Você está na página 1de 32

Literatura

Portuguesa: Prosa
Material Teórico
Viagens do século XX

Responsável pelo Conteúdo:


Profa. Dra. Vivian Steinberg

Revisão Textual:
Profa. Ms. Silvia Augusta Albert
Viagens do século XX
Decadentismo - Modernismo

• Introdução

• A Confissão de Lúcio de Mário de Sá- Carneiro, a


Belle Époque e a dispersão do sujeito

• Modernismo em Portugal

• Sobre a obra em prosa de Mário de Sá-Carneiro

• Para concluir: Livro do Desassossego de Fernando


Pessoa

Nesta unidade, vamos estudar A Confissão de Lúcio de Mário


de Sá-Carneiro, uma novela que está na confluência entre
o Decadentismo e o Modernismo, obra prima da literatura
portuguesa. Veremos alguns aspectos do contexto histórico e
cultural da época, e falaremos da revista Orpheu, marco do
Modernismo em Portugal, mostrando a inquietação do sujeito
nesse período histórico.

Lembramos a você da importância de realizar todas as leituras e as atividades propostas


dentro do prazo estabelecido para cada unidade, no cronograma da disciplina. Para isso,
organize uma rotina de trabalho e evite acumular conteúdos e realizar atividades no último
minuto. Em caso de dúvidas, utilize a ferramenta “Mensagens” ou “Fórum de dúvidas” para
entrar em contato com o tutor.
É muito importante que você exerça a sua autonomia de estudante para construir novos
conhecimentos.

5
Unidade: Viagens do século XX Decadentismo - Modernismo

Contextualização

A Confissão de Lúcio, novela de Mário de Sá-Carneiro, se passa em Paris e em Lisboa no


final do século XIX e começo do XX. O ambiente é da Belle Époque. Podemos associar o visual
da época às imagens do filme “De olhos bem fechados” (1999) de Stanley Kubrick, baseado
na novela Breve Romance de Arthur Schnitzler (1862-1931), estrelado por Tom Cruise e Nicole
Kidman. Vale a pena ver e/ou rever esse filme.
Assim como a cena da festa na novela de Sá-Carneiro, há também uma festa no filme típica
do Decandentismo, um baile de máscaras, num ambiente semelhante ao do sonho, num espaço
e num tempo míticos onde Eros e Tânatos se confundem. A novela de Schnitzler se passa em
Viena, outro polo da Belle Époque. Tanto no filme como na novela as cenas são povoadas de
erotismo, mistério e sedução.
Uma personagem reconhecida desse período é a Salomé, recriada tanto na dramaturgia por
Oscar Wilde (1854-1900) quanto nas pinturas de Gustave Moreau (1826-1898) e de Gustav
Klimt (1862-1918).
Ver imagens de Gustave Moreau em:
• h t t p : / / g a b i n e t e d . b l o g s p o t . c o m .
br / 2012/09/u ma-estran h a-m agia-
salome-de-gustave.html
• h t t p : / / 4 . b p . b l o g s p o t . c o m / -
O77fp4YbufM/UFXPXpRm8xI/
AAAAAAAAOLA/fmp4PSrws_c/
s1600/2.-
Imagens de Gustav Klimt, da sua Salomé,
também conhecida como Judith:
• h t t p s : / / w w w . y o u t u b e . c o m /
watch?v=BHOBZPO3Cus
Ou para ver várias obras dele:
Gustav Klimt, 1909. Gustave Moreau, 1871.
• http://www.klimtgallery.org

6
Introdução

Nosso percurso ocorre no começo do século XX, num momento perturbado mundialmente.
Num período um pouco anterior ao Modernismo, nesse entremeio, entre o final de século XIX
e começo do XX, os poetas viveram o que foi chamado de Decadentismo, ou a Belle Époque,
prenunciada por Charles Baudelaire. O personagem de Eça de Queirós, em A cidade e as
serras, Jacinto, enquanto vivia em Paris, era um verdadeiro personagem da Belle Époque,
ou do decadentismo, um dândi, assim como seu criador. Por um lado, esse foi um momento
de riqueza, de luxo e esbanjamento, mas por outro, foi de tédio, de ennui (como diriam os
franceses), de spleen (como diriam os ingleses).
Nesta unidade vamos estudar a novela A Confissão de Lúcio (Lisboa, 1-27 de setembro
de 1913), de Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), a qual antecipa o que viria representar a
revista portuguesa Orpheu (1915), marco do Modernismo em Portugal. A viagem que fazemos
com essa novela é para o mundo interior, as dúvidas que rondam o ser, o drama existencial
cujo ápice é a heteronímia de Fernando Pessoa. Nesse começo de século, surgem as teorias
de Sigmund Freud (1856-1939), constatando a existência do inconsciente e teorizando sobre
a complexidade do ser humano. Nesse período, Freud lançou o livro Estudos sobre a histeria
(1893-1895), criando as bases de uma nova ciência, a psicanálise.

A Belle Époque é imprecisamente situada entre o final do século XIX e início do


século XX (1914) – início da Primeira Guerra Mundial. Teve dois polos dominantes:
Paris e Viena. É um momento que surge a publicidade de maneira mais abrangente, o
jornalismo ganha impulso, a vida se torna mais rápida. É um período em festa, iluminado
pela alegria de viver, mais atentamente não à alegria de viver mas a euforia de poder.
A ambiguidade permeia a Belle Époque. Ama-se o ar livre, incentivando os esportes mas também as
artes dos interiores, a arquitetura e a decoração. Podemos nos lembrar do estudo que Walter Benjamin
fez sobre Paris e sobre o poeta por excelência dessa cidade, Charles Baudelaire (1821 – 1867).
Baseado em Steinberg, Vivian. Literatura estrangeira em língua portuguesa. (livro no prelo)

Para saber mais consultar:


CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários
Disponível em: http://www.edtl.com.pt.
Ver o conceito de “Mal do século”, “Decadentismo”, “spleen”, “ennui” no e-dicionário de termos
literários de Carlos Ceia.

Decadentismo:
(...) No sentido mais restrito, a “decadência” é, no plano estético, uma corrente da literatura francesa
desde meados do século XIX com o seu apogeu nos anos 80. No quadro da reacção irracionalista (o
retorno ao onirismo, aos mitos, à imaginação, ao fantástico), espiritualista (catolicismo estético, rosa-

7
Unidade: Viagens do século XX Decadentismo - Modernismo

crucianismo, budismo, por exemplo) e ocultista (magia, cabala, espiritismo, teosofia, quiromancia,
astrologia) do fim-de-século contra o positivismo e o cientismo, o decadentismo integra uma lata
e plural renovação estética, de teor antinaturalista e antiparnasiana, distinguindo-se como arte de
crise correspondente a uma paradoxal atitude, dúbia e ambivalente, perante a sociedade urbano-
industrial (miticamente percepcionada como processo de declínio irreversível, o finis Latinorium) e
face aos efeitos da moderna racionalidade científica e pragmática, em que o materialismo burguês
despontava como algo de abjecto. Daí a recusa do utilitário, de um praticismo social unicamente
orientado para os valores mercantis e, como contraponto, a projecção para o “culto do eu” que,
tanto no plano do estético como do vivencial, relevava a diferença entre a elite e as massas. Daí,
igualmente, o culto exarcebado do artifício, do anti-natural (na tradição baudelairiana), do excesso,
do decorativismo sensualista (a predominância dos universos de simulacro, a sofisticação ritualística
dos objectos, o fascínio pela flora exótica ou artificial, o ludismo sinestésico, a sintaxe dos odores) e o
culto do individualismo (expressão dum egotismo absoluto, clara hipertrofia do eu), a centripetação
subjectiva (especularidade narcísica), a ficcionalização de um narcisismo paroxístico. Sob o primado
destas tendências temático-formais (a que poderíamos acrescentar, entre outras, o amor ritualmente
lascivo e inibitório, o fascínio pela figura ambivalente de Salomé tal como surgia nos quadros do
pintor simbolista Gustave Moreau, o erotismo anómalo, a volúpia transgressiva do vício e do sangue,
o imaginário nosológico, monstruoso e necrófilo) o decadentismo reclama o novo, pretendendo os
estetas libertar a literatura e as artes das convenções da moral burguesa, conscientes que estavam da
desilusão de um século que parecia ter esgotado todas as potencialidades de um romantismo reduzido
a cinzas. Estes sentimentos encontraram fortíssima expressão literária na obra de J.-K Huysmans
(1848-1907), particularmente em A rebours (1884) que, sob a influência tardia do pessimismo de
Schopenhauer (1788-1860), empreende uma síntese intensificadora da estética decadente na criação
da personagem Des Esseintes, paradigma do dândi finissecular. As representações mentais do “fin-
de-siècle” pareciam, deste modo, corresponder à chamada “decadência” e difundir-se-iam, por volta
do penúltimo decénio do século XIX , ultrapassando as fronteiras da área franco-belga, persistindo
na Europa e na América Latina, ora até aos alvores do século XX (constituindo incontornável
substrato da fermentação das estéticas da modernidade emergente, importante momento do conflito
entre a modernidade estética pós-baudelairiana e a modernidade científico-sociológica de matriz
iluminista), ora até ao imediato pós-Guerra. Representantes desta sensibilidade, exteriores à área
linguística francófona, foram, entre outros, Hofmannsthal (1874-1929) na Áustria, Pascoli (1855-
1912) e D’Annunzio (1863-1938) em Itália, W. Pater (1839-1894), E. Dowson (1867-1900) e O.
Wilde (1854-1900) na Grã-Bretanha, Ramón del Valle-Inclán (1869-1936) em Espanha (...).
http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=705&Itemid=2

