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A HERMENÊUTICA CRISTÃ

Claude Geffré

(traduzido e adaptado de um texto policopiado. Na margem, feito pelo autor,


consta: L’Etat des Religions. La Découverte – Le Cerf, Paris, 1987
De uso interno, exclusivamente).

Quem diz hermenêutica diz interpretação de textos. A atração nova que exerce, em
todos os domínios do saber, esta palavra criada pelos gregos (cf. o deus Hermes, o inventor
da linguagem) não é fortuita. A escolha desta palavra tem, pelo menos, o privilégio de dizer,
sem hesitação, que não há, sem mais, leitura inocente de um texto sem que a interpretação
existencial do leitor lhe seja engajada.
Tradicionalmente, a hermenêutica designa a disciplina que tem por objeto a
exposição de regras a ser seguidas na interpretação de textos, sagrados prioritariamente,
mas também por extensão, jurídicos e filosóficos. Atualmente, numa época em que a razão
filosófica entrou na sua fase hermenêutica, a hermenêutica cristã tende a englobar todo o
trabalho teológico que se situa entre a Escritura-fonte e a pregação viva da Igreja.
O problema hermenêutico é contemporâneo das origens mesmas do cristianismo, já
que a Palavra ausente de Deus tornou-se presente por meio de uma Escritura que por sua
vez é ela mesma a colocação por escrito do testemunho suscitado pelo evento crístico. As
outras duas religiões do Livro (o judaísmo e o islamismo) comportam necessariamente uma
dimensão hermenêutica, por causa da tensão entre o Livro e a Palavra de Deus. Mas, no
caso do cristianismo, a questão hermenêutica está no coração de toda a pregação viva. O
livro da Bíblia, com efeito, remete não só a uma Comunidade interpretante, mas a este
outro pólo, ausente e portanto presente, o Ressuscitado que coincide com todos os
momentos dos tempos e que faz com que as Escrituras fundadoras tornem-se “Espírito e
vida”.
Nesta breve repassada sobre a hermenêutica cristã, primeiramente procurar-se-á
clarificar suas dimensões constitutivas. Em seguida, perguntar-se-á sobre a centralidade
hermenêutica da teologia contemporânea e, enfim, refletir-se-á sobre a importância dada à
prática histórica dos homens na interpretação atual da mensagem cristã.

I. As dimensões permanentes da hermenêutica cristã

1) A relação entre os dois testamentos


O evento Jesus Cristo está em uma relação hermenêutica com a Lei e os Profetas, no
sentido de que Ele os interpreta. Antes de ser ele mesmo o objeto privilegiado da
interpretação da Igreja, Ele é o interpretante para todo o Antigo Testamento. Os Padres
utilizarão a tensão paulina da letra e do espírito para tornar presente esta diferença que deve
ser definida como uma relação de promessa e cumprimento. O Cristo opera uma mutação
de sentido do Antigo Testamento: Ele o cumpre. Pode-se interpretar os eventos, as
personagens, as instituições da Antiga Aliança como figuras, tipos, alegorias ou apenas

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sombras frente a esta plenitude de manifestação (a verdade no sentido bíblico) que constitui
o Cristo.
Ao contrário do que espontaneamente imaginamos, a primeira comunidade cristã
viveu durante cento e cinqüenta anos com o Antigo Testamento como a única Escritura.
Pouco a pouco, assiste-se ao processo de se por por escrito o testemunho apostólico. Mas
estes escritos que eram lidos diante das comunidades da Igreja primitiva coexistiam com
uma pregação oral da qual se acham os traços no capítulo 15 da Carta aos Coríntios. É a
heresia de Marcion, rejeitando o Antigo Testamento e não querendo conservar dos
Evangelhos a não ser o que fosse parecido com S. Paulo, que obrigará a Igreja a se dar um
Cânon das Escrituras, ponto de partida de um Novo Testamento comparável ao Antigo. A
recusa de um corte com o Antigo Testamento permanecerá como um traço constante da
hermenêutica cristã. É preciso dizer que a unidade, na diferença, dos dois Testamentos está
no coração da teologia cristã. Trata-se de fazer aparecer em toda a releitura do Antigo
Testamento que, apesar da sua novidade, o evento crístico não é um evento arbitrário. Já
que o evento Jesus Cristo cumpre a história da salvação que começa com Abraão, ele dá o
seu sentido espiritual às Escrituras da Antiga Aliança. Mas, do lado inverso, trata-se de
aprender a ler o Novo Testamento a partir do Antigo.

2) O Livro e a existência cristã


Pode-se discernir uma segunda dimensão da hermenêutica cristã – a que se
manifesta na relação mútua entre a interpretação da Escritura e a interpretação da existência
humana. O crente decifra a sua vida à luz do mistério de morte e ressurreição do Cristo. E
porque ele verifica na sua vida a autenticidade do mistério pascal, vai adquirir ele mesmo
uma inteligência nova do mistério de Cristo.
Descobre-se ali a expressão cristã do circulo hermenêutico que constitui sempre a
relação entre o texto e seu leitor, ou melhor, entre a coisa questionada e o questionador. O
ouvinte da Palavra de Deus interpreta a sua vida à luz da Palavra e inversamente interpreta
a Palavra à luz da sua vida. Há um decifrar mútuo do sentido existencial e do sentido
crístico que é fundamental no cristianismo e que em termos modernos pode-se exprimir
pela involução recíproca entre teoria e prática.
A exegese cristã jamais cessou, ao longo dos séculos, de colocar, além do sentido
histórico, o sentido alegórico e o sentido escatológico da Escritura, a fim de manifestar a
novidade do Evangelho. Mas, é cada cristão que é convidado a atualizar o sentido moral da
Escritura na sua vida cotidiana. Não há decifração do sentido da Escritura sem apropriação,
sem interiorização, sem atualização de uma nova possibilidade de existência. O cristão lê
sua vida e a julga no espelho do Livro das Escrituras. Mas, ao mesmo tempo, ele lê a
Escritura e verifica sua fecundidade no espelho da sua vida.

3) A distância do passado e do presente e a distância interior do texto


A terceira dimensão da hermenêutica cristã é mais difícil de descobrir. Ela é
indissociável da nova consciência histórica moderna, mas ela é reveladora de uma situação
hermenêutica congênita ao cristianismo desde a origem.

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Com a caminhada histórica, o Novo Testamento que era Espírito e Vida tornou-se
ele mesmo uma letra, um testamento a interpretar. Mas, é a tomada de consciência de nossa
distância cultural em relação ao texto do Novo Testamento e a aplicação do método
histórico que nos levam a descobrir uma distância inerente ao próprio texto, quer dizer, a
distância entre os eventos mesmos narrados nos Evangelhos e o testemunho que os
suscitaram. O evento Jesus Cristo está na origem do querigma primitivo que foi traduzido
nos relatos, nos textos que comportam já uma primeira camada de interpretação. Nós temos
então hoje para interpretar um texto que é ele mesmo uma interpretação.
Em confronto com uma concepção fundamentalista onde a letra da Escritura
corresponde estritamente à própria Palavra de Deus, no cristianismo, o Livro das Escrituras
abre ele mesmo um espaço de interrogação (e, então, de conflito possível). Aplicar o
método histórico-crítico ao texto do Novo Testamento é dessacralisar o texto e nos colocar
a questão do problema das relações entre palavra humana e Palavra de Deus. Esta é
mediatizada em eventos históricos que se tornam eventos de linguagem. Nós não podemos
mais, por exemplo dissociar o querigma e a história na nossa aproximação a Jesus. É bem o
Jesus histórico que é o critério de interpretação dos títulos senhoriais atribuídos a Jesus
Cristo, mas nós não podemos alcançar Jesus como evento histórico, senão através da
confissão de fé pascal.
Finalmente, o Novo Testamento como testemunho dado ao evento Jesus Cristo não é
um texto que nos dá imediatamente seu sentido pleno e definitivo. Deve-se considerar este
texto como um “ato de interpretação” e a distância que nos separa dele, longe de ser um
obstáculo, é a condição mesma de um novo ato de interpretação no seio da Igreja de hoje.

II. A idade hermenêutica da teologia

Não se pode entender a influência do problema hermenêutico no cristianismo


contemporâneo a não ser que se tenha no horizonte duas rupturas históricas na relação que
a Igreja entretém com a Escritura: a ruptura da Reforma e a ruptura cultural que coincide
com a chegada da consciência histórica na época moderna.

1) A crise da Reforma
Na Igreja antiga é a distinção “letra-espírito” que exprimia a tensão entre a
significação inicial do texto e sua significação atual para o hoje. Para os reformadores, a
Escritura acompanhada do “testemunho interior do Espírito Santo” deve produzir por ela
mesma seu sentido no espírito do crente. A Escritura não é somente objeto de fé; ela é sua
única regra e deve ser a sua “intérprete de si mesma” (sui ipsius interpres). O princípio
“escriturário” (sola Scriptura) de Lutero rompe com a função sempre mais invadente
exercida pela Tradição (e as tradições eclesiásticas também) na Igreja romana. O Concílio
de Trento vai reagir firmando o princípio das duas Fontes (Escritura e Tradição).
O Vaticano II tomou distância da teoria das duas fontes e afirmou claramente que o
Magistério não está acima da Palavra de Deus. Mas, diante de um conflito de
interpretações, não basta invocar a autoridade da Palavra de Deus como última instância.
Trata-se da Palavra de Deus consignada na letra da Escritura, ou bem é esta a Palavra de

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Deus tal como a compreendeu a Igreja na sua tradição viva desde os tempos apostólicos?
Compreende-se melhor então que a ruptura decisiva da Reforma nos reenvia às rupturas no
interior mesmo do Corpus escriturário. Não há somente um Antigo e um Novo Testamento,
mas cada um comporta uma multidão de testemunhos e até de diferentes teologias. Como
encontrar um princípio organizador desta multiplicidade? Como alcançar a unidade de
testemunho que vai comandar a unidade da fé? Parece que, para além das divisões
confessionais, que o único meio de respeitar a autoridade inatacável de Deus mesmo seja o
de ter direito ao jogo simultâneo de diferentes “autoridades”. Em outras palavras, nenhuma
hermenêutica cristã pode escapar do jogo do reenvio mútuo da Escritura e do Dogma.

2) A ruptura cultural dos tempos modernos


A crise modernista que a Igreja católica atravessou no final do século 19 não foi
senão o contragolpe da irrupção da consciência histórica no interior das ciências
eclesiásticas. É preciso falar de uma verdadeira ruptura, uma ruptura epistemológica no
conhecimento histórico das origens cristãs. Diferente de um conhecimento por simpatia e
por conaturalidade, o historiador se submete às exigências da crítica histórica. Então...
quando se trata de eventos ou de textos fundadores do cristianismo, como conciliar os
resultados da crítica histórica com as certezas da tradição dogmática? O problema
hermenêutico na época moderna nasce justamente da vontade de levar a sério a crítica
histórica que põe o objeto a conhecer na sua autonomia e na sua distância, justamente não
renunciando em colocar o significado dos eventos passados (cf. W. Dilthey que é, após
Schleiermacher e antes de Gadamer, o iniciador da hermenêutica moderna).
A crise modernista é o revelador de um debate fundamental, concernente a
compreensão do fenômeno cristão que pede, de uma só vez, um estudo positivo e de uma
outra ordem, aquele da fé ou do sobrenatural. O que está em questão – e é decisivo para o
problema hermenêutico – é a natureza do fato histórico. Há eventos reais, mas o fato
histórico é sempre reconstruído pelo historiador a partir do fato real. Blondel propunha
distinguir a história dos historiadores, ou seja a história técnica e crítica, e depois a história
real, ou seja, a história santa que encarna a “idéia” cristã. Na sua condenação do
Modernismo, o Magistério romano concentrou seus ataques contra a relatividade das
fórmulas dogmáticas a qual chegou a posição de Loisy e de Tyrrel, mas não refletiu sobre
as novas condições do conhecimento histórico. Além disso, mesmo que a reflexão filosófica
e teológica esteja hoje melhor assegurada para suplantar as aporias do Modernismo, a
questão das relações entre história e Dogma é sempre de grande atualidade para a Igreja.
Basta, para se convencer, evocar o sucesso de um certo neo-fundamentalismo e o affaire
dos catecismos na França.
É a aplicação do método histórico às fontes do cristianismo que esteve na origem da
crise modernista. Na época contemporânea, se há crise de sabor teológico, é antes de tudo
sob o choque das ciências humanas da religião que conhecem enorme sucesso. Precisar-se-
ia procurar o equivalente da crise modernista na crise da hermenêutica que se vê contestada
pela “teoria crítica das ideologias” na Alemanha e pelo estruturalismo (cf. a contestação
radical de J. Derrida em sua Grammatologie). No momento da crise modernista, era o

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específico cristão que arriscava se dissolver em proveito de uma experiência inefável e
supra-histórica. Com a crise da hermenêutica, é o objeto religioso todo inteiro que perde
seu lugar e sua pertinência.
Mas, a oportunidade de uma crise tão radical, é ela mesma a do questionamento de
toda a verdade e da possibilidade mesma de um discurso filosófico. Ora, justamente aqueles
que refletem sobre o que está empenhado na compreensão de textos estão a caminho de
realçar o desafio do nihilismo. A filosofia entrou na sua idade hermenêutica e então ela
assume sua condição de conhecimento interpretativo e procede a uma refontalização do
conceito de verdade. Assim, o tema da interpretação pode ser o lugar de uma colaboração
fecunda entre filosofia e teologia.

3) A teologia como hermenêutica


a. No prolongamento do Vaticano II, a teologia contemporânea redescobriu o preço
inestimável dos textos em relação a todas as construções racionais. Na teologia escolástica,
aquela que foi chamada de teologia “barroca”, pode-se deduzir todos os conteúdos da fé a
partir destes primeiros princípios que são os artigos de fé. O ponto de partida de uma
teologia hermenêutica que leva a sério o primado da Palavra de Deus em relação às
explicitações ulteriores da Tradição, não é um conjunto de proposições racionais, mas os
textos no seu frescor original. A teologia é finalmente um fenômeno de re-escritura a partir
de escrituras anteriores. Não se pode aceitar reduzir a Escritura a um simples repertório de
argumentos para confirmar a verdade de proposições teológicas já obtidas alhures.
b. Não se pode compreender a orientação hermenêutica da teologia contemporânea
senão se situar como uma tentativa de ultrapassagem, a uma só vez, do historicismo e do
dogmatismo. É pressuposto implícito do historicismo que a verdade do cristianismo se
encontre contido num texto, a Bíblia, e que pode-se restituí-la segundo métodos científicos.
A exegese torna-se o lugar de passagem obrigatória para chegar a esta verdade que é
identificada com o conteúdo do texto antigo. O historicismo crê poder instaurar uma
relação imediata com uma origem que ele identifica com a verdade. De fato, a relação com
os eventos e os textos fundadores do cristianismo é sempre uma relação com textos e
tradições teológicas. Foi este justamente o mérito de R. Bultmann, o de substituir com um
termo teológico ao termo histórico pensado como origem.
No dogmatismo ou ainda a teologia ontológica clássica, a relação com a verdade é
pensada conforme o esquema de um retorno à origem, mesmo se esta origem é identificada
com uma plenitude de ser no sentido metafísico e não com um fato histórico. A função de
uma teologia hermenêutica é justamente pesquisar uma nova relação entre a história e a
verdade (cf. E. Käsemann). Trata-se de instaurar uma nova maneira de pensar a relação
com as origens do cristianismo que aceite plenamente estar sob o signo da descontinuidade,
da diferença, da alteridade, um meio de pensar a tradição não como uma reprodução de um
passado morto, mas como nova produção.
c. A idade hermenêutica da teologia, a inteligência da fé (intellectus fidei) pode ser
assimilada, na linha de Heidegger, a um “compreender hermenêutico”, quer dizer, outra
coisa que um simples ato de conhecimento noético. O teólogo não pode dissociar a
historicidade de toda a verdade e, inclusive, a verdade revelada e a historicidade do homem

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como sujeito interpretante (o “crível disponível” do homem muda conforme as idades da
cultura). Trata-se pois de levar a sério não só a historicidade da fé e da teologia, mas
também a historicidade das fórmulas dogmáticas. Isto não vai levar necessariamente ao
relativismo. Verifica-se simplesmente o regime de encarnação da Palavra de Deus na e pela
história.
d. Contrariamente ao método mais corrente da teologia dogmática da Contra-Reforma,
uma teologia de tipo hermenêutico não se contenta em expor e explicar os dogmas
imutáveis da fé católica mostrando seu acordo com a Escritura, os Padres e a tradição
teológica. Toda a teologia viva deve levar em conta o jogo mútuo incessante entre a
Escritura e a Tradição que permanecem os lugares teológicos privilegiados.Trata-se de
pesquisar uma nova inteligência da mensagem cristã para hoje, respeitando o círculo
hermenêutico entre a Escritura e o Dogma, que um e outro rendam testemunho à plenitude
da Palavra de Deus. A teologia católica clássica teve sempre a tendência de ler a Escritura a
partir de explicitações ulteriores da tradição dogmática. Uma teologia segundo o modelo
hermenêutico aceita o risco de se entregar a uma reinterpretação de enunciados dogmáticos,
a partir de um melhor conhecimento da situação histórica que foi a ocasião de sua
formulação e à luz de nossa leitura moderna da Escritura, isto é, uma leitura que leve em
conta os resultados da exegese crítica.

III. Interpretação e prática histórica dos homens

A hermenêutica cristã se dá, pois, como tarefa fazer de modo que a Pregação da Igreja
não seja a transmissão de um passado morto, mas uma palavra viva que interpele e que
liberte, que seja interpretante para o ouvinte, isto é, que desperte no homem possibilidades
de Existência. Assim como não há revelação sem reinterpretação viva dos grandes eventos
da história da salvação para o povo de Israel, ou do evento Jesus Cristo para a primeira
comunidade cristã, do mesmo modo não há transmissão da fé sem reinterpretação criadora.
Como a palavra indica, a catequese tem sempre como finalidade fazer ressoar uma palavra
que seja “espírito e vida”. E é ilusão crer que se possa transmitir um texto limpo, intocável,
que condensaria a substância da fé, bastando apenas acompanhá-lo de comentários mais
adaptados à situação presente. Isto seria confundir a necessária reinterpretação do texto
exigida por sua historicidade radical com um simples problema pedagógico de adaptação.
É permitido, assim, definir a hermenêutica cristã como um novo ato de interpretação
do evento Jesus Cristo, tendo por base a correlação crítica entre a experiência cristã
fundamental, testemunhada nos escritos apostólicos, e a experiência humana de hoje.
Inspirando-se nos trabalhos de E. Käsemann, pode-se estabelecer uma analogia entre o
Novo Testamento e a função que ele exerce na Igreja primitiva e, depois, a produção de um
novo texto hoje e a função que ele exerce na Igreja e na sociedade. Sob a moção do Espírito
e de uma fé vivida em comunidade, a continuidade não se encontra na repetição mecânica
de uma mesma mensagem, mas na analogia entre dois atos de interpretação.
Vê-se pois que a inteligência atual do cristianismo nasce da aproximação entre duas
experiências, a experiência cristã fundamental e a experiência humana contemporânea. É
preciso sempre voltar à experiência cristã fundamental que se define a partir da prática de

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Jesus, na sua relação com Deus e na sua relação com os homens. É preciso interpretar a
experiência humana a partir das práticas históricas dos homens, de modo particular a
experiência dos contrários, isto é, a experiência das oposições, das resistências, das
negatividades, através das quais o homem procura o enigma do seu destino. Esta correlação
crítica entre duas experiências históricas nos convida a descobrir como uma verdadeira
compreensão hermenêutica obedece necessariamente a uma dialética incessante entre teoria
e prática. A partir da mensagem cristã ordinária, eu posso elaborar um certo modelo, uma
certa teoria que deve ser traduzida em prática. Mas, por outro lado, a experiência atual dos
cristãos ligada aos seus novos estados de consciência opera uma passagem da prática à
teoria, no sentido onde a prática mesma é um lugar de discernimento e de inteligência da
mensagem cristã.
Contrapondo-se a um esquema de pensamento que foi sempre constante na Igreja,
a prática histórica dos homens não é o campo de aplicação de uma doutrina normativa toda
constituída, ela é um lugar teológico, isto é, um princípio de discernimento que nos conduz
a uma reinterpretação criadora do cristianismo. É a própria prática cristã , inseparável pois
da prática histórica dos homens, ela é que é uma prática significante e criadora de novos
sentidos da mensagem cristã, assim como de novas figuras da existência cristã. Isto supõe
evidentemente que a Igreja esteja à escuta do Espírito de Deus, que fala também desde a
prática histórica dos homens. Reconhece-se aqui uma nova inteligência das relações entre
fé e história, que se desenvolve desