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Francisco Iglésias (1923-1999) e a reescrita da

História da Humanidade da Unesco (1980-2000)

1. Introducao

O título escolhido pra essa apresentação pode sugerir alguns equívocos,


como se tivesse ficado a cargo de Iglesias a reescrita da história da
humanidade da Unesco nos anos 1980.

Não, ele foi um dos inúmeros participantes dessa iniciativa, o único


brasileiro além do presidente da comissão interna à Unesco, embaixador
Paulo Berredo Carneiro, positivista, ligado à religião de Comte e membro
da Academia Brasileira de Letras.

Isso explica a proeminência de Iglesias, a minha escolha de trabalhar


hoje com esse autor. Eu o encontrei nessa posição proeminente em
minha pesquisa sobre a historiografia brasileira na Unesco.

Mas porque reescrita? Fundamentalmente diante do fracasso retumbante


da primeira edição, chamada “Historia do desenvolvimento cientifico e
cultural da humanidade”, planejada e iniciada nos anos 1950 e publicada
somente nos anos 1960/1970. Uma das razoes desse fracasso é essa
decalagem temporal.

Também não quer dizer que a segunda versão tenha encontrado uma
sorte diferente. Apesar disso, ela e mais conhecida talvez por se
encontrar disponível gratuitamente online, talvez de carona no sucesso
de outras colecoes da unesco, como a historia da africa, nos anos 1990.
Ainda que reescrita, os mesmos vicios, eu diria até acentuados, se
apresentaram na nova versao, encabecada novamente pelo embaixador
brasileiro Paulo Carneiro.

As criticas de Iglesias pouco contribuiram para uma reformulacao


profunda. Ele fez parte tanto da comissao encarregada de criticar a
primeira versao quanto foi autor do texto sobre o século XIX brasileiro na
colecao (o unico, alias, sobre o Brasil).

Apesar de tudo, as colecoes de historia pela unesco representam um


ponto de passagem importante entre as antigas historias universais e a
historia global contemporanea, como uma plataforma transnacional para
a circulação de ideias e de saberes. Mas sem perder de vista que os
ideais que orientavam as acoes da Unesco permaneciam
acentuadamente ocidental, pautado pelos valores iluministas das
democracias liberais.

2. Teoria

Além disso, meu interesse é prioritariamente historiografico, em dois


aspectos teoricos que sao conjugados

1. Inscrever a pesquisa nos esforços recentes de compreensão da


historiografia brasileira e sua história em dimensão transnacional, isto é,
em termos de circulação de ideias e de saberes, de cruzamentos de
historicidades e de temporalidades distintas (Silva, 2014; Nicodemo,
Pereira, & Santos, 2017).
2. Fazer jus a um desses questionamentos contemporaneos, no que diz
respeito ao desequilíbrio dessas trocas:

O espaço de circulação transatlântico é lugar de vaivéns incessantes e


de idas e voltas complexas, atestando a existência de uma verdadeira
circularidade cultural internacional muito mais evidente que a simples
presença de um fluxo indo das hegemonias culturais europeias para as
periferias latino-americanas

ALMEIDA, Silvia Capanema; COMPAGNON, Olivier; FLÉCHET, Anaïs (Org.).


Como era fabuloso o meu francês! Imagens e imaginários da França no Brasil (séculos XIX-XX). Rio
de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa/7 Letras, 2017

3. Iglesias

Na época de sua participação na Unesco, Iglesias estava para se


aposentar da UFMG, o que ocorreu em 1982. Nascido em 1923 e viveu
até 1999. Nao viu portanto a publicacao de seu trabalho na colecao da
Unesco no ano 2000.

Ele havia ingressado na entao Universidade de Minas Gerais como


estudante nos anos 1940, formou-se na primeira turma de História e
Geografia da UMG, ao mesmo tempo em que participava de uma revista
literaria, Edificio (1946), em BH, em torno de Autran Dourado e a poesia
de Drummond, com Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Helio
Pellegrino, entre outros. Pouco depois ingressou na Faculdade de
Ciencias Economicas, onde defendeu em 1955 tese de livre docencia
sobre a politica economica do governo provincial mineiro. Publicou ainda
uma « Introducao à historiografia econômica » em 1959 ; « Historia e
Ideologia », em 1971 ; entre diversos artigos e outros materiais
inacabados, reunidos e publicados postumamanete, como o manuscrito
inacabado « Historiadores do Brasil : capitulos de historiografia
brasileira» (2000) ou a coletanea « Historia e Literatura : ensaios para
uma historia das ideias no Brasil ».
É essa faceta do autor historiador das ideias e da historiografia que
me interessa. Algumas dessas informações e também algumas analises
devo ao trabalho da Alessandra Soares Santos sobre a trajetória e a
historiografia de Iglésias, com ênfase nas suas contribuições e militância
pela profissionalização universitária da historia, que não exclui a
dimensão da consciência histórica viva e atuante no presente, não renega
ao passado disciplinar os ensaios históricos, como advogava um de seus
interlocutores mais próximos, Jose Honorio Rodrigues. A autora não
deixa de mencionar, mas apenas en passant, a participação de Iglesias
na Unesco, como uma diversificação de suas atividades, aposentado da
universidade, quando também nos anos 1980, trabalhou para o Instituto
Estadual do patrimônio Historico e Artistico de MG, no Conselho Federal
de Cultura ou até como assessor do Embaixador do BR em PT, José
Aparecido Oliveira.