Revista Orpheu
O primeiro número da revista Orpheu saiu em Portugal em março de 1915, provocando um
verdadeiro escândalo. No primeiro número, colaboraram Luís da Silva Ramos, conhecido Luís de
Montavor, José de Almada Negreiros, Armando Cortes Rodrigues, o brasileiro Ronald de Carvalho e
outros. Uma das ideias era unir intelectuais portugueses e brasileiros. Através dessa publicação, eles
divulgaram as novas propostas artísticas, além da ideia de inovar, rompendo com regras fixas. Havia
o desejo de escandalizar e, principalmente, o interesse de atualizar a literatura portuguesa em relação
ao que se publicava no resto da Europa, às ideias das vanguardas europeias, principalmente, neste
primeiro momento, ao Futurismo.
O primeiro manifesto de Marinetti foi lançado em Paris em 22 de fevereiro de 1909. Portugal o
divulgou em 5 de agosto do mesmo ano, em Açores. No Brasil, em junho, em Natal e, em dezembro,
em Salvador. De acordo com Fernando Pessoa, o Futurismo começou a ser discutido em Portugal a
partir de 1914.
No primeiro número de Orpheu, foram publicados poemas simbolistas de Ronald de Carvalho,
poemas futuristas em prosa como “Os frisos” de Almada Negreiros e “Ode Triunfal” de Álvaro de

8
Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Nesses poemas, há apologia às máquinas, ao
automóvel, como no manifesto de Marinetti.
No segundo número, que saiu em julho de 1915, foram publicados poemas com feição de manifestos
e tom futurista como “Ode marítima” de Álvaro de Campos e “Manucure” de Mário de Sá Carneiro.
Orpheu 3 chegou a ser organizado e em parte, impresso. Nele constaria de Sá Carneiro a série
intitulada Poemas de Paris: Sete Canções de Declínio, Abrigo, Cinco Horas, Serradura e o Lord. E
de Pessoa, “Saudação à Walt Whitman”, entre outros. Esse número de Orpheu não foi publicado na
sequência. Chegou a ser editado, mais tarde foi compilado por Arnaldo Saraiva, mas só foi publicado
em 1984. O princípio organizativo da série foi respeitado, ou seja, há cruzamento de textos do estilo
decadente com textos modernistas.
Orpheu foi o marco inicial do Modernismo em Portugal e seus autores ficaram conhecidos como
“geração de Orpheu”. A recepção dessa revista foi perturbada, alguns achavam que os autores eram
doidos. O número 2 foi ainda mais polêmico e o terceiro nem conseguiu ser publicado por falta de
patrocínio: morria à míngua de recursos, pois a revista era financiada pelo pai de Sá-Carneiro, que
teve uma reviravolta nos negócios e parou de mandar mesada a seu filho. Assim, a publicação viu
seu fim. Além da questão financeira, o outro motivo para a não publicação do terceiro número foi
a polêmica que suscitou os primeiros números da revista. E, por fim, o suicídio de Sá-Carneiro em
abril de 1916, em Paris, pôs um ponto final na empreitada. A importância dessa publicação só foi
reconhecida dez anos depois pela “segunda geração modernista”, nas páginas da revista Presença
que teve como colaboradores grandes nomes da literatura portuguesa como José Régio, Miguel
Torga e Vitorino Nemésio.
O legado que Orpheu deixou para o Modernismo é a vontade dos diretores em manter um diálogo
estético, aceitar formas de expressão diversificadas, a de não ter uma opinião única concertada, uma
única posição coletiva. É como se a unidade e novidade de Orpheu, no entender de Sá-Carneiro,
fosse essa mesma pluralidade.
Parece que a grandeza em arte está na autenticidade e não em seguir escolas. O Modernismo, para
Pessoa e Sá-Carneiro, está na libertação de todas as cadeias poéticas, é a “doença-do-novo”, não
suporta senão a originalidade e a singularidade.
Fonte: STEINBERG, Vivian. Literatura estrangeira em língua portuguesa, no prelo.

Para ter uma ideia da originalidade da revista e de como Fernando Pessoa se envolveu nesse projeto,
recomendo a leitura de cartas endereçadas a Camilo Pessanha, em julho/ agosto de 1915:
• http://sibila.com.br/mapa-da-lingua/carta-de-fernando-pessoa-a-camilo-pessanha/4975
É possível acessar as revistas on line, no endereço:
• http://www.gutenberg.org/cache/epub/23620/pg23620.html - para Orpheu 1
• http://www.gutenberg.org/cache/epub/23621/pg23621.html - para Orpheu 2

Mário de Sá-Carneiro
Nasceu em 19 de maio de 1890, na rua da Conceição nº 92, em Lisboa, filho de família abastada.
Sua mãe morreu em 1892, de febre tifoide. Seu pai passa a viajar muito e deixa Sá-Carneiro com
os avós e uma ama na Quinta da Vitória, em Camarate. Em 1911, muda-se para Coimbra para
cursar Direito, mas logo desiste. Viaja para Paris em outubro de 1912, para continuar o curso de
Direito na Sorbonne, abandonando as aulas antes do final do semestre. Passa a viver a boemia
parisiense, a vida de cafés, em convivência com Santa-Rita Pintor. Manteve intensa correspondência

9
Unidade: Viagens do século XX Decadentismo - Modernismo

com Fernando Pessoa. Durante os anos em que viveu em Paris, voltou a Lisboa duas vezes, em fins
de 1913 e em princípio de 1915, quando dirige com Fernando Pessoa o segundo número da revista
Orpheu. Seu pai foi o financiador do projeto, a revista sai em abril, provocando grande escândalo no
meio cultural português. Em julho é lançado o segundo número. Nesse mesmo ano, seu pai passa
por problemas financeiros e vai morar em Lourenço Marques com sua segunda esposa. Mário de
Sá-Carneiro, então, volta para Paris, sem deixar o endereço nem para Pessoa. Acentuam-se as crises
psíquicas e financeiras do poeta que precederam seu suicídio em 26 de abril de 1916.
Sá-Carneiro foi, principalmente, poeta e ficcionista. Escreveu muitas cartas com valor literário, nas
quais discute questões estéticas. Seus principais livros de poemas são Indícios de Oiro, Dispersão
e Últimos Poemas. Depois de sua morte, foram publicados Poemas Dispersos e Primeiros Poemas.
Em prosa, escreveu os contos de Princípio e Céu em Fogo, a novela A Confissão de Lúcio, e a peça
teatral Amizade que escreveu com o amigo Tomás Cabreira Junior.
Por um lado, Sá-Carneiro foi o grande interlocutor de Fernando Pessoa, com quem discutia questões
estéticas. As colocações de Sá-Carneiro rompiam com o gosto da época, prenunciando a estética
modernista, identificando-se com Pessoa, o representante do Modernismo português. Essas discussões
podem ser acompanhadas através da correspondência literária que Sá-Carneiro mantinha com seus
contemporâneos.
Por outro, Mário de Sá-Carneiro era um homem da Belle Époque, se identificava com valores do
Decadentismo e do Simbolismo. Era um cosmopolita, morou em Paris, na época a metrópole por
excelência, com todo o luxo e desperdício que marcaram a Belle Époque.
Fonte: STEINBERG, Vivian. Literatura estrangeira em língua portuguesa, no prelo.

