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Publicado em NOVA ESCOLA 04 de Abril | 2018

Jovens e Adultos

Como a EJA mudou a vida deles


Que mais de 3,6 milhões de estudantes estejam matriculados na Escola para
Jovens e Adultos é uma conquista; que as taxas de evasão no Ensino Médio
ainda sejam tão altas, não é
Paula Salas
Laís Semis

Alunos da Educação para Jovens e Adultos (EJA) Foto: Reprodução/Facebook

“Depois de 27 anos, voltei a estudar”, conta Sandra Rossi. Ela abandonou a escola aos 13 anos para se
dedicar ao esporte. Há 18 anos, ela conseguiu concluir o Ensino Médio. Mas até os anos 2000, Sandra
ainda era parte da estatística que, pelos números mais recentes, aponta para um total de 3,6 milhões
de estudantes matriculados na Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil. Os dados do Censo
Escolar 2017 mostram que embora o Ensino Fundamental apresente uma tendência de estabilização,
as matrículas do Médio cresceram em 3,5% no ano passado. “São os jovens que estão ampliando esse
número. Na cidade de São Paulo, por exemplo, 50% das matrículas são de jovens de 15 a 19 anos”,
analisa Roberto Catelli, coordenador-executivo da Ação Educativa e da unidade de EJA da instituição.

Para o Ministério da Educação (MEC), os números refletem a taxa de insucesso dos anos finais do
Fundamental e Ensino Médio. Do total de matriculados na EJA, 2,17 milhões tentam completar o Ensino
Fundamental, enquanto 1,42 milhão estão em busca do diploma do Ensino Médio. “Há um
analfabetismo jovem. É inaceitável que pessoas nascidas no final da década de 1990, que tiveram
oportunidade de acesso à Educação, componham esse percentual tão alto”, disse Maria Helena
Guimarães, secretária-executiva do MEC, na cerimônia de divulgação dos dados do Censo Escolar deste
ano. Pelo levantamento, a região que mais concentra alunos nessa modalidade é o Nordeste, com 1,41
milhão. Diante dos dados, Maria Inês Fini, presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pelo Censo, lamentou o perfil jovem dos alunos. “A EJA
é uma ação compensatória, que tem recebido mais jovens que poderiam estar sendo atendidos pelo
ensino regular”.

LEIA MAIS Evasão: Censo Escolar revela “fracasso da escola”


Até alguns anos, muitas das matrículas estavam associadas à falta de acesso à Educação Básica:
distância entre casa e escola, dificuldade de transporte (principalmente em zonas rurais e periféricas),
problemas domésticos e desdobramentos de casos de preconceito e bullying. “Na escola sofri muito
preconceito com a minha cor. Tinha alunos que me chamavam de ‘macaca’. Aí cresceu uma uma
revolta dentro de mim e fiquei dois anos sem ir para a escola”, relata Tamiris da Silva no documentário
“Fora de Série” (2018), produzido pelo Observatório Jovem do Rio de Janeiro, associado ao Programa de
Pós-Graduação da UFF, que conta as histórias e os desafios de alunos do Ensino Médio da EJA na rede
pública do Rio de Janeiro.

Com o agravamento da crise econômica, muitos jovens simplesmente tiveram de optar entre a
subsistência da família e a escola. Um levantamento recente do Banco Mundial indica que jovens de 15
a 25 anos vivendo em lares afetados por quedas nos rendimentos têm 2,3% mais chances de
abandonar os estudos. Entre os que têm 18 anos, o índice sobe para 4,5%. “O abandono prematuro
dos jovens no final do Fundamental e no Médio ainda se dá muitas vezes por falta de condições
familiares, sociais e necessidade de trabalho, mas também porque não há identificação do jovem em
relação à escola”, afirma Roberto Catelli.