Chegou a ser cotado para a ABL, por intermédio de seu amigo


Alberto Venancio Filho, advogado e acadêmico, que chegou a escrever
sobre a hsitoria politica do BR nos Chaiers d’Histoire Mondiale nos anos
1960. Ele era próximo do Embaixador e presidente da Comissao para a
Historia da Unesco, Paulo Carneiro.

Foi por intermédio dele, Venancio Filho, que Paulo Carneiro


convidou Iglesias para participar da comissao encarregada de discutir e
criticar a primeira edicao da Historia da Unesco (carta de Venacio Filho
em agosto de 1979). Entrevistei Venancio Filho no Rio, as escolhas
funcionavam muito por ai, por indicações, laços de amizade e prestigio
intelectual (Freyre, SBH, JHR, entre outros que participaram da Comissao
da primeira ed. da Historia, principalmente). Tanto que pra essa segunda
edicao, segundo conta Venancio Filho, Paulo Carneiro desejava contar
menos com figurões e mais com jovens historiadores (In: VENACIO
FILHO, Alberto. Paulo Carneiro: um humanista brasileiro no século XX.
Nossa Revista. ABL, 2002).

4. IGLESIAS NA UNESCO

A participacao do historiador no projeto da Unesco pode ser escandida


em tres tempos (instante de ver, tempo de compreender, momento de
concluir):

1. O convite de Paulo Carneiro em 1979 e o relatorio critico produzido


em seguida:
Alguns aspectos:
- Curioso como Paulo Carneiro sugere a formação de uma equipe
e Iglésias, dizendo que os historiadores são muito vaidosos, prefere
trabalhar sozinho;
- O relatório critico me deu muito trabalho; logo que vi citado em um
documento da comissao, fui atrás dele, sem sucesso; no fim, era o
anexo de uma das cartas, algo não tao formal. Três argumentos
principais: ele critica o espaço reduzido concedido à AL e ao Brasil
e, a despeito de todos os esforços, o caráter demasiadamente
eurocêntrico da coleção, além da manutenção da maneira
convencional de se dividir e organizar o tempo narrativo. Dizia ele:
“precisava ter bem mais cientifico e cultural no plano da
humanidade que se propõe”.
- Em setembro de 1980, Iglésias participa em Paris da primeira
reunião para a revisão da H. da Unesco. Ele chega a tomar a
palavra para enunciar seu ponto de vista sobre o tempo histórico e
seu difícil recorte, tendo em vista simultaneidades. Ele se opunha
assim às supostas facilidades.
- Em 1982, falece Paulo Carneiro e a direção fica a cargo de
Charles Moraze. Antes disso, Iglesias fora convidado também por
Crneiro a integrar a equipe da Historia da AL e Caribe. Ele tem um
texto la sobre o Brasil, juntamente com o professor Estevao Martins,
que também participa. Ao receber tal convite, ele reafirma suas
ciriticas.
- Por fim, essas criticas dialogam com “Historia Universal...”,
capitulo de abertura de Historia e Ideologia, de 1971. Além disso,
era essa posição de critico que mais me interessava discutir aqui
hoje. Mas vamos seguir, vou mencionar os outros dois tempos
dessa participação.

2. A participação no coloquio Être historien aujourd’hui, ocorrido em


Nice, em 1986, cujo livro dirigido por René Rémond apareceu em
1988 em edicao da Unesco, com participação de Hobzbawn,
Wolfgang Mommsen e Francois Bedarida, pra ficarmos em nomes
bem conhecidos, entre hiqtoriadores africanos, chineses, indianos
e outros ; a preocupação de Iglesias esteve voltada, após uma
breve historia da historiografia brasileira – essa por sua vez dialoga
com o livro “Historiadores do Brasil”, a proposta de periodização é
a mesma, com ênfase em Varnhagen e Capistrano. Isso para
apresentar um quadro das pesquisas em andamento nos
programas de pos graduação e seus currículos disciplinares. Com
ênfase portanto no processo de disciplinarizacao da historia no
Brasil, na oposição diletantes e profissionais.

3. A producao do texto em si, publicado somente no ano 2000 com o


volume VI da Colecao, dirigido por CharlesMorazé. Encontramos
correspondências e discussões de Iglesias com morazé em suas
cartas. Encontramos também alumas queixas do autor quanto à
morosidade dos trabalhos em correspondência com JHR.
Encontramos com o secretariado que previa para 1995 a
publicação do Volume VI, enfim. Fato é que o autor não viu a
publicação de seu trabalho de 25 paginas sobre o novecentos
brasileiro.

Não conseguiu estar a altura de suas próprias criticas: Ainda que


tenha dividido o texto em sessões temáticas e não cronológicas,
como o antecessor JHR, e colocado “bem mais cientifico e cultural”
que este, não conseguiu escapar de suas próprias criticas, de uma
síntese rápida, a despeito de suas demandas por mais espaço na
coleção. Seria o formato da coleção e seus vícios de origem? De
toda forma contrastava com seu espirito de especialização dos
estudos históricos.

Mas apesar disso, o argumento pela singularidade brasileira no


novecentos e suas heranças no presente, a saber a desigualdade,
herança escravocrata. Importante ser colocada no BR da
redemocratização para o mundo. Assim pelo menos se distanciava
do espirito inicial da coleção, de concordia e compreensão,
eurocêntrica, como não poderia deixar de ser com tantas diferenças
no tempo.

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