Após termos feito uma rápida imersão nesse contexto, passamos à leitura e análise da obra
de Mario de Sá-Carneiro. Vamos lá?

A Confissão de Lúcio de Mário de Sá- Carneiro, a Belle Époque


e a dispersão do sujeito

Na novela, A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), a ambientação é


típica da Belle Époque, com todos os seus mistérios. A história começa com uma confissão do
narrador, depois de cumprir uma pena de dez anos de prisão por um crime que, de acordo com
ele, Lúcio, não praticara. Tem por epígrafe um trecho de “Na floresta do Alheamento” (1913)
de Fernando Pessoa:
“...assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o
outro não era ele-próprio, se o incerto outro viveria...”

Essa epígrafe denuncia o que nos espera: a consciência da divisão do ser: o quanto podemos
nos reconhecer como um ser uno? Questões sobre as quais a psicanálise e a literatura se debruçam.
Vamos ver como Mário de Sá-Carneiro apresentou esse impasse nessa novela intrigante.

10
Na introdução da narrativa, Sá-Carneiro escreveu:

Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual, entanto, nunca me defendi,
morto para a vida e para os sonhos... nada podendo já esperar e coisa alguma desejando — eu
venho fazer enfim a minha confissão: isto é, demonstrar a minha inocência.
Talvez não me acreditem. Decerto que não me acreditam. Mas pouco importa. O meu interesse hoje
em gritar que não assassinei Ricardo de Loureiro é nulo. Não tenho família; não preciso que me
reabilitem. Mesmo, quem esteve dez anos preso, nunca se reabilita. A verdade simples é esta.
E aqueles que, lendo o que fica exposto, me perguntarem: — “Mas por que não fez a sua confissão
quando era tempo? Por que não demonstrou a sua inocência ao tribunal?” — a esses responderei:
— A minha defesa era impossível. Ninguém me acreditaria. E fora inútil fazer-me passar por um
embusteiro ou por um doido... Demais, devo confessar, após os acontecimentos em que me vira
envolvido nessa época, ficara tão despedaçado que a prisão se me afigurava uma coisa sorridente.
Era o esquecimento, a tranqüilidade, o sono. Era um fim como qualquer outro — um termo para
a minha vida devastada. Toda a minha ânsia foi, pois, de ver o processo terminado e começar
cumprindo a minha sentença.
De resto, o meu processo foi rápido. Oh! o caso parecia bem claro... Eu nem negava nem confessava.
Mas quem cala consente... E todas as simpatias estavam do meu lado.
O crime era, como devem ter dito os jornais do tempo, um “crime passional”. Cherchez la femme.
Depois, a vítima um poeta — um artista. A mulher romantizara-se desaparecendo. Eu era um herói,
no fim de contas. E um herói com seus laivos de mistério, o que mais me aureolava. Por tudo isso,
independentemente do belo discurso de defesa, o júri concedeu-me circunstâncias atenuantes. E a
minha pena foi curta.
Ah! foi bem curta — sobretudo para mim... Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses. É
que, em realidade, as horas não podem mais ter ação sobre aqueles que viveram um instante que
focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações
máximas, nada já nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas
que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou — apenas — os desencantados
que, muita vez, acabam no suicídio.
Contudo, ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho instante. Os que o não vivem, têm a paz
— pode ser. Entretanto, não sei. E a verdade é que todos esperam esse momento luminoso. Logo,
todos são infelizes. Eis pelo que, apesar de tudo, eu me orgulho de o ter vivido.
Mas ponhamos termos aos devaneios. Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma
exposição clara de fatos. E, para a clareza, vou-me lançando em mau caminho — parece-me. Aliás,
por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará — estou certo — a mais incoerente, a
mais perturbadora, a menos lúcida.
Uma coisa garanto porém: durante ela não deixarei escapar um pormenor, por mínimo que seja,
ou aparentemente incaracterístico. Em casos como o que tento explanar, a luz só pode nascer de
uma grande soma de fatos. E são apenas fatos que eu relatarei. Desses fatos, quem quiser, tire as
conclusões. Por mim, declaro que nunca experimentei. Endoideceria, seguramente.
Mas o que ainda uma vez, sob minha palavra de honra, afirmo é que só digo a verdade. Não importa
que me acreditem, mas só digo a verdade — mesmo quando ela é inverossímil.
A minha confissão é um mero documento.

In: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000277.pdf

11
Unidade: Viagens do século XX Decadentismo - Modernismo

O narrador estabelece um diálogo com o leitor, expondo sua situação: ficou 10 anos preso
por um crime que, segundo ele, não cometeu, mas não conseguiria convencer ninguém do
contrário. Tenta num esforço vão, sempre de acordo com o narrador, estabelecer uma conversa
com os leitores, ao menos para compartilhar sua história e suas dúvidas, já que convencer os
leitores é impossível. Aliás, parece que ele, o narrador, está convencido de sua inocência, e
agora, na altura da escrita, isso não importa mais porque já cumpriu a pena.
Esse diálogo com os leitores é uma tentativa de estabelecer uma simpatia e mais do que isso,
o narrador pede uma cumplicidade com os leitores.
Em relação a aspectos literários, chamo a atenção para dois pontos: primeiro, a procura
da cumplicidade com os leitores através do diálogo direto, por exemplo: “Talvez não me
acreditem...”; “e àqueles que, lendo o que fica exposto...” etc.; e segundo, o objetivo do relato,
dessa reflexão, traduzida na escrita da novela, na escrita das memórias do narrador, Lúcio.
Nesse prólogo, nos deparamos com um aspecto fundamental da literatura e da escrita, o
porquê se escreve e qual é a intenção do autor. De acordo com esse trecho, o narrador quer
expor os fatos que experimentou. Ou seja, a escrita dessa confissão possibilitará a Lúcio rever
o mistério dos acontecimentos. Assim, a escrita cumpre uma de suas funções: esclarecer fatos,
vivências e experiências. Lúcio diz que essa confissão é “mero documento”, não mudará sua
história, pois já cumpriu a pena que lhe cabia. Esse argumento complementa a “função” da
literatura: o compromisso não é com a verdade que a história ou o jornalismo estabelecem,
mas com a verdade do ser, com o mais impossível ou inverossímil. Nos três últimos parágrafos,
o tema é a própria narrativa, trata-se de metalinguagem ou metaficção .O autor trata do seu
objeto, da sua ferramenta, a escrita.

A palavra metalinguagem, formada com o prefixo grego meta, que expressa as


ideias de comunidade ou participação, mistura ou intermediação e sucessão,
designa a linguagem que se debruça sobre si mesma. Por extensão, diz-se também:
metadiscurso , metaliteratura, metapoema e metanarrativa .
Em seu estudo sobre as funções da linguagem, Roman Jakobson (1974) considera
função metalinguística quando a linguagem fala da linguagem, voltando-se para
si mesma. (...)
Há um conceito de metalinguagem mais específico e complexo porque envolve um
trabalho mais elaborado do código sobre o código. (...) Assim, quando um escritor
escreve um poema e discute o seu próprio fazer poético, explicitando procedimentos
utilizados em sua construção, ele está usando a metalinguagem. (...)
In: http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_
id=1568&Itemid=2
Leiam o conceito, na íntegra de metalinguagem e de metaficção em E-Dicionário de
termos literários de Carlos Ceia no endereço acima.

Observe também a afirmação: “Por mim, declaro que nunca experimentei”. As transposições
são ambíguas, parece que o autor e o narrador podem ser o mesmo.

12
Atenção: o narrador não é o escritor, a história é inventada. Essa é uma das regras da
narrativa, ou seja, as personagens e os narradores podem ter semelhanças com o autor, mas
não se trata de contar a história da vida deles, estamos no campo da ficção e não da história ou
do jornalismo.
Voltando à obra... o enredo continua, volta-se a 1895, e o narrador/personagem está
estudando Direito em Paris,

Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris, ou melhor, não
estudando. Vagabundo da minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha vida e de
todos igualmente desistido – sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande capital. Logo
me embrenhei por meios mais ou menos artísticos, e Gervásio Vila-Nova, que eu mal conhecia de
Lisboa, volveu-se-me o companheiro de todas as horas. Curiosa personalidade essa de grande artista
falido, ou antes, predestinado para a falência.

Depois da aparente confissão, a história é transportada para um tempo anterior. Assim,


poderemos acompanhar o desenrolar dessa trama e quem sabe entender o que se passou com
Lúcio, que o deixou encarcerado por dez anos.
Sobre Gervásio Vila-Nova que o apresentará para a sociedade artística e extravagante, Lúcio
disse que,

(...) Trajava sempre de preto, fatos largos, onde havia o seu quê de sacerdotal – (...). Não era
enigmático o seu rosto – muito pelo contrário – (...). Entretanto, coisa bizarra, no seu corpo havia
mistério – corpo de esfinge, talvez, em noites de luar. Aquela criatura não se nos gravava na memória
pelos seus traços fisionômicos, mas sim pelo seu estranho perfil. (...)
Porém, a verdade é que em redor da sua figura havia uma auréola. Gervásio Vila-Nova era aquele
que nós olhamos na rua, dizendo: ali, deve ir alguém.
(...)
Entretanto, se o examinávamos com a nossa inteligência, e não apenas com a nossa vibratilidade,
logo víamos que, infelizmente, tudo se cifrava nessa auréola, que o seu gênio – talvez por demasiado
luminoso – se consumiria a si próprio, incapaz de se condensar numa obra – disperso, quebrado,
ardido. E assim aconteceu, com efeito. Não foi um falhado porque teve a coragem de se despedaçar.

Interessante é a descrição que faz dessa personagem: apresenta aspectos externos, como
se vestia, sempre com um ar misterioso. Assim, vai construindo uma personagem enigmática
- não era do rosto, mas do corpo que exalava o mistério. Gervásio Vila-Nova seduzia, mas
era “quebrado”, disperso. O que nos surpreende mais é que, por ter tido a coragem de se
despedaçar, não foi um “falhado”, ou seja, um fracassado.
Gervásio Vila-Nova apresenta a Lúcio uma americana muito interessante, riquíssima, que
vive num palácio, em plena Avenida do Bosque de Bolonha. Uma mulher linda! Descrita na
primeira aparição para o narrador como: “outra coisa de sonhadoramente, de misteriosamente
belo. Uma criatura alta, magra, de um rosto esguio de pele dourada – e uns cabelos fantásticos, de
um ruivo incendiado, alucinante. A sua formosura era uma destas belezas que inspiram receio”.

13
Unidade: Viagens do século XX Decadentismo - Modernismo

Pela descrição, podemos perceber que se trata de uma personagem excêntrica. Ela aparentava
uma liberdade, pois dizia que a voluptuosidade é uma arte, talvez a mais bela de todas. Contou
seu sonho de fazer uma grande festa:

(...) E sonho uma grande festa no meu palácio encantando, em que os maravilhasse de volúpia... em
que fizesse descer sobre vós os arrepios misteriosos das luzes, dos fogos multicores – e que a vossa
carne, então, sentisse enfim o fogo e a luz, os perfumes e os sons, penetrando-a a dimaná-los, a
esvaí-los, a matá-los!... Pois nunca atentaram na estranha voluptuosidade do fogo, na perversidade
da água, nos requintes viciosos da luz?... Eu confesso-lhes que sinto uma verdadeira excitação sexual
(mas de desejos espiritualizados de beleza) ao mergulhar as minhas pernas todas nuas na água de
um regato, ao contemplar um braseiro incandescente, ao deixar o meu corpo iluminar-se de torrentes
elétricas, luminosas...

O clima descrito é estranho, esquisito, assustador ao mesmo tempo sedutor. Mistura vida e arte,
sonho, fantasia, corpo, elementos naturais. Tudo é ambíguo, inclusive a personagem. Apesar de
ser inverno, Lúcio reparou que ela calçava sandálias, nos pés nus com unhas douradas. Passa-
se um mês, sabemos que a americana estava acompanhada de duas inglesas, suas amantes,
é uma grande sáfica, nas palavras de Gervásio. Diz que ela fará uma grande soirée e que ele,
Lúcio está convidado. Depois de alguma dúvida do narrador, justamente pela extravagância
da anfitriã, que se contrapunha a seu antagonismo à vida mundana, marcaram rendez-vous
na Closerie, às dez horas. Quando Lúcio chega, seu amigo já lá estava e o apresenta ao poeta
Ricardo Loureiro, que iria acompanhá-los à grande soirée.
A entrada na mansão acontece em dois momentos, um se desenrola no outro. O primeiro é
a chegada que acontece quando um lacaio recebe os convidados e outro, quando o serviçal os
leva ao primeiro andar. O segundo momento acontece depois da ceia, na mesma sala, mas em
um cenário totalmente transformado. Vamos ler trechos desses dois cenários:

(...) Então, deparou-se-nos um espetáculo assombroso:


Uma grande sala elíptica cujo teto era uma elevadíssima cúpula rutilante, sustentada por colunas
multicores em mágicas volutas. Ao fundo, um estranho palco erguido sobre esfinges bronzeadas,
do qual – por degraus de mármore rosa – se descia a uma larga piscina semicircular, cheia de
água translúcida. Três ordens de galerias – de forma que todo o aspecto da grande sala era de um
opulento, fantástico teatro.


O traje da americana é qualificado como um deslumbramento, com um tecido singular,
que “todas as cores enlouqueciam na sua túnica”. Até à meia-noite dançou-se e conversou-
se, depois foi servida a ceia, e, depois da ceia, a verdadeira festa, a orgia de fogo, muda-se o
cenário, embora a sala seja a mesma: “Ao entrarmos novamente na grande sala – por mim,
confesso, tive medo... recuei... Todo o cenário mudara – era como se fosse outro o salão”.
Para se ter uma ideia da fantástica festa, vamos abrir uma pequena fresta:

14
No palco surgiram três dançarinas. Vinham de tranças soltas — blusas vermelhas lhes encerravam os
troncos, deixando-lhes os seios livres, oscilantes. Tênues gazes rasgadas lhes pendiam das cinturas.
Nos ventres, entre as blusas e as gazes, havia um intervalo — um cinto de carne nua onde se
desenhavam flores simbólicas.
As bailadeiras começaram as suas danças. Tinham as pernas nuas. Volteavam, saltavam, reuniam-se
num grupo, embaralhavam os seus membros, mordiam-se nas bocas...
(...)
Entanto o baile prosseguia. Pouco a pouco os seus movimentos se tornavam mais rápidos até que
por último, num espasmo, as suas bocas se uniram e, rasgados todos os véus — seios, ventres e sexos
descobertos —, os corpos se lhes emaranharam, agonizando num arqueamento de vício.
E o pano cerrou-se na mesma placidez luminosa...
Houve depois outros quadros admiráveis: dançarinas nuas perseguindo-se na piscina, a mimarem
a atração sexual da água, estranhas bailadeiras que esparziam aromas que mais entenebreciam, em
quebranto, a atmosfera fantástica da sala, apoteoses de corpos nus, amontoados — visões luxuriosas
de cores intensas, rodopiantes de espasmos, sinfonias de sedas e veludos que sobre corpos nus
volteavam...
Mas todas estas maravilhas — incríveis de perversidade, era certo — nos não excitavam fisicamente
em desejos lúbricos e bestiais: antes numa ânsia de alma, esbraseada e, ao mesmo tempo, suave:
extraordinária, deliciosa.
Escoava-se por nós uma impressão de excesso.
Entanto os delírios que as almas nos fremiam, não os provocavam unicamente as visões lascivas.
De maneira alguma. O que oscilávamos, provinha-nos de uma sensação total idêntica à que
experimentamos ouvindo uma partitura sublime executada por uma orquestra de mestres. E os quadros
sensuais valiam apenas como um instrumento dessa orquestra. Os outros: as luzes, os perfumes,
as cores... Sim, todos esses elementos se fundiam num conjunto admirável que, ampliando-a, nos
penetrava a alma, e que só nossa alma sentia em febre de longe, em vibração de abismos. Éramos
todos alma. Desciam-nos só da alma os nossos desejos carnais.
Porém nada valeu em face da última visão:
Raiaram mais densas as luzes, mais agudas e penetrantes, caindo agora, em jorros, do alto da cúpula
— e o pano rasgou-se sobre um vago tempo asiático... Ao som de uma música pesada, rouca,
longínqua — ela surgiu, a mulher fulva...
E começou dançando...
Envolvia-a uma túnica branca, listada de amarelo. Cabelos soltos, loucamente. Jóias fantásticas nas
mãos; e os pés descalços, constelados...
(...)
Entretanto, ao fundo, numa ara misteriosa, o fogo ateara-se...
Vício a vício a túnica lhe ia resvalando, até que, num êxtase abafado, soçobrou a seus pés... Ah! nesse
momento, em face à maravilha que nos varou, ninguém pôde conter um grito de assombro...
Quimérico e nu, o seu corpo sutilizado, erguia-se litúrgico entre mil cintilações irreais. Como os lábios,
os bicos dos seios e o sexo estavam dourados — num ouro pálido, doentio. E toda ela serpenteava
em misticismo escarlate a querer-se dar ao fogo...
Mas o fogo repelia-a...
Então, numa última perversidade, de novo tomou os véus e se ocultou, deixando apenas nu o sexo
áureo — terrível flor de carne a estrebuchar agonias magentas...

15
Unidade: Viagens do século XX Decadentismo - Modernismo

Vencedora, tudo foi lume sobre ela...


E, outra vez desvendada — esbraseada e feroz, saltava agora por entre labaredas, rasgando-as:
emaranhando, possuindo, todo o fogo bêbado que a cingia.
Mas finalmente, saciada após estranhas epilepsias, num salto prodigioso, como um meteoro — ruivo
meteoro — ela veio tombar no lago que mil lâmpadas ocultas esbatiam de azul cendrado.
Então foi apoteose:
Toda a água azul, ao recebê-la, se volveu vermelha de brasas, encapelada, ardida pela sua carne que
o fogo penetrara... E numa ânsia de se extinguir, possessa, a fera nua mergulhou... Mas quanto mais
se abismava, mais era lume ao seu redor...
...Até que por fim, num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico
sobre as águas douradas — tranqüilas, mortas também...
............................................................................................ . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . .
A luz normal regressara. Era tempo. Mulheres debatiam-se em ataques de histerismo; homens, de
rostos congestionados, tinham gestos incoerentes...
As portas abriram-se e nós mesmos, perdidos, sem chapéus — encontramo-nos na rua, afogueados,
perplexos... O ar fresco da noite, vergastando-nos, fez-nos despertar, e como se chegássemos de um
sonho que os três houvéssemos sonhado — olhamo-nos inquietos, num espanto mudo.
Sim, a impressão fora tão forte, a maravilha tão alucinadora, que não tivemos ânimo para dizer uma
palavra.
Esmagados, aturdidos, cada um de nós voltou para sua casa...
Na tarde seguinte — ao acordar de um sono de onze horas — eu não acreditava já na estranha orgia:
A Orgia do Fogo, como Ricardo lhe chamou depois.
Saí. Jantei.
Quando entrava no Café Riche, alguém me bateu no ombro:
— Então como passa o meu amigo? Vamos, as suas impressões?
Era Ricardo de Loureiro.

As sensações em uníssono ganham corpo à medida que o narrador conta os detalhes do que
presenciou. Os elementos fogo e água, principalmente, penetram as cenas, e o dourado, presente
em cada detalhe, é a cor por excelência da Belle Époque. A festa cria um clima de mistério,
sensualidade e sonho que possibilita ampliarmos o real, cada movimento aumenta o êxtase. É o
gancho para o desenrolar da história, que ainda não começou, é apenas a primeira parte.

Quanto à americana fulva, não a tornei a ver. O próprio Gervásio deixou de falar nela. E, como
se tratasse de um mistério de Além a que valesse melhor não aludir – nunca mais nos referimos
à noite admirável.
Se a sua lembrança me ficou para sempre gravada, não foi por a ter vivido – mas sim porque, dessa
noite, se originava a minha amizade com Ricardo Loureiro (...)
De resto, no caso presente, que podia valer a noite fantástica em face do nosso encontro – desse
encontro que marcou o princípio da minha vida?
Ah! Sem dúvida amizade predestinada aquela que começava num cenário tão estranho, tão
perturbador, tão dourado...

16
Assim acaba a primeira parte dessa novela, Lúcio e Ricardo compactuaram da “orgia do
fogo”, a partir dessa vivência comum travou-se uma ligação entre eles e mais tarde, a cena
capital do encontro entre Lúcio e Marta em casa de Ricardo, em Lisboa. Há um mistério o
tempo todo nessa relação, parece que Marta não existe, não é real. Os três constituem uma
nebulosa unidade. Em determinado momento Ricardo ao se olhar no espelho não se vê. É uma
resposta narrativa ao desejo de encontrar o outro.
O autor criou um gancho para o verdadeiro motivo de seu enredo. A partir de uma festa
num ambiente típico da Belle Époque, com todo o requinte, luxo, sensualidade e mistério e
onde nada nem ninguém era o que parecia ser. A segunda parte começa contando os laços que
foram criados entre o narrador e Ricardo. Quanto a Gervásio, Lúcio não o vira mais, passara
um tempo e ele voltara a Portugal.
À medida que a novela avança, mais os dois se tornam amigos íntimos, sinceros, trocam
confidências. Ricardo expõe seu aborrecimento, que nada o seduz, o anima; tudo o aborrece, o
nauseia. Confessa seu estranhamento em relação à vida, se sente alheio:

Entretanto, na minha vida, houve certa situação esquisita, mesmo um pouco torpe. Ora eu lembrava-
me muita vez de que essa triste aventura havia de ter um fim. E sabia de um, muito natural. Nesse,
contudo, nunca eu me figurava. Mas noutro qualquer. Outro qualquer, porém, só podia dar-se por
meu intermédio. E por meu intermédio (era bem claro) não se podia, não se devia dar.
(...)
Dentro da vida prática também nunca me figurei. Até hoje, aos vinte e sete anos, não consegui
ainda ganhar dinheiro pelo meu trabalho. Felizmente não preciso... E nem mesmo cheguei a entrar
nunca na vida, na simples Vida com V grande – na vida social, se prefere. É curioso: sou um isolado
que conhece meio mundo, um desclassificado que não tem uma dívida, uma nódoa – que todos
consideram e que entretanto em parte alguma é admitido... Está certo. Com efeito, nunca me vi
“admitido” em parte alguma. Nos próprios meios onde me tenho embrenhado, não sei por que senti-
me um estranho...

Podemos associar essa vivência descrita por Ricardo Loureiro com o poema “7” de Sá-
Carneiro:

7
Eu não sou eu nem sou o outro,
foi musicado
Sou qualquer coisa de intermédio: Esse poema
Calcanhoto.
Pilar da ponte de tédio por Adriana
Que vai de mim para o Outro. Ver:
/
.youtube.com
http://www
wPgxTIK5E
Lisboa, fevereiro de 1914 watch?v=CH
Mário de Sá-Carneiro

17
Unidade: Viagens do século XX Decadentismo - Modernismo

Mário de Sá-Carneiro descreve um mal estar, um “deslugar”. Assim como na novela a


personagem não se sente pertencendo a nenhum lugar, também no poema descrito há um
deslocamento, e um questionamento sobre o eu, sobre “quem sou”. E o tédio que paira sobre
essas personagens é típico do sujeito da decadência.
Por um lado, há qualquer coisa de autobiográfico nos pensamentos dessa personagem: há
insinuações de suicídio, como de fato aconteceu ao autor: Mário de Sá-Carneiro se suicidou, num
hotel em Paris, ele se preparou para a morte, vestiu-se a caráter, com um fraque e chamou um
amigo para assisti-lo, depois que já tinha bebido uma quantidade grande de veneno. Na novela,
os sinais sobre o suicídio podem ser notados em: “de que essa triste aventura havia de ter um
fim”. Embora, um pouco adiante na narrativa, Ricardo Loureiro diga que “de maneira alguma
me concebo na minha velhice, bem como de nenhuma forma me vejo doente, agonizante. Nem
sequer suicidado – segundo às vezes me procuro iludir”, desmentindo a vontade de se matar.
Parece que as personagens e o narrador se misturam com o autor, que se multiplica, se amplia
e se aprofunda. Essa novela embaralha as noções de autor, narrador e personagens.
Por outro, há limites entre o criador - o autor - e as criaturas- as personagens-, estamos no âmbito
da literatura, da arte. Podemos comparar essa situação a sessões de psicanálise, em que sonhos se
misturam à realidade e aparecem neles personagens desconhecidos do paciente analisado.
No começo dessa novela, na confissão do narrador, ele diz: “Cumprido dez anos de prisão
por um crime que não pratiquei e do qual, entanto, nunca me defendi; morto para a vida e
para os sonhos: nada podendo já esperar e coisa alguma desejando”. O narrador confessa ao
mesmo tempo em que se diz morto. Um pouco depois no texto, explica que não é o corpo que
está morto, mas a alma, que não mais sonha.
O poeta levanta questões fundamentais ao cenário moderno literário, a questão do sujeito,
já presente em um poema quinhentista de Sá de Miranda (1481-1556), cujo sujeito poético se
sente dividido. Além dessa problemática, Sá-Carneiro contrapõe realidades, questiona e brinca
com o que é o real, a fantasia, o sonho, o desejo, antecipando a psicanálise.

Poema de Francisco Sá de Miranda (1481-1556), em:


Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,


Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.

Que meio espero ou que fim


Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho inimigo de mim?

In: http://pensador.uol.com.br/frase/NTMzMzIw/ . Sá de MIranda Hue, S. M. (Org.) Antologia de


poesia portuguesa, século XVI: Camões entre seus contemporâneos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.

18
Ricardo deixou a Universidade e fugiu para Paris. Tinham em comum o amor a Paris: “só
numa coisa iguais; no nosso amor por Paris”, disse Lúcio, e Ricardo: “De Paris, amo tudo com
igual amor: os seus monumentos, os seus teatros, os seus bulevares, as suas árvores... Tudo nele
me é heráldico, me é litúrgico”. Lembremos que Mário de Sá-Carneiro viveu e morreu em Paris.
Cenário próprio da Belle Époque, Paris passa a ser personagem principal. O meio urbano é
a Metrópole. O horizonte é de progresso graças aos grandes avanços tecnológicos: automóvel,
telefone, metrô. Nas palavras de Ricardo:

Só posso viver nos grandes meios. Quero tanto ao progresso, à civilização, ao movimento citadino, à
atividade febril contemporânea!... Porque no fundo eu amo a vida. Sou todo de incoerências. Vivo
desolado, abatido, parado de energia, e admiro a vida, entanto como nunca ninguém a admirou!
(...)
Lançar pontes! Lançar pontes! Silvar estradas férreas! Erguer torres de aço!...

Há todo um movimento sedutor, sensual, erótico, nas descrições que têm por objeto a cidade
nesse momento histórico e poético. Podemos relacionar esses aspectos ao Futurismo, uma das
Vanguardas Modernistas e aos poemas de Fernando Pessoa, “Ode Triunfal” e de Mário de Sá-
Carneiro, “Manucure”, publicados na revista Orpheu.
A narrativa tem um terceiro espaço, Lisboa, para onde Ricardo retorna, após dez meses, nos
fins de 1896. Essa cidade não se torna uma personagem como Paris, nesse enredo. Nela, Lúcio
reencontra seu amigo casado com Marta, mas tudo tem um ar misterioso. Ele não consegue ter
certeza de nada, nem de como foi o casamento, de quem era essa personagem. Antes da
partida de Ricardo para Lisboa, o narrador confessa que não sabe nada da vida sexual de seu
amigo, mas que teve uma prova numa noite em que jantaram no Pavilhão de Armenonville,
um célebre restaurante, cenário literário, de acordo com Lúcio, durante a refeição a conversa
“correu simples”. “Foi ao café que Ricardo principiou”:

— Não pode imaginar, Lúcio, como a sua intimidade me encanta, como eu bendigo a hora em
que nos encontramos. Antes de o conhecer, não lidara senão com indiferentes — criaturas vulgares
que nunca me compreenderam, muito pouco que fosse. Meus pais adoravam-me. Mas, por isso
exatamente, ainda menos me compreendiam, Enquanto que o meu amigo é uma alma rasgada,
ampla, que tem a lucidez necessária para entrever a minha. É já muito. Desejaria que fosse mais;
mas é já muito. Por isso hoje eu vou ter a coragem de confessar, pela primeira vez a alguém, a maior
estranheza do meu espírito, a maior dor da minha vida...
Deteve-se um instante e, de súbito, em outro tom:
— É isto só: — disse — não posso ser amigo de ninguém... Não proteste... Eu não sou seu amigo.
Nunca soube ter afetos — já lhe contei —, apenas ternuras. A amizade máxima, para mim, traduzir-
se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um
desejo de beijar... de estreitar... Enfim: de possuir! Ora eu, só depois de satisfazer os meus desejos,
posso realmente sentir aquilo que os provocou. A verdade, por conseqüência, é que as minhas
próprias ternuras, nunca as senti, apenas as adivinhei. Para as sentir, isto é, para ser amigo de alguém
(visto que em mim a ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse,
ou mulher ou homem. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo eu só poderia
ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.

19
Unidade: Viagens do século XX Decadentismo - Modernismo

“Ah! a minha dor é enorme: Todos podem ter amizades, que são o amparo de uma vida, a “razão” de
uma existência inteira — amizades que nos dedicam; amizades que, sinceramente, nós retribuímos.
Enquanto que eu, por mais que me esforce, nunca poderei retribuir nenhum afeto: os afetos não se
materializam dentro de mim! É como se me faltasse um sentido — se fosse cego, se fosse surdo. Para
mim, cerrou-se um mundo de alma. Há qualquer coisa que eu vejo, e não posso abranger; qualquer
coisa que eu palpo, e não posso sentir... Sou um desgraçado... um grande desgraçado, acredite!
(...)

Nunca mais falaram sobre isso. Logo depois, Ricardo volta para Lisboa, onde “em realidade
coisa alguma o devia chamar”. Os amigos ficaram um ano inteiro separados, até que problemas
financeiros e saudades de seu amigo levaram Lúcio a Lisboa. Começa a terceira parte da novela
e surge a terceira personagem dessa trama, Marta, mencionada acima, esposa de Ricardo – ou
o seu duplo, como o mistério dos acontecimentos sugere:

Marta parecia não viver quando estava longe de mim. Pois bem, pela minha parte, quando a não
tinha ao meu lado, coisa alguma me restava que, materialmente, me pudesse provar a sua existência:
nem uma carta, um véu, uma flor seca — nem retratos, nem madeixas. Apenas o seu perfume,
que ela deixava penetrante no meu leito, que bailava sutil em minha volta. Mas um perfume é uma
irrealidade. Por isso, como outrora, descia-me a mesma ânsia de a ver, de a ter junto de mim para
estar bem certo de que, pelo menos, ela existia.
Evocando-a, nunca a lograra entrever. As suas feições escapavam-me como nos fogem as das
personagens dos sonhos. E, às vezes, querendo-as recordar por força, as únicas que conseguia
suscitar em imagem eram as de Ricardo. Decerto por ser o artista quem vivia mais perto dela.

Essa trecho pertence ao capítulo V, onde o narrador passa a ter um affair com Marta.
Outra cena inesquecível é a de um beijo a três:

Assim, uma tarde de verão, lanchávamos no terraço, quando Marta de súbito – num gesto que, em
verdade, se poderia tomar por uma simples brincadeira agarotada – me mandou beijá-la na fronte,
em castigo de qualquer coisa que eu dissera.
Hesitei, fiz-me muito vermelho; mas como Ricardo insistisse, curvei-me trémulo de medo, estendi os
lábios mal os pousando na pele...
E Marta:
- Que beijo tão desengraçado! Parece impossível que ainda não saiba dar um beijo... Não tem
vergonha? Anda, Ricardo, ensina-o tu... Rindo, o meu amigo ergueu-se, avançou para mim... tomou-
me o rosto... beijou-me...
..................................................................................................................
O beijo de Ricardo fora igual, exatamente igual, tivera a mesma cor, a mesma perturbação que os
beijos da minha amante. Eu sentira-o da mesma maneira.

São cenas que vão sendo construídas para chegar ao ápice do mistério, a cena do crime.

20
Afinal, desde o começo da novela sabemos que o narrador foi condenado pelo assassinato de
Ricardo de Loureiro.

Explore

Convido-os para ler na íntegra a novela A Confissão de Lúcio, in: http://www.dominiopublico.gov.br/


download/texto/bv000277.pdf
Sobre o tema do duplo, do espelho, recomendo a leitura de O retrato de Dorian Gray de Oscar
Wilde, romance inglês, publicado pela primeira vez em 1890, na versão final em 1891. Há um
filme de 2009, baseado nessa novela. Disponível em: http://www.anarquista.net/wp-content/
uploads/2014/04/O-Retrato-de-Dorian-Gray-Oscar-Wilde-livro-pdf.pdf
Sobre a época traduzida pelo tédio, há uma longa bibliografia, ficamos com : HUYSMANS, J.-K. Às
Avessas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
SCHNITZLER, Arthur. Breve romance de sonho. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. (Há um
filme de Stanley Kubrick, baseado nessa novela, chamado De olhos bem fechados - recomendado).
WILSON, Edmund. O Castelo de Axel. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. (livro teórico
sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930.

Para ficarmos no clima Belle Époque, sugiro acompanhar a leitura de A Confissão


de Lúcio, apreciando as pinturas de Gustav Klimt (1862-1918), principalmente do
chamado “período dourado”, por exemplo, Judith I, Judith II (Salomé), Retrato
de Adele Bloch-Bauer I, ou O Beijo, o mais famoso dele. Disponível em: http://
pt.slideshare.net/HappyHour/gustav-klimt-1862-1918?related=2

A Confissão de Lúcio, pelo caráter ornamental das descrições dos ambientes, principalmente
da festa, o perfil misterioso de boa parte dos personagens, aproxima Mário de Sá-Carneiro de
uma linha herdeira de Oscar Wilde e de Huysmans. Ele está mais próximo do Decadentismo do
que do Futurismo, traço presente também em outras obras do autor e marcante nas publicações
divulgadas pela revista Orpheu, marco do Modernismo em Portugal.

Modernismo em Portugal

O período histórico dos finais de século XIX, conhecido em artes e literatura por
Decadentismo, em Portugal, foi agravado pelo ultimatum que os ingleses deram a Portugal.
Ou seja, a Inglaterra exigia a retirada de tropas portuguesas na África entre Angola e
Moçambique. Esse fato ficou conhecido como ultimatum ou ultimato e ocorreu em 1890.

21
Unidade: Viagens do século XX Decadentismo - Modernismo

Os portugueses tinham a pretensão de colonizar todos os países africanos entre Angola


e Moçambique, numa faixa conhecida como o mapa cor-de-rosa. Assim que os ingleses
deram o ultimato, Portugal acatou. Afinal, a Inglaterra era mais poderosa. Os portugueses
ficaram arrasados e se sentiram humilhados.

Sobre o ultimatum
O ultimatum britânico de 1890 foi um ultimato do governo britânico, entregue a
11 de Janeiro de 1890 por um “Memorando” a Portugal, para a retirada das forças
militares existentes no território compreendido entre as colónias de Moçambique e
Angola, no actual Zimbabwe, a pretexto de um incidente ocorrido entre portugueses
e Macololos. A zona era reclamada por Portugal, que a havia incluído no famoso
Mapa cor-de-rosa, reclamando, assim, a partir da Conferência de Berlim, uma faixa
de território que ia de Angola à contra-costa, ou seja, a Moçambique.
(...)
A concessão de Portugal às exigências britânicas foi vista como uma humilhação
nacional pelos republicanos portugueses, que acusaram o governo e o rei D.Carlos
I de serem os seus responsáveis. Com isto, assistiu-se a uma mudança na política
interna portuguesa marcada pela insatisfação social. Com o surgir de um movimento
de descontentamento social, os republicanos capitalizam tal descontentamento,
iniciando, assim, um crescimento e alargamento da sua base social de apoio que
levará à implantação da república a 5 de Outubro de 1910.
(...) Estes acontecimentos desencadeados pelo ultimato britânico, de 11 de
Janeiro de 1890, marcaram de forma permanente a evolução política portuguesa,
desencadeando uma cadeia de acontecimentos que termina com o fim da monarquia
constitucional e com o reforço na consciência colectiva portuguesa do apego ao
império colonial, que depois teve constantes consequências ao longo do século XX
tanto na política interna como externa de Portugal.
In: http://pontodacultura.wordpress.com/2011/11/20/o-ultimatum-ingles/

Saiba mais sobre ultimatum em:


• https://www.academia.edu/477670/O_Ultimatum_Ingles_de_1890_-_Sua_
Genese_e_a_perspectiva_inglesa

Mas o século XX nos trouxe também uma nova arte e que consiste, generalizando, numa ruptura
com a tradição. O crítico francês Roland Barthes identifica o Modernismo com a pluralização
das visões de mundo, derivada da evolução das novas classes e meios de comunicação, e o
situa na metade do século XIX: “Por volta de 1850 [...] a escritura clássica então se desintegrou,
e a totalidade da literatura, de Flaubert até hoje, passou a ser a problemática da linguagem”,
escreveu no livro O Grau zero da escritura1.
Podemos considerar que é a arte de um mundo em rápida modernização, desapareceram
muitas certezas tradicionais, evaporou-se certo tipo de confiança vitoriana não só no progresso
da humanidade, mas também na solidez e visibilidade do real, como afirmam os críticos ingleses
Malcolm Bradbury e James McFarlane em Modernismo - Guia geral2 .

1 BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Trecho citado em BRADBURY, Malcolm e
MCFARLANE, James. Modernismo – guia geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. P.14
2 BRADBURY, Malcolm e MCFARLANE, James. Modernismo – guia geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

22
Em Portugal, a descrença com a realidade, com a história calou a tradição e o cientificismo
por causa da crise política que começou com o ultimatum, em 1890; em 1908, houve o regicídio
e em 1910, a implantação da República. Estourou a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Houve a Revolução Russa em 1917, colocando em prática ideias de Karl Marx.
A Europa estava em ebulição, o que se refletiu nas artes, por meio de várias tendências, as
chamadas Vanguardas, em que predominava certo tom apocalíptico, de destruição e, às vezes,
de novas propostas de reconstrução dos valores. Os movimentos mais importantes surgidos na
Europa entre 1909 e 1924, foram: Futurismo, Cubismo, Dadaísmo, Expressionismo e Surrealismo.
O Modernismo português foi influenciado por esses movimentos de Vanguarda, principalmente
o Futurismo, cuja origem vinculou-se ao aparecimento da revista Orpheu, de 1915, sob a direção
de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro, a partir do segundo número. (A revista teve apenas
3 números, sendo que o terceiro foi editado, mas não chegou a ser publicado, só posteriormente).
A seguir, há várias informações e links para que você aprofunde seus conhecimentos sobre
os movimentos das vanguardas europeias dessa época e sobre a revista Orpheu. Não deixe de
ler os textos, acessando os links propostos.

Explore

É importante para a compreensão das artes modernas e contemporâneas entender as Vanguardas


Europeias. Para isso, seguem endereços eletrônicos que vocês devem consultar. Não deixe de visitá-
los e estudá-los com atenção.
• http://www.mundoeducacao.com/literatura/vanguardas-europeias.htm
• http://g1.globo.com/pernambuco/vestibular-e-educacao/noticia/2012/08/veja-como-vanguardas-
europeias-quebraram-o-conceito-de-beleza.html

Sobre a obra em prosa de Mário de Sá-Carneiro

Uma experiência rica para um leitor atento é a correspondência de Sá-Carneiro. Através de suas
cartas, temos acesso a questões estéticas e dúvidas existenciais que nos aproximarão do autor.
O desdobramento do ser aparece nessas “conversas” com um de seus principais interlocutores,
Fernando Pessoa. Há quem o veja até como precursor da questão do desdobramento do ser,
ou dos heterônimos do poeta português. A leitura da correspondência com Fernando Pessoa
se transforma num emocionante romance epistolar, parece-nos ser a maior obra de ficção de
Mário de Sá-Carneiro.

23
Unidade: Viagens do século XX Decadentismo - Modernismo

Na carta de 2 de dezembro de 1913, Sá-Carneiro fala de pensamentos diante “dum carroussel


do Jardim de Luxemburgo”, que é a “miniatura de um ideal”. O ideal de viver a imaginação e o
sonho é um símbolo que ele retomará nos poemas “Rodopio” e “Torniquete”. O conto Homem
dos Sonhos também é dessa época e o sonho faz parte da realidade tanto como a experiência
natural do mundo – essa tradição vem de Nerval, Baudelaire, Lautréamont, Apollinaire, Kafka,
e depois se cristaliza no Surrealismo.
Nas cartas de março, abril e maio de 1913, Sá-Carneiro comenta e pede conselhos literários
para os poemas de Dispersão. É interessante acompanharmos o processo criativo do escritor.
O Modernismo começa na sequência da crise da Ideia. A Imaginação, que havia sido deixada
para trás, reivindicou novamente um espaço nas artes, como vimos nas artes e na literatura do
final do século XIX e começo do XX.
Sá-Carneiro vive intensamente a Belle Époque, se deslumbra com a beleza, a riqueza, o
ouro, o roxo, mas não se completa, sempre falta algo.
Há um efeito de resistência à classificação, nos textos de Sá-Carneiro. É Sá-Carneiro simbolista
ou modernista?
Talvez nem um nem outro, mas “a ponte” entre dois movimentos que são contínuos na
história do pensamento.
Quanto ao suicídio, aspecto importante na sua biografia, compartilhamos a conclusão de
Walter Benjamin:

A modernidade deve se a ter sob a linha do suicídio. Assim se opõe sob a base de uma vontade
heroica que nada cede ao estado de espírito antagônico. Esse suicídio não é uma renúncia, mas uma
paixão heroica.

A temática da morte e do suicídio se liga ao universo intertextual de que o Modernismo se faz.


Conclui Fernando Cabral Martins, em O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro (1994, p.327) :

Parece-me encontrar em Sá-Carneiro, em vez de uma obsessiva preocupação megalômana “consigo”,


a realização de uma tendência fundamental do Modernismo, a teatralidade. Palavra que toma, para
Sá-Carneiro, um sentido afim daquele que tem em Pessoa: o pôr em cena dos elementos constitutivos
da literatura. (...). Pessoa inventa com a heteronímia uma poesia-drama-ficção, Sá-Carneiro confere
à carta um estatuto lírico e escreve ficção em poema (Além, Bailado, Eu-Próprio o Outro) e poema
em drama (Dispersão).

Sá-Carneiro viveu o conflito representado por sua obra, o conflito entre ser simbolista ou
modernista, o conflito de viver num momento de transição profundo – inclusive marcado pela
Primeira Guerra Mundial e o conflito de sua sexualidade.

24
Para concluir: Livro do Desassossego de Fernando Pessoa

Se o assunto é Modernismo em Portugal, o poeta Fernando Pessoa é uma figura incontornável.


Como tratamos da prosa, em relação à obra de Fernando Pessoa, além das cartas, de textos
ensaísticos, o Livro do Desassossego ocupa um espaço luminoso. É um livro inacabado, Pessoa
escreveu fragmentos dessa obra durante toda sua vida, ora atribuindo a um heterônimo ora a
outro. Sua primeira publicação foi em 1982. Ao longo desses anos, teve organizações diferentes.
Grande parte dessa obra foi atribuída aos heterônimos Bernardo Soares e a Vicente Guedes. Há
uma edição brasileira da Companhia das Letras, organizada por Richard Zenith. As primeiras
páginas estão disponíveis on line em: http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/11087.pdf
Zenith usou como epígrafe, um trecho do Livro do Desassossego, que o traduz:

Este livro é um só estado de alma, analisada de todos os lados, percorridos em todas as direções.
(2002, p.399)

Leia a seguir uma parte do Livro do Desassossego que estabelece um diálogo com a novela de
Sá-Carneiro, A Confissão de Lúcio. A epígrafe da novela foi extraída de Na Floresta do Alheamento.

Fernando Pessoa
NA FLORESTA DO ALHEAMENTO

Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver diz-me que é muito
cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei porquê...
Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma
sombra de sonhar. Minha atenção bóia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar
e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde
estou nem o que sonho.
Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cai de um
firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a
alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas.
Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo
confusão quieta... Para que há-de um dia raiar?... Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um
esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.
Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Bóio no ar, entre velar e dormir, e uma outra
espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de que onde que não é este...
Surge mas não apaga esta, esta da alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha
atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam.
(...)
http://arquivopessoa.net/textos/1949

É importante ler na íntegra essa parte do Livro do Desassossego.

25
Unidade: Viagens do século XX Decadentismo - Modernismo

Nesta unidade estudamos a novela A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro. É uma


novela fundamental para compreendermos o momento histórico entre o Decadentismo e o
Modernismo em Portugal, com questões da ordem existencial. A viagem aqui proposta é interior,
surge uma desconfiança em relação ao que é real, quem sou eu e quem é você. O ser aparece
dividido, cindido. O espaço é luxuoso, mágico, onírico. Por um lado, as imagens de sonho,
de estar semi desperto, como um ser do Decadentismo; por outro, um ser apaixonado pelas
cidades, pelos barulhos, pelas invenções mais civilizadas e pelas novas poéticas, com liberdade
de estilo, como um simpatizante do Futurismo, do Sensacionismo.
Como interlocutor dessa novela, numa prosa descaracterizada - poderia ser poema - no mesmo
momento histórico, Fernando Pessoa escreveu Na Floresta do Alheamento. A prosa apresentada
por Pessoa ressoa a diário, mas um diário teatralizado, cujo personagem está perdido, (ou será
achado?), numa floresta do alheamento. Alheamento é estar em contemplação, estar alheio,
distante do concreto, da realidade, emaranhado num estado onírico. A imagem da floresta
caracteriza essa visão, esse olhar sonhador, não muito nítido, diferente do olhar de Alberto
Caeiro, outro heterônimo de Pessoa.
Lemos fragmentos de A Confissão de Lúcio, com a visão da obra na íntegra. A partir da
novela, percebemos as ideias e a ambientação do Decadentismo, as ideias da revista Orpheu -
como marco do Modernismo em Portugal. Situamos o momento histórico em que a novela está
inserida, e o momento histórico e cultural no qual está situado o autor. Lemos um resumo da
biografia de Mário de Sá-Carneiro. Comparamos com alguns textos que se relacionam, como
“Na floresta do alheamento” de Bernardo Soares e com poemas que tratam do mesmo tema
ou do mesmo contexto. Assim podemos perceber como todos esses dados contribuem para
enriquecer a leitura e a compreensão de uma obra.
Bons estudos!

26
Material Complementar

• Para complementar seu conhecimento sobre o assunto, além da insistência para que leia
a novela na íntegra, é importante que leia também outras obras do período, comentadas
ao longo do conteúdo teórico. Ressalto a importância de ter contato com a obra em prosa
de Fernando Pessoa, contemporâneo e amigo de Mário de Sá-Carneiro. Bernardo Soares
é o heterônimo responsável por partes da obra em prosa do Livro do Desassossego. Você
encontrará esse material disponível em: http://multipessoa.net/labirinto/bernardo-soares/1

• Para conhecer mais sobre processos pessoais e estéticos é importante ler a correspondência
de Fernando Pessoa e a de Mário de Sá-Carneiro. Há uma que aprecio muito, é uma carta
de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro - 14 de março de 1915. Disponível em: http://
arquivopessoa.net/textos/522.

• Vale a pena percorrer o site oficial de Pessoa, há muita coisa interessante, inclusive jogos.
Disponível em: http://multipessoa.net

• Em relação às cartas de Mário de Sá-Carneiro, você pode ter acesso a algumas delas pelo site
da revista Colóquio-Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível em: http://coloquio.
gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/do?author&author=SA-CARNEIRO,%20MARIO%20DE
Essa revista é importante no estudo da literatura portuguesa. E estão sendo digitalizados
todos os números anteriores.

• Há ainda uma edição brasileira das cartas de Mário de Sá-Carneiro, Correspondência


com Fernando Pessoa, da Companhia das Letras, 1ª edição de 2004 e uma de Fernando
Pessoa: Correspondência 1905-1922, da mesma editora.

27
Unidade: Viagens do século XX Decadentismo - Modernismo

Referências

BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BRADBURY, Malcolm e MCFARLANE, James. Modernismo – guia geral. São Paulo:


Companhia das Letras, 1999.

MOISÉS, Massaud. A Literatura portuguesa. 20ª ed. São Paulo: Cultrix, 1984.

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Introdução e edição de Richard Zenith. São


Paulo: Companhia das Letras, 2002.

MARTINS, Fernando Cabral. O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro. Lisboa: Estampa,


1994.

SÁ-CARNEIRO, Mário de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

_____________________. A Confissão de Lúcio. In: http://www.dominiopublico.gov.br/


download/texto/bv000277.pdf

STEINBERG, Vivian. Literatura estrangeira em língua portuguesa. (livro no prelo)

WILSON, Edmund. O Castelo de Axel. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Academia.edu: http://www.academia.edu/.

Domínio Público: http://www.dominiopublico.gov.br/

E-Dicionário de Termos Literários, Carlos Ceia: http://www.edtl.com.pt.

Farol das Letras: http://faroldasletras.no.sapo.pt/.

Instituto Camões: http://cvc.instituto-camoes.pt/.

Multipessoa.net: http://multipessoa.net/labirinto

Portal G1 – globo.com: http://g1.globo.com.

28
Anotações

29
www.cruzeirodosulvirtual.com.br
Campus Liberdade
Rua Galvão Bueno, 868
CEP 01506-000
São Paulo SP Brasil
Tel: (55 11) 3385-3000

Você também pode gostar