Essa falta de identificação também atinge a EJA. Mesmo dentro da modalidade, a evasão de jovens
ainda é grande. “Eles são os que mais entram e os que mais evadem”, explica Roberto. Para ele, um dos
grandes desafios é pensar em um currículo e modelo que garanta essa permanência. “Existem poucos
esforços em termos de políticas públicas que avancem sobre essas questões”.

Apesar desse cenário, a EJA tem sido uma oportunidade de mudança de vida para os alunos que não
tiveram acesso à escola no passado ou que deixaram essa oportunidade para trás. Essa é a história de
Sandra, Riza e Tote, mas também de muitas outras pessoas que puderam transformar suas vidas
através da Educação.

Sandra Rossi é hoje professora da EJA do Colégio Santa Maria, mesma instituição que
permitiu concluir os estudos depois de 27 anos longe da escola. Crédito: Acervo pessoal
Sandra Rossi

Largar é fácil, difícil é voltar a estudar


Aos 13 anos, Sandra Rossi só tinha um objetivo para o futuro: jogar voleibol profissionalmente. “Eu não
queria saber de escola, só de fazer esporte”, diz. Enquanto os pais pensavam que Sandra estava
frequentando as aulas da antiga 8ª série (atual 9º ano), a menina treinava nos clubes. Um dia, eles
descobriram. “Foram radicalmente contra, mas a resistência de voltar à escola era tão grande que
acabei parando de estudar e comecei a trabalhar”.

Riza Mara deixou a escola com 15 anos. Tote Gira, com 16. Ambos tiveram um percurso de idas e
vindas pela escola até se engajarem nos estudos. Riza sofreu um acidente na adolescência e ficou
impossibilitada de frequentar a escola por um longo período. “Fui reprovada e fiquei com vergonha de
voltar a estudar depois disso”, conta. Aos 22, ela decidiu retomar os estudos, quando descobriu que
estava grávida. Como se tratava de uma gravidez de risco, teve que se afastar novamente. O filho
nasceu com problemas de saúde e ela não conseguiu conciliar as duas demandas. Aos 30, ao fazer a
rematrícula do filho, a funcionária perguntou se ela não gostaria de retomar os estudos. “Eu me
matriculei no Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA) Campo Limpo, mas sem a
intenção de estudar além da Educação Básica. Só queria concluir o Fundamental e fazer o Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem) para tirar o certificado do Médio”.

Tote Gira faz parte do grupo de alunos que trocou a sala de aula pela necessidade de ajudar
financeiramente em casa. Aos 20, voltou pelo desejo de aprender. Dois anos depois, precisou
abandonar os estudos novamente para auxiliar a família e criar seus filhos. Apenas 30 anos mais tarde
conseguiu se formar no Centro Estadual de Educação Magalhães Neto, em Salvador (BA), onde estagia
atualmente na área de Filosofia. Além de cursar licenciatura na disciplina a distância, ele faz
licenciatura em Música na Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Voltei aos 52 e essa experiência me
fez desejar continuar estudando até quando eu deixar de existir”, afirma.

O mundo de oportunidades – melhores empregos, salários mais altos, melhores condições de vida,
viagens pelo país e até ao exterior – se afunila à medida que diminui o nível de escolaridade. Se já é
difícil encontrar um emprego com o Ensino Médio completo, imagine apenas com o Fundamental ou
sem saber ler. “Senti bastante falta da escola na vida adulta”, afirma Riza. Ela sentiu dificuldade em
montar um currículo e passar por entrevistas de emprego. “Quando perguntam seu grau de
escolaridade e você não tem o Fundamental completo, já é uma chance a menos de entrar no mercado
de trabalho”, desabafa. Para Sandra, com o fim da perspectiva de ser uma jogadora de vôlei
profissional, o leque de opções disponíveis começou a gerar um incômodo. “Não estava contente em
relação à minha situação. Eu só tinha subempregos pela falta da escola”, relata.

Risa Maria (de azul) aproveitou a certificação do ENEM para tentar uma vaga na
universidade. Crédito: Acervo pessoal Risa Maria

O retorno para a escola, a volta por cima


A decisão de voltar a estudar não é fácil. A bagagem de frustrações, medos e inseguranças junta-se à
dificuldade em conciliar a rotina familiar com o trabalho e o estudo. Mas vergonha ainda é o
sentimento mais recorrente de quem volta a estudar, após a idade escolar. “Essa volta foi muito
dolorosa. Imagina ter 21 anos e entrar para a 2ª série [do Fundamental]. O primeiro dia foi vergonhoso.
No segundo, tomei como lição que eu tinha acabado de ultrapassar uma barreira muito grande, a da
vergonha”, comenta Maycon Pereira, que está terminando o Ensino Médio e também participa do
documentário “Fora de Série”.

“Quando você se afasta é mais difícil se engajar de novo. Você não tem alguém que venha atrás para
perguntar por que saiu, que te fale qual é a escola mais próxima… tudo é mais complicado do que na
época da escola”, diz Riza Mara. “Sentia frustração por não ter aproveitado a oportunidade quando era
mais jovem”.

Outra barreira que precisa ser vencida é o imaginário do que te aguarda nesse retorno. “Voltar é
sempre um receio”, admite Sandra. “Você não sabe como é a escola, se na turma só tem molecada…
cheguei a fazer uma semana de supletivo no passado, mas desisti porque não achei bom”, conta. A
oportunidade de quebrar o ciclo de 17 anos longe da escola veio ao descobrir que a escola em que
estudavam seus sobrinhos, o Colégio Santa Maria, em São Paulo, também oferecia EJA gratuita. “A
oportunidade apareceu e, no primeiro dia, eu já gostei”.

A facilidade que teve com os conteúdos foi ajudando a definir as oportunidades que viriam a seguir.
“Comecei a ajudar os colegas que tinham mais dificuldade”, diz Sandra. Dois anos após ter deixado o
colégio, ela encarou a oportunidade de voltar como monitora de uma sala na instituição. Na época,
Sandra cursava uma faculdade de Pedagogia. “Fiquei meio receosa com a proposta, mas eles
acreditaram no meu trabalho e eu topei o desafio”, lembra. Ao concluir a primeira graduação, ainda foi
cursar Matemática.

Enquanto cursava o Fundamental, Riza Mara dedicou-se paralelamente ao estudo do Enem, já que
precisava ir bem no exame para conseguir o certificado do Médio. “Meu marido tinha vontade de fazer
um curso superior, mas o trabalho fixo dele impedia. Como eu já estava estudando para o Enem, ele
me incentivou a usar a nota para tentar uma vaga em uma universidade pública ou uma bolsa parcial
em alguma particular para ter um emprego melhor”, diz. Os professores da EJA lhe deram todo o apoio
e suporte: indicações de conteúdos, sites para estudar, corrigiam redações extra. “Minha nota do Enem
foi bem razoável e achei que daria para arriscar uma vaga em uma pública”. O resultado: aprovada no
curso de Farmácia de uma universidade em Osasco e em Tecnologia de Alimentos na Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UFTPR). Como trabalhava com confeitaria em sua casa, ela decidiu
investir na última opção e ampliar suas oportunidades na área.

Risa ao lado de colegas no curso de Tecnologia de Alimentos da UFTPR. Crédito: Acervo


pessoal Risa Maria

A trajetória desafiadora valeu a pena. “Minha vida é bem complicada, foi necessário encontrar forças
no desejo de aprender. Hoje é muito gratificante olhar para trás”, comenta Riza. Os desafios
continuam: hoje ela cursa o 3º semestre de Tecnologia de Alimentos e continua persistente em
alcançar seus objetivos. Sandra também se orgulha da trajetória. Sandra faz parte do time de
professores da EJA do Santa Maria – aquele mesmo colégio em que estudou – e faz disso fonte de
inspiração para seus alunos. “Falo para eles que se eu consegui, eles também conseguem. Tenho muito
orgulho de dizer que estudei ali como eles e que eles podem vencer também”.

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