Você está na página 1de 4

Análise comparativa de duas teorias explicativas do

conhecimento

4ª parte do Discurso do Método – Descartes

Breve ficha biográfica –René Descartes (1596 – 1650) nasce em Haye (França)
a 31 de Março de 1596, duma família de magistrados. Foi aluno no célebre colégio
jesuíta de “La Fléche” durante oito anos, de 1604 a 1612. Em 1617, depois de alguns
anos passados em Paris, põe-se ao serviço, como voluntário, do príncipe Maurício de
Nassau, na Holanda. Dois anos mais tarde, coloca-se ao serviço do duque da Baviera.
Em 1616, num quartel de Inverno passa por uma situação singular. Tem três sonhos
relacionados com os seus projetos científicos (descoberta dos fundamentos de uma
ciência admirável), o que o leva em peregrinação a Nossa Senhora do Loreto a Itália.
Em 1621, abandona o exército e, depois de várias viagens, regressa a França.
Em 1629 fixa-se na Holanda onde, na solidão, escreve as suas principais obras. Em
1649 vai para a Suécia, a pedido da Rainha Cristina. Morre a 11 de Fevereiro de 1650
em Estocolmo. Dezassete anos mais tarde o seu corpo é trazido para França.

Há muito que tinha notado que, no que respeita à conduta, é necessário algumas
vezes seguir como indubitáveis opiniões que sabemos ser muito incertas (…). Mas
agora que decidi dedicar-me apenas à descoberta da verdade, pensei que era necessário
proceder exatamente ao contrário, rejeitando como completamente falso tudo aquilo que
pudesse suscitar a menor dúvida, para ver se depois disso algo restaria nas minhas
opiniões que fosse absolutamente indubitável.
Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, decidi supor que
nos enganam sempre. E porque há pessoas que se enganam ao raciocinar, até nos
aspetos mais simples da geometria, fazendo raciocínios incorretos, rejeitei como falsas,
visto estar sujeito a enganar-me como qualquer outra pessoa, todas as razões que até
então me pareceram aceitáveis. Por fim, considerando que os pensamentos que temos
quando estamos acordados nos podem ocorrer também quando estamos a dormir, sem
que, neste caso, qualquer deles seja verdadeiro, resolvi supor que tudo que até então
tinha tido acolhimento no meu pensamento não era mais verdadeiro que as ilusões dos
meus sonhos. Mas, logo a seguir, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era
falso, eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma coisa. E tendo notado que
esta verdade, eu penso logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes
suposições dos céticos seriam impotentes para a abalar, julguei que a poderia aceitar,
sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava.
Depois, examinei com atenção que coisa eu era, e vi que podia supor que não
tinha corpo e que não havia qualquer mundo ou lugar onde existisse, mas que, apesar
disso, não podia admitir que não existia. Pelo contrário, porque pensava, ao duvidar da
verdade das outras coisas, tinha de admitir como muito evidente e muito certo que
existia, ao passo que bastava que tivesse deixado de pensar para deixar de ter qualquer
razão para acreditar que existia, mesmo que tudo o que tinha imaginado fosse
verdadeiro (…).
Depois disso considerei o que, de uma maneira geral, é indispensável a uma
proposição para ser verdadeira. Como acabava de encontrar uma com esses requisitos,
pensei que era preciso saber em que consistia essa certeza. E tendo notado que nada há
no eu penso, logo existo, que me garanta que digo a verdade, a não ser que concebo
muito claramente que, para pensar é preciso existir, julguei que podia admitir como
regra geral que é verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito clara e distintamente,
havendo apenas alguma dificuldade em destrinçar bem quais são as coisa que
concebemos distintamente.
Depois, ao refletir que, uma vez que duvidava, eu não era completamente
perfeito – pois via claramente que conhecer é uma perfeição maior que duvidar -,
lembrei-me de procurar de onde me vinha o pensamento de alguma coisas mais perfeita
do que eu, tendo percebido com toda a evidência que devia ter vindo de alguém cuja
natureza fosse efetivamente mais perfeita.
Não me era difícil saber de onde me teriam vindo os pensamentos de muitas
outras coisas exteriores a mim, como do céu, da terra, da luz, do calor e de muitas
outras, porque, não notando nesses pensamentos nada superior a mim, podia admitir
que, caso fossem verdadeiros, dependiam daquilo que a minha natureza tem de perfeito;
e no caso de serem falsos, era de mim ainda que eles dependeriam, vindos do nada, isto
é, no que de imperfeito existe na minha natureza. Mas, já não acontecia o mesmo com a
ideia de um ser mais perfeito do que eu, pois ter formado esta ideia do nada era de todo
impossível. E porque repugna tanto admitir que o mais perfeito seja uma consequência e
dependa do menos perfeito como admitir que algo possa surgir do nada, não podia
também aceitar que tivesse sido criada por mim próprio. De maneira que restava admitir
que tivesse sido posta em mim por um ser cuja natureza fosse verdadeiramente mais
perfeita do que a minha, e que tivesse mesmo em si todas as perfeições que eu pudesse
idealizar, isto é, numa palavra, que fosse Deus. (…)
Depois disso, quis ainda pensar outras verdades, e, tomando como tema a
matéria dos geómetras, a qual concebia como um corpo contínuo, ou um espaço
indefinidamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível
em muitas partes que podem ter diversas formas e grandezas, pois os geómetras supõem
tudo isto na sua matéria, revi algumas das suas demonstrações mais simples. Tendo
notado que essa grande certeza que todos lhe atribuem se funda apenas em serem
compreendidas com evidência, segundo a regra há pouco indicada, reparei também que
nada existia nessas demonstrações que me garantisse a existência dos objetos que
referem.
Por exemplo, eu compreendia bem que é necessário que os três ângulos de um
triângulo sejam iguais a dois ângulos rectos. Apesar disso, nada via que me garantisse
que no mundo existe qualquer triângulo. Ao passo que, voltando a examinar a ideia de
um ser perfeito, notava que a existência está contida nessa ideia, de um modo talvez
ainda mais evidente do que na ideia de um triângulo está compreendido os seus três
ângulos serem iguais a dois ângulos retos, ou na esfera os seus pontos serem
equidistantes do centro. Assim, é pelo menos tão certo como qualquer demonstração da
geometria que Deus, que é esse ser perfeito, existe. (…)
Na verdade, aquilo que há pouco adoptei como regra, isto é, que as coisas que
concebemos muito clara e muito distintamente são inteiramente verdadeiras, não é certo
senão porque Deus existe – ser perfeito por quem nos vem tudo o que existe em nós.
Segue-se que as nossas ideias ou noções - coisas reais que provêm de Deus – não podem
deixar de ser verdadeiras, na medida em que são claras e distintas. (…) Mas se não
soubéssemos que tudo o que de real e verdadeiro existe em nós provém de um ser
perfeito e infinito, por claras e distintas que possam ser as nossas ideias, nenhuma razão
teríamos que nos certificasse que elas possuem a perfeição de serem verdadeiras.
Ora, depois de o conhecimento de Deus e da alma ter garantido a certeza dessa
regra, é fácil compreender que os sonhos que imaginamos não devem de modo algum
fazer-nos duvidar da verdade dos pensamentos que temos quando acordados. Porque, se
acontecesse que mesmo a dormir tivéssemos alguma ideia muito distinta – que um
geómetra, por exemplo, inventasse qualquer nova demonstração -, o facto de ter sido
durante o sonho não impediria que fosse verdadeira.
E quanto ao erro mais frequente dos nossos sonhos, que consiste em nos
representar muitos objetos como são representados pelos sentidos exteriores, não
importa que esse erro nos leve a desconfiar da verdade de tais ideias, pois estas podem
também enganar-nos muitas vezes sem que estejamos a dormir: é o que sucede quando,
tendo icterícia, se vê tudo amarelo, ou com a grandeza dos astros e de outros corpos
que, quando estão muito distantes, aparecem mais pequenos do que são. Em suma, quer
estejamos acordados, quer durmamos, nunca nos devemos deixar persuadir a não ser
pela evidência.
Note-se que falo da razão e não da imaginação ou dos sentidos. Porque, embora
vejamos o Sol muito claramente, não devemos julgar por isso que ele tem a grandeza
que lhe vemos; e até podemos à vontade imaginar distintamente uma cabeça de leão
num corpo de cabra, sem que tenhamos de concluir, por isso, que existem no mundo tais
quimeras: porque a razão não garante que seja verdadeiro o que vemos ou imaginamos
assim. Mas garante-nos que todas as nossas ideias ou noções devem ter algum
fundamento verdadeiro, pois não seria possível que Deus, que é inteiramente perfeito e
verdadeiro, as tivesse posto em nós sem isso.
René Descartes, Discurso do Método

Interpretação do texto

1. Por que razão decidiu Descartes rejeitar, como se fosse falso, o que é duvidoso?
2. O que levou Descartes a nunca confiar nos seus sentidos?
3. Explica como chegou Descartes ao cogito?
4. Em que sentido o cogito constitui uma refutação dos argumentos céticos?
5. Explique o critério que, segundo Descartes, nos permite distinguir as crenças
verdadeiras das falsas?
6. Reconstitua o argumento de Descartes a favor da existência de Deus.
7. Explique por que razão, segundo Descartes, Deus tem de existir para que as
nossas evidências correspondam à verdade.

Você também pode gostar