muns no território norte-rio-grandense. O Catimbó entrava no rol das práticas
de feitiçaria proibidas, formal e informalmente, pela justiça imbuída de valo-
res judaico-cristãos coloniais que localizavam no campo do condenável e ex-
terminável o conjunto de manifestações espirituais de matriz indígena e seus
participantes.
Em Canguaretama tomei nota de caso análogo, ocorrido com dona Inácia
Maria da Conceição, avó da mestra Neta (citada no início deste artigo). Segundo
sua descendente, dona Inácia teria sido uma das primeiras pessoas do município
204 Parnamirim, jan./jun. 2021

a trabalhar nas “mesas” — tendo começado a realizar suas práticas espirituais


aos cinco anos de idade, sob luz de candeeiro (como Remígio, no início do século
XX) Na época não existiam centros na cidade (as sessões ocorriam nas casas de
pessoas doentes, nas próprias moradas dos juremeiros ou no meio das matas
sob um pé de jurema preta), assim como não havia Umbanda ou Candomblé: a
repressão policial coibia a realização de atividades do gênero.
Aos dez anos de idade, dona Inácia teria sido perseguida e presa pela po-
lícia, porém, após adivinhar um problema familiar do delegado e ter deixado
os policiais perplexos, foi posta em liberdade. O acontecimento fez com que
Inácia jamais voltasse a ser procurada pela justiça. Segundo a mestra Neta,
sua avó teria aprendido a “Ciência da Jurema” com uma cabocla (o que aponta
para a existência de processos de transmissão oral muito antigos, sendo essa
oralidade a principal ferramenta à preservação do que os caboclos chamam de
“fundamentos”) e desde os treze anos de idade realizava partos sem cirurgia, es-
tancava hemorragias, fazia cair dente doente e puxava leite de peito através de
rezas-fortes; adivinhava o sexo dos bebês, curava e benzia — tendo trabalhado
na Jurema até os 72 anos de idade.
Nos dias de hoje, dona Neta não caminha mais entre nós. Para os juremeiros,
ela se tornou uma Mestra da Jurema. Seu sobrinho, porém, é o atual dirigente
do Centro Mestre Pena Branca e Estrela do Mar. Consegui acompanhar, durante
alguns anos, o desenvolvimento do rapaz naquele centro: aos quatro anos de
idade, tinha visões de pessoas falecidas e seres do Encanto, adivinhava a loca-
lização de indivíduos distantes e a existência de malefícios em pessoas partici-
pavam dos trabalhos dirigidos por sua avó; recebia, em alguns casos, Mestres
de Jurema. Por volta dos sete anos, afirmava que seguiria o mesmo caminho
da Mestra; e hoje é ele o responsável pelo Centro que, atualmente, possui um
corpo de discípulos.
Conforme o exposto neste artigo, o Catimbó norte-rio-grandense, malgrado
as severas perseguições e deturpações sofridas ao longo de mais de quatrocentos
anos, resistiu aos desafios e dificuldades característicos da sociedade colonial.
Os dados que possuímos, embora possam ser considerados poucos, apontam
para atuações muito cruéis realizadas contra índios e caboclos catimbozeiros
principalmente durante o século XVIII — ainda que a oralidade e os parcos re-
latos remanescentes indiquem a continuidade repressora até o início do século
passado. Hoje, século XXI, a polícia não mais persegue ou prende alguém por
seu conjunto de crenças ou matiz espiritual. Porém, perseguições ideológicas
permanecem vivas em nossa sociedade e os juremeiros, assim como umban-
distas e candomblecistas, continuam sendo citados, em discursos radicais de
proveniência cristã, como pagãos e adoradores do diabo.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 205

Referências
ANGÉLICO, R. H. P. Espiritualidade Indígena e Culto à Jurema no Rio
Grande do Norte. 2. ed. Natal: Casa da cópia, 2020.
ASSUNÇÃO, L. O Reino dos Mestres: a tradição da jurema na umbanda
nordestina. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
CASCUDO, L. C. Meleagro: pesquisa do catimbó e notas da magia branca no
Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1978.
POMPA, C. Religião como Tradução: missionários, tupi e tapuia no Brasil
colonial. São Paulo: EDUSC, 2003.
SANTIAGO, S. O Ritual Umbandista: (breve contribuição para o estudo das
causas naturais dos fenômenos ocultos). Natal: Fundação José Augusto, 1973.
SIQUEIRA, B. Os Cariris do Nordeste. Rio de Janeiro: Livraria e Editora
Cátedra, 1978.

Recebido em 3 mai. 2021.


Aprovado em 4 mai. 2021.
Artigos livres

207
DISPOSITIVO MODA
A roupa em processos artísticos contemporâneos
Violeta Adelita Ribeiro Sutili1

RESUMO: A compreender a moda enquanto este grande sistema comunicador ociden- Como referenciar?
SUTILI, V. A. R. Dispositivo
tal, formado por códigos distintos, o qual age de forma direta na construção de padrões moda: a roupa em
estéticos e culturais, e que, de forma similar, cada época e localização geográfica impõe processos artísticos
contemporâneos. Revista
seu próprio arquétipo de beleza, pretende-se apontar manifestações artísticas que rom- Galo, n. 3, p. 209–224, 17
pem com seu viés padronizador na vestimenta. A demonstrar obras brasileiras capazes jul. 2021
de atravessar seus sentidos, por meio da atribuição do desenvolvimento de campos se-
mânticos, são apresentada proposições artísticas brasileiras contaminadas pelo tema.
Partindo da produção contemporânea de Nazareth Pacheco, artista em questão a apre-
sentar um breve panorama acerca da representação de corpos e vivências através das
vestes, posteriormente são apresentados trabalhos pessoais desenvolvidos em acordo,
ou desacordo, aos processos de vestimentares.

Palavras-chave: Corpo. Moda. Arte. Processos artísticos.

FASHION DEVICE
Clothing in contemporary artistic processes

ABSTRACT: Undestanding fashion as this big Western communication system com-


posed of different codes, which acts directly in the construction of aesthetic and cul-
tural models and, the same way, each time and geographic location imposes a beauty
archetype of its own; we aim to point out artistic manifestations that break with their
standardizing bias on clothing. Demonstrating Brazilian works capable of surpass their
own meanings, with the attribution development of semantic fields, Brazilian works
that transcend common sense were exhibited and proposals for Brazilian art contami-
nated by the theme were presented. Beginning with contemporary works by Nazareth
Pacheco, the artist briefly presented the process of representing the body and experi-
1
Mestranda em Artes Visuais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)/ Min-
ter Universidade Federal do Amazonas (UFAM), na área de concentração de Poéticas Visuais,
na linha de Desdobramentos da Imagem. É pós-graduanda em Gestão Cultural (SENAC) Ba-
charela em Moda pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC, 2019). ID Lattes:
4199.3411.8974.7319. ORCID: 0000-0003-2333-5543. E-mail: violetasutili@gmail.com.

209
210 Parnamirim, jan./jun. 2021

ence through vestment, and then introduced personal works that were developed in
compliance with dressing processes, or not.
Keywords: Body. Fashion. Art. Artistic Processes.

Introdução
Esta investigação apresenta-se como parte do processo de pesquisa interessada
em compor diferentes colocações para as relações estabelecidas entre artes vi-
suais e moda, bem como o fazer das roupas. Neste cenário, a roupa concomi-
tantemente com processos artísticos de diferentes níveis práticos mostrou-se
interessante objeto de interação entre indivíduos em suas aparições contempo-
râneas de acordo com seu momento histórico.
Neste texto, discutiremos os objetos da roupa como plataforma em pro-
cessos artísticos, assim permeadas pelos corpos envolvidos na experiência de
moda. Revertendo ao contrário do que seria a situação usual, as roupas nesta
abordagem não são consideradas como simples objetos de consumo globalizado,
mas como uma interface para as variadas aparições do corpo. Pensaremos as
roupas como substância ou mesmo elementos mediadores em relacionamentos
de exteriorização e processos de subjetivação.
Para vários fins, pode-se ter a roupa como uma espécie de envoltório, ou
seja, a segunda pele que nos é aderida socialmente. Segundo Mendonça (2006,
p. 34), as principais necessidades ou finalidades das roupas podem ser atribuí-
das basicamente a três aspectos: proteção, humildade e decoração. Em várias
etnias, em épocas diferentes, há uma ou mais finalidades para o uso de roupas
e enfeites.
De forma ligeiramente inicial, é a partir do uso de adereços e da pintura cor-
poral em pode-se percebê-los como itens utilitários para a experiência da vida:
proteção, quando se busca nas roupas certo abrigo climático devido a tempera-
tura local, ou o uso de roupas e artigos/amuletos de proteção espiritual. Seja por
razões religiosas como estéticas, historicamente as vestes se apresentam como
elemento visual para além de se cobrir o corpo. Nisto pensamos a roupa em si
isolada de seu contemporâneo significado, este conhece-se por ser atrelado a
complexas redes de troca e monetarização de serviços.
A roupa, mesmo que escalonada a sua presença capital, é um meio de ex-
pressão pessoal, um sinal de identidade e uma forma possível de estabelecer
diálogos com o que há em seu entorno. Também podemos dizer que as ves-
tes são o contato mais íntimo com o contexto exterior, de acordo com Castilho
e Martins (2005, p. 36) acredita-se que as relações entre roupa e corpo engen-
dram “as relações com mundos possíveis e imaginários, cujos significados são
atrelados culturalmente à imagem e à percepção do ser”.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 211

Não obstante, pensar em roupas em circunstâncias atuais direciona a pes-


quisa a posicioná-las, meramente em um primeiro momento, a um sistema de
primazia a novidade e ainda assim obsolescência de produtos, este ingenua-
mente é denominado moda:

Em sentido lato, a moda compreende todas as manifestações


exteriores de usos e costumes consagradas dentro de um determi-
nado período, desde comportamentos sociais e conceitos morais,
até o estilo prevalecente nas formas dos objetos produzidos e do
vestuário adotado. Em sentido restrito, o termo aplica-se às trans-
formações periódicas nas formas dos trajes e demais detalhes de
ornamentação pessoal. (MENDONÇA, 2006, p. 17).

Esse sistema cíclico composto por infindáveis expressões e ilusões de apa-


rência ajuda a colocar as roupas em uma complexa rede de subjetivação sim-
bólica. A roupa, em suas possibilidades, não é cabível de apresentar-se apenas
como roupa, mas também pode vir a compor a arquitetura de uma afirmação
social, intelectual e emocional de si mesmo e de seu coletivo, em que se coloca
como elemento possível não apenas de cobrir o corpo, mas comunica-lo. Os
trânsitos obtidos na troca de roupas demonstram discussões a nível oncológico,
como quais são as preferencias em escolha, quais os lugares a ocupar no mundo.
Golpeada por uma grande contradição, torna o indivíduo único, mas ao mesmo
tempo pertence a um grupo.
Contudo, seria ingênuo emalhetar a dimensão estética e sensível das roupas
às intempéries do que se compreende como o sistema de moda. Interessa-nos
destacar que a moda cabe a gama expressiva vestimenta que se comporta na
arquitetura têxtil do cobrir o corpo, a própria não se faz digna de tamanhos
elogios quando este é dado teoricamente como o fenômeno social que possui
aparição no início das atividades capitalistas na modernidade europeia, trazida
e imposta aos povos de onde hoje encontra-se o território por nós habitado ao
sul global.

A intervenção etnográfica nos estudos sobre moda problema-


tiza este conceito e busca inserir os povos não ocidentais dentro de
um sistema de produção do vestuário que antes era tido como ape-
nas Ocidental. Em resumo, politiza-se o conceito de moda quando
aplicado às análises históricas, culturais e sociais sobre a moda, lo-
calizando os efeitos sociopolíticos de uma abordagem que busca
afirmar não haver moda em sociedades fora do Ocidentais. (SAN-
TOS, 2020, p. 16).
212 Parnamirim, jan./jun. 2021

Apresentada nossa inclinação teórica, interessa-nos, nas manifestações ar-


tísticas apresentadas, dialogar com diferentes abordagens da vestimenta, talvez
rompendo com ultrapassadas impressões de moda, a tendo como campo vasto
de expressão.

A roupa nos corpos e por que a moda?


Objeto responsável pela captação de diversas discussões, a moda tem em si re-
levante pesquisa realizada pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky, a demonstrar
que a mesma poderia ser dada como plataforma capaz de captar as subjetivi-
dades do corpo (e os seres que o possuem) através do vestir. “Primeiro grande
dispositivo a produzir social e regularmente a personalidade aparente, a moda
estetizou e individualizou a vaidade humana, conseguiu fazer do superficial um
instrumento de salvação, uma finalidade de existência” (LIPOVETSKY, 1989,
p. 39).
É neste campo de percepção que coloca-se o vestir, ocidentalmente perfor-
mado através do fenômeno de moda, dentro do campo de processos de subjeti-
vação. Ora, os sujeitos constituem sua vestimenta, e nisto sua aparência, atra-
vés da construção por muitas vezes etérea de sua imagem e discurso e, uma vez
que o sistema de moda se impõe no cotidiano de certas sociedades em seu viés
colonizador, este é imposto e apropriado pelos indivíduos como canal de sua
comunicação uma vez que o vestir constrói sua experiência cotidiana. A subje-
tividade na construção da vestimenta se faz presente, entretanto, seria ingênuo
colocar que sua formação se dá de forma não estigmatizada em seus contornos
por meio do viés colonizador que já lhe aplica a que compasso deveria surgir o
contorno de seus corpos.
Como se é de costume, o vestuário pode determinar o nível de participação
social vindo de seu usuário bem como discorre sobre sua inserção - a produção
em massa de roupas vem a facilitar esse processo uma vez que o acesso a signifi-
cativos bens se torna menos estratificado ao passo que a produção exponencial
de roupas desvinculada de suas preocupações humanitárias ou trabalhistas lhes
serve na redução de seus verdadeiros custos. Quase que na mesma metáfora de
acesso a bens de vestuário contemporaneamente, a distinção pessoal também
pode ser acessada, causando diferenciação entre os mesmos. Assim, por mais
que uma peça de roupa seja adentrada em seu padrão industrial e reproduzida
massificadamente esta mesma, ao ser posta em posse por determinado indiví-
duo, atribui a esta sua ferramenta de subjetivação: ao encontrar o corpo uma
roupa não pode mais ser a mesma.
Os processos de subjetivação da vestimentar ocorrem ao passo que sua pla-
taforma comunicadora é proposta ao universo pessoal de cada um, mesmo que
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 213

se pense que o ato de criação não se ocorre em dado momento, a apessoaliza-


ção (no sentido de tomar forma de quem a usa, humanizar) se mostra presente.
Enquanto houverem exponenciais gamas de corpos e territórios corporais a se-
rem vestido, a roupa não possuirá em si sua mesma aparência. Ora massificada,
a roupa constituída em escala industrial, desprende-se de seu histórico inicial-
mente capitalista, e demonstra em si a auto representação de quem a veste.
Entretanto, se o desejo deste texto apresenta-se no debate das plataformas
artísticas e expansões do corpo, por que moda? A compreender a moda en-
quanto este grande sistema comunicador ocidental, formado por códigos dis-
tintos, o qual age de forma direta na construção de padrões estéticos, e que,
de forma similar, cada época e localização geográfica impõe seu próprio arqué-
tipo de beleza, pretende-se apontar manifestações artísticas que rompem com
seu viés padronizador na vestimenta (e em seu teor conceitual, talvez, rom-
pam com a “moda”). Mesmo considerando a moda como este ser estigmatizado
de corpos com sua fundação no início da atividade capitalista na modernidade
europeia, ainda que se possível removê-la em nossa globalização de seu perfil
neocolonialista, se coloca presente os processos subjetivos (conscientes ou não)
de seus usos. A moda não se mostra aqui como campo do consumo e fetiche,
mas também como linguagem apropriada por meios artísticos em sua dimensão
vestimentar.
Nesta discussão, não se poderia citar as vestes apenas como “roupas” utili-
zadas por artistas em suas manifestações, afinal, a percepção do mesmo quanto
ao uso delas é deturpada pela construção da lógica vestimentar em que vive. A
aparência de como conhecemos uma calça, por exemplo, é calcada na apresen-
tação da mesma que nos foi imposta a partir do projeto colonialista, assim se dá
com camisas, casacos, etc.: as roupas que conhecemos não são necessariamente
as roupas que nossa lógica histórica veio a criar.
A ideia de moda vinculada a plataformas artísticas nos casos apresentados
se faz presente com aparições do vestir que não dialogam com trajes tidos como
pertencentes a moda ou indumentária. Tal termo considerado de cunho coloni-
alista ou necolonialista uma vez que se impõe em situações de diálogo binário:
a moda relacionada ao novo e a mudança, e as sociedades não ocidentais presas
ao seu tempo.

Entendemos que o conceito de moda pode ser utilizado como


mais uma noção dentro do aparato ideológico colonial que busca
desautorizar a relação das sociedades não ocidentais com o tempo
ao afirmar que esta última não tem moda porque pouco mudam seu
vestuário, ou como o colonizador prefere chamar, sua indumentária
ou costume (SANTOS, 2020, p. 6).
214 Parnamirim, jan./jun. 2021

É neste limiar que se discute quando ocorrem manifestações artísticas ca-


pazes de romper com as convenções ordinárias das vestes e que são. Captadas
transbordando suas fronteiras utilitárias (proteção física e temperatura) e ex-
cedendo a vasta expressão subjetiva de cada ser que se apresenta vestindo e
traduzindo a seus modos sua recém adquirida peça do sistema comercial de
moda, as protuberâncias artísticas em roupas ocorrem quando se desvincula o
universo de sua aparência ao preciso discurso pessoal. Emendar as vestes ao
discurso artístico pessoal também revela subjetivações provindas das manifes-
tações por meio dos signos destas vestes, produzindo novas variações para seus
significados.
Dada a perspectiva da produção de subjetividade engendrada pelo uso apro-
priado de peças do vestuário, seja em sua prática cotidiana ou a nível do objeto
na arte, a moda é tomada como dispositivo. Este desdobramento de conceito é
demonstrado pelo filósofo francês Michel Foucault (1979) e também articulado
nos estudos dos filósofos Gilles Deleuze (1990). A escapar das diferenças de suas
abordagens, a ideia de um dispositivo pode ser compreendida como uma rede
heterogênea em que nestas se engendram práticas disciplinares e de controle.
Destas mesmas, se articulam discursos, regras, instituições. O tramar de suas
ações produzem modos de pensar, formas de viver, sentir e suas visualidades.
Uma das ferramentas que se mostram ativas no dispositivo de moda são suas
próprias modelagens, desenho planificado de cada pedaço de tecido necessário
para a construção e uma roupa. Tais modelagens, juntamente de seus limites,
agregam uma lógica normativa de corpos e expressões, ao desenhar o contorno
do corpo também se impõe a forma do mesmo. Entre outros problemas, esses
limites postos pela moda dentro da dimensão do vestir também estimulam o
não alargamento de discursos e representações.
Contudo, apesar de dadas relações não favoráveis a multiplicidade comu-
nicacional, o elemento vestível, por estar sempre extremamente próximo de
seus usuários, ainda assim é demonstrado presente em seus desdobramentos
como plataforma criativa. Deste modo, emergem manifestações contrárias à
sua homogeneidade, trabalhando na transpessoalidade daquilo que lhe é con-
dicionado. Tamanha sua abordagem conceitual, as manifestações artísticas que
em si buscam o romper com o viés padronizador das roupas utilizam-na do
avesso, colocando em jogo o modo de funcionamento do próprio dispositivo.
Assim, partindo dos processos de subjetivação engendrados ao vestir e o
uso das roupas delineadas pelos corpos presentes, se demonstra apropriado o
estudo desta plataforma na arte. As escolhas artísticas, quando em decorrência
do viés vestimentar explora suas possibilidades, seus diálogos, sua abrangência,
de forma a compreender a potencialidade de seus discursos quando apropria-
dos de materiais cotidianos. Quando o discurso se apresenta, em sua esfera
participativa, aos interesses em diálogo com possíveis receptores, contribui-se
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 215

para a evasão de ideias e pensamentos permeados em suas narrativas por seus


territórios e culturas.
De acordo com Costa (2009, p. 75),

[. . . ] o traje, por envolver identidade, sexualidade, poder e sen-


tidos metafóricos, constitui um meio fascinante, além de tocar em
aspectos como intimidade com o corpo e expressão de status, sig-
nificados simbólicos e de comunicação.

Costa coloca assim, o traje como “objeto de reflexão, meio de expressão e


suporte de criação”, podendo oferecer a este que o faz uso, no caso, o artista “es-
paço e substância para a obra de arte”. O traje, por estar presente ao corpo, co-
munica sua identidade, sexualidade, entre outros, construindo seu campo sen-
sível pertinente ao olhar de quem o veste e aquele que o recebe. Proposto por
Cacilda Teixeira da Costa (2009), aplica-se o termo “roupa de artista” o qual
abrange todo o tipo de obras que demonstrem roupas não sendo necessaria-
mente destinadas a uso.
O termo “Roupa de Artista”:

[. . . ] designa uma produção que se insere no campo dos novos


meios, ao lado do vídeo, arte postal, cinema de artista, web art e ou-
tros, já esteve presente em quase todos os movimentos artísticos do
século XX, na forma de vestimentas singulares, performances, em-
pacotamentos, estamparias exclusivas, vídeo e outras tecnologias
e continua contemporaneamente em transposições, apropriações e
vestuários incomuns, entre outras manifestações. (COSTA, 2009,
p. 9).

Em sua proposta, interessa-nos estuda-la a partir dos usos da roupa na arte


em suas manifestações destoantes ao povoado sistema de moda, entendido me-
taforicamente como esta catraca apaziguadora de expressões distintas a com-
plexidade neocolonial imposta. Uma vez apresentada para manifestar a pre-
sença daquele que a veste, dirige-se a experiência vivida, a narrativa encon-
trada ao perceber a roupa como portadora de um ser vivente. Moda e roupas
apresentam-se como seres interdependentes neste cenário, mas não incapazes
de fazer ressoar importantes questionamentos em seu campo ampliado.
As roupas atribuem um novo significado na arte. Tida como plataforma
cotidiana de uso comum, o explorar das vestes demonstram captações de ima-
ginários e representações dadas pela narrativa individual de quem as atribui a
sua aparência, discurso, ou caminhada artística. Por meio de uma breve aná-
lise das pesquisas sobre os artistas e suas obras no vestuário aqui apresentadas,
216 Parnamirim, jan./jun. 2021

podemos perceber que muitos deles passam a pensar no ato de vestir a partir
de novos preceitos e povoações, como os sentidos despertados, a crítica a pa-
dronização de corpos e outras questões que envolvem a narrativa daqueles que
possuem seu contorno.

O vestir de Nazareth Pacheco


A artista Nazareth Pacheco, natural de São Paulo, apresenta sua carreira que
começou em meados da década de 1980. A partir do início da década de 1990,
passou a usar materiais cortantes agregados aos seus trabalhos, produzindo em
suas obras determinadas experiências. Criava então objetos ou obras por muitas
vezes “intocáveis”, não acessíveis a mão com tanta facilidade. Encontramos
o contraste entre o que será a sedução e a repulsa na biblioteca de imagens
derivadas de sua experiência biográfica, seus registros tomam presença em sua
aparição, essas impressões envolvem conceitos universais a vivencia humana
como dor, prazer, morte e vida.
Autora de trabalhos como roupas inteiramente feitas de navalha, a artista
estuda as questões de memória e identidade de dentro para fora. Desde sua
infância, a artista passou por diversas operações cirúrgicas devido a doenças
congênitas, que se caracterizam por uma relação dolorosa com o corpo e as
lâminas que a atravessavam com certa frequência.
Embora suas obras citem diretamente essa experiência, seus trabalhos não
podem ser classificados apenas como suas práticas autobiográficas, pois neles
expõe a universalidade do sofrimento, sendo este também uma característica
da vida e das condições de sobrevivência neste mundo o qual se habita. Os tra-
balhos de Nazareth Pacheco se equilibram e testam, diante a análise de quem
vos escreve, a dicotomia entre charme e estranheza: vistos à distância, são obje-
tos ou peças delicadas e brilhantes, atraem o olhar com vislumbre. Se mostram
materiais como miçangas e cacos de vidro ou resina acrílica, a curta distância
se proclama: materiais cortantes e perfurantes como facas, ganchos e navalhas,
causam sentimentos de angústia e até medo (PEREIRA, 2012).
Em busca de uma explicação ampliada, a partir do olhar as peças feitas pela
artista (roupas e acessórios específicos para corpos femininos) podemos envol-
ver a dimensão violenta das cirurgias estéticas, que transforma o corpo femi-
nino em busca de se adequar aos padrões de certa “normalidade”. A adaptabi-
lidade presente, ou seja, se pensarmos em corsets ou outros tipos de traçados
projetados para corpos-modelo, em que buscamos a aceitação social e a tole-
rância do vestuário e da própria moda, para que as vestes tenham as mesmas
dimensões violentas no corpo. Um modelo ao caminho da forma corporal ideal
ou perfeita. Até mesmo, aplica-se a esta discussão, as formas do corpo reprodu-
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 217

zidas a nível industrial pela cadeia de atividades manufatureiras de produção do


vestuário: desenha-se um formato de corpo e espera-se que um grande escopo
populacional se insira no mesmo.

O fato de permitir que o corpo suporte tais ataques de forte característica


invasiva, o faz perder a dimensão do significado da persuasão colocada ao corpo
que se entende como incorreto e ineficaz no enfrentamento desta situação. Uma
vez que se apresente padronizado, brilhante, charmoso e sedutor, isso faz com
que valha a pena o processo intrusivo e violento de modificação da aparência.
A artista relata assim que quando se busca uma sensação de beleza, se faz ne-
cessário sucumbir a cortes, não necessariamente estes propostos em cirurgias
plásticas, mas também a evasão de nossos corpos quando desiste-se deles como
são e o subordinam a compreensão de imagem corporal desejada coletivamente.
Assim expõe sua relação biográfica pessoal no processo de trabalho, e o ideal
de beleza passou a ser a prioridade. Para a artista, o bisturi a traz o pânico, en-
tretanto, esse é o caminho apresentado que precisamos percorrer para alcançar
a chamada beleza.

Apresentada na Figura 1, o vestido composto de lâminas de barbear, compõe


um simulacro de brilho e leveza atribuída em sua transparência e caimento,
como uma cortina de missangas, as quais, em um olhar mais atento, denunciam
um objeto perigoso.

A imagem apresentada na Figura 1 mostra o trabalho de Nazareth Pacheco,


nele a artista propõe o vestido de giletes assim feito rigorosamente sob suas
próprias medidas. Este representa sua presença em objeto, por outro ângulo
quando o observamos desprovido de um corpo, automaticamente nos coloca-
mos em seu lugar. A medida que passamos a habitá-lo, a experiência ocorre
estabelecendo uma relação empática que nos desloca do lugar comum, que sub-
verte e transforma os modos de vestir, que nos fazem refletir sobre as manifes-
tações da existência em nossa sociedade e de como um objeto aparentemente
trivial como uma vestimenta é imbuído de uma significação que transborda à
nossa vista.

Sob o ponto de vista da leitura que é realizada acerca de seus trabalhos, é


nesse movimento em zig-zag, em que reconstrói e reforça conceitos, estereóti-
pos e tradições. O receptor diante da obra sente a tecitura cortante do vestido
de Pacheco que dilacera a própria pele, expondo a dimensão sensorial de seu
sangue e carne. É vivida a fragilidade e vulnerabilidade da vida, não apenas,
apresenta-se o enredo do “ser mulher” para algumas, que diante de sua infini-
dade de papéis de gênero percorrem o caminho de encontro ao belo ao qual se
sentem no dever de servir.
218 Parnamirim, jan./jun. 2021

Figura 1 – “Vestido Acrílico, Cristal e Giletes”, Nazareth Pacheco, 2003

Fonte: Editora PUC-RS. Disponível em http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/apc


g/edicao10/Hiascara.Alves.pdf. Autor: Hiascara Alves.

Processos pessoais

Vista a dissidência em foco a aparições em moda, uma nova dimensão é pro-


posta para as vestes, os objetos nas roupas vêm a se fundir, não se trata exclu-
sivamente do objeto roupa como a aparição de seus signos ao compor artístico.
Estes contágios ocorrem de forma perene, bem como as práticas no espaço que
passa a ser a superfície, seja este corpo, tecido, roupa. O habitar em todas suas
dimensões se torna pele, a roupa mostra se como este tecido sensível e, até
mesmo em sua ausência, onde ocorrem estas habitações é proposta a escrita.
Ao adentrar na dimensão do vestível, veste-se, de modo que vestir o próprio
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 219

Figura 2 – Detalhe lâminas utilizadas

Fonte: Editora PUC-RS. Disponível em http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/apc


g/edicao10/Hiascara.Alves.pdf. Autor: Hiascara Alves.

objeto é colocá-lo a discurso de si.


Neste cenário, diferentemente da terminologia aplicada as roupas, o termo
moda denomina, nesta concepção, o modo de pensar e viver estabelecido na
modernidade europeia, e nos primórdios da atividade econômica capitalista, a
qual prima pelo novo e abandona-se a tradição. A compreensão conceitual de
moda é capaz de tomar amplas variações de acordo com a autoria de quem a
investiga, o que se busca discutir aqui é o processo da aparência ao sistema de
moda em colisão ao que se compreende como a roupa: canal de comunicação-
codificação de subjetividades-espaço em trânsito. Ou o inverso.
Os seguintes trabalhos apresentados se introduzem como processos em tra-
mar a tessitura das vestes. Utilizou-se de abordagens que pensassem a arquite-
tura técnica da moda, atribuindo aos trabalhos objetos presentes no cotidiano
fabril de moda, como fichas técnicas, desenhos técnicos, nomenclaturas pró-
prias e ordens de execução. Criava-se então objetos ou obras por muitas vezes
“segmentadores”, objetos aos quais facilmente seriam utilizados para catego-
rizar elementos, pessoas, corpos. É encontrado o contraste entre o que será a
220 Parnamirim, jan./jun. 2021

padronização e o não cumprimento as exigências técnicas estabelecidas na ex-


periência de submeter-se ao vestir moda, seus registros tomam presença através
da aparição de linhas, caixas. Esses limites envolvem conceitos cotidianos no
que se diz respeito a vestes, movimentos, tamanhos e expressões.
Ao apresentar trabalhos compostos exclusivamente das visualidades de li-
nhas e limites, estuda-se as questões de sobreposição de fronteiras e padroniza-
ções corpóreas na imagem de moda imposta. Assim como os limites do corpo
são traçados e impostos no desenvolvimento de peças de vestuário, impõe-se
o contorno desejado e os modos de viver por assim desejados. Apesar destes
limites, a camada expressiva vestimentar se coloca proposta a cruzar padrões e
hábitos.
De tecido praticamente transparente e linhas de tensão em seu entorno é
construído uma espécie de body, peça de roupa voltada a parecer com o con-
torno do corpo nu. Por meio de costuras bruscas desenha o contorno de cada
molde da peça, cada engrenagem de limitação de seu dispositivo. A modela-
gem da roupa, desenha um corpo magro e esguio, em seus doze moldes, reúne
diferentes recortes de tecido que modelam um corpo ausente, mas ainda tensi-
onado por seus contornos, cabe a peça buscas aquela que a vista e cumpra com
suas limitações, ainda que exposta. Após o amadurecimento de sua identidade,
a roupa recebe a própria ficha técnica, “a qual contém todas as informações téc-
nicas necessárias do produto a ser desenvolvido” (PIRES, 2014). Nela apresenta
suas bruscas atribuições, registros de tensão e pressão, em toda sua anatomia.
São nomeados os moldes, e mais grosseiramente: é apresentado seu processo.
Assim, veste-se do body e sua ficha técnica, onde demonstra-se registro de
nova habitação. Esta peça possui sua vida social arraigada nas demonstrações
que é colocada, vindo de encontro a proposta inicial que possuía: somos de-
senhados e imbuídos em numeradas situações. Por sua vez, estes contornos
mesclam-se com a roupa, o corpo percorrido já é visto no seu simulacro ves-
tido.
Esta materialização é realizada em papel vegetal, vidro e cimento. Em que a
vivência cotidiana vestimentar encontra-se dentro do sanduiche de vidro, nas
entranhas da ficha técnica, não como a força motriz do produto (como é a roupa)
mas o dispositivo de constante ordem (como é a moda).
A visualidade e conceitualidade dos trabalhos apresentados (incluso o de
Nazareth Pacheco) nada se apresentam na conceituação de moda e seu fazer
ou, até mesmo, em seu processo de criação. Assim como o requinte e o com-
portamento são relegados às vestes, pelo contrário, há uma completa inten-
ção de subverter o uso e representação de roupas (principalmente femininas),
condenando explicitamente esta denúncia às condições físicas e imagéticas dos
corpos em diferentes áreas que sistematizam o cotidiano social das aparências,
desde o que lhe confere a gênero, como também espaços públicos, íntimos e
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 221

Figura 3 – Ficha técnica

Autor: Violeta Sutili.

inconscientes pessoais.
Estas e outras produções de sentido (e de participação feminina) dessas e de
outras artistas em face das técnicas tradicionais, e das participações em acordo
as expressões vigentes, demonstra que a linguagem dada pelos têxteis é “uma
cacofonia de muitas vozes que, como os tipos de obras feitas por artistas con-
temporâneos provam, não mostram sinais de esgotamento ou obsolescência.”
(BELL, 2015). O que se mostra aqui é apenas um excerto, tentando revelar os
muitos aspectos da experiência em vestes, a demonstrar o poder político dos
trabalhos e a relevância de sua atuação como agentes dissidentes.

Considerações finais
Em diálogo com o cotidiano, as práticas artísticas contemporâneas levantam
questões que enfatizam a relação entre arte e vida, podendo questionar o estilo
de vida hegemônico vigente. Ao utilizar materiais incomuns (como roupas)
como uma das formas de manipular essas provocações define-se a conversa
não exclusiva ao debate dos corpos em jogo. Nesse caso, os vestidos de Nazareth
Pacheco, bem como os corpos em Ficha Técnica, tornam-se uma plataforma que
pode questionar os dispositivos de moda por contrastar os padrões gerados.
Os trabalhos apresentados demonstram ter seguido um caminho diferente
dos requisitos de dispositivo. Ao usar uma variabilidade material inesperada,
a construção do belo e a padronização dos corpos são questionados. Quando
222 Parnamirim, jan./jun. 2021

olhamos para as obras, não só o mercado, mas também os dispositivos de pro-


dução dos próprios equipamentos de moda são questionados em certa medida.
Fazer suas próprias representações quanto ao pensar a produção de roupas, em
vez de usa-la simplificadamente prontas como vendidas em grande escala, pode
ser uma forma de resistir.
Mesmo ao reconhecer o sistema de moda como este ambiente hegemônico,
a plataforma roupa propõe-se como substancia para a escritura de narrativas,
imaginários e representações. Assim, ao aclamar suas historiais pessoais, os
indivíduos que a utilizam expressivamente não apenas comunicam a si, mas
comunicam sobre seu coletivo e suas crenças.

“Como é que sabemos isso? Pelo próprio tecido.” Isso acon-


tecia não só porque a tecelagem, tal como a escrita e outras artes
visuais, fosse frequentemente “usada para marcar ou anunciar in-
formação” e como “meio mnemônico para registrar fatos e outros
dados”, mas também porque têxteis comunicam, de fato, em termos
das imagens que aparecem no lado direito do pano, embora este seja
apenas o sentido mais superficial em que processam e armazenam
dados. (RAGO, 2013, p. 29).

Por fim, pode-se considerar que os processos artísticos apresentados demonstram-


se como articulações dissidentes ao efeito hegemônico produzido pela linha de
dispositivos de moda. Eles contradizem os principais padrões de vestimenta, a
homogeneização e a lógica corporal imposta nesse dispositivo, assim, o desa-
fiam ao propor outros métodos de manuseio do vestuário, que podem apresen-
tar diferentes visões na produção subjetiva.
Se tivermos a roupa como este território que cobre o corpo, nada mais apro-
priado, em nosso contexto em que o mercado global mostra força ao definir as
formas que se darão o vestir, que discutamos estas questões através da moda por
si mesma. Deste modo, seria através de seus próprios moldes e incongruências
humanitárias, zarpando de um corpo envolto que opera

[. . . ] como suporte material, sensível, que se articula com dife-


rentes códigos de linguagem, como a gestualidade, com a sensoria-
lidade e com a própria decoração corpórea, e a moda e o seu design
como projeto, processo de transformação da aparência que obje-
tiva a diferenciação ou a similitude. (CASTILHO; MARTINS, 2005,
p. 31).

Mesmo em discordância com determinadas praticas em moda e seus im-


pactos, a pesquisa alinha-se a pensar novas conceituações para a mesma, uma
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 223

vez que não deixará de envolver os corpos, mas sim se demonstra necessário
politizar seus conceitos. A fim de demonstrar narrativas de variados contex-
tos, especialmente ao sul onde nos localizamos, parte-se de uma ideia de moda
como plataforma e potência: do corpo e de seu indivíduo-coletivo.

Pois bem, entendemos que a moda é uma forma de se relacionar


com o vestuário, dentre muitas outras, devendo ser estudada como
o que de fato ela é: uma das maneiras de se lidar com o vestuário
não sendo melhor ou mais surpreendente que qualquer outra [. . . ]
neste sentido, o vestuário incorpora a moda, uma vez que esta úl-
tima existe apenas como uma relação social que se estabelece com
o primeiro. (SANTOS, 2020, p. 21).

Referências
BELL, K. New Yarns. Tate Museum, Londres, 2015. Disponível em: <http:
//www.tate.org.uk/context-comment/articles/new-yarns>.
Acesso em: 28 set. 2020.
CASTILHO, K.; MARTINS, M. M. Discursos da moda: semiótica, design e
corpo. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2005.
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Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e Edusp, 2009.
DELEUZE, G. ¿Que és um dispositivo? In . Michel Foucault,
filósofo. Tradução: Wanderson Flor do Nascimento. Barcelona: Gedisa, 1990.
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FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a moda e seu destino nas
sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
MENDONÇA, M. C. M. M. O Reflexo no Espelho: o vestuário e a moda
como linguagem artística e simbólica. Goiânia: UFG, 2006.
PEREIRA, H. A. Memórias de Nazareth Pacheco: do corpo à obra. In:
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EM CRÍTICA GENÉTICA, 10., 2010, Porto Alegre. Anais. Porto Alegre:
PUCRS, 2012. Disponível em: <https://ebooks.pucrs.br/edipucrs/
anais/apcg/edicao10/Hiascara.Alves.pdf>. Acesso em: 28 set. 2020.
PIRES, G. Ficha técnica da moda: da modelagem à produção. Audaces, 2014.
Disponível em: <https://www.audaces.com/ficha-tecnica-de-
moda-da-modelagem-a-producao>. Acesso em: 28 set. 2020.
224 Parnamirim, jan./jun. 2021

RAGO, M. A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da


subjetividade. Campinas, SP: Unicamp, 2013.
SANTOS, H. H. O. uma análise teórico-política decolonial sobre o conceito de
moda e seus usos. Modapalavra, Florianópolis, v. 13, n. 28, p. 164–190, 2020.

Recebido em 3 mai. 2021.


Aprovado em 4 mai. 2021.
MELHORAMENTOS DE SÃO PAULO
Intervenções urbanas e as irmandades negras da capital
Alvaci Mendes da Luz1

RESUMO: Partindo da análise do uso corrente do termo “melhoramentos” e da “ques- Como referenciar?
LUZ, A. M. Melhoramentos
tão sanitária” nas intervenções urbanas em São Paulo de meados do século XIX e início de São Paulo: intervenções
do XX, o presente artigo se propõe averiguar o quanto o urbanismo, que se configurava urbanas e as irmandades
como saber, influenciou na redefinição do espaço urbano ao longo de quase um século. negras da capital. Revista
Galo, n. 3, p. 225–241, 17
Desde o período colonial, as igrejas de irmandades católicas no centro da capital se jul. 2021
destacaram como espaços de sociabilidade dos negros, marcando ao longo dos sécu-
los os lugares de manutenção da religiosidade afro-brasileira, das heranças culturais
advindas do período colonial e de certa autonomia administrativo-financeira da comu-
nidade negra de São Paulo. No final do XIX e início do XX as igrejas pertencentes a
estes grupos sociais, localizadas no triângulo central, bem como o seu entorno, sofrerão
significativas intervenções da municipalidade.
Palavras-chave: Confrarias católicas. Irmandades negras. Melhoramentos. Urba-
nismo. Higienismo.

IMPROVEMENTS IN SÃO PAULO


Urban interventions and the black brotherhoods of the capital

ABSTRACT: Based on the analysis of the current use of the term “improvements” and
the “health issue” in urban interventions in São Paulo in the mid-19th and early 20th
centuries, this article aims to investigate how urbanism, which was characterized as
a knowledge, influenced the configuration of urban space for almost a century. Since
the colonial period, churches of Catholic brotherhoods in the capital downtown have
stood out as spaces of sociability for the black people. What leads those spaces over the
centuries to figure as places of preservation of Afro-Brazilian religiosity, the colonial
period cultural heritage, and certain administrative autonomy by the black community.
In the late 19th and early 20th centuries, the churches belonging to these social groups,

1
Mestrando em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP. Bol-
sista CAPES. Licenciado em filosofia pela Faculdade de Filosofia São Boaventura de Curitiba,
PR e Bacharel em teologia pelo Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, RJ. Lattes ID:
3967.2455.4903.4773. ORCID: 0000-0002-8929-1240. E-mail: alvaci@gmail.com

225
226 Parnamirim, jan./jun. 2021

located in the central triangle and surroundings, will suffer significant interventions by
the municipality.

Keywords: Catholic brotherhoods. Black brotherhoods. Improvements. Urbanism.


Hygienism.

Introdução
O predomínio dos “benedictos” na que chamavam agora egreja de
São Benedicto nenhuma vantagem lhe trouxe: andava esta suja e mal
cuidada, por toda parte a desordem e o desleixo. No louvável intuito
de obviar esses lamentáveis desconcertos, reuniram-se alguns lentes e
antigos alumnos do “Curso Jurídico” e fundaram com a acquiescencia
do Provincial, uma “Irmandade de São Francisco”, que tinha por fim
cuidar do culto e da conservação e asseio da igreja. Parece, porém,
que este zelo dos “doutores” não foi de longa duração, continuando os
“benedictos” a infelicitar o bello templo franciscano. Aos 5 de outu-
bro de 1908, uma nova era abriu-se para a egreja do Convento de S.
Francisco de S. Paulo. Em dependências da sacristia vieram morar os
nossos confrades [. . . ]. Fr. Basílio, que em seu tempo fez importantes
melhoramentos na egreja, teve que sustentar tremenda luta com os
menos disciplinados filhos de S. Benedicto. (RÖWER, 1922, p. 82).

Com estas palavras, o historiador e frade franciscano alemão, Basílio Röwer2 ,


apresentou os argumentos para exaltar a “nova era” pela qual passava a igreja
de São Francisco do centro da capital paulista. Ao historiar sobre os francis-
canos, em seu livro elaborado para as comemorações do primeiro centenário
da independência do Brasil em 1922, ele não poupou adjetivos para desquali-
ficar a Irmandade de São Benedito3 que por mais de oitenta anos (1828–1910)
2
Basílio Röwer chegou ao Brasil nas primeiras levas de frades alemães, logo após a Pro-
clamação da República, vindos da Província de Santa Cruz da Saxônia. São conhecidos como
“restauradores” pois seu objetivo foi o de revitalizar as Províncias Franciscanas em processo de
decadência no Brasil desde o final do século XVIII. Ele é o responsável por recontar a história
da antiga Província da Imaculada Conceição, bem como, foi o terceiro superior do Convento de
São Francisco no período em que ele foi retomado das mãos da Irmandade de São Benedito.
3
Irmandade de negros católicos instalada na capital paulista desde o século XVII no Con-
vento franciscano do Largo São Francisco. Obteve aprovação oficial - civil e eclesiástica - em
22 de outubro de 1772. Com a saída dos franciscanos da capital em 1828, após a criação do
“Curso de Sciencias Jurídicas e Sociaes” no Brasil (Direito), passam a administrar a Igreja de
São Francisco. Esta administração durará até o retorno dos frades para a cidade de São Paulo.
Um estudo mais amplo sobre esta irmandade está sendo desenvolvido por este pesquisador e
tem como título: “Os pretos de São Benedito: a ascensão de uma irmandade negra na Imperial
cidade de São Paulo” (1854–1890).
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 227

havia administrado aquela igreja localizada no triângulo central4 . Nas primei-


ras décadas do XX ela seria disputada pelos recém-chegados religiosos alemães
e pelos irmãos leigos5 de São Benedito. Argumentos como a falta de asseio, o
desleixo e a desordem, foram utilizados para depreciar a presença daquela asso-
ciação naquele espaço físico, em contrapartida aos “melhoramentos” realizados
no templo com a chegada dos frades europeus.
O final do século XIX e o início do XX foram decisivos para as confrarias6
católicas em todo o território nacional. Dirigidas majoritariamente por leigos,
as confrarias se instalaram no Brasil colonial desde o século XVII e ao longo do
XVIII foram se organizando com estatutos próprios, critérios de adesão de cor,
pureza de sangue, raça e status social. Estavam alicerçadas nos ritos e costu-
mes da tradição católica ibérica desde o século XIII no continente europeu. Este
modelo barroco de catolicismo, afirma Reis (1991), adentrou o século XIX nas
cidades brasileiras, mas será desde o início daquele período fortemente impac-
tado pelos novos conceitos urbanistas, sanitaristas e higienistas7 .
4
Triângulo Central é a área urbana da capital paulista localizada entre os três principais
conventos de religiosos católicos no período colonial, a saber: Mosteiro de São Bento (benedi-
tinos), Convento do Carmo (carmelitas) e Convento de São Francisco (franciscanos). Há outras
definições e delimitações sobre este espaço, convencionamos aqui usar este que se limita a área
dos Conventos.
5
Entende-se por “leigo” todo membro de determinada confraria que não faz parte do clero
institucionalizado, ou seja, que não é sacerdote secular ou religioso do clero regular. Sobre
os leigos nas confrarias católicas mineiras, assim se expressa Julita Scarano: “Podemos dizer
que nessas organizações é que se manifestava realmente o espírito religioso da população, que
congregava os elementos das mais variadas categorias sociais. É interessante notar que tais
elementos eram homens e mulheres que levavam vida comum, mas que patrocinavam o culto,
construíam igrejas, paramentavam-nas, organizavam assim a vida católica local. Realmente, o
leigo da irmandade mineira se considerava a própria igreja, julgando poder intervir em quase
todas as questões eclesiásticas. Via no padre apenas aquele que tem capacidade de dizer missa e
distribuir os sacramentos e somente nessas oportunidades se sobrepunha aos membros das ir-
mandades. Estes sempre manifestaram atitude insubmissa em relação à autoridade eclesiástica,
fato sentido mesmo pelos bispos”. (SCARANO, 1978, p. 28).
6
“As confrarias, divididas principalmente em irmandades e ordens terceiras, existiam em
Portugal desde o século XIII pelo menos, dedicando-se a obras de caridade voltadas para seus
próprios membros ou pessoas carentes não associadas. Tanto as irmandades quanto as ordens
terceiras, embora recebessem religiosos, eram formadas sobretudo por leigos, mas as últimas se
associavam a ordens religiosas conventuais (franciscana, dominicana, carmelitana), daí se ori-
ginando seu maior prestígio. As irmandades comuns foram bem mais numerosas. Da metrópole
se espraiou para o Império Ultramarino, o Brasil inclusive, o modelo básico dessas organiza-
ções”. (REIS, 1991, p. 60).
7
João José Reis faz uma importante análise deste fenômeno em seu livro A morte é uma
festa, tendo como base a revolta popular organizada pelas confrarias católicas de Salvador con-
tra a inauguração do primeiro cemitério público da capital baiana em 1836. No capítulo 10 o
autor pondera o quanto a medicina e suas teorias miasmáticas e microbianas influenciaram na
decadência dos costumes das irmandades, entre eles, o enterro no interior das igrejas. Para mais
228 Parnamirim, jan./jun. 2021

Em São Paulo verifica-se a presença de irmandades desde o século XVII,


dentre elas, as compostas por negros — escravos ou libertos — mais conhecidas
foram a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, a Irmandade de Santa Ifigê-
nia e Santo Elesbão e a Irmandade de São Benedito. Ambas se organizavam em
torno do santo de devoção, das festas anuais, das procissões, da compra de al-
forrias e aquisição de bens, e, particularmente na preocupação quanto ao local
onde os irmãos seriam sepultados e as missas que seriam celebradas por sua
alma8 .
A partir de meados do XIX, a área urbana de São Paulo que desde o período
colonial se concentrava sobre o planalto de Piratininga, local onde se localiza-
vam os espaços de sociabilidade dessas irmandades, começou a sofrer interven-
ções no seu traçado das ruas, avenidas, praças, bem como de suas edificações.
Estas mudanças atingiram diretamente um dos lugares mais importantes dos
negros na urbes: o território das igrejas das irmandades9 .

Melhoramentos de São Paulo: um debate historiográfico


Uma das palavras mais utilizadas para designar as intervenções urbanas em
São Paulo foi a palavra “melhoramentos” e suas expressões correlatas como
“melhoramentos urbanos”, melhoramentos materiais, entre outros10 . A histori-
adora Maria Stella Bresciani (2001) ao se referir a este termo analisa o quanto

informações sobre esse assunto ver REIS, J. J. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta
popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 307–339.
8
Sobre as confrarias de pretos e pardos ver: QUINTÃO, A. A. Contribuições para a his-
tória do protagonismo de negros e índios na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
das Pretos da Penha de França. Coordenação: Patrícia Freire de ALMEIDA. Transcrição
paleográfica: Judie Kristie Pimenta ABRAHIM. Pesquisa: Antônia Aparecida QUINTÃO. São
Paulo: Movimento Cultural Penha, 2019; BOSCHI, C. C. Os leigos e o poder: irmandades lei-
gas e políticas colonizadoras em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986; REIS, J. J. A morte é
uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991; SCARANO, J. Devoção e escravidão: a irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Editora Nacional, 1978; VIANA,
L. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas, SP:
Editora Unicamp, 2007
9
Sobre os territórios de sociabilidade negra na capital paulista ver: BERTIN, E. Os meia-
cara: Africanos livres em São Paulo no século XIX. 2006. Tese (Doutorado) – Universidade de
São Paulo, São Paulo; BERTIN, E. Sociabilidade negra na São Paulo do século XIX. Cadernos
de Pesquisa do CDHIS, Uberlândia, MG, v. 23, n. 1, p. 115–132, 2010; COMAR, M. Imagens
de Ébano em altares barrocos: as irmandades leigas de negros em São Paulo (séculos XVIII e
XIX). 2008. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade de São Paulo; SANTOS,
C. J. F. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza: 1890–1915. São Paulo: Annablume, 1998.
10
Reforçam a afirmação do uso corrente do termo “melhoramentos” as pesquisas realizadas
por Bresciani (2001), Cerasoli (2004) e Borin (2019).
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 229

ele permaneceu em diferentes enunciados na cidade para designar, na grande


maioria das vezes, os benefícios realizados em prol do “progresso”. Ela parte da
hipótese de que a palavra em questão, além de ser usada como lugar-comum,
ou seja, relacionada com a ideia de um acréscimo positivo àquilo que se refere,
também atua como metáfora e assim “articula um sentido a uma representação,
ou uma realização mental sob a forma de imagem” (BRESCIANI, 2001, p. 343–
366) e pode ser ressignificada ao longo das décadas.
Para pensar o trabalho das metáforas, Bresciani (2001) recorre ao filósofo
francês Paul Ricœur que entende “o processo metafórico como cognição, ima-
ginação e sentimento”. Por não haver uma teoria semântica da metáfora a ela se
precisa acoplar uma teoria psicológica, da imaginação e do sentimento. Ricœur
chamará isso de “função pictórica do sentido metafórico” e Bresciani (2001) em
sua hipótese sobre a palavra melhoramentos irá usá-la no sentido das semelhan-
ças, das similaridades, como transferência de significados que a palavra pode
trazer nesse sentido (BRESCIANI, 2001, p. 350). A adaptação do termo para
além do lugar-comum, o manteve nos planos de reformas e nas pautas urbanas
por tanto tempo. Assim, melhoramentos:

Refere-se sempre a objetos concretos, projeções de intervenções


e/ou obras realizáveis que, pela dimensão imagética desenhada ou
sugerida pela linguagem, são capazes de provocar em quem escuta,
lê ou vê, o sentimento de serem partícipes, ou excluídos, de uma
ação coletiva orientada no sentido de uma modelo ideal de cidade
moderna, imagem essa que não se imobiliza numa dada representa-
ção, mas se desloca constantemente, acompanhando os sucessivos
deslocamentos nas concepções de cidade ideal. (BRESCIANI, 2001,
p. 351).

Em outras palavras, tendo como base a proposta de Ricœur, Bresciani (2001)


procura “apreender a palavra melhoramentos, também, como metáfora apli-
cada a múltiplas situações portadoras de benefícios à cidade e a sua população”.
Deste modo “tomando melhoramentos como uma metáfora que põe ante nossos
olhos uma cadeia ou sequência de semelhanças entre artefatos diferentes, pode-
se entender a força explicativa (racional) e persuasiva (emocional) da palavra
quando utilizada em um argumento”. (BRESCIANI, 2001, p. 350–351).
Assim, melhoramentos pode ser usada pela municipalidade paulistana para
descrever as intervenções urbanas implementadas desde 1850 até 1950 na cidade
como lugar comum ou como metáfora. É neste período também que são criados
alguns órgãos oficiais, que usam como base os conceitos do urbanismo que se
configurava como saber. Dentre as atribuições destes órgãos estavam as de
fiscalizar, punir e coordenar obras de pavimentação em ruas, calçadas e praças,
230 Parnamirim, jan./jun. 2021

bem como as de vistoriar lugares de moradia das classes trabalhadoras, como


os cortiços11 .
Em um outro artigo, Bresciani (2010) conduzirá sua reflexão para a com-
preensão da fundamental importância que as questões sanitárias adquiriram
ao longo do século XIX e o quanto elas influenciaram na formação de um sa-
ber urbanístico. Entrecruzando-se com uma multiplicidade de conhecimentos,
o urbanismo se constituirá como disciplina operativa e estará na base das in-
tervenções do final do XIX e início do XX (BRESCIANI, 2010, p. 15). Afirma a
autora:

Um expressivo diálogo entre especialistas de diversas nacionali-


dades e formações — médicos higienistas, engenheiros sanitaristas
e legisladores — dá lugar, no decorrer do século XIX, a um “saber
atuar” sobre a materialidade dos núcleos urbanos e sobre o compor-
tamento citadino, constituindo um campo de ação especializado.
Não há para cada uma dessas especialidades um desenvolvimento
interno próprio. A formação técnica dos especialistas constitui-se
a partir de elementos que se cruzam com questões filantrópicas, re-
ligiosas e morais, tecendo um complexo campo de conceitos e de
“pré-conceitos”. (BRESCIANI, 2010, p. 28).

Em uma rápida trajetória pelo urbanismo que se formava na Europa do de-


zenove, a autora nos traz elementos da multiplicidade constitutiva desse sa-
ber. Dentre eles, afirma que “a coparticipação dos saberes do médico e do en-
genheiro nas primeiras intervenções nas cidades no século XIX encontra na
conjunção industrialização e crescimento demográfico sua explicação mais evi-
dente” (BRESCIANI, 2010, p. 28). Densidade demográfica e industrialização,
unidos a epidemias mortais naquele período, conforme análise do filósofo Fra-
çois Béguin, citado por Bresciani (2010), serão elementos fundamentais para a
“conscientização dos problemas sanitários e a formulação de uma prática inter-
vencionista governamental nas cidades, prática apoiada nos saberes da medi-
cina e da engenharia” (BRESCIANI, 2010, p. 28).
Na Inglaterra, aponta ainda Bresciani (2010), uma série de medidas sanitá-
rias preventivas adotadas pelo governo ao longo do dezenove, para melhorias
11
“O reconhecimento das más condições sanitárias de certas áreas da cidade e, em particular,
das péssimas condições de asseio das moradias coletivas constitui presença constante nos rela-
tórios de autoridades médicas desde pelo menos 1885, quando o médico da Câmara Dr. Eulálio
da Costa Carvalho, dirige-se à Comissão de Justiça alertando-a da necessidade de normas que
estipulassem critérios para a demolição dos cortiços ‘julgados inconvenientes ou prejudiciais
à saúde dos seus habitantes’ e, ao mesmo tempo, orientassem a manutenção da higiene dos
existentes e dos que ainda fossem construídos.” (BRESCIANI, 2010, p. 19).
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 231

de ambientes de água estagnada, lixo acumulado e esgotos em regiões das ci-


dades habitados pela classe pobre trabalhadora, que aliavam a “parceria dura-
doura entre o médico — no cuidado dos corpos — e o engenheiro — nas ações
de saneamento urbano” (BRESCIANI, 2010, p. 29) seriam elogiados pelo médico
Jules Rochard, um dos primeiros a apontar o pioneirismo inglês na adoção dos
princípios de higiene.
Em São Paulo, Bresciani (2010) analisou o impacto que essas ideias causa-
ram sobre os lugares de moradias populares, como os cortiços de Santa Ifigênia
e o bairro de operários do Brás. Seu estudo aponta que tanto as classes mais
populares quanto os letrados tinham conhecimento de todo processo urbanista
que se configurava na Europa ao longo do dezenove. Ela afirma que “descon-
tados os aspectos estritamente técnicos do saber higienista [. . . ], pode-se dizer
que os preceitos da “questão sanitária” encontravam-se largamente difundidos
entre a população.” (BRESCIANI, 2010, p. 19).
Nos primeiros anos do regime republicano, “as epidemias de febre amarela
no interior paulista e na cidade de Santos põem em alerta as autoridades públi-
cas que estabelecem programas de “visitas domiciliares” em áreas consideradas
críticas” (BRESCIANI, 2010, p. 19). Os preceitos da questão sanitária aliados
ao saber técnico justificarão as intervenções forçadas sobre os espaços de so-
ciabilidade, moradias e trabalho, das classes menos favorecidas da população
paulistana em uma cidade que crescia em rápida expansão populacional12 . As-
sim:

A “higiene física” conjugada a “higiene social” passava a exi-


gir a aeração do tecido urbano muito denso, para isso contribuindo
a presença de árvores e fontes e a implantação de equipamentos
técnicos próprios a dar vazão aos mais variados fluxos — água, es-
goto, gás, veículos. Formava-se uma nova sensibilidade sensorial
dos pontos de vista olfativo e visual que estabelecerá sólidos liames
entre as intervenções nas cidades e a noção de embelezamento, a
duradoura relação entre o belo, o estético e a limpeza. (BRESCIANI,
2014, p. 66 apud BORIN, 2019, p. 12).

Em outras cidades o processo era bem parecido. Sandra Pesavento (2001) ao


estudar os “becos” da capital gaúcha, localizados em sua maioria no centro e ha-
12
“A partir da década de 1880, grandes levas de imigrantes impulsionaram o crescimento da
cidade que, em 1886, passa a contar com 44.030 habitantes, concentrados em sua significativa
maioria nos distritos centrais da Sé, Santa Efigênia e Consolação. Dobrara, portanto, o número
de pessoas em comparação ao censo de 1872, que avaliara em 23.243 o número de habitantes
na cidade. A explosão demográfica dar-se-ia nos anos subsequentes: 1890, com 64.934, e 1893,
com 192.409 habitantes (MORSE, 1970, p. 238). Na virada do século XIX para o XX, a população
da cidade seria estimada em mais de 200 mil habitantes.” (BRESCIANI, 2010, p. 20).
232 Parnamirim, jan./jun. 2021

bitados por uma população pobre, negra e de pequenos comerciantes, verificará


o quanto estes lugares passarão ao longo do dezenove por processos interven-
cionistas. Ao analisar os discursos da imprensa daquele período, a historiadora
perceberá como os becos se “tornarão lugares perigosos”, sendo usados como
argumentos para intervenções sanitaristas municipais. Afirma:

O beco passa a ser [em fins do século XIX] a designação que


estigmatiza lugares malditos da urbe. O beco é sinistro, sujo, pe-
rigoso e feio. É o mau lugar, por onde circulam personagens pe-
rigosas praticantes de ações condenáveis. O beco é o reduto dos
excluídos urbanos e corresponde, de forma exemplar, a uma bela
demonstração do que poderíamos chamar a maneira conflitiva de
construir o espaço urbano. (PESAVENTO, 2001, p. 115).

Pesavento (2001) pontua que “na voz dos jornais da época, os ‘becos’ são
sempre sórdidos, sujos, imundos. A designação alude à imagem da cidade que
se quer destruir, é o opróbrio, velhice, feiura, crime e vício” (PESAVENTO, 1999,
p. 19). Sendo assim, faz-se necessário intervenções sobre estes lugares pelo bem
comum, pela boa higiene e para evitar doenças. Ela afirma que na virada do
XIX para o XX o termo muda de significado e “o sentido original, de natureza
mais propriamente topográfico, de rua estreita, com ladeira [. . . ] cede lugar a
uma designação depreciativa que traduz uma avaliação ao mesmo tempo moral,
estética e higiênica” (PESAVENTO, 2001, p. 115).
Esta mesma noção de corrupção dos lugares pobres é verificada no Rio de
Janeiro por Chalhoub (1996). De lá ele nos traz os indícios de o quanto as pres-
sões exercidas sobre os moradores dos cortiços pelos atores deste processo de
limpeza urbana afetaram os menos favorecidos da capital fluminense. Assinala:

Os corticeiros reclamavam que eram inexequíveis ‘as ordens


continuadas’ da Inspetoria de Higiene para fechamento de estala-
gens. Em primeiro lugar, porque não havia para onde remover os
moradores, e não era correto sujeitar o ‘grande número de famílias
ao vexame e às inconveniências de verem transferidos seus lares
para a praça pública. (CHALHOUB, 1996, p. 49).

Enfim, no início do XX a “maturidade do debate internacional centra as pre-


ocupações urbanísticas de modo mais sistemático nas questões relacionadas a
moradia, ao trânsito, às áreas verdes e às grandes cidades” (BRESCIANI, 2010,
p. 32) e evidenciam uma cidade doente, em que “os lugares onde a patologia se
manifesta são sempre as moradias operárias e dos pobres em geral” (BRESCI-
ANI, 2010, p. 32). Todo esse processo alicerçava os projetos urbanísticos daquele
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 233

período e influenciava o caminho escolhido pelo Brasil nos seus planos de me-
lhoramentos.

Igrejas de irmandades negras: intervenções, demolições e


desapropriações

Alguns estudos recentes, bem como alguns já consagrados, procuraram dar visi-
bilidade às confrarias negras na cidade de São Paulo, em contrapartida ao vasto
material produzido sobre suas congêneres em cidades mineiras, baianas, flumi-
nenses e pernambucanas13 . É interessante notar a influência que essas associa-
ções, cada vez mais crescentes na colônia no século XVII e com maior relevância
no século XVIII, tiveram sobre as populações negras nas cidades. Lucilene Re-
ginaldo (2011), em seu trabalho sobre as irmandades e devoções africanas na
Bahia setecentista, acentua que “as associações leigas foram mais numerosas e
influentes, do ponto de vista religioso e social, nos centros mais urbanizados”
(REGINALDO, 2011, p. 25).
Em sua importante pesquisa, ao situar a relevância das confrarias nas cida-
des coloniais, tendo a Bahia como foco central, os estudos de Reginaldo (2011)
nos mostram o que ela chamou de “espaços privilegiados de elaboração de uma
nova religião no Atlântico: o catolicismo negro”. Citando Roger Bastide ela
afirma que mesmo sendo uma imposição do regime escravista, este catolicismo
impositivo acabou permitindo a criação de espaços de culto e reuniões mais ou
menos autônomos, que aconteciam nas irmandades e confrarias negras.
Também João José Reis (1996) afirma que “entre as instituições em torno das
quais os negros se agregaram de forma mais ou menos autônoma, destacam-se
as confrarias religiosas, dedicadas a devoção dos santos católicos. Elas funci-
onavam como sociedades de ajuda mútua”. Assim ”a irmandade representava
um espaço de relativa autonomia negra, na qual seus membros — em torno das
festas, assembleias, eleições, funerais, missas e assistência mútua — construíam
identidades sociais significativas.” (REIS, 1996, p. 44).
13
Alguns dos estudos mais recentes sobre as confrarias católicas em São Paulo, são: CO-
MAR, M. Imagens de Ébano em altares barrocos: as irmandades leigas de negros em São
Paulo (séculos XVIII e XIX). 2008. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade
de São Paulo; QUINTÃO, A. A. Contribuições para a história do protagonismo de negros
e índios na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário das Pretos da Penha de França.
Coordenação: Patrícia Freire de ALMEIDA. Transcrição paleográfica: Judie Kristie Pimenta
ABRAHIM. Pesquisa: Antônia Aparecida QUINTÃO. São Paulo: Movimento Cultural Penha,
2019; e SANTOS, F. F. As igrejas das irmandades dos homens pretos: documentos da cultura
religiosa afro-brasileira na cidade de São Paulo. Universo Barroco Iberoamericano, Sevilla
e São Paulo, v. 13, 2020.
234 Parnamirim, jan./jun. 2021

No caso da capital paulista, Enidelce Bertin (2010) que estudou lugares de


sociabilidade negra na cidade, frisa que apesar de a população de cor estar su-
jeita a tentativas de controle ela “encontrou meios de resistência na ocupação
de alguns espaços como a região das igrejas de Nossa Senhora do Rosário, de
Santa Ifigênia e de São Benedito, que eram sedes das irmandades”. Bertin (2010)
vai mesmo afirmar que “é clássico na historiografia o uso das irmandades reli-
giosas como lócus para observação da sociabilidade entre negros — libertos e
escravos”, por serem estes lugares, espaços de diferenciação de grupos étnicos
africanos nas cidades (BERTIN, 2010, p. 127).
São estes locais de ligeira autonomia negra, de manifestação religiosa e até
mesmo de certa emancipação financeira que serão alvo de intervenções, de-
sapropriações e alijamento do centro urbano. Alegações como falta de asseio,
barulho e perigo naqueles lugares serão comuns nos órgãos de imprensa e nas
justificativas da municipalidade. Bertin (2010) continua:

Os arredores daquelas igrejas, além da rua das Casinhas e da


rua do Comércio eram, sem dúvida, os locais mais importantes da
sociabilidade negra na cidade do oitocentos. A região atraia tran-
seuntes, não apenas pelas irmandades, mas também por conta do
comércio ambulante e informal. (BERTIN, 2010, p. 129).

Umas das irmandades de negros mais estudadas em São Paulo, é aquela que
se reunia na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, localizada até o
início do século XX no Largo do Rosário, hoje praça Antônio Prado. A pro-
fessora Quintão (2002) percorreu em sua pesquisa a história deste importante
grupo social e trouxe elementos interessantes sobre sua relevância na cidade, a
adesão dos negros a esta confraria, os bens adquiridos ao longo de sua história,
as festas e os enterros em seu cemitério particular 14 .
F. F. Santos (2020), outro estudioso sobre o Rosário dos Pretos, afirma que
ao longo do XIX os administradores da irmandade foram adquirindo maior pa-
trimônio imobiliário chegando a se consagrarem entre um dos vinte maiores
detentores de bens na região urbana de São Paulo em 1809 (SANTOS, F. F.,
2020, p. 180). Ao longo daquele século foram adquirindo imóveis e casebres nas
proximidades da Igreja do Rosário o que chamou a atenção do poder legislativo
paulista. Em 1858 a Câmara Municipal já cogitava a desapropriação dos terre-
nos e casas anexas a Igreja, o que foi efetivado com a lei de nº 670 de 1903 que
tornou “de utilidade pública, para o fim de serem desapropriados os terrenos e
14
Para saber mais sobre a Irmandade do Rosário dos Pretos de São Paulo, ver: QUINTÃO,
A. A. Irmandades negras: outro espaço de luta e resistência (São Paulo: 1870–1890). São
Paulo: Annablume e Fapesp, 2002
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 235

prédios necessários ao aumento do Largo do Rosário” (ARROYO, 1966, p. 183),


na gestão do prefeito Antônio Prado.
O relato de moradores do Largo do Rosário, elencados por Arroyo (1966),
de cantorias noturnas de pretos e ritos fúnebres que seguiam até altas horas,
podem ter sido usados como justificativas para algum tipo de sanção moral
sobre eles (ARROYO, 1966, p. 181–182). Ao falar sobre a igreja do Rosário, F. F.
Santos (2020) afirma:

Para a sociedade paulista, a expulsão das irmandades dos ne-


gros das regiões que se tornavam privilegiadas devido ao explosivo
crescimento da capital, teria como um dos argumentos atender aos
padrões de higienização propostos para São Paulo [. . . ]. A memória
dos negros seria apagada no ano de 1903, com a substituição da de-
signação Largo do Rosário para Praça Antônio Prado e a construção
da igreja na periferia da cidade. (SANTOS, F. F., 2020, p. 181).

Em 1886, o Código de Posturas Municipal15 discorria em seus artigos so-


bre uma série de intervenções possíveis no espaço urbano, “o título XVIII versa
sobre ‘vagabundos, embusteiros, tiradores de esmolas e rifas’”, chegando a le-
gislar até mesmo sobre as formas de se permanecer no espaço público. “Outra
regulação do uso da rua semelhante é feita no art. 257, que proíbe ‘os alaridos,
vozerias e gritarias pelas ruas. O infrator incorrerá na multa de 5$ ou 24 horas
de prisão’”16 .
Importante pontuar que ao regular sobre as ruas, o Código de Posturas in-
tervia sobre práticas comuns da população que desde o período colonial eram
exercidas nas vias, praças e becos como estratégias de sobrevivência das po-
pulações negras e pobres. “No ano anterior ao Código de Posturas, o jornal A
Província de São Paulo publicou uma reclamação sobre as quituteiras da Ladeira
do Acu, posteriormente batizada Ladeira São João”, nele “as queixas partiam
do fato que essas mulheres ficavam sentadas no passeio com seus tabuleiros de
fruta, e seguia reclamando da sujeira deixada pelos restos das mercadorias das
15
“O Código de Posturas Municipal era uma legislação bastante ampla, reunindo em um
único documento diversas normativas relacionadas a ocupação, comportamento dos habitantes
e manutenção da cidade. Ele trata tanto da ocupação física, determinando regras pera edifica-
ções e arruamentos, quanto das normas de convivências para realizações de festejos nas ruas,
de funcionamento de estabelecimentos comerciais e de circulação para bondes e carroças, além
de conter uma série de medidas dedicadas às questões sanitárias e higiênicas”. (BORIN, 2019,
p. 7–8).
16
(SÃO PAULO (MUNICÍPIO). CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO.
DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, SÃO PAULO, 6 OUT. 1886. SEÇÃO 1, P. 8503 apud BORIN,
2019, p. 11)
236 Parnamirim, jan./jun. 2021

quituteiras”. Como afirma Borin (2019), “as Posturas tencionavam velhos e no-
vos embates na cidade, dialeticamente articulando repressão a antigos compor-
tamentos e à projeção de um modelo de nova civilidade” (BORIN, 2019, p. 12).
Em uma outra igreja de irmandade negra na região central, a de Santa Ifi-
gênia e Santo Elesbão, localizada próxima aos cortiços analisados por Bresciani
(2010) - que inclusive dá nome àquele bairro — “o fim do século XIX reserva-
ria mais um fato adverso”, um “decreto promulgaria o fim da irmandade e das
disputas entre o vigário e os devotos daqueles santos negros em 1890”. A disso-
lução daquele grupo foi amplamente noticiada na imprensa da época e em 1912
a igreja passou “então a se chamar Igreja Nossa Senhora da Conceição e Santa
Ifigênia, dispondo a antiga padroeira num altar lateral” (SANTOS, F. F., 2020).
Neste sentido, ao retirar os negros destes espaços se retirava deles os lo-
cais de manutenção da cultura e da identidade. Bertin (2010), vai dizer que “a
ocupação de alguns espaços da cidade pelos negros, pode ser relacionada com
a resistência, na medida em que tais lugares tinham especial significação para
as suas práticas culturais”, é por isso, por exemplo, que os entornos das três
igrejas de negros citadas neste ensaio eram conhecidas como lugar de “danças
dos pretos” (BERTIN, 2010, p. 128). Assinala (SANTOS, C. J. F., 1998):

Unicamente as congadas, batuques, sambas, os moçambiques,


ainda se realizavam pelas ruas, de ordinário no largo de S. Bento
ou junto às igrejas de S. Benedito (que os documentos atestam per-
tencer a S. Francisco), e do Rosário, após o recolhimento das pro-
cissões: reprimidas por anacrônicas, foram substituídas pela dança
dos caiapós, arremedo dos costumes daqueles silvícolas, sem valor
étnico, organizado artificiosamente que era, de pretos crioulos da
capital. (SANTOS, C. J. F., 1998, p. 124)

A irmandade de São Benedito do Largo São Francisco, das três citadas até
aqui a menos estudada na historiografia paulistana17 , passou por processo pa-
recido de perda de patrimônio e apagamento de memórias. Teve sua aprovação
oficial no final do século XVIII, mas foi ao longo do XIX que adquiriu certa au-
tonomia e administrou uma igreja particular: a de São Francisco do centro da
capital. A influência deste grupo no templo foi tamanha, que no início do século
XX a igreja era conhecida como Igreja de São Benedito.
A saída dos religiosos franciscanos da cidade de São Paulo em dezembro
de 1828 foi um marco decisivo para a história daquele grupo de negros. No
17
Fazemos esta afirmação baseados na escassa documentação bibliográfica encontrada sobre
a dita Irmandade. As poucas pesquisas sobre o assunto podem estar relacionadas a dificuldade
de acesso às fontes primárias, a imprecisa localização da Irmandade no espaço urbano e até
mesmo às informações desencontradas dos historiadores franciscanos do início do século XX
que a este grupo social dedicaram alguma pesquisa.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 237

espaço do Convento passou a funcionar a faculdade de Direito e naquele da


igreja continuaram a se reunir os irmãos de São Benedito. Por décadas, fizeram
do lugar seu espaço de culto, sociabilidade e autonomia. A aurora da República
abriu lugar novamente ao retorno de religiosos europeus ao Brasil e os frades
aqui chegados passaram a reivindicar conventos e igrejas que a eles pertenciam
desde o período colonial18 .
O jornal O commercio de São Paulo no ano de 1909 assim noticiava:

Os frades, segundo deprehende, mas do que nos foi informado,


pretendem mudar o nome daquella egreja de São Benedicto para o
de São Francisco, isso contra uma disposição episcopal contida no
compromisso da irmandade, que, reconhece a egreja como sendo
de São Benedicto.
Achando que a irmandade está absolutamente no seu direito, de
não consentir no esbulho que lhes querem fazer os frades, os quaes,
segundo estamos também informados, nem sequer tem existência
legal neste Estado, visto que são allemães, com residência em Santa
Catharina, appellamos para s. exc. o sr. bispo afim de interceder
a favor daquella irmandade e não permittir que a mesma seja per-
turbada no seu socego de mais de 40 annos, tanto mais se tratar de
uma corporação composta em sua maioria de pretos indefesos já
por falta de conhecimentos, já pela falta de recursos pecuniários, o
que não acontece a tantas outras congêneres.19

Não pretendemos aqui nos aprofundar nas discussões sobre os embates ju-
rídicos entre irmandade e franciscanos, uma pesquisa simples em periódicos
paulistas como o Correio Paulistano20 fundado em meados do século XIX, já é o
18
Para saber mais sobre os franciscanos no Brasil e a retomada de conventos no sul e sudeste
do país, ver: RÖWER, B. A Ordem Franciscana no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1947; WIL-
LEKE, V. Missões franciscanas no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1974. O professor Maurício
de Aquino tem uma tese interessante sobre este momento histórico: AQUINO, M. Modernidade
republicana e diocesanização do catolicismo no Brasil: as relações entre Estado e Igreja na Pri-
meira República 1889–1930. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 32, n. 63, p. 143–170,
2012. pp. 153–154.
19
Acervo Digital da Biblioteca Nacional [BNDigital] — O commercio de São Paulo, ano 1909,
ed. 1176, fl 1.
20
“Jornal lançado no dia 26 de junho de 1854 em São Paulo, tendo por fundador o proprie-
tário da Tipografia Imparcial, Joaquim Roberto de Azevedo Marques. Foi seu primeiro redator
Pedro Taques de Almeida Alvim. Nascido liberal, o jornal, segundo José Freitas Nobre, em
pouco tempo tornou-se conservador: premido ‘por uma série de circunstâncias, especialmente
as de caráter financeiro. . . teve que ceder à pressão política do Partido Conservador, a ele ade-
rindo de maneira pública, perdendo um pouco do prestígio que conquistara na sua orientação
independente’. Em fins da década de 1860, entretanto, rompida a conciliação entre liberais e
238 Parnamirim, jan./jun. 2021

bastante para constatar a existência deste grupo social e sua relevância na ci-
dade ao longo daquele período. Nos limitamos a lembrar que o pequeno espaço
reservado a eles na historiografia oficial do início do XX foi dado por aquele
grupo de frades europeus envolvidos nas disputas empreendidas21 .
Ao analisar fontes primárias sobre os irmãos de São Benedito na Igreja de
São Francisco, percebe-se, por exemplo, o esforço dos irmãos negros para ad-
ministrar, manter e reformar ao longo do XIX as dependências da igreja. Após
um grande incêndio na Faculdade de Direito em 1880 que afetou boa parte do
templo, coube a eles logo após o sinistro, as obras de reforma, realizadas a du-
ras custas e a pedidos de esmolas. Nas fontes que chegaram até nós constata-se
frequentemente obras de melhoria no templo. Como esta publicada no jornal
Correio Paulistano:

O esplendor excepcional com que tem sido celebradas as ceri-


monias religiosas sobredictas teve por principal motivo a comem-
moração da restauração do altar e capella-mor da egreja do con-
vento de S. Francisco, destruídos por um incêndio, sabe-se, o res-
taurados, como também em tempo noticiamos, á custo de grandes
sacrifícios da irmandade de S. Benedicto.22

O que se sabe é que a irmandade foi extinta por decreto que o arcebispo de
São Paulo, Dom Duarte de Leopoldo e Silva, lançou sobre ela em 24 de feve-
reiro de 1910. No dia 28 do mesmo mês “nomeou uma comissão para arrecadar
e administrar todos os bens da irmandade” e mais, “aos 28 de abril ordenou à
mesma comissão retirasse as caixas de esmolas”. Decretava-se com aval episco-
pal a dissolução daquele grupo de negros e a consequente perda de todas as suas
conservadores, a linha editorial do jornal optou por aqueles. Fundado o Partido Republicano
Paulista (PRP), o periódico tornou-se seu órgão de divulgação e em 1874 foi comprado por Leôn-
cio de Carvalho, adotando uma linha reformista. Em 1882 assumiu a direção editorial Antônio
Prado, que imprimiu ao jornal a orientação de defesa do abolicionismo, e posteriormente de
defesa da ordem republicana. Nascido portanto como um órgão de imprensa liberal e inde-
pendente, logo a seguir conservador e dependente do poder político oficial da província de
São Paulo, novamente adepto da trilha liberal, abolicionista e republicana, o Correio Paulistano
tornou-se mais uma vez oligárquico e conservador depois do advento da República, atingindo
neste período sua maioridade e prestígio juntamente com o PRP, então dirigido pelos oligarcas
paulistas Manuel Ferraz de Campos Sales, Prudente de Morais, Antônio Prado e Francisco de
Paula Rodrigues Alves, entre outros”. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acerv
o/dicionarios/verbete-tematico/correio-paulistano. Acesso em: 6 fev. 2021.
21
Ao citar a presença da Irmandade de São Benedito na Igreja de São Francisco, Frei Basílio
Röwer irá reservar-lhes uma história recontada no espaço de poucas linhas, carregada por sua
vez de adjetivos que desqualificam o tempo em que ela administrou a igreja. Para saber mais,
ver: RÖWER, B. A Ordem Franciscana no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1947.
22
BNDigital — Correio Paulistano, S. Paulo, 6 mai. 1883, ano 29, n. 08000, fl. 1.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 239

posses. Usando as palavras do franciscano Röwer (1957): “ela própria cavou a


sua sepultura” (RÖWER, 1957, p. 120).

Considerações finais
Ao que tudo indica, as ponderações de frei Röwer (1922) ao relatar a passagem
dos pretos de São Benedito pela igreja de São Francisco, estavam impregnadas
das ideias urbanistas, higienistas e sanitárias do começo do século XX. Aliadas
a diversos outros fatores, como apoio do clero e da municipalidade, elas podem
ter influenciado nas decisões que foram tomadas a partir de então.
Afinal de contas a igreja “andava suja e malcuidada”, reinava “a desordem
e o desleixo”, até se tentou diminuir “estes lamentáveis desconcertos” através
dos “lentes e alumnos do Curso Jurídico” mas “os benedictos continuaram a
infelicitar o bello templo franciscano”, foi preciso “uma nova era” com a che-
gada dos franciscanos europeus para que “importantes melhoramentos” fossem
realizados a seu tempo.

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franciscanos da Província da Imaculada Conceição do Sul do Brasil, desde 1591
a 1758, e das aldeias de índios administradas pelos mesmos Religiosos desde
1692 a 1803. Petrópolis, RJ: Vozes, 1957.
SANTOS, C. J. F. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza: 1890–1915.
São Paulo: Annablume, 1998.
SANTOS, F. F. As igrejas das irmandades dos homens pretos: documentos da
cultura religiosa afro-brasileira na cidade de São Paulo. Universo Barroco
Iberoamericano, Sevilla e São Paulo, v. 13, 2020.
SCARANO, J. Devoção e escravidão: a irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Editora
Nacional, 1978.
WILLEKE, V. Missões franciscanas no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1974.

Recebido em 27 jan. 2021.


Aprovado em 16 abr. 2021.
MAPAS DA CIDADE
Textos, imagens e imaginários
Leonardo da Silva Claudiano1
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo buscar as representações da cidade de Como referenciar?
CLAUDIANO, L. S. Mapas
São Paulo das duas primeiras décadas do século XX, por meio do diálogo entre ima- da cidade: textos, imagens e
gens e textos produzidos no período, com destaque a António de Alcântara Machado. imaginários. Revista Galo,
n. 3, p. 243–262, 17 jul. 2021
Pela articulação entre a concretude citadina e algumas produções fotográficas e literá-
rias, pretendemos analisar a formação de determinados imaginários urbanos ligados à
modernidade. Igualmente, intentamos contribuir ao debate entre História e Cidade.
Palavras-chave: História e Cidade. História e Literatura. Modernidade.

CITY MAPS
Texts, images and imaginary
ABSTRACT: This article aims to seek representations of the city of São Paulo in the
first two decades of the twentieth century through a dialogue between images and texts
produced in that period, with emphasis on António de Alcântara Machado. Through
the articulation between city concreteness, and a few photographic and literary pro-
ductions, we intend to analyze the formation of some urban imaginary linked to moder-
nity. Likewise, we wish to contribute to the debate between History and City.
Keywords: History and City. History and Literature. Modernity.

Introdução
Ao nos debruçarmos sobre as plantas da cidade de São Paulo2 , dos anos vinte,
encontramos com facilidade a Rua Oriente. Localizada nos arredores do “BRAZ”
e “Pary”, ela se apresenta como um corte diagonal, em meio aos quarteirões
1
Doutorando em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), com bolsa CAPES. Pesquisador do Núcleo de Estudos de História Social da Cidade
(NEHSC/PUC-SP). Membro do Grupo de Estudos Literatura e Ditaduras (GELD/PUC-SP); e
membro do Grupo de Estudos em História e Literatura da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais (GEHISLIT/PUC-Minas). Lattes ID: 0306.6809.5977.0318. ORCID: 0000-0003-
2010-3501. E-mail: leonardo.claudiano@gmail.com.
2
Disponível em http://smul.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico
/1920.php. Acesso em 12 abr. 2021.

243
244 Parnamirim, jan./jun. 2021

que se desdobram por todos os lados. No mapa, o adensamento populacional,


de certa forma, guarda relação com as diversas letras e linhas que representam
aquele bairro operário. A caligrafia cuidadosa, na folha amarelada, nomeia vias
que, por vezes, sobrepõem-se umas às outras e formam um amontoado que não
se distingue: a cartografia urbana é, aos nossos olhos, caótica na sua apreensão
em escala. Sentimos a densidade da região central e seus bairros circundantes.
Da mesma forma, ao nos afastarmos e procurarmos o olhar em perspectiva, te-
mos longos espaços vagos, alguns novos loteamentos e outros núcleos a ocupar
as bordas — “Villa Gomes Cardim”, à leste; “Villa Leopoldina”, à oeste.
O mapa é fundamental para compreendermos a cidade e seu crescimento.
Sozinho, entretanto, torna estático um processo altamente dinâmico. É preciso
o contraponto com plantas passadas e futuras, para que, em partes, o movi-
mento se revele: ao norte, em 19163 , “SANT’ANNA” tem como companhia a
Cadeia Pública e parcas linhas de ligação ao Centro; já em 19244 , a “Villa Gui-
lherme” se avizinha e a “Villa Maria” tem suas quadras a apontar ocupações
futuras.
A análise pode, então, aprofundar-se. Para melhor entendermos as moti-
vações desta expansão, articulamos à cartografia outras fontes, como relató-
rios técnicos, imagens, textos produzidos por literatos, historiadores, et cetera.
Sevcenko, em sua importante e referencial obra “Orfeu Extático na Metrópole”
(2014), constrói a argumentação assentada em cronistas da imprensa paulis-
tana. Ao colocá-los em diálogo com outros documentos e linguagens, extrai
recortes interessantes da cidade: imagens dos frenéticos anos vinte, resultado
de uma morfologia urbana aparentemente indefinida, entrecortada de tempo-
ralidades e estilos arquitetônicos diversos, pontuada por cortiços e habitações
operárias; vias dotadas de iluminação elétrica, modernos bondes e ruas des-
calçadas. Nesse ambiente concreto, vivências e sociabilidades se desenrolam
a afirmar, negar e ressignificar os próprios traçados pré-definidos. Tais ima-
gens urbanas foram compartilhadas pelos habitantes e, algumas, perpetuadas
no tempo. A nós, chegam ecos abafados, camuflados, também do que se pre-
tendeu emudecer. Narrativas que deliberadamente foram esquecidas, mas que
deixaram rastros, vestígios na cidade em palimpsesto.
A expansão urbana, a qual nos referimos, silenciou a segregação que pro-
moveu, ao reforçar, única e discursivamente, o progresso e a modernidade que
fizeram da localidade esquecida no planalto a maior metrópole da América La-
tina. Nicolau Sevcenko nos lembra que, por detrás do redesenho citadino, do
crescimento vertiginoso de São Paulo, encontrava-se o “mais danoso agente es-
peculador, que comprometeu definitivamente o futuro da cidade, forçando seu
3
Planta da Cidade de São Paulo, 1916 — Imagem: Anexo 1.
4
Planta da Cidade de São Paulo, 1924 — Imagem: Anexo 2.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 245

desenvolvimento em bolsões desconexos” (SEVCENKO, 2014, p. 122) — a em-


presa de capital canadense-anglo-americano, Light and Power:

A Light, naturalmente, era a peça decisiva no modo de expan-


são da cidade. Localizando as paradas finais de suas linhas em pon-
tos extremos e de população rarefeita — Penha, Lapa, Santana, Ipi-
ranga, Vila Mariana, Pinheiros —, ela gerou fluxos irradiados de va-
lorização imobiliária que, seguindo as direções de seus trilhos, sus-
citavam a criação de loteamentos em áreas remotas. Essas áreas,
ao obterem os serviços básicos de transporte, eletrificação e gás,
fornecidos pela própria Light, geravam zonas intermediárias entre
esses locais já dotados de infra-estrutura e o centro da cidade, tor-
nadas automaticamente supervalorizadas, o que elevava os preços
dos terrenos e aluguéis em níveis exponenciais. (SEVCENKO, 2014,
p. 123–124)

Assim, os vazios que circundam a área central da cidade, nas plantas que
nos servem de base, ganham novos significados. A imensidão, apenas pertur-
bada por linhas de conexão a quarteirões distantes, é preenchida, por nossa
análise, com a historiografia. E o olhar, apura-se. Por exemplo: ao buscarmos
a “LAPA”, na planta de 1916, localizamos, nas margens extremas do oeste, o
arrabalde distante. Para além, nada mais compõe o traçado urbano. Aquém,
ausências só interrompidas nos limites do “Parque Antarctica”. Seguindo ao
Centro, “Villa Pompeia” é mero esboço; “Perdizes”, poucos traços. É nas imedi-
ações da “SANTA EPHIGENIA” que o nanquim se carrega ao representar ruas
e quarteirões. A partir da cartografia de 1924, o adensamento é evidente. A
mancha central se amplia, avança em novas vias. As linhas isoladas de “Per-
dizes” se unem aos traços da “STA. CECILIA”. A “Villa Pompeia” é firmada em
quadrantes extensos. A “LAPA” deixa de ser a borda do mapa: à esquerda, o
“Alto da Lapa” é seu prolongamento, e a “Villa Leopoldina” toca os limites do
Rio Pinheiros; depois, o caminho para Sorocaba.
Vale ressaltar que fatos semelhantes se observaram por toda a cidade, pla-
nejada e executada, principalmente, pelo capital especulativo, personificado na
figura da Light. Evidente que o processo não se fez de forma sinérgica, harmô-
nica. Da mesma forma, nem toda intervenção se resumiu aos interesses finan-
ceiros mais imediatos. A urbanização é fenômeno conflituoso, com discussões
que percorrem inúmeras instâncias. Por ora, queremos chamar atenção aos em-
bates que se fizeram pelo corpo social, entre aqueles que pensaram e edificaram
um modelo de cidade, e os que a viveram cotidianamente. Pela disparidade das
forças, as confrontações revelaram-se sinuosas, e a cidade imposta foi aceita
para ser subvertida. Subversão que se fez — e se faz — com base na concre-
246 Parnamirim, jan./jun. 2021

tude e circunstâncias determinadas. Em outras palavras: todo traçado urbano


contém em si tanto os mecanismos do poder político e econômico, quanto a
insubordinação que o redesenha, com sentidos e usos que escapam ao que foi
inicialmente pensado. A “LAPA” periférica, afastada, era, para a Light, locus es-
peculativo; para seus habitantes, pertencimento, identidade, memória. Temos,
assim, que:

A modificação do espaço de uma cidade, dando a ela forma e


feição, contêm em si um projeto político de gerenciamento do ur-
bano em sua totalidade. É, por um lado, uma tarefa de profissionais
especificamente habilitados para tal — urbanistas, arquitetos, en-
genheiros —, mas também comporta o que se poderia chamar de
intervenção do cotidiano. Ou seja, esse espaço sonhado, desejado,
batalhado e/ou imposto é, por sua vez, também reformulado, vi-
vido e descaracterizado pelos habitantes da urbe, que, a seu turno,
o requalificam e lhe conferem novos sentidos. (PESAVENTO, 2002,
p. 16)

Interessa-nos, aqui, abordar a relação dialética entre as cidades pensadas,


realizadas, e a urbe vivenciada, sentida, ressignificada. A Rua Oriente, com a
qual abrimos este artigo, vale-nos não apenas pela sua localização na planta de
São Paulo. Tampouco a queremos, se pautada apenas pelo Requerimento n. 78,
da Sessão Ordinária da Câmara, de 17 de abril de 1920:

Dado o estado em que se acha o calçamento a macadam da rua


Oriente, impossibilitando por completo o transito que não é pe-
queno por aquella rua, solicito da Prefeitura a fineza de uma pro-
videncia no sentido de ser, com a maxima urgencia, substituido
aquelle systema de calçamento pelo de parallelepipedos de pedra.
Pela rua do Oriente, é hoje feito, em maior escala, o transporte de
cargas para os armazens do Pary e grande numero de fabricas ali
existentes. — Sala das sessões, 17 de abril de 1920 — M. Pereira Netto.
— A’ Prefeitura.5

Vale-nos porque foi na Rua Oriente que Gaetaninho viveu e teve sua vida
abreviada pelo bonde, na cidade onde o lúdico e o fluxo colidiram de morte.
Como nota-se, dentre os muitos discursos, é pelo literário que percorreremos
os quarteirões de São Paulo. As plantas da cidade ganharão vida — e crime —
5
Sessão Ordinária da Câmara, de 17 de abril de 1920 (S.O. 13 de 1920), Requerimento n. 78
de 1920. Disponível em https://www.saopaulo.sp.leg.br/static/atas_anais_cms
p/anadig/Sessoes/Ordinarias/013SO1920.pdf. Acesso em 15 abr. 2021.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 247

por meio de Gaetaninho, principal personagem criado por António de Alcân-


tara Machado, em “Brás, Bexiga e Barra Funda” (1927). Ao longo do artigo,
buscaremos, também, o diálogo com outras fontes e linguagens, para assim es-
tabelecermos alguns possíveis caminhos na procura pelas imagens da cidade
que emergem de textos, fotografias, cinema. O espaço vai de Nova York a São
Paulo. Apesar de contextos diferentes, nossa ideia é demonstrar as representa-
ções que partem do concreto e a ele retornam, dos imaginários que surgem das
pedras e a elas ressignificam.

Cidades e representações
São inúmeros os estudos que se dedicam às cidades. A diversidade de aborda-
gens acompanha a multiplicidade de produções e, praticamente, todos os cam-
pos das ciências ou das artes, dela se ocuparam — e ocupam. Pelos olhares da
História, as possibilidades de entradas são igualmente amplas e, segundo ques-
tões postas pela contemporaneidade da investigação, certas características epis-
temológicas se firmam, em maior ou menor grau. Não é o nosso objetivo, aqui,
traçar a elaboração deste campo temático ou o seu percurso historiográfico.
Entretanto, algumas abordagens merecem destaque, principalmente porque re-
velam, para além das análises que empenham, questões, anseios e intenções de
seu tempo. Partimos, assim, da História da Cidade que se realiza sem preocu-
pações teóricas consistentes. Pautada pelo encadeamento de fatos — espécie
de biografia, amparada em uma série de dados, nomes, e demais informações
que não se articulam, apenas procuram reforçar a grandeza a ser decantada, o
futuro promissor a se realizar, uma vez que os indícios já se mostravam em pre-
térito; damos destaque, ainda, às investigações que a veem como “locus da acu-
mulação de capital, como o epicentro da transformação capitalista do mundo”
(PESAVENTO, 2014, p. 77). Palco da luta de classes, o espaço urbano reproduz a
lógica e as contradições da produção econômica. Por fim, a vertente da História
Cultural, pela qual nos pautaremos: o olhar que encara a urbe por meio de uma
relação que, com base no concreto, ultrapassa-o. Além da materialidade, adi-
ante das pedras que a formam, a procura pela significação de seus traçados na
elaboração de imagens, discursos: a cidade como representação. Dito de outra
forma, aos dados técnicos, ao campo de embates, interessa-nos as linguagens e
as vivências que os percorrem, em afirmações e/ou ressignificações — a gênese
de um imaginário urbano, sempre mutável, e igualmente palco de lutas.
Marshall Berman, em “Um século em Nova York: espetáculos em Times
Square” (2009), parte das representações sobre a Times: cartões postais, filmes,
musicais, fotografias, anúncios publicitários, et cetera — e delas, dialeticamente,
pelos espaços e imaginários, refaz o percurso centenário, entrecortado de sen-
248 Parnamirim, jan./jun. 2021

tidos.

Quero com este livro mergulhar na cultura de congestão da


Square: congestão não só de pessoas, edifícios, carros, letreiros,
mas, o que é o mais fascinante de tudo, congestão de significado.
É um lugar em que podemos nos afogar ou lutar para nos man-
ter à tona numa superabundância de significados. (BERMAN, 2009,
p. 16)

Figura 1 – Cartão-postal “Garota do Times”, 1903 (Museum of the City of New York)

Fonte: Berman (2009, p. 12). Autor desconhecido.

Sua perspectiva de análise é fruto dessa aproximação entre a materialidade


espacial, vivências humanas e os significados imanentes e transcendentes des-
sas relações. A fotomontagem (figura 1), de 1903, na qual a Times Tower, em
toda sua imponência de vidros e aços, serve de apoio ao cartum de uma ga-
rota, é fundamental para compreendermos o trajeto que Berman nos propõe:
sentada, ombros e pernas à mostra, cabelos despenteados a emoldurar o rosto
que se compõe com sorrisos, ela se mostra totalmente à vontade no espaço pú-
blico que a acolhe. Ao longo dos anos, este local se afirmará receptivo, como no
período do pós-guerra. Berman lembra-nos do filme “Um dia em Nova York”
(1949), com os marinheiros a saírem pelas ruas de uma cidade que amanhece
deslumbrante, convidativa. Acompanhados da canção “New York, New York”,
as câmeras os seguem por ruas e avenidas solares — um corte que “dura menos
de cinco minutos, mas contém imagens luminosas que misturam os marinheiros
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 249

com muitos dos locais mais espetaculares da cidade” (BERMAN, 2009, p. 141).
Pelos quarteirões nova iorquinos, eles vivem, apaixonam-se. Nós, espectadores,
sentimo-nos parte. Temos a cidade em oferenda, aberta, atraente em possibi-
lidades. Entretanto, algo muda à medida que avançamos pelas décadas, e as
produções sobre a Times acompanham estas transformações. Nos anos setenta,
o boulevard torna-se sujo. O colapso material e econômico gera uma espécie de
decadência “espiritual”. As representações da Square se fazem imundas, som-
brias: o neon dos anúncios não ilumina, antes parece reforçar a escuridão que
o envolve. O clima é noir, torpe, de becos fétidos e lixos pelas ruas. Apreen-
sivos, ficamos em suspenso. Marshall Berman se debruça sobre “Taxi Driver”
(1976) e, no táxi de Travis (Robert de Niro), somos conduzidos por lugares de-
testáveis. Esta, certamente, não é a Nova York na qual uma garota se sentaria
descompromissada na Times Tower.
Notamos, nestes exemplos, a relação íntima e conflituosa que existe entre
as fontes concretas e palpáveis da urbe, e as representações que dela proveem,
em contextos distintos.

Imagens e textos urbanos


Uma vez que “as cidades são antes de tudo uma experiência visual” (BRESCI-
ANI, 2014, p. 237), insistiremos um pouco mais nas representações imagéticas,
agora em abordagens fotográficas. Vale dizer que a morfologia urbana e seus
traçados, captadas pelas lentes, compõem a iconografia da imagem, que é lite-
ral e descritiva (KOSSOY, 2014). Ou seja, os elementos da cena, num primeiro
momento, dizem o que está expresso. A partir daí, por outros cruzamentos do-
cumentais, extraímos o mais importe: as intenções, representações. Buscamos
a imagem além da imagem.
Curioso notar que algumas delas, ficam. Principalmente as que enfocam
paisagens urbanas. De certa forma, tocamos num paradoxo: diante do apelo
imagético intenso e constante, nossas retinas vagam de uma à outra, porém se
retardam em poucas e, dentro desse número diminuto, uma quantidade ainda
menor permanece indelével, sem a necessidade de novo contato para reavivá-las
totalmente. As imagens que se sustentam em nós, são as que dialogam com algo
que possuímos previamente, numa espécie de intercâmbio entre o que vemos e o
olhar que trazemos. Determinados instantes se perpetuam, no plano individual
ou coletivo, pelo discurso que nos constitui em aproximação com o dizer da
imagem.
“O que a Fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ele repete me-
canicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente” (BARTHES,
2015, p. 14). O beijo entre o marinheiro George Mendonsa e a enfermeira Greta
250 Parnamirim, jan./jun. 2021

Zimmer Friedman, em 14 de agosto de 1945, na Times Square, talvez seja a foto


mais emblemática da Segunda Guerra fora de um campo de batalha (figura 2).
Berman dedica um capítulo especial para analisá-la, no já citado estudo “Um
século em Nova York: espetáculos em Times Square” (2009). Por meio da foto-
grafia, parte às reflexões estéticas que contribuíram para sua perpetuação nos
imaginários e, somadas à percepção de “Boa Guerra”, travada para proteger a
América e o mundo contra o mal real e poderoso” (BERMAN, 2009, p. 92), en-
contra, aí, os componentes fundamentais na preservação do casal cujo beijo não
termina. Mas Berman nos chama a atenção, igualmente, para o cenário onde a
ação se desenrola: Times Square. Para ele, um microcosmo da cidade moderna,
de possibilidades e fracassos, de reconhecimento e anonimato. Palco onde um
gesto de afeto decorre e traz nos seus referentes a guerra que deixou pelo cami-
nho milhões de mortos. Na foto, ambos uniformizados, cada um trazendo em
si as vestimentas que remetem ao esforço empreendido por homens e mulheres
durante o período de combate. Ele de farda preta, ela de uniforme branco. Ao
redor, além da objetiva, inúmeros olhos miram o casal efêmero, de uma alegria
que parece espontânea, genuína. Toda a cena reforça o gozo do beijo que se
centraliza na fotografia. Além disso, o encontro ocorre na rua, na qual o sen-
tido de (re)ocupação do espaço público transparece. A calçada não confina o
elemento humano num terreno de poucos metros: a felicidade pelo término do
conflito necessita de amplo campo para sua expressão sem amarras; a máquina
não contém o homem. Mãos que envolvem o pescoço e cintura, corpos contor-
cidos, ponta dos pés. Não são necessárias muitas palavras para que a imagem
seja alçada ao primeiro plano de nossos olhos. O beijo que ocorreu uma vez,
continua, pois os elementos que o compõem foram por muitos internalizados:
a juventude e o carinho dos lábios inauguram um novo tempo de conciliação,
encerrando simbolicamente um conflito. Insistimos: a Times Square, que serve
de cenário, funciona como a síntese da cidade moderna, espaço de encontros,
desencontros, reencontros, sonhos, desilusões e esperança em novos sonhares.
Há imagens que ficam, realmente. Barthes entende que cada imagem tem di-
ferentes significados, dependendo do momento de produção e de interpretação,
cuja ligação é o referente que se cria/possui (BARTHES, 2015). O produzir/ler
a fotografia é, portanto, cultural. Tal abordagem se revela fecunda quando in-
ventariamos aquilo que nos marcou, entre tudo que vimos.
Há imagens que ficam, ratificamos. Como as da cidade de São Paulo nas pri-
meiras décadas do século anterior. São fotografias que circularam em cartões
postais e revistas ilustradas, construindo uma cidade em transição de província
para metrópole; de Piratininga para São Paulo. Imagens que ainda se reve-
lam poderosas. Vendo-as, o sentimento de nostalgia de um tempo pretérito,
com ares bucólicos, mistura-se ao novo sentir de uma época que principia sua
aceleração. A fotografia de Guilherme Gaensly (figura 3), uma panorâmica da
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 251

Figura 2 – “Enfermeira e Marinheiro”, 1945.

Fonte: Berman (2009, p. 90). Autor: Alfred Eisenstaedt.

Estação da Luz, com seus trilhos que remetem ao progresso econômico e tecno-
lógico, coexistem com as carroças responsáveis pelo abastecimento da cidade.
O bonde elétrico, que passa em frente à estação, é, também, alusão à metrópole
que se faz. Essa imagem, que cruzou estradas e oceanos em cartões postais, dis-
cursa sobre o feito e sobre o se fazer; discursa, portanto, sobre oportunidades.
A fotografia que hoje decora, junto com outras, estabelecimentos paulistanos é,
ainda, o se constituir possível, na São Paulo, onde garoa e trabalho configuram
definições corriqueiras e historicamente construídas.
Analisando outras fotos e postais de Gaensly, novo aspecto desperta aten-
ção. Tamanha é a força do que foi captado pelas objetivas, que a memória que
possuímos, desse tempo que não vivemos, por isso, memória construída por
diversas impressões, é a de um tempo em preto e branco, um tempo difícil de
imaginar com suas cores cotidianas. É, também, um tempo mudo. Rápido, mas
silencioso, como em “São Paulo, a Symphonia da metrópole” (1929): o dia ci-
tadino é veloz, num correr que não se ouve, mas se percebe. O que faz essas
imagens viverem em dinâmica conflituosa, emitirem sons e exalarem odores, é
a literatura:
252 Parnamirim, jan./jun. 2021

Figura 3 – Estação da Luz, São Paulo, 1905–6

Fonte: Kossoy, Fernandes Júnior e Segawa (2011, p. 80–81). Autor: Guilherme Gaensly.

A multidão arrastando-se na cidade


O tripudiar de um pique de cavalaria
Bondes desabalando frenesis de velocidades
Um milhão de máquinas de escrever batendo frenética
simultaneamente todas as suas teclas (. . . )
Os telefones desabaladamente as campainhas
A raiva do que pede ligação pela quinta vez!
Os carros de bombeiros rolando paralelepípedos
Apitos vozaria e alaridos
O atropelo dos automóveis depois de um grande match
de foot-ball
Buzinas rouquidões motores algazarras
O Vento correndo sobre pneumáticos
Rugindo pelo espaço
Porque ele é um automóvel que buzina (. . . )

(ARANHA, 1984, p. 39–40)

O trecho do poema “Drogaria de éter e de sombra”, de Luis Aranha (1984),


é construído pelos vocábulos que se fizeram presentes nas falas paulistanas,
advindos com o desenvolvimento urbano. Por ele, somos imersos no clima de
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 253

uma cidade repleta de choques e atropelos — que desnorteiam, mas também


encantam quem por ela transita, como o poeta:

De tarde
A luz andava
No vale verde do Anhangabaú. . .
Oh! O seu canto louro e triunfal
Seu exaltado canto de agonia! (. . . )
Amo a tarde de carnes incendiadas
Que me penetra e que lateja em mim!
Bebo com lábios que sussurram
Este vinho de luz que jorra pelo espaço
Até sentir a embriagues da luz. . .
Estes rios de sons que golfam do ocaso
Incendiados de clarins
Penetram na minha alma ressequida
Com tanto ímpeto e com tal ardor
Que sinto em mim resplandecer a vida! . . .
Ardo na exaltação que os passos me conduz
E não sinto meu peso sobre a terra
Porque meu corpo é um jato de luz! . . .

(ARANHA, 1984, p. 40–41)

O diálogo entre tipos de linguagens e representações permite a constru-


ção, não total, mas abrangente, de um painel desse período. Muitos intelectuais
trouxeram para seu fazer jornalístico e literário a sonoplastia, a paleta de co-
res e o movimento da urbe paulistana. Muitos representaram a ambiguidade
de sentimentos diante da metrópole que se edificava: um desejo por sensações
contraditórias, por uma adrenalina que, paradoxalmente, confortava. Menotti
del Picchia, Mario e Oswald de Andrade, também deixaram impressas visões
conflituosas diante da vertigem urbana. No entanto, foi António de Alcântara
Machado, “o prosador do modernismo paulista” (BOSI, 2006, p. 400), quem me-
lhor permitiu o sentir da cidade por meio do texto, não apenas pelo enredo, mas
igualmente pela forma, que incorpora recursos diversos na organização da nar-
rativa. Em António, o espaço em branco fala, ou melhor, convida o leitor a dizer,
a participar da narrativa, a realizar a transição espaço-temporal. Em outras pa-
lavras: além da trama desenrolada na urbe — de cartografia ampliada —, além
dos vocábulos citadinos, a disposição textual alude ao movimento, cheiro, sons.
254 Parnamirim, jan./jun. 2021

Olhar um postal de Gaensly, com o saboroso poema de Luis Aranha, faz a ima-
gem reviver; olhar um postal de Gaensly, com a prosa de Alcântara Machado,
permite que vivamos a imagem. Pelos seus registros, ratificamos, a cidade se
tinge em cores, exala incontáveis aromas, fala seus sons. Existe:

Eu me sentirei no alto, mas muito no alto. São Paulo então não


abandonará seu filho. Com cheiro de gasolina, com fumaça de fá-
brica, com barulho de bondes, com barulho de carros, carroças e
automóveis, com barulho de vozes, com cheiro de gente, com lati-
dos, cantos, pipilos, assobios, com barulho de fonógrafo, com ba-
rulho de rádio, campainhas, buzinadas, com cheiro de feiras, com
cheiro de quitandas, todos os cheiros e também barulhos da vida,
São Paulo encherá o silêncio da morte. (MACHADO, 1970, p. 148)

O encadeamento, como a lógica confusa da cidade, entrega o cotidiano apres-


sado, vivo. A construção narrativa de António de Alcântara Machado coloca-
nos em simultaneidade. Pela mão do autor, estamos em inúmeros lugares ao
mesmo tempo. Ler António, com atenção na prosa construída, já é adentrar na
São Paulo dos anos vinte e suas sociabilidades modernas.
Essa técnica, deliberada, sempre esteve em seu horizonte, desde a obra de
estreia nos moldes modernistas, “Pathé-Baby” (1926): pela linguagem, construir
uma prosa pura, documental, limada dos excessos, adjetivos e longos períodos;
edificar, assim, um texto ágil, de acontecimentos síncronos; em poucas páginas,
um bairro inteiro.

Gaetaninho
Em 1927, António de Alcântara Machado publicou seu segundo livro, “Brás,
Bexiga e Barra Funda”. Bem aceito pelo crítica, recebeu elogios calorosos. Stiu-
nirio Gama, pseudônimo de Mário Guastini, em longa crítica no Jornal do Co-
mércio, afirma que:

(. . . ) Brás, Bexiga e Barra Funda é um livro delicioso. E o é, de


fato; sem favor. Os contos que reúne em suas páginas são verdadei-
ras jóias literárias. Qualquer um deles, ao acaso, agradará. E mesmo
que assim não fosse bastaria um, um apenas, para confirmar o in-
discutível valor de Antonio de Alcântara Machado. (GAMA, 1982,
p. 92)

Martin Damy diz que se trata de “um livro profundo, com aparências de
coisa banal” (DAMY, 1982, p. 101). João Ribeiro, pelo Jornal do Brasil, escreve
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 255

que “o livro de Alcântara Machado é um grande exemplo da literatura nova”


(RIBEIRO, 1982, p. 102).
É de “Brás, Bexiga e Barra Funda”, talvez, suas mais conhecidas produções:
“Gaetaninho”, o garoto que tem a vida abreviada pelo bonde; “Carmela”, a costu-
reirinha da Barão de Itapetininga, que mistura, no corpo e trejeitos, a inocência
provincial com a sedução metropolitana; e “Lisetta”, a menina que se encanta
com um ursinho, enquanto transita de bonde pela cidade, numa narrativa ex-
tremante sensível em seu riso. No presente artigo, nosso escopo é um pedaço
do Brás: a Rua Oriente, e seu jogo de vida e morte.
Sobre Gaetaninho, conto que abre “Brás, Bexiga e Barra Funda”, Rodrigo
Andrade, n’O Jornal: “pode ser lido em dez minutos. Mas faz pensar muito
tempo e não sai mais da memória da gente” (ANDRADE, 1982, p. 95).
O personagem é fruto do cosmopolitismo que caracteriza São Paulo como
cidade moderna. Em Alcântara Machado, o cosmopolitismo não se encontra
apenas nos salões, mas também nos bairros operários. O autor chama a atenção
aos múltiplos sentires que a cidade provoca, a depender da condição social.
Descreve a situação do imigrante pobre diante de um meio que agrega e exclui.
E seduz — sedução de morte.
Gaetaninho tem o final em velório. Apesar disso, nós o lemos naquele es-
tado que antecede o sorriso de camaradagem, diante da leveza. Pela narrativa, o
menino que joga bola experimenta a fronteira borrada entre a rua como espaço
lúdico e via de passagem automotiva. O atropelamento, como desfecho, repre-
senta o lado que diluiu, por completo, o momento de transição, afirmando-se.
Desde o início, a relação entre homem, máquina e espaço é explorada.

Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase


o derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e
ele não ouviu o palavrão. (MACHADO, 2003, p. 20)

O vocábulo Ford leva a metonímia para uma definição além de si mesma:


mais do que conter o todo, pela parte, sinaliza a despersonalização do homem
diante da máquina (SILVA, 2010). O quase atropelamento alerta o garoto de que
o espaço de folguedos vai se fazendo utilitário. Mesmo o carroceiro, elemento
humano que com ele estabelece uma relação humana, ainda que ofensiva —
mas ofensividade que serve de alerta e preservação — também caminha para
a extinção, diante metrópole que se desenvolve. A máquina se impõe e toda
lógica urbana tende a favorecer sua circulação em detrimento do ser. No re-
corte seguinte, pela técnica narrativa cinematográfica de Alcântara, que vai de
planos fechados (em Gaetaninho), para abertos (a Rua Oriente), vemos como a
mecânica fria de aços e pistões é entendida como nova regente da vida:
256 Parnamirim, jan./jun. 2021

Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De


automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou
casamento. (MACHADO, 2003, p. 20)

A máquina pontua o término (enterro); a máquina pontua a nova vida (ca-


samento). As relações tendem à mecanização. O progresso reconfigura as inte-
rações sociais. É em tom radiofônico que a morte do garoto é narrada:

O jogo na calçada parecia de vida e de morte (. . . )


Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de
responsabilidades.
O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem
perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os brações es-
tendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
— Passa para o Beppino!
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo muque.
Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
— Vá dar tiro no inferno!
— Cala a boca, palestrino!
— Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde
o pegou. Pegou e matou.
No bonde vinha o pai de Gaetaninho. (MACHADO, 2003, p. 21–
22)

E é em tom de nota de jornal que a morte é anunciada, pois é morte de garoto


pobre. Curta. Seca. Estatística. Gaetaninho perde no jogo da vida. O bonde que
trazia seu pai possui amarga ironia, na qual se sinaliza o divórcio das relações
pessoais, agora mediadas pelo aço: filho-bonde-pai. (SILVA, 2010)

Considerações finais
Como reforçamos ao longo do artigo, a cidade possui inúmeras portas de en-
trada. Nossa intenção foi a de explorar as possibilidades abertas pela História
Cultural, buscando, no entrecruzamento de fontes, extrair as representações
citadinas.
A “Garota do Times”, que Berman nos traz, funciona como síntese: a lingua-
gem gráfica é composta pelo elemento concreto da Times Tower e pelo cartum,
num conjunto que representa um espaço acolhedor, convidativo: queremos,
também, estar. Trata-se de uma produção de 1903, quando a Square era ainda
conhecida como Longrace Square. Estamos, portanto, no início do século XX,
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 257

e a experiência da modernidade é sedutora como a garota; e vertiginosa como


o arranha-céu que lhe serve de suporte. Ao longo dos anos, Berman segue sua
procura e encontra, nas representações da Times, a dinâmica que envolve local,
vivências, sociabilidades, imagens — e de volta, num movimento dialético entre
modernização e modernismo, que para ele é a essência da modernidade.
De nossa parte, perscrutamos, em outro contexto, a vida — e morte — que
existe nos mapas. Pela Rua Oriente, o sonho e o jogo de Gaetaninho a revelar
temporalidades distintas, no avanço da metrópole sobre a província. Avanço
que não se confirma apenas pela expansão, demografia, gráficos e tabelas. Mas
ratifica-se pelas possibilidades que oferece e nega, pelos laços comunitários e
lúdicos que rompe. E os habitantes, ainda que vitimados, posicionam-se, rei-
vindicam a urbe para si. Ressignificam os mapas.

Referências
ANDRADE, R. M. F. Vida literária: António de Alcântara Machado — Brás,
Bexiga e Barra Funda. In: LARA, C. Comentários e notas à edição
fac-similar de 1982 de Brás, Bexiga e Barra Funda, de António de
Alcântara Machado. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1982.
ARANHA, L. Cocktails: poemas. São Paulo: Brasiliense, 1984.
BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2015.
BERMAN, M. Um século em Nova York: espetáculos em Times Square. São
Paulo: Cia. das Letras, 2009.
BOSI, A. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
BRESCIANI, M. S. M. História e historiografia das cidades, um percurso. In:
FREITAS, M. C. (Org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São
Paulo: Contexto, 2014.
DAMY, M. O espírito dos livros: Brás, Bexiga e Barra Funda, de António de
Alcântara Machado. In: LARA, C. Comentários e notas à edição
fac-similar de 1982 de Brás, Bexiga e Barra Funda, de António de
Alcântara Machado. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1982.
UM DIA em Nova York. Direção: Gene Kelly e Stanley Donen. Produção:
Arthur Freed. EUA: Columbia Pictures, 1949. (98 min., color.)
GAMA, S. Às segundas. In: LARA, C. Comentários e notas à edição
fac-similar de 1982 de Brás, Bexiga e Barra Funda, de António de
Alcântara Machado. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1982.
KOSSOY, B. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.
258 Parnamirim, jan./jun. 2021

KOSSOY, B.; FERNANDES JÚNIOR, R.; SEGAWA, H. (Org.). Guilherme


Gaensly. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
MACHADO, A. A. Contos Reunidos: Brás, Bexiga e Barra Funda; Laranja da
China; e outros contos. São Paulo: Ática, 2003.
. Meditatio Mortis. In: MACHADO, L. T. António de Alcântara
Machado e o Modernismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.
PESAVENTO, S. J. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,
2014.
. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano — Paris, Rio
de Janeiro, Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
RIBEIRO, J. Brás, Bexiga e Barra Funda. In: LARA, C. Comentários e notas à
edição fac-similar de 1982 de Brás, Bexiga e Barra Funda, de António
de Alcântara Machado. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1982.
SÃO Paulo, a symphonia da metrópole. Direção: Adalberto Kemeny e
Rudolf Rex Lustig. Produção: Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig. Roteiro:
Adalberto Kemeny. Brasil: Paramount Pictures, 1929. (90 min., pb.)
SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura
nos frementes anos 20. São Paulo: Cia. das Letras, 2014.
SILVA, I. S. Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara Machado: Sesmarias
e Conflito de Terras entre Índios em Freguesias Extramuros do Rio de Janeiro
(Século XVIII). 2010. Dissertação (Mestrado em Literatura e Crítica literária) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
TAXI Driver. Direção: Martin Scorsese. Produção: Julia Phillips e
Michael Phillips. EUA: Columbia Pictures, 1976. (113 min., color.)

Recebido em 15 abr. 2021.


Aprovado em 19 abr. 2021.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 259

Anexos: plantas da cidade de São Paulo


260 Parnamirim, jan./jun. 2021

Anexo 1 – Planta da Cidade de São Paulo. 1916. Disponível em http://smul.p


refeitura.sp.gov.br/historico_demografico/img/mapas/1916.jpg.
Acesso em 15 abr. 2021.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 261

Anexo 2 – Planta da Cidade de São Paulo. 1924. Disponível em http://smul.p


refeitura.sp.gov.br/historico_demografico/img/mapas/1924.jpg.
Acesso em 15 abr. 2021.
SAIR DA PIRÂMIDE E CONHECER ALÉM-NILO
Ensino de história do Egito Antigo na Educação Básica1
Bruno Miranda Braga2
RESUMO: Exotismo, mistérios, encantos, pirâmides e faraós, são geralmente coisas Como referenciar?
BRAGA, B. M. Sair da
que associamos em Educação básica, a aulas de Antiguidade — oriente próximo — Egito pirâmide e conhecer
Antigo, como se esta civilização/país fosse algo distante, muito diferente se comparado Além-Nilo: Ensino de
história do Egito Antigo na
a Antiguidade Clássica. O objetivo desse artigo é apresentar uma proposta de como está Educação Básica. Revista
pensado o Egito Antigo no livro didático brasileiro, e destacar assim uma possibilidade Galo, n. 3, p. 263–278, 17
jul. 2021
de novos usos desses textos. De fato, o ensino de história do Egito Antigo no Brasil,
segue uma cartilha já estabelecida na qual pouco se faz uso dessa ciência parceira,
especializada no assunto que é a Egiptologia. Como a História, essa ciência está em
construção, logo, fazer uso de seu discurso em sala de aula, significa fugir do grande
rol de nome e datações históricas e focar na realização de uma história participativa,
sendo a aula um elo no qual o conhecimento acadêmico expande sua aplicabilidade.
Sair da pirâmide e conhecer o além-Nilo significa vislumbrar o Egito Antigo como era
e como está atualmente.
Palavras-chave: Ensino. Egito. Egiptologia. História.

LEAVING THE PYRAMID AND GETTING TO KNOW BEYOND


NILE
Teaching the History of ancient Egypt in Basic Education
ABSTRACT: Exoticism, mysteries, charms, pyramids, and pharaohs are things that
we usually associate, in Basic Education, to Antiquity classes — Near East — Ancient
Egypt, as if this civilization/country were something distant, very different compared
to Classical Antiquity. This article aims to present a proposal of how Ancient Egypt is
thought in the Brazilian textbook and thus highlight a possibility of new uses of these
texts. Indeed, the teaching of History of Ancient Egypt in Brazil follows an already
1
Inicialmente esse texto foi apresentado como comunicação intitulada “Sair da pirâmide e
conhecer além-Nilo: contribuições para o ensino de história do Egito Antigo para a educação
básica”, no I Simpósio Internacional de Estudos em Egiptologia da Universidade de São Paulo
(USP), realizado em setembro de 2019 nas dependências da USP.
2
Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Atualmente bolsista do CNPq. Lattes ID: 9593.0970.5057.0247. ORCID: 0000-0001-7000-2456.
E-mail: brunomirandahistor@hotmail.com.

263
264 Parnamirim, jan./jun. 2021

established standard which uses little of this partner science, specialized in the subject,
that is Egyptology. Like History, this science is under construction, therefore making
use of its speech in the classroom means escaping the great list of names and historical
dates and focusing on performing a participatory history, the class being a link in which
academic knowledge expands its applicability. Leaving the pyramid and getting to
know Beyond Nile means envisioning Ancient Egypt as it was and how it is today.
Keywords: Teaching. Egypt. Egyptology. History.

O Ensino de História Antiga na Educação Básica e a “ciranda


das civilizações”
Ainda hoje em nosso século XXI, o ensino de história na Educação Básica3 no
Brasil é um dos maiores desafios para o alunato e o professorado especializado
ou não na área de História. Os alunos reclamam dos amplos contextos que a
História redobra, os professores, tendem a afastar esses temas das realidades dos
alunos, congelando e relegando a “história ao passado, longínquo e remoto”.
Tomando como base diferentes livros didáticos utilizados ao longo do ter-
ritório brasileiro, e devidamente credenciados e aprovados por comissões do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), esses livros em sua maioria, di-
videm a História antiga esquema da figura 1.
De fato, ensinar História ainda hoje no Brasil não é uma tarefa fácil. A
formação do licenciado embasada ainda no sistema 3 mais 14 . A ampla precari-
zação do sistema de ensino e a desvalorização docente também ressoam nesse
processo.
A história ensinada no Brasil parte da divisão preconcebida pela “divisão
tradicional da história” em Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Para
a Antiguidade, alvo deste texto, a educação básica parte de pressupostos tão
prolixos e conteudistas que na maior parte das vezes, acaba mais confundindo
os alunos que os ajudando. Penso que esse período histórico é o que é mais
cheio de “gavetas” nas salas de aula do país.
Pela leitura do esquema, percebemos que a lógica é uma “ciranda de ci-
vilizações”, uma sucessão de povos que fizeram parte desse período histórico.
3
Educação básica é aqui entendida a partir da proposta da Lei de Diretrizes e Bases. A
Educação Básica, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB-9.394/96), passou a
ser estruturada por etapas e modalidades de ensino, englobando a Educação Infantil, o Ensino
Fundamental obrigatório de nove anos e o Ensino Médio.
4
A licenciatura no Brasil segue um sistema dos anos 80 do século XX, no qual o graduando
para exercer o magistério passa 3 anos estudando questões relativas a uma área especifica do
saber, e 1 ano com poucas e maus ministradas disciplinas voltadas para o ensino. Parece não
haver conexão entre a pesquisa e o ensino. Porém, uma boa aula já induz uma pesquisa.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 265

Figura 1 – A História Antiga no Livro didático da Educação Básica

História Antiga na Educação Básica

Pré-história Primeiras Civilizações

Mesopotâmia Egito Antigo Cretenses, Fenícios e


Hebreus

Persas Grécia e Roma Império Bizantino

1453 — “fim da Idade Antiga”

Fonte: Autoria nossa para este estudo a partir da leitura de livros didáticos.

Essa ciranda em muito confunde nossos alunos. Parece ser que uma civilização
sucede a outra de uma maneira destrutiva na qual a supremacia sempre é da
civilização seguinte. É como se ao fim do estudo do Egito antigo, e ao iniciar
as aulas de Creta, e Fenícia, os egípcios “sumiram da história” passaram a não
existir mais. Tudo isso também se deve a uma recente área de estudos que é a
Antiguidade no nosso país.

A História Antiga, como conteúdo da disciplina do ensino de


história, tem como característica ser exótica, distante e ao mesmo
tempo atraente na sala de aula. É inegável que desperta curiosi-
dade e admiração nos alunos, tanto do ensino fundamental quanto
da graduação. As pesquisas em História Antiga iniciam no Brasil
juntamente com a disciplina de História no âmbito universitário.
O historiador Eurípides Simões de Paula fundou a primeira cadeira
de História Antiga do país na Universidade de São Paulo na dé-
cada de 1940 (CARVALHO; FUNARI, 2007). Mas seria somente nas
últimas décadas do século XX que a área de História Antiga é mar-
cada pelo aumento de sua produção científica, primeiro nas maiores
e principais universidades do país e depois expandindo-se para as
periféricas. (SILVA; GONÇALVES, 2015, p. 4).
266 Parnamirim, jan./jun. 2021

O exotismo ligado a História Antiga em sala de aula é inegável, o fascínio


que ela desperta nos alunos idem. mas as relações, o feedback e a aplicabili-
dade dos conhecimentos desta parte da história, é quase nula, haja vista que é
algo muito distante, e no qual “após sucessivas guerras e batalhas, uma única
civilização sobreviveu.” O estudo da história antiga no nosso país por muito
tempo objetivou a formação moral dos indivíduos, através da erudição, do clas-
sicismo, ao molde europeu. “Era, definitivamente, um ensino voltado para as
elites, e ainda hoje pode-se observar resquícios desse pensamento. Um primeiro
ponto que precisa ser abordado sobre o ensino de história antiga na escola é que
ela não é uma disciplina autônoma, mas sim, um conteúdo que pertence à dis-
ciplina de História Geral”.

Nesse sentido o que se nota, na prática da sala de aula, é uma


condensação da antiguidade clássica e oriental, já que o conteúdo
deve obedecer a uma cronologia, sendo que a antiguidade clássica
ainda recebe maior valorização do que a oriental na sala de aula.
A história antiga, dentre os conteúdos da disciplina de história,
talvez seja aquela, que melhor possibilita ao aluno um encontro ra-
dical com o diferente, com a alteridade e com a pluralidade cultural.
Claro que o termo Antiguidade condensa vários povos, religiões e
línguas diferentes, em períodos de tempo longuíssimos, mas que
na sala de aula, por vezes, são colocados todos como pertencentes
a um mesmo quadro cultural. Nesse sentido a contribuição de ou-
tras áreas do conhecimento para o estudo da história antiga, como
a arqueologia e a antropologia, é fundamental. (SILVA; GONÇAL-
VES, 2015, p. 6).

Eis o grande inimigo do ensino de História no Brasil, especialmente da His-


tória Antiga: um sistema cronológico e sucessivo. Como apontado anterior-
mente, no fluxograma, há uma sucessão, quase que sincronizada a respeito das
civilizações da Antiguidade, sem haver relação nenhuma com o presente, nem
com uma continuidade da anterior. Como sabemos, os estudos históricos par-
tem de premissas diacrônicas, como propôs o historiador de Annales Fernand
Braudel5 , nisso, “para Braudel a história factual, ou o tempo curto, que é como
ele considera o fenômeno episódico, pode ser recomposta com documentos sin-
5
Braudel redefiniu a noção de tempo histórico no qual partindo de suas proposições se
estabeleceu: o tempo da o tempo breve, ou do acontecimento, o tempo a média duração, ou
conjuntura, e a longa duração ou estrutura. É importante destacar que nos moldes Braudelianos
o tempo histórico de uma civilização só se encaixa no tempo da longa duração, pois seus fazeres,
saberes perpassam e atingem até mesmo outras fases históricas, suas estruturas permanecem.
Ler mais em: BRAUDEL, F. História e ciências sociais. 6. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1990.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 267

gulares, únicos, pois ela lida com aquilo que por essência é singular, elementos
únicos porque são sempre singulares”.

Mas podem existir vários documentos particulares falando de


um só fato. Isso é até imprescindível, para seguir pela “lógica da
semelhança” proposta por Marc Bloch. Nesse caso, trata-se de res-
tituir os fatos na sua proximidade temporal e espacial, a sua sincro-
nia e na sua diacronia, para se obter uma narrativa. Nesse âmbito,
o da narrativa acontecimental, a história não aparece com muita
lógica, a explicação avança pouco além da mera apresentação das
causas simples que alinham um acontecimento ao outro, o que de-
corre mais da proximidade temporal e espacial entre os eventos do
que de uma explicação de conjunto. O acontecimento é o limite, e
no seu limite não existe explicação, aí prevalece o acaso, aquilo que
não tem causa. (RIBEIRO, 2009, p. 109).

E ainda hoje, o ensino de História Antiga no Brasil na Educação Básica segue


essa lógica de “ciranda das civilizações” e isso torna-se prejudicial ao ensino
pois se cria uma lógica ideal na qual uma civilização some, deixa de existir
em detrimento do aparecimento de outra, há uma imposição de nomes e datas
que mais confunde nosso alunato do que os ajuda. Em se tratando do ensino
sobre o Egito, as dúvidas só se intensificam, pois além do mais é a única das
civilizações que é acrescida onomasticamente com o predicativo “antigo” nos
livros didáticos, levando a perceber um afastamento quase que completo por
parte dos alunos.

O Egito Antigo no ensino: grandes nomes, grandes pirâmi-


des, grandes dúvidas
Umas das questões que sempre aparecem em livros didáticos ao tratar do Egito
é o nome “EGITO ANTIGO”. Claro está que esta civilização ensinada e apresen-
tada não é como, também não é nenhuma das outras vistas como estão hoje, e
isso já é um problema, porém, não se lê em nenhum livro didático consultado no
Brasil nomes como “a Mesopotâmia Antiga”, ou “A Pérsia Antiga”6 . Essa ten-
tação em apresentar algo tão longínquo é o primeiro grande problema para o
ensino desta civilização, a partir do momento em que os estudos históricos par-
tem sempre do presente para o passado, e no caso especifico do Egito, a ciência
6
Para este estudo, foram lidos e visitados aproximadamente 50 livros didáticos distribuídos
e utilizados pelas cinco regiões do país. Não se trata de um estudo quantitativo, mas, qualitativo
mesmo, no tocante ao trato com o ensino do Egito Antigo no Brasil.
268 Parnamirim, jan./jun. 2021

parceira, a Egiptologia é algo recente7 . As duas descobertas primordiais para


que a Egiptologia ganhasse respeito e se desenvolvesse: os hieróglifos, traduzi-
dos por Jean-François Champollion por meio da Pedra de Roseta (século XIX)
e a tumba de Tutancâmon, por Howard Carter (século XX), ainda hoje figuram
como marco divisor do ensino da história egípcia.
Ciro Flamarion Cardoso (2004, p. 7) nos mostra que:

O Egito faraônico não somente representa o primeiro reino uni-


ficado historicamente conhecido, como também a mais longa expe-
riência humana documentada de continuidade política e cultural.
Mesmo não incluindo o período greco-romano — embora os monar-
cas helenísticos e os imperadores de Roma tenham figurado como
“faraós” em monumentos egípcios —, a história do Antigo Egito se
estende por uns dois e setecentos anos, de aproximadamente 3000
a.C. até 332 a.C.: como todas as datas relativas à civilização faraô-
nica são anteriores à era cristã, eliminaremos doravante a menção
“antes de Cristo”, a não ser que por alguma razão seja necessária.
Tal história conheceu, é verdade, fases de descentralização, anar-
quia e domínio estrangeiro, mas durante estes longos séculos o
Egito constituiu uma mesma entidade política reconhecível.

A mais longa experiencia humana documentada de continuidade política e


cultural. Eis o ponto central para melhor ensinarmos sobre o Egito faraônico
na Educação básica: partir da premissa dos documentos que estão associados à
sua imagem, e, a suas descobertas recentes. Assim entra em cena a ajuda bem-
vinda da Egiptologia das suas técnicas e descobertas. O estudo desta ciência
ainda está acontecendo, e assim como a história, se faz, refaz, a partir de novas
descobertas e achados. Destacara isso para os alunos é evidenciar que a História
é um construir/descontruir a partir de descobertas, é fazer da aula de história
uma descoberta em construção, não incutir coisas herméticas e isoladas. Essa
atração pelo Egito antigo, se deve em parte, talvez às suas já mencionadas lon-
gevidade e continuidade. “É um fenômeno fascinante o de uma civilização que,
através de numerosas transformações, arrosta impávida várias dezenas de sé-
culos sem perda das características essenciais que definem sua especificidade.”
(CARDOSO, 2004, p. 8).
Essas características essenciais a que Ciro Flamarion faz menção encara-
mos como aquilo que melhor esclarecia as peculiaridades do Egito sem deixar
7
Embora tenha se formado enquanto área do saber entre os séculos XIX e XX, é atualmente
com o avanço das tecnologias, bem como dos grupos de pesquisa e formação de Egiptólogos
que esta ciência vem avançando e se firmando mais como ramo de atuação e pesquisa.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 269

de fazer um link, uma proposta para com o dia a dia do nosso alunato. É in-
teressante percebermos e apontamos também o que a Antiguidade egípcia nos
legou, como fazemos quando tratamos de Grécia e Roma.8

Outra razão parece ser uma espécie de fascínio exótico e nostál-


gico exercido sobre o nosso mundo secularizado de hoje por alguns
dos elementos culturais do Egito faraônico, em particular a realeza
de caráter divino e a religião funerária tão elaborada, com sua ob-
sessão milenar pelo renascer, pela imortalidade.
[. . . ] É realmente fascinante tal mistura de convenção e natu-
ralismo, a coexistência, que podemos seguir ao longo de milênios,
de solenes cerimônias religiosas e monárquicas com cenas de feli-
cidade doméstica, trabalho agrícola e artesanal, esportes e jogos —
enfim, mil detalhes da vida quotidiana de nobres e plebeus. (CAR-
DOSO, 2004, p. 8).

Esse fascínio para o Egito torna-se na educação básica algo além de pra-
zenteiro, algo problemático à medida que se cria uma personificação para esta
civilização que enfatiza apenas o mágico, o fascinante, o excêntrico. Assim, ao
tratarmos desse conteúdo a partir da leitura e uso dos livros didáticos nos de-
paramos com uma experiência de ensino no qual ainda hoje pouco se relaciona
com o cotidiano dos alunos, mas, que tem um leque de relações sem igual.
Dentro da divisão da história ocidental, é fascinante pensar o Egito como
uma lógica de organização que perdurou por bastante tempo em continua e
relevante realidade histórica humana. Logo, pensar o Egito pelas nossas singu-
laridades assume a função de perpetuar e apresentar no espaço-tempo da Histó-
ria Antiga um eixo cultural e político bem como um poder dinástico até então
jamais visto. Desconstruir o exotismo a excentricidade do Egito é apresentar
como naqueles tempos uma sociedade se organizou e conquistou com ambiva-
lência uma porção geográfica do crescente fértil a suas posses. Mas também
é muito relevante apresentar as particularidades e ambiguidades da vida sim-
ples, fora das pirâmides de Gizé. Sistematicamente, no ensino básico as aulas
de Egito se dividem no temário exposto na figura 2.
Destacamos que o conteúdo programático e curricular desenvolvido e apre-
sentado nos livros didáticos, especialmente os aprovados pelo Programa Naci-
8
É muito comum o termo “Antiguidade Clássica” nos livros didáticos. O termo clássico
por si só já engendra uma série de discussões que em sala de aula algumas vezes confunde a
nós enquanto docentes, e aos nossos alunos. Clássico é comparado a erudito, “fino”, civilizado,
elegante, tradicional. E o pior: o clássico transmite a ideia de “modelo a ser perpetuado”. Assim
entendemos que a divisão entre Antiguidade e Antiguidade Clássica acarreta alguns problemas
didáticos, que, o professor de História tende sempre corrigir, especialmente no Ensino Funda-
mental. Uma boa proposta seria o uso de Antiguidade Oriental e Antiguidade Ocidental.
270 Parnamirim, jan./jun. 2021

Figura 2 – O Antigo Egito nos livros didáticos

Egito Antigo 01 Sociedade egípcia e


“Uma dádiva do Nilo” o deus-sol o Faraó 02
Geografia do Egito Antigo Hierarquia social do Egito Antigo
Divisão da História Egípcia As três escritas: hierática, hieroglífica
Antigo Império (3200 a.C.–2100 a.C.) e demótica
Pirâmides Grão-vizir, sacerdotes, escribas e sábios
Médio Império (2100 a.C.–1580 a.C.) O Faraó
Expansão territorial
Invasões hiscas Religião no Egito Antigo
Novo Império (1580 a.C.–715 a.C.) Templos monumentais
“Derrocada e conquista” A vida após a Morte e o Livro dos Mortos
“Fim do Egito”
Politeísmo e os deuses antropomórficos
Fonte: Elaborado pelo autor após leitura e consulta a livros didáticos.

onal do Livro Didático (PNLD)9 seguem em sua maior parte o sugerido pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)10 , e pelas Orientações Curriculares
para o Ensino Médio.11
Como as outras áreas do conhecimento humano, a história se transforma
9
O PNLD é destinado a avaliar e a disponibilizar obras didáticas, pedagógicas e literárias,
entre outros materiais de apoio à prática educativa, de forma sistemática, regular e gratuita, às
escolas públicas de educação básica das redes federal, estaduais, municipais e distrital e tam-
bém às instituições de educação infantil comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins
lucrativos e conveniadas com o Poder Público. Segundo informações do Ministério da Educação
(MEC), há um ciclo de escolhas e trocas de livros didáticos de acordo com as diferentes etapas
da Educação Básica.
10
Os PCNs versam sobre a estrutura do ensino fundamental. Dividido em ciclos, este do-
cumento direciona a ação educativa para as séries iniciais do fundamental (fundamental 01 —
do 1º ao 5º ano) até os anos finais do fundamental (fundamental 02 — 6º ao 9º ano). Os PCNs
foram promulgados em 1998. Para a área de História, o foco se dá a partir do fundamental 02
quando pela Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional, o ensino das disciplinas passa a
ser de competência de um especialista na área, no caso, um professor com Licenciatura Plena
em História.
11
As Orientações Curriculares para o Ensino Médio, mediam o ensino básico final que são
os três anos do Ensino Médio. Foram promulgados e renovados em 2006, incorporando novas
questões que se tornaram lei para o ensino quer seja de história, quer seja de outro compo-
nente curricular como o ensino de temáticas Afro Indígenas. Pensadas pelo viés da inter multi
transdisciplinaridade, as orientações estão organizadas em formato de agrupamentos por área
do conhecimento. História, juntamente com Geografia, Sociologia e Filosofia, integram as com-
petências das Ciências Humanas e suas Tecnologias. Transita pelo legislativo e executivo uma
possível reforma no Ensino Médio, vamos acompanhar essas discussões e seus próximos passos
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 271

ao longo do tempo. Norberto Guarinello (2013) enfatiza que a nova História


Antiga é uma das peças mais importantes dessa reformulação. Para esse autor,
a História Antiga se limita a estudar os primórdios, as origens do Ocidente, se
dedica assim a um trabalho de memória e produção de uma identidade. Recebeu
este nome por estar didaticamente no início da divisão sequencial da História,
seguida pelas Medieval, Moderna e Contemporânea. O grande questionamento
levantado por Guarinello é a respeito da sequência de acontecimentos, que de-
nominamos de “ciranda das civilizações”. “A História da Grécia não acabou
quando Roma começou”, nos declara o autor, por isso, historiadores buscam
novas unidades de estudo com o objetivo de romper as sequências históricas,
devido a seu caráter anacrônico.12 Assim sendo, chegaremos num importante
passo que é o estabelecimento de relações a partir da compreensão da Histó-
ria Antiga não como “começo da História”, mas como a história de uma parte
especifica do planeta, que tem ainda hoje relação com nossa atualidade, e prin-
cipalmente com a atualidade de nossos alunos.
O ensino de história antiga, e consequentemente de Egito antigo aparece
em dois momentos distintos na Educação Básica: nos conteúdos do sexto ano
do fundamental, e no primeiro ano do médio. Evidentemente há uma clara dis-
tinção de linguagens e temáticas que são delicadas há algumas faixas etárias.13
Pela leitura das listas acima, sobre o temário do Egito Antigo nos livros
didáticos, vemos que há uma série bem representativa para esse conteúdo já
estabelecido e pouco modificado: para a unidade 01 a famosa afirmação de He-
ródoto de Halicarnasso “o Egito é uma dádiva do Nilo”14 é figura presente em
todos os livros consultados. Aliás, nas atividades e listas de exercícios sempre
há uma questão do tipo: “comente a frase: o Egito Antigo é uma dádiva do Nilo”,
ou “o que seria essa dádiva do Nilo?” A primeira unidade enfatiza sempre a geo-
grafia do Egito junto ao delta do Nilo, e as etapas com uma estrutura de ruptura
total com a anterior; uma breve apresentação sobre as pirâmides de Gizé, as
invasões dos hicsos e tudo coroado pelo “fim do Egito Antigo”, suas derrotas
e seu apogeu sucessivamente pelos assírios (670 a.C.), persas (525 a.C.), gregos
(332 a.C.) e romanos (30 a.C.), sem sequer “mostrar o Egito Novo”.15
e suas possíveis alterações na estrutura curricular.
12
Ler mais sobre essa discussão das sequências de sucessão na História antiga em: GUARI-
NELLO, N. L. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013.
13
A faixa etária básica do alunato do sexto ano do fundamental é entre 11–13 anos. Para o
primeiro ano do médio a faixa transita entre 15-16 anos, sendo essa classificação meramente
ilustrativa.
14
A frase, atribuída ao historiador e geógrafo grego Heródoto de Halicarnasso, foi dita apro-
ximadamente no século V a. C. Ler mais em: HERÓDOTO. Histórias, Livro II - Euterpe.
Tradução: Maria Aparecida de OLIVEIRA SILVA. São Paulo: Edipro, 2016.
15
Durante uma aula desta unidade, um aluno de sexto de uma escola da Cidade de Manaus-
AM, me questionou “professor, então a partir de agora nós iremos ver o ‘Egito Novo’, pois o
272 Parnamirim, jan./jun. 2021

A segunda unidade sempre focaliza na administração pública. A figura do


faraó como centro da vida chega a transcender todas as demais questões. Re-
pleta de simbologias de poder espiritual e temporal, essa unidade mostra apenas
um lado da sociedade egípcia, pois:

Muitas “Histórias do Egito” são, na verdade, quase exclusiva-


mente Histórias dos reis egípcios: suas dinastias, batalhas, conquis-
tas, construções e outros feitos. Uma tal distorção é em parte o
resultado do caráter predominante da documentação escrita e ar-
queológica disponível, a qual ilumina sobretudo a religião e a mo-
narquia. (CARDOSO, 2004, p. 9).

E isso mesmo com todas as descobertas de historiadores, egiptólogos e ar-


queólogos permanece como centro do ensino.
Finalizando os estudos sobre o Egito vem toda a carga simbólica que fora
anunciada na primeira unidade: a religião. Totalmente cheia de imagens, sím-
bolos e signos, esta unidade se insere como a mais empolgante por parte dos
alunos: as crenças egípcias. As pirâmides retornam com seu conteúdo explicado
densamente, aparecem também as mastabas e os hipogeus, como túmulos. A
religião egípcia antiga assume o centro da discussão cultural, e passa a moldar
a representação de uma civilização que produzira uma sociabilidade repleta de
hierofanias e teofanias que o próprio filho dos deuses era seu governante. E
isso gera um fascínio sem igual. O problema é limitar esse fascínio ao contexto
trabalhado e mostrar relação com o dia a dia dos alunos hoje, e evitar crenças
fantasiosas demais e sensacionalismos.16

Sair da pirâmide e ir além-Nilo: uma proposta para o ensino


sobre o Egito Antigo
Pensar a História ensinada a partir da perspectiva da realidade dos alunos, é
transformar numa perene descoberta e algo prazeroso. Sempre que nos moti-
Antigo já foi conquistado, ne?” A partir da inocente questão levantada por esse aluno, ques-
tionei ainda mais até que ponto os alunos compreendem temporal/espacialmente o Egito. As
relações sempre partem do passado, e por lá permanecem, como se após a conquista romana, o
Egito sumisse da história, sem ter uma continuidade.
16
É cada vez mais crescente a produção cinematográfica, documentarista e propagandista
que se utilizam de elementos do Egito faraônico para despertar um discurso que varia desde
esplendor até um exotismo como se essa civilização nem pertencesse a nosso gênero humano.
Há uma difusão demasiada de crenças que os egípcios tiveram poções e elixires da imortalidade,
e que inclusive tiveram contato extraterrestre, o que acarreta ao professor uma maior desen-
voltura para limitar essa abordagem e, não levar os alunos a falsas e loucas afirmações sobre
essa civilização.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 273

vamos a realizar uma pesquisa histórica seja o tema que for, sempre partimos de
uma inquietação atual, de uma problemática que nos circunda. Por que o ensino
de História, especialmente das primeiras civilizações tem que ser apresentadas
num passado “antigo” e congelado, sem estabelecer nenhuma conexão com pre-
sente e a realidade dos alunos? “A supremacia do Egito no Brasil foi novamente
enfatizada através de uma comparação de suas influências com a influência da
comunidade brasileira negra no século XVII, o Palmares. Livros escolares de-
dicam apenas em média meia página para Palmares e é geralmente um único
parágrafo”.

Isto, apesar de Palmares ser herança nacional e seu líder, Zumbi,


ser considerado oficialmente herói nacional. Em contraposição li-
vros escolares dão atenção especial para o Egito Antigo, e em es-
pecial para o que são consideradas seus maiores feitios e lendas
míticas: a construção das Pirâmides e outros monumentos, suas
misteriosas religiões e seu sucesso em produzir lucros. Todos os
livros de história para os estudantes de 11 anos (sexta série) têm
um capítulo de dez páginas dedicadas a civilização egípcia. Livros
escolares do ensino médio para estudantes de 16 anos também de-
dicam pelo menos um capítulo inteiro para o Egito (FUNARI, 2004).
Com base nessa comparação nós supomos que a resistência negra
é desta maneira, pelo menos vinte vezes menos relevante do que o
Egito como matéria em um livro de ensino (FUNARI e CARVALHO,
2006). (FUNARI; CARVALHO, 2015).

De acordo com Funari (2015), Egito Antigo é o conteúdo mais estudado,


lembrado e popular da disciplina história na educação básica. Esta Civilização
carrega um lugar especial no ideário social (SILVA, 2014), não se pode desper-
ceber que, apesar do Egito antigo cronologicamente distante de nós, sua cultura
e estilo não fazem parte de nosso conhecimento e cotidiano atual. Temos vários
exemplos da presença do modelo egípcio em nossa sociedade, como por exem-
plo: novelas como “Os dez Mandamentos, que virou filmes e foi exibido nos
cinemas nacionais, além de outros filmes famosos como Cleópatra e Múmias.
Além disso temos os desenhos animados que abordam a temática sobre o Egito
antigo, ou sempre tem algum episódio que trata sobre o assunto, então repensar
o distanciamento do Egito em nossas aulas torna-se a primeira proposta para o
ensino. Lembrando que a História não é uma ciência do passado, nem estuda o
passado, porém é a ‘ciência dos homens no tempo.’” (BLOCH, 2001, p. 32).
Além das diferentes propostas que diferentes autores já fizeram sobre como
ensinar história, pensamos em usar as descobertas da egiptologia em sala de
aula. Diferente da história nesse quesito, a egiptologia é uma ciência de “pes-
274 Parnamirim, jan./jun. 2021

quisa de campo aberto” “campo in loco”17 o que acarreta uma aproximação


maior com o cotidiano, com a vivência do seu objeto de pesquisa.
Em dezembro de 2018, líamos em diferentes veículos de informação que
uma equipe de pesquisadores descobriu Tumba de 4 mil anos é descoberta no
Egito. O túmulo do sacerdote chamado "Wahtye"data da 5ª dinastia (entre 2.500
e 2.300 a. C), durante o reinado de Neferirkare. Essa descoberta muito próxima
a nós apresenta nomes que não comuns a quem não se debruça a pesquisar
sobre o Egito. Além da importância histórica é evidentemente turística, o uso
das informações contidas nas fotografias e relato dos pesquisadores nos per-
mite emergir num universo que temporalmente está distante de nós, porém se
pensarmos pelo viés social, até que ponto somos tão diferentes, ou eles eram
tão diferentes?
Sobre essa descoberta, que é uma das mais recentes é interessante destacar-
mos o que a equipe de especialistas considerou sobre, e, problematizarmos com
nossos alunos.

O túmulo de um sacerdote que remonta a mais de 4.400 anos foi


descoberto em Saqqara, perto do Cairo, por uma missão arqueoló-
gica egípcia, anunciaram neste sábado (15) as autoridades do Egito.
O túmulo, do sacerdote chamado "Wahtye", data da 5ª dinastia (en-
tre 2.500 e 2.300 a.C), durante o reinado de Neferirkare, de acordo
com o Ministério das Antiguidades egípcio.
As informações são da agência France Presse.
A tumba está "excepcionalmente bem preservada, colorida com
esculturas no interior. Ela pertence a um sacerdote de alta patente",
explicou o ministro das Antiguidades, Khaled el Enany, a uma mul-
tidão de convidados.
O túmulo contém "cenas mostrando o dono da tumba com sua
mãe, sua esposa e sua família, bem como vários nichos com grandes
estátuas coloridas do falecido e sua família", disse o ministério em
um comunicado. (Confira mais fotos ao final da matéria).
Os nichos são 18 e as estátuas, 24, de acordo com a mesma fonte,
que especifica ainda que a parte inferior da tumba contém 26 nichos
menores.
Em novembro, no mesmo sítio arqueológico em Saqqara, as
autoridades egípcias revelaram a descoberta de sete túmulos, in-
17
Entendemos como “pesquisa de campo aberto” “in loco” aquelas nas quais os pesquisado-
res se deslocam para o local de pesquisa de campo geralmente a céu aberto, com escavações,
e uso de instrumentos peculiares a esse métier. O campo de pesquisa da História, geralmente
é/são arquivos e bibliotecas, museus e outros, algo mais “fechado” “de gabinete”. Já a egiptologia
está quase sempre “fora”, no local coletando e embasando novas descobertas.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 275

cluindo quatro que datam de mais de 6.000 anos, pela mesma mis-
são arqueológica egípcia.

Os arqueólogos descobriram besouros e gatos mumificados.


O sítio de Saqqara, ao sul do Cairo, é uma vasta necrópole que
abriga em particular a famosa pirâmide de degraus do faraó Djo-
ser, a primeira da era faraônica.
Este monumento, construído em torno de 2.700 a.C pelo arqui-
teto Imhotep, é considerado um dos monumentos mais antigos da
superfície do globo.18

Com a informação apresentada pela equipe de pesquisadores a imprensa


mundial temos um leque de possibilidades para trabalhamos em classe: as rela-
ções familiares entre os egípcios, porque enterrados juntos toda uma família?
A relação dos egípcios com os animais, também mumificados, dentre outras
temáticas. Quando tomamos para a sala de aula as imagens apresentadas, as
possibilidades só se ampliam.
Concordamos com Thais Rocha Silva (2014, p. 187), quando esta nos diz que:

Mas o Egito não é parte apenas do mundo islâmico e oriental.


Ele não é apenas parte do grupo das “civilizações orientais”, mas foi
incluído também no grupo das “civilizações africanas”. Contudo,
não basta dizer que o Egito está na África. É preciso saber como
colocá-lo ali afim de não deformar um Frankenstein oriental para
fazer um africano. O precursor do afrocentrismo egípcio, Cheikh
Anta Diop (1923-1986) retomou uma discussão apresentada ainda
em finais do século XIX sobre a diáspora negra e a origem da hu-
manidade no continente africano. Diop afrmava que o Egito antigo
era uma civilização negra (1974: xiv) e reiterava a origem negra da
civilização, tirando-a da posição de receptora e devedora do mundo
branco “ocidental”.

As duas imagens escolhidas dentre as demais (reproduzidas nas figuras 3 e 4)


enfatizam pontos bem particuleres e recentes que pouco ainda são discutidos na
educação básica: o primeiro grande ponto é a localização geográfica do Egito: o
Egito está e sempre esteve no continente africano, logo, o esteriotipo hollywo-
odiano de “egípcios de tez branca” é algo para sempre levarmos a aula. Pelas
18
Tumba de 4 mil anos é descoberta no Egito. Veja fotos. Disponível em: https://g1.g
lobo.com/mundo/noticia/2018/12/15/tumba-de-4-mil-anos-e-descoberta-n
o-egito.ghtml. Acesso em set. 2019.
276 Parnamirim, jan./jun. 2021

Figura 3 – Cinegrafistas e visitantes visitam o túmulo da Purificação Real do Sacerdote durante


o reinado do Rei Nefer Ir-Ka-Re, chamado "Wahtye"

Foto: AP Photo/Amr Nabil. Fonte: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/12/1


5/tumba-de-4-mil-anos-e-descoberta-no-egito.ghtml.

fotografias acima, vemos uma representação colorizada de alguém da “alta pa-


tente” como noticiou o site. Sua tez não é branca. E sendo a tumba atribida a um
lider, não seria genuino representá-lo com suas caracteristicas fisicas alteradas.
Logo, os egipcios não eram “tão branquinhos” quanto se apresenta.

Esse viés foi apropriado pelo movimento negro americano na


década de 1960, comprometendo uma pesquisa arqueológica que
insistia num Egito negro. Se por um lado ele mobilizou parte da
comunidade científica para retirar o Egito do Oriente, expondo o
orientalismo, foi inserido na África com uma série de problemas. A
obra de Martin Bernal Black Athena, contribuiu para que os gregos
saíssem do pedestal erigido pela academia dos séculos XVIII e XIX.
Bernal se empenha em demonstrar que as construções em torno
da ideia de desenvolvimento civilizacional ocorrem num sistema de
cooperação, quase um “orientalismo às avessas” em que um Oriente
(o dele) substitui os gregos no pedestal da civilização. (SILVA, 2014,
p. 287).

É importante assim destacar com os alunos que o Egito antigo foi uma
grande dinastia com organização sociopolítica até então não vista no chamado
“Crescente Fértil”, que se diferenciou exponencialmente das demais civilizações
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 277

Figura 4 – Estátuas no túmulo recentemente descoberto da Purificação Real do Sacerdote du-


rante o reinado do Rei Nefer Ir-Ka-Re, chamado "Wahtye"

Fonte: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/12/15/tumba-de-4-mil-ano
s-e-descoberta-no-egito.ghtml.

por amplos fatores, especialmente pela divisão hierárquica concentrada na per-


sona do Faraó e de seus tributários.

Considerações finais
O desafio do ensino de História é sempre um guia em meio ao cotidiano escolar.
Ensinar história é apresentar ao aluno um universo de possibilidades e antes de
tudo relacionar! É mostrar aos alunos que cada povo, em cada período histórico
vivencia as melhores experiencias de seu tempo.
O ensino da História Antiga é visto por muitos professores como a “parte
mais empolgante” do ensino. De fato, há como mensuramos grande interesse
por parte dos alunos nos assuntos que esse período histórico abarca: a ideia
das lutas pérsicas, as conquistas Macedônicas, a mitologia greco-romana, e as
pirâmides e faraós egípcios. O Egito Antigo carrega uma carga de interesse
visual que os alunos já trazem consigo pela ampla difusão de uma egiptomania
que seja a cultura pop, seja as mídias continuamente os apresentam. Nesse
sentido, o professor também deve se apoderar do teor dessa mania e partir da
premissa que os alunos sempre consideram algo sobre o Egito, e esse algo deve
ser desmitificado, e mostrado como algo comum, não fora dos limites humanos.
O livro didático com sua postura reducionista acaba aludindo ideias simplis-
tas sobre a civilização egípcia na qual ainda pouco se fala como está o Egito hoje.
Não se estabelece uma conexão com o dia a dia, com o vivido por nossos alu-
278 Parnamirim, jan./jun. 2021

nos. Compete assim ao professor também a tarefa de relacionar, de estabelecer


uma conexão entre o discurso do livro, a descobertas recentes da Egiptologia,
e a realidade vivida por nossos alunos, isso parece ser algo difícil, mas não o é
uma vez que a melhor maneira de ensinar história é sempre partimos de nosso
presente para o passado, assim construirmos conhecimento!

Referências
BLOCH, M. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Tradução:
André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
BRAUDEL, F. História e ciências sociais. 6. ed. Lisboa: Editorial Presença,
1990.
CARDOSO, C. F. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 2004.
FUNARI, P. P. A.; CARVALHO, A. V. Palmares, ontem e hoje. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2015.
GUARINELLO, N. L. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013.
HERÓDOTO. Histórias, Livro II - Euterpe. Tradução:
Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: Edipro, 2016.
RIBEIRO, J. E. Da sincronia à diacronia: os “Três Tempos” da “História Total”
de Braudel a partir de um diálogo com Levi-Strauss. OPSIS, v. 9, n. 12, 2009.
SILVA, L. L. T.; GONÇALVES, J. W. O Ensino de História Antiga: algumas
reflexões. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 28., 2015, Florianópolis.
Anais. Florianópolis: ANPUH, 2015. v. 28.
SILVA, T. R. O sorriso da esfinge: reflexões sobre o ensino do Egito antigo no
Brasil. In: LEMOS, R. S. (Org.). O Egito Antigo: novas contribuições
brasileiras. Rio de Janeiro: Multifoco, 2014.
TUMBA de 4 mil anos é descoberta no Egito. G1, 15 dez. 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/12/15/tumba-de-4-
mil-anos-e-descoberta-no-egito.ghtml>.

Recebido em 6 abr. 2021.


Aprovado em 16 abr. 2021.
Transcrição de documentos

279
OS ÚLTIMOS DESEJOS DE UM GOVERNADOR PORTUGUÊS
NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE
O testamento de Caetano da Silva Sanchez (1799)1
Thiago do Nascimento Torres de Paula2

Os testamentos são documentos produtos da Idade Média. Assim, ao longo Como referenciar?
TORRES DE PAULA, T. N.
dos séculos XVI, XVII e XVIII a prática de elaborar testamentos se difundiu Os últimos desejos de um
pela cristandade ocidental. Com isso, o objetivo deste trabalho, é disponibilizar governador português na
capitania do Rio Grande do
a transcrição do testamento do governador portugueses Caetano da Silva San- Norte: o testamento de
chez, elaborado e aberto no apaga das luzes do século XVIII, especificamente Caetano da Silva Sanchez
(1799). Revista Galo, n. 3,
no ano de 1799 nas terras da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação na p. 281–285, 17 jul. 2021
capitania do Rio Grande do Norte.
O documento examinado e transcrito, atualmente encontra-se sub a guarda
do arquivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, neces-
sariamente integrando a seção de textos manuscritos. O testamento do ilustre
Caetano da Silva Sanchez, trata-se de um texto assentado em um livro de notas
pertencente a freguesia supramencionada, compondo uma coleção rara de 32
testamentos referentes ao litoral da capitania do Rio Grande do Norte. Docu-
mentos produzidos por homens e mulheres que viveram na Cidade do Natal,
Vila Nova de Extremoz do Norte, povoação de São Gonçalo e Vila de São José
do Rio Grande.
O material transcrito traz consigo marcas de sua trajetória, tais como: pa-
lavras apagadas, outras borradas, quando não sublinhadas por historiadores
do passado. No entanto, o documento original encontra-se em excelente es-
tado e conservação, constituindo-se em um manuscrito de três laudas, expondo
manchas que sugere acidente com líquidos ao longo do tempo, porém, não há
desgastes que comprometa a leitura.
1
A transcrição em tela é produto de um projeto de pós-doutorado cumprindo na Universi-
dade Federal do Rio Grande do Norte com financiamento da CAPES.
2
Pós-Doutor em Educação pela UFRN (2018), Doutor em História pela UFPR (2016), Ana-
lista de Ciência, Tecnologia e Inovação da FAPERN (Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado
do Rio Grande do Norte), Pesquisador do LEHS/UFRN (Laboratório de Experimentação em His-
tória Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte), titular da cadeira de nº 96 do
IHGRN (Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte) e Professor Colaborador da
Pós-Graduação Lato Sensu do IFRN (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio Grande do Norte). Lattes ID: 1215.9127.7257.3170. ORCID: 0000-0002-4481-4327. E-mail:
thiagotorres2003@yahoo.com.br.

281
282 Parnamirim, jan./jun. 2021

O testamento do governador Caetano da Silva Sanchez, como tantos outros


documentos testamentários do século XVIII, era um instrumento legal de fun-
ção cartorial, porém, marcadamente redigido com um discurso religioso e por
vezes com quebras de expectativas. Sendo assim, a primeira parte do texto é
reservada pelo testador para um acerto de contas com o mundo celestial. Além
de realizar a encomendação da alma e uma profissão de fé, relata aspectos sobre
sua origem, casamento e filhos.
No entanto, o governador ao narrar as últimas vontades não descreveu como
gostaria que fosse o seu funeral, nem os ritos do sepultamento, aliás, práticas
recorrentes em outros testamentos época. Por outro lado, o testamento de Ca-
etano da Silva Sanchez rompe com a expectativa do leitor, pois não há uma
segunda parte em que o testador normalmente realiza a declaração dos bens
moveis e imóveis3. A partir disto, o último governador setecentista da capi-
tania do Rio Grande do Norte, expressou apenas duas vontades, a saber: que
sua esposa fosse a testamenteira (procuradora pós-morte) e que fossem rezadas
quatro capelas de missas, ou seja, 200 missas pelas almas dos seus pais.
Ao cabo, é consenso entre os historiadores que testamentos elaborados em
outras temporalidades, apresentam-se como fontes importantes para compre-
ensão das múltiplas dimensões da vida cotidiana. Os testamentos em suas es-
truturas são portadores de informações que podem ser examinadas por pro-
cedimentos qualitativos e quantitativos (MARCÍLIO, 1983; RODRIGUES; DILL-
MANN, 2013; SANTOS, 2013). Por fim, a transcrição exposta poderá servi como
material para o processo de ensino e aprendizado de jovens pesquisadores, em
cursos e seminários de Metodologia da Pesquisa Histórica, ou mesmo, como
fonte para investigações no campo da História Sociocultural.

Transcrição
Testamento do capitão-mor governador Caetano da Silva Sanchez
Registro do testamento com que faleceu o capitão-mor governador que foi desta
capitania Caetano da Silva Sanchez desta Freguesia de Nossa Senhora da Apre-
sentação.
Em nome da santíssima trindade, padre, filho e espírito santo, três pessoas
distintas e um só Deus verdadeiro. Saibam quantos este instrumento de testa-
mento de cédula de ação, como em direito melhor nome haja de se chamar por
sua validade virem que sendo no ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus
Cristo de mil setecentos e noventa e nove, aos vinte três dias do mês de agosto
do dito ano, nesta cidade do Natal, capitania do Rio Grande do Norte, na casas
de minha residência eu, Caetano da Silva Sanchez, sargento-mor de infantaria
paga e por agora governador da mesma capitania, estando em meu juízo per-
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 283

feito e entendimento, com saúde que Deus é servido dar-me, e temendo a morte
e por não saber o quando o mesmo senhor será servido levar-me para si, faço
este testamento na forma seguinte. Primeiramente encomendo minha alma a
santíssima trindade que a criou e a remiu, e a virgem Nossa Senhora, e ao anjo
da minha guarda e ao santo do meu nome, aos de minha mais devoção e todos
da corte do céu sejam meus intercessores, quando a minha alma deste mundo
partir para que vá gozar da bem aventurança porque como fiel e verdadeiro
cristão protesto viver e morrer na Santa Fé Católica, creio o que crê a santa
Igreja romana mesma fé espero salvar a minha alma. Declaro que sou natura
da Freguesia de Casais da Europa , filho legítimo do capitão Francisco da Silva
Sanchez, de Maria Joaquina. Declaro que sou casado com Dona Maria Francisca
do Rosário Lopes, filha legítima do sargento-mor Francisco Gonçalves, natural
de Pernambuco, de cujo matrimônio tivemos dois filhos, um por nome Pedro
que em poucos dias de nascido faleceu e outra por nome Dona Micaela Joaquina
Sanchez, casada que foi com o capitão-mor Manuel Teixeira de Moura, que tam-
bém já é falecida = Declaro que os bens que possuo no meu casal são uns poucos
dez escravos os bens que deixaram por meu falecimento = Declaro que não te-
nho herdeiros forçados, ascendentes nem descendentes por terem meus pais e
filhos falecido da vida presente, e a dita minha filha não deixar filho algum e
não tenho esperança de ter mais filhos que sejam meus herdeiros descendentes
e por esta razão deixo a minha dita mulher, Dona Maria Francisca do Rosário
Lopes, por minha universal herdeira de todo [ilegível]onte de minha meação
de minha fazenda que me ficar por meu falecimento, o qual dou todos os meus
poderes que em direito posso par apor e dispor e vender e tomar posse de tudo
que me tocar, como seu que fica sendo por meu falecimento e não disponham
no meu enterramento por confiar nela o fará conforme as feitas que puder, e
tudo quanto determinar o seu arbítrio me satisfaço e dou por bem determinado,
o qual minha mulher dita também a nomeio por minha testamenteira, e lhe
rogo queira assistir para da minha fazenda de meação mandar quatro capelas
de missas, duas pela alma de meu pai, duas pela alma de minha mãe, que é o
único legado que disponho, e lhe peço que faça não porque não confie nela que
deixasse de fazer havendo lembrança, porém, porque o dirá meu pai fiquem sem
esse sufrágio, pela obrigação que tenho e amo que conservo as suas almas e pela
mesma confiança que faço da dita minha mulher de que há de cumprir este le-
gado que só faço esta declaração para lembrança, não será ela obrigada por ela
e por mais coisa alguma de dar contas com juízo desta minha última vontade
e rogo as justiças de Sua Majestade Fidelíssima faça inteiramente em cumprir
e guardar este testamento na forma que nele se contém e declaro tenho, digo,
tanto secular como eclesiásticas. E deixo por revogado outro qualquer testa-
mento ou codecilho que antes deste tenha feito, porquanto este é minha última
vontade quero que seja o que valha para se lhe dar inteiro dito que por verdade
284 Parnamirim, jan./jun. 2021

poder o sargento-mor Antônio de Barros Passos o escrevesse o que lhe foi di-
tado por mim e lido o achei estar conforme a minha determinação e vontade
[ilegível] assino nele com a minha firma de nome inteiro que costumo que tam-
bém o que escreveu como testemunha, nesta dita cidade e no dito dia e mês e
ano retro declarado = Caetano da Silva Sanchez = como testemunha que escrevi
= Antônio de Barros Passos = Aprovação Saibam quantos este público instru-
mento de aprovação de testamento de derradeira e última vontade virem que no
ano do nascimento de Nosso Senhor jesus Cristo de mil setecentos e noventa e
nove anos aos vinte e quatro dias do mês de agosto do dito ano, nesta cidade do
Natal, capitania do Rio Grande do Note, em casas de residência do governador
desta cidade, par aonde eu tabelião adiante nomeado fui vindo e sendo aí apare-
ceu o ilustríssimo senhor governador da dita cidade, Caetano da Silva Sanchez,
de que sem moléstia alguma em seu perfeito juízo e entendimento que Nosso
Senhor foi servido dar-lhe, pessoa que reconheço pela mesma de que se trata,
de que dou fé, e por ele me foi dado este papel de sua mão a minha dizendo
que era o seu solene testamento e que havia mandado escrever pelo sargento-
mor Antônio de Barros Passos, dotando ele testador e que depois de escrito os
mandara ler pelo achar conforme ele dito testador o havia ditado se assinara
com o dito sargento-mor Antônio de Barros Passos este como testemunha que
o serviu requerendo-me o aprovasse, porquanto ele testador o aprovava sendo
outro qualquer testamento ou codecilho [ilegível] feito [ilegível] e rogava as
justiças de Sua Majestade Fidelíssima assim o cumprisse e guardasse como nele
se contém declarado [ilegível] inteiro vigor, cujo testamento tomando eu tabe-
lião em minha, digo, em meu escritório verbum adverbum, achei limpo, sem
vício algum nem borrão ou entrelinha que dúvida faça e estava assinado o dito
testador com o dito sargento-mor Antônio de Barros Passos como testemunha
que escreveu e estava escrito em duas laudas e meia de papel que acaba aonde
eu tabelião principio esta aprovação, cujo testamento o aprovo e hei por apro-
vado tanto quanto em direito posso em razão do meu ofício sou obrigado, sendo
em tudo presentes por testemunhas o reverendo padre coadjutor Francisco Oli-
veira, o capitão Antônio José de Souza Oliveira, o capitão Fidelis José da Rocha,
o capitão Luís José Rodrigues Pinheiro, o tenente Antônio José de Vasconcelos
= o alferes João Manuel Carvalho = o sargento-mor Antônio de Barros Passos
que todos assinaram com o dito testador, pessoas todas de mim tabelião reco-
nhecidas pelas mesmas de que se tratam de que dou fé eu, Patrício Antônio de
Albuquerque, tabelião do público judicial e notas desta dita cidade do Natal,
capitania do Rio Grande do Norte e seu termo pela Rainha Fidelíssima Nossa
Senhora que Deus Guarde, escrevi e assinei esta aprovação com o meu sinal
público do que uso em dia e era retro no princípio desta declaração em fpe de
verdade = Caetano da Silva Sanchez, Patrício Antônio de Albuquerque, Fran-
cisco Alves de Melo, Antônio José [ilegível], Fidelis José da Rocha = Luís José
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 285

Rodrigues Pinheiro, Antônio José de [ilegível], Manuel de Carvalho = Antônio


de [ilegível] quatorze de maro de mil e oitocentos abri este testamento pelo que
era fechado e lacrado na forma do estilo, sem vício, cidade do Natal dia e ano
como acima. Feliciano Dorneles. E não se continha mais em o dito testamento
que eu bem e fielmente [ilegível] verbo adverbum [ilegível] coisa que dúvida
faça [ilegível] em juízo [ilegível] o qual [ilegível] me [ilegível] que [ilegível]
para [ilegível] 16 [ilegível] Manuel ´[ilegível] escrevi e assinei.

Manuel [ilegível]

Referências
MARCÍLIO, M. L. A morte de nossos ancestrais. In: MARTINS, J. S. A morte e
os mortos na sociedade brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1983.
RODRIGUES, C.; DILLMANN, M. Desejando pôr a minha alma no caminho da
salvação: modelos católicos de testamentos no século XVIII. História
Unisinos, São Leopoldo, RS, v. 1, n. 17, p. 1–11, 2013.
SANTOS, A. R. Por uma história da morte: fontes, metodologia e
possibilidades interpretativas sobre o Seridó. In: MACEDO, H. A. M.;
SANTOS, R. S. (Org.). Capitania do Rio Grande: história e colonização na
América portuguesa. Natal: EDUFRN, 2013.

Recebido em 6 abr. 2021.


Aprovado em 16 abr. 2021.
Projeto de Pesquisa

287
POLÍTICA(S) E MODERNIZAÇÃO
A implantação do programa “alimentos para a paz” e as frentes
de trabalho no sertão do Seridó-RN (1968–1976)1
João Paulo de Lima Silva2

RESUMO: Este plano de trabalho traz como proposta de investigação o Programa Ali- Como referenciar?
SILVA, J. P. L. Política(s) e
mentos para a Paz, entre a segunda metade da década de 1960 e meados de 1970. O modernização: a
objetivo do trabalho é perceber como os programas propagandeados como sendo de implantação do programa
“alimentos para a paz” e as
ajuda humanitária realizados no Sertão nordestino se tornaram decisivos na sobrevi- frentes de trabalho no
vência dos moradores da região. As consequências da seca para a população eram sertão do Seridó-RN
(1968–1976). Revista Galo,
extremas, uma das alternativas encontradas pelos governantes foi a criação das Fren- n. 3, p. 289–300, 17 jul. 2021
tes de Emergência. Uma das políticas públicas implementadas pelo Estado através da
Aliança para o Progresso, um acordo entre Brasil e Estados Unidos com a intenção de
minimizar os impactos sociais decorrentes dos grandes períodos de estiagem através
da doação de excedentes americanos sob a garantia de pagamento em longo prazo. O
governo do estado do Rio Grande do Norte objetivava com isso, conter parte da po-
pulação flagelada nos seus lugares de origem, como também, minimizar a fome e o
descontrole na economia local gerado por esse fenômeno climático. Esse plano de tra-
balho utiliza-se de documentos como relatórios, formulários, livros e jornais, fontes
que estão disponibilizados no site da Hemeroteca Digital Brasileira. Publicações dos
jornais, Diário de Natal, e O Poti, com data de circulação no período exposto, nos mos-
tram que, mais do que as notícias de progresso, calamidade e assistencialismo, também
houve uma constante insatisfação a partir de fatores que desestabilizaram cada vez mais
a região, seriam esses, a fome, doenças, indústria da seca e, muitas vezes a morte. Ao
longo do período estudado, foram postos em prática tanto o Programa Alimentos para
a Paz, como as Frentes de Trabalho, ações voltadas para os sertanejos como atividades
primordiais na sobrevivência da multidão, que tinha em troca da mão de obra na cons-
trução de obras emergenciais, um pagamento e pouca alimentação a serem repassados
através dos convênios firmados entre os governos do Rio Grande do Norte e o governo

1
O texto apresentado para a Revista Galo em formato de Projeto de Pesquisa foi aprovado
para ser desenvolvido como pesquisa de mestrado no Programa de História dos Sertões no
CERES-UFRN na cidade de Caicó-RN.
2
Graduado em História (UFRN-CERES, Caicó), Especialista em História dos Sertões (UFRN-
CERES, Caicó), mestrando no Programa de Pós-Graduação em História dos Sertões do (UFRN-
CERES, Caicó). ID Lattes: 8111.2333.0951.3952. ORCID: 0000-0002-4254-8571. E-mail: joaopau-
lojp31@hotmail.com. Sob orientação da Prof.ª Drª. Jailma Maria de Lima.

289
290 Parnamirim, jan./jun. 2021

dos Estados Unidos da América.


Palavras-chave: Sertão nordestino. Flagelados. Frentes de trabalho.

Introdução
Delimitação do objeto
Este projeto tem como principal característica, a investigação sobre como ocor-
reu a implantação do “Programa Alimentos para a Paz”, instituído no Brasil
através da Aliança para o Progresso, um programa norte americano propagan-
deado como sendo de ajuda humanitária e as frentes de trabalho criadas na me-
tade da década de 1960 e meados de 1970 no Sertão do Nordeste, como possível
solução para o enfrentamento das intempéries climáticas.
Entre esse período, o Brasil vivenciou uma conjuntura política instável que
se refletiu em diversas disputas que resultaram no golpe civil-militar de 1964 e
na decretação do Ato Institucional nº 5 de dezembro de 1968, que consequente-
mente resultou no fechamento do regime. Durante todo esse contexto, os ser-
tões atravessaram momentos de grandes dificuldades e conflitos gerados pela
seca.
A escolha do tema surgiu na pós-graduação em História dos Sertões, quando
percebemos que a criação desses programas era algo muito recorrente para
amenizar a fome causada como consequência do constante agravamento das
secas e suas consequências nesse Sertão.
Ao apresentar no título as palavras política(s) e modernização, a pesquisa
aborda a intervensão dos governos norte americano, brasileiro e do Rio Grande
do Norte, que se apresentavam com a proposta de modernizar o Sertão, sendo
que muitas vezes essa dita modernização teve caráter emergencial. Sertão esse
que o autor Antonio Carlos Robert de Moraes nos apresenta como:
Um qualitativo de lugares, um termo da geografia colonial que
reproduz o olhar apropriador dos impérios em expansão. Na, ver-
dade, tratam-se de sertões, que qualificam caatingas, cerrados, flo-
restas, campos. Um conceito nada ingênuo, veículo de difusão da
modernidade no espaço. (MORAES, 2003, p. 5).
Desse modo, as falas e ações políticas surgem como fundamentais para per-
cebermos a relação de poder existente em um cenário caótico e formulador de
uma história regional muitas vezes estereotipada. E, algumas vezes nos remete
ao “Discurso oculto das Lideranças”, onde (NEVES, 2013, p. 72) nos mostra in-
tuitos políticos bem-sucedidos a partir do aproveitamento da ingenuidade do
povo.
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 291

Nos relatórios elaborados pelos responsáveis pelo programa, os trabalhado-


res aparecem como personagens extremamente satisfeitos com o lugar e ações
a que foram expostos, no entanto, nos jornais da época eram frequentes os dis-
cursos sobre as péssimas condições de moradia, epidemias e riscos aos quais
todos esses flagelados foram submetidos.
Portanto, a nossa problemática permeia nesses aspectos, investigaremos
qual o verdadeiro perfil desses trabalhadores e quais as reais causas levaram ao
encerramento das atividades nessas concentrações intituladas Frentes de Tra-
balho.

Discussão bibliográfica
A discussão bibliográfica foi feita considerando produções científicas que aten-
deram os critérios de elaboração dessa pesquisa. Debatemos através da obra
“O governo do Monsenhor Walfredo Gurgel” de José Daniel Diniz (2016), “O Nor-
deste e a Historiografia Brasileira” (2012) de Frederico Castro Neves, além de
publicações do Jornal Diário de Natal do ano de 1966, qual foi participação de
importantes políticos do período em questão como Aluízio Alves, perante a im-
plantação do Programa Alimentos para a Paz no Nordeste.
Outro fato importante percebido, é como ocorreu a transição de poder atra-
vés da acirrada disputa política entre Monsenhor Walfredo Gurgel e Dinarte
Mariz, uma vez que tal fato representou significativo episódio da história polí-
tica de um Estado que foi posto em situação de calamidade não só pelos efeitos
causados pelas condições climáticas incertas, mas também pelo enorme número
de desempregados que se sucederam diante disso.
Explanaremos sobre as tentativas de solucionar tais problemas, como, por
exemplo, o Encontro de Prefeitos do Seridó ocorrido em 1966, ocorrido nas ci-
dades de Caicó e Currais Novos.
Discutiremos sobre a seca de 1969 ao abordar que é algo que exige, mas
que ultrapassa as fronteiras naturais e nos desloca a outro cenário, muitas ve-
zes elaborado a partir das práticas políticas e climáticas que constantemente se
inserem no Sertão. As causas dessas condições reforçam a ideia de progresso,
como nos mostra “Palavras que calcinam, palavras que dominam: a invenção da
seca do Nordeste”, (1995) de Albuquerque Júnior, que nos levou a perceber as mu-
danças ocorridas mesmo que emergenciais ou de caráter paliativo, evidencia-se
como se deu o processo de modificação desses espaços, muitas vezes por meio
de obras governamentais.
Trabalhos como “A Nova Relação do Sertanejo com a Face Visível da Seca” de
José Messias Rangel e Fábio Freitas Schilling Marquesan (2014), e “Populismo e
Modernização no Rio Grande do Norte” de Sérgio Luiz Bezerra Trindade (2004),
que nos indicam que nesse período ocorreu um grande número de construção
292 Parnamirim, jan./jun. 2021

de barragens, açudes, estradas e rodovias, nos quais nos permite abordar quem
eram os trabalhadores que atuaram e se tornaram parte definitiva de paisa-
gens locais em fase de crescimento, além da articulação governamental junto
às alianças firmadas em uma tentativa de remediar os constantes transtornos
causados.
Esse período também ficou marcado por atitudes ilegais onde muitos lu-
cravam desonestamente a partir dos recursos que deveriam ser atribuídos à
assistência populacional. A autora Carla Monteiro Sales, com sua obra “Ser-
tão Encantado: representações da paisagem nordestina no cinema da retomada”
(2014) nos levou a perceber que, esse cenário em determinado momento ficou
conhecido através da mídia da época como se fosse uma característica da re-
gião, uma vez que os jornais traziam uma abordagem de que o Sertão era um
local extremamente seco, ainda que isso não fosse uma realidade constante. E
a autora justifica:

O Sertão nordestino é uma região com forte apelo visual, sua


enunciação raramente é desassociada de um conjunto de imagens
mentais que nos remete as suas principais características e com-
põem certa significação sobre essa porção espacial. Trata-se de
uma concepção que aparece, muitas vezes, de forma enraizada, ra-
tificando um imaginário socialmente compartilhado tão coerente-
mente repetido, que adquire nexos de verdade. (SALES, 2014, p. 115).

E com isso, a ideia do Sertão geograficamente castigado e historicamente


pobre deu à indústria da seca uma espécie de suporte, onde na maioria das
vezes, as injeções de recursos realizadas para suprir as dificuldades, foram tão
vistas como necessárias ao serem noticiadas, que se deixou de mostrar que, por
trás de tudo aquilo havia personagens agindo em benefício próprio.
O Sertão nordestino surge como um ambiente conflituoso, os flagelados se
mostravam insatisfeitos com as duras horas de trabalho, os alimentos não eram
mais suficientes para saciar a fome dos trabalhadores, onde o desemprego as-
sumiu grandes proporções, garantindo a ocupação e os meios de subsistência
da população (DUARTE, 2002, p. 33). E mesmo diante desse cenário, em “Seca e
poder: entrevista com Celso Furtado”, (1998), Celso Furtado nos revela que essa
população fragilizada via, mesmo diante da situação de escassez, uma forma de
vencer a pobreza já existente e que de certo modo se alastrou nessas décadas, o
que nos remete ao romantismo dito sobre os Sertões por Euclides da Cunha.
A partir disso uma multidão insatisfeita e temerosa pela falta de trabalho e
atenção por parte das autoridades caminhava para um cenário de revoltas, atra-
vés de invasões que, constantemente ocasionaram saques, como bem vimos no
trabalho de Diêgo Nascimento de Souza, “Entre saques e multidões: efeitos da
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 293

seca de 1953 no cenário urbano de Currais Novos”, (2007). Pesquisa esta que,
mesmo não condizendo com a temporalidade a ser abordada, nos dá uma esti-
mativa de como a seca e suas consequências já eram consideradas um fenômeno
social complexo bem antes desta discussão.
Relatamos também a realidade temporal de uma população doente, pessoas
de todas as idades envolvidas nas frentes de trabalho, forçadas a conviver em
um ambiente sem qualquer condição de higiene que fosse adequada para se
viver. As más instalações de moradia e trabalho apresentaram a essas pessoas
uma fome mais generalizada, sérias doenças e, em muitos casos uma morte
prematura e desassistida pelas políticas públicas que, na grande maioria das
vezes não conseguia conter tais problemas, fatos frequentes e constatados nos
jornais da época.

Justificativa
Nossa pesquisa justifica inicialmente, a contribuição que esperamos dar à histo-
riografia que trata da realidade do Sertão do seridó norte-rio-grandense, apre-
sentando-o em sua pluralidade, uma vez que, para muitos a palavra sertão re-
mete a uma realidade embasada por aspectos físicos como clima e economia,
ou nos aspectos simbólicos como do tipo, narrativas e identidades. Existem
recortes espaciais com realidades e diferenças a serem questionadas (ALBU-
QUERQUE JÚNIOR, 2014, p. 41–42).
Pensar esse Sertão é, antes de tudo, compreender que tudo se trata de um
espaço provido de experiências, conflitos, e disputas que, política ou popular-
mente arquitetam um novo rumo às mudanças que esse cenário apresenta. Boa
parte da historiografia produzida academicamente ainda não se dedicou pon-
tualmente ao que propomos, pois carece de trabalhos que se dediquem não so-
mente ao Sertão, mas, estudos que apresentem os espaços, as ações existentes
nesses lugares e, por fim, os protagonistas dessas histórias. Trabalhos sobre
essa temática, podemos apontar, Criar ilhas de Sanidade: Os Estados Unidos e
a Aliança Para o Progresso no Brasil (1961–1966), de Henrique Alonso de A. R.
Pereira (2005); Caicó: uma cidade entre a recusa e a sedução, de Juciene Andrade
Felix Andrade (2007), possuindo recortes temporais anteriores ao que tratamos.
Percebemos que, trabalhos que envolvam Sertão, convênios, frentes de tra-
balho e flagelados são em número muito reduzido. Nosso trabalho contribui
para a sociedade de forma a expor que, o Sertão, por mais que não qualifi-
cado no ponto de vista clássico da geografia, visto apenas como um horizonte
modernizável, constitui-se por suas atividades, grupos sociais e relações que o
qualificam e destroem estereótipos.
Ao esmiuçar os conteúdos historiográficos da pesquisa nos deparamos cons-
tantemente com as ações das elites políticas tradicionais, essas, representadas
294 Parnamirim, jan./jun. 2021

através do surgimento das políticas públicas que, muitas vezes, geravam con-
flitos e mudanças no espaço povoado por uma classe fragilizada e dependente
dessas ações, fossem elas efetuadas por meio do governo ou da igreja católica.
Fato esse que faz com que esse trabalho se adeque perfeitamente aos itens que
acolhem a proposta da Linha de Pesquisa I, intitulada Cultura Material, Socie-
dade e Poder nos Sertões.
É cada vez mais notável o distanciamento da palavra com o mundo e, no
jornalismo regional isso tem a influência do provincianismo típico de cidades
dominadas por organizações e famílias “tradicionais”. Dessa forma, a partir da
soma dos aspectos históricos, sociais e políticos, será possível retratar o pano-
rama entre 1968 e 1976, período que apresenta falta de referência e contexto da
historiografia local.

Objetivos
Gerais

• Analisar as políticas assistências implantadas nos sertões do Seridó-RN


entre os anos de 1968–1976, destacando as ações dos Estados Unidos da
América na contribuição com a distribuição de alimentos.

Específicos

• Analisar como o Programa “Frentes de Trabalho com Alimentos para a


Paz” se estabeleceu no Sertão do Seridó-RN;
• Demonstrar quais foram as reais consequências proporcionadas pelo pro-
grama para o povo mais carente da região;
• Compreender os motivos que fizeram com que esse e outros programas
fossem extintos.

Diálogos teóricos
Procurou-se utilizar um enfoque político-social, historiográfico para verificar
prováveis mudanças no espaço sertanejo exercidos sobre os grupos sociais que
ali viveram e quais as consequências decorrentes disto, uma vez que percebe-
mos os espaços como produtos a partir das transformações humanas causadas
por seus conflitos, dominações, resistências e negociações.
Dentro desse contexto, tratar da fase em que o Nordeste brasileiro e mais
especificamente o Sertão sofria com as amarguras da seca e não abordar os pro-
gramas que contribuíram para o que foi intitulado como “a invenção da seca”,
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 295

seria, sem dúvida, uma grande lacuna. Ainda mais quando esse período iden-
tifica muito bem a continuação do momento onde a política social tentava se
fortalecer através de uma dita “ação positiva para ajudar a América Latina”,
visto também como o momento de se dar um novo esplendor à política de boa
vizinhança.
Tal momento não se faz marcante apenas na história do Sertão, mas tam-
bém na história política3 do Brasil que oscilava entre um momento de extremas
transições políticas e sociais.
Sérgio Trindade afirma que o receio da disseminação de ideias subversivas
em sua área de influência geopolítica fez os Estados Unidos criarem mecanismos
de auxílio às áreas subdesenvolvidas que pudessem ser alvos da presença co-
munista. Os fantasmas de Fidel Castro e de Ernesto Che Guevara assombravam
os americanos. A Revolução Cubana criou certa desestabilização na América
Latina. (TRINDADE, 2004, p. 198–199).
De acordo com Reichel, “A criação da Aliança para o Progresso fazia parte
dessa perspectiva norte-americana de frear o perigo vermelho.” (REICHEL, 2004,
p. 189–208). Exposto a isso tudo, estava o Sertão, já comentado anteriormente
como aquele possuidor de realidades e diferenças a serem questionadas. O Ser-
tão não mais pode ser entendido como uma unidade homogênea, um recorte es-
pacial presidido pela semelhança e pela identidade. (ALBUQUERQUE JÚNIOR,
2014, p. 41–42).
O historiador tem agora a função de produzir sentidos, assim sendo, esta
pesquisa tem a preocupação de situar os vestígios políticos e modernizadores
que foram responsáveis pelas muitas ações e movimentos a que foram expos-
tos os indivíduos que compunham esse espaço no recorte temporal indicado,
fossem eles a elite ou as aglomerações flageladas.
A SUDENE e USAID como instituições que atuaram sob o caráter de coo-
peração para o desenvolvimento, foram decisivas durante o processo de admi-
nistração dos programas implementados no período em questão, não se pode
descartar o fato de que nem sempre, as ações propostas funcionaram como es-
perado. O que acabou por causar divergências e conflitos, tanto administrativas,
como populares.
Do ponto de vista da expansão territorial, a modernização tem dois senti-
dos principais: um que envolve a infraestrutura econômica, a base técnica e os
meios de produção e outro que envolve os aspectos políticos e ideológicos. De
acordo com Hobsbawm (1996), se a Revolução Industrial britânica forneceu o
modelo para as fábricas, rodovias, cidades, infraestrutura, emprego das técnicas
3
Remónd conceitua a História Política que guarda ressonâncias com a que se produz nas
pesquisas atuais, onde afirma o autor: “É a história do Estado, do poder e das disputas por
sua conquista e conservação, das instituições em que ele se concentrava das revoluções que o
transformavam”. (REMÓND, 2003, p. 15).
296 Parnamirim, jan./jun. 2021

etc., a Revolução Francesa forneceu o modelo político e ideológico do processo


de modernização. Para Giddens (1984, p. 111), “a teoria da modernização está
associada diretamente à teoria da sociedade industrial”.
O conceito de modernização, nesse sentido, é abrangente, já que está relaci-
onado a um conjunto de transformações que se processam nos meios de produ-
ção, mas também na estrutura econômica, política e cultural de um território.
Para se expandir espacialmente, a modernização entra no jogo dos debates teó-
ricos e geralmente é justificada ideologicamente nas instituições acadêmicas,
no universo político e nos meios de informação. Assim, modernização não se
refere, única e exclusivamente, às transformações que se processam nos meios
de produção e nas bases técnicas, pois envolve um conjunto de valores que,
advindos de uma determinada classe social, se apresenta com forte caráter ide-
ológico.
Trata-se da expansão da própria modernidade do ponto de vista territorial.
No Sertão, sua expressão podia começar a ser observada na abertura de estra-
das, na construção dos reservatórios de água, nos sistemas de transporte, nos
contrastes das cidades, etc. Nesse período jornais faziam debates em torno do
que seria modernização, grande parte era concebida pelas elites como “agentes
civilizatórios”, isso tudo com a pretensão de mudar a realidade da sociedade,
dando assim, ênfase às ações governamentais.

Fontes e metodologia
Ao analisarmos o material memorialístico publicado sobre o período governa-
mental da época, por exemplo, a obra de Jose Daniel Diniz “O governo do Mon-
senhor Walfredo Gurgel” (2016), nos deparamos com relatos de experiências vi-
venciadas durante seu governo, que ocorreu entre 1966 a 1971. Alguns desses
estudos foram publicados, sobretudo por ex-auxiliares do governador, o que
evidencia a necessidade de trabalhos que tragam em seu corpo, análises mais
aprofundadas sobre o devido período.
De acordo com Paulo Antônio Rezende, a fonte jornalística permite ao his-
toriador, além dos discursos informativos, trabalhar com anúncios que buscam
seduzir e encantar os leitores (REZENDE, 1997, p. 62). Assim, utilizamos para
uma melhor percepção do nosso trabalho, a imprensa através de matérias do
Diário de Natal, O Poti, RN Econômico e Memorial da Democracia, que nos au-
xiliaram a refletir sobre o período da década de 1960 e 1970 nos sertões norte-
rio-grandenses, sobretudo no que se refere às ações norte-americanas voltadas
para o combate à fome nos sertões. O Poti e o Diário de Natal presentes no
acervo da Hemeroteca Nacional Brasileira.
A partir, ainda do diálogo de Neves (2012), com matérias dos jornais O Poti e
REVISTA GALO, ano 2, n. 3 297

Diário de Natal, presentes no acervo da Hemeroteca Nacional Brasileira, foram


esboçados, o início do programa Alimentos Para a Paz em terras sertanejas, bem
como a distribuição de alimentos vindos deste, e seu repasse para o povo por
meio de órgãos ligados à Igreja Católica.
Para melhor discutir como ocorreu essa participação da igreja junto aos pro-
gramas, utilizamos como fonte um formulário elaborado pela Cáritas Brasileira
que tinha o objetivo de inscrever programas de alimentação infantil e atividades
de auto ajuda ao Programa Alimentos para a Paz4 . Por fim, discutimos quais as
causas que levariam ao enfraquecimento do programa e consequentemente seu
fim no ano de 1974.
Utilizamos exemplares do Diário de Natal disponíveis na Hemeroteca Digi-
tal Brasileira, além de relatórios manuscritos, pertencentes ao arquivo da Pa-
róquia de Santana e elaborados a partir de dados funcionais dos que atuaram
em algumas frentes de trabalho ou emergência, como assim está descrito nos
documentos5 . Após uma breve coleta e futura seleção de dados expostos nesses
itens citados, teremos uma clara demonstração de como funcionava a distribui-
ção dos trabalhadores, quais suas funções, quanto receberiam por seu trabalho
e até mesmo o perfil social destes homens.
As mudanças das cidades ocorreram, tanto no espaço físico como nas sen-
sibilidades. Porém a situação de quem estava por trás desse progresso foi bem
diferente daquela que estampou as páginas dos jornais, sempre reverenciando
um espaço de total controle e ordem. Essas construções foram o paliativo para
o sustento dos flagelados que ocupavam várias localidades do Sertão.
O documento expôs no topo da página o título “Natureza do Trabalho” e
como subtítulo, “Filosofia do Trabalho: Ser útil à comunidade”. Nesse ponto,
percebe-se a introdução dos trabalhadores como agentes responsáveis por de-
senvolver um trabalho de participação junto ao Estado. Isso talvez como uma
forma de fazer com que os mesmos desenvolvessem seu trabalho de forma mais
devotada, uma vez que se sentiriam responsáveis pela melhoria das condições
locais.
O relatório apresenta as atividades a serem gerenciadas pelos órgãos respon-
sáveis pelas frentes de trabalho. Assim, o DER ficava responsável por desma-
tamento das faixas laterais das estradas; decomposição dos aterros; fazer brita
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O formulário datilografado encontra-se no Acervo de documentos da Paróquia da Diocese
de Caicó. No primeiro andar do Centro Pastoral Dom Wagner, depositados em pastas plásticas e
armários de ferro. Os mesmos não se encontram enumerados por se encontrarem em processo
de catalogação. Acesso em 4 mai. 2018.
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Os documentos manuscritos (relatórios) encontram-se no Acervo de documentos da Pa-
róquia da Diocese de Caicó. No primeiro andar do Centro Pastoral Dom Wagner, depositados
em pastas plásticas e armários de ferro. Os mesmos não se encontram enumerados por se en-
contrarem em processo de catalogação. Acesso em 2 mai. 2018.
298 Parnamirim, jan./jun. 2021

para construção de pontes; elevação de aterro barragem; refazer aterros barra-


gem arrancados e fazer paralelepípedos em tempo oportuno. O DNOCS tinha
como suas funções; a limpeza e acostamento das estradas; serviço de canais; a
fabricação de tijolos; calçamento das casas dos colonos, além da arborização de
colônia.
A estrutura organizacional, desenvolvida pela classe de homens pobres, tor-
na-se vulnerável não apenas pelas condições climáticas, como também por um
conjunto de fatores administrativos, que pouco a pouco demonstravam a fragi-
lidade do programa, destacando-se a ausência de recursos suficientes e a falta
de créditos assistenciais.

Cronograma

Atividades 2020.1 2020.2 2021.1 2021.2


Cumprimento de disciplinas x x
Pesquisas bibliográficas x x
Revisão bibliográfica x x
Escrita da dissertação x x
Exame de qualificação x
Reuniões de planejamento x x x
Mapeamento de fontes x
Apresentação em eventos x x x
Revisão x
Redação final x
Defesa da dissertação x

Referências
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contemporâneos”, as antinomias de um enunciado. In: FREIRE, A. (Org.).
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300 Parnamirim, jan./jun. 2021

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TRINDADE, S. L. B. Aluízio Alves: Populismo e Modernização no Rio Grande
do Norte. Natal: Sebo Vermelho, 2004.

Recebido em 30 abr. 2021.


Aprovado em 14 mai. 2021.
Ficha técnica
Organização da edição
Prof. Dr. Thiago do Nascimento Torres de Paula

Editoração e diagramação dos textos


Gabriel Araújo
Leonardo da Silva Claudiano

Capa
Thiago do Nascimento Torres de Paula
Gabriel Araújo

Editor chefe
Francisco Isaac Dantas de Oliveira

Corpo editorial Pareceristas ad-hoc


Jakson dos Santos Ribeiro Alyne Marinho Cézar Miranda
Laura Oliveira Motta Anna Karolina Vilela Siqueira
Leonardo da Silva Claudiano Ariane de Medeiros Pereira
Luciano Cesar da Costa Bruno Miranda Braga
Marina Rockenback Cícero Renan Nascimento Filgueira
Mariza Silva de Araújo Daise Silva dos Santos
Olivia Silva Nery Leandro Gomes Gentil
Pedro Teixeira Monteiro Luis Felipe Figueiredo Leitão
Rodrigo Sampaio Pinto Maiara Silva Araújo
Rosenilson da Silva Santos Matheus Amilton Martins
Santiago Silva de Andrade Marcela de Oliveira Santos Silva
Thiago Alves Dias Natália M. de Oliveira Gonçalves
Thiago do N. Torres de Paula Natiele Fernanda de Souza Barbosa
Renata dos Santos de Mattos
Thaís Silva Félix Dias
José Roberto Gimael Ferraz Junior

Tipografia
Libertinus

Av. Olavo Lacerda Montenegro, 4369, L-20


Parnamirim, RN, CEP: 59154-350

Parnamirim, Rio Grande do Norte, 17 de julho de 2021.

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opiniões neles emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista da revista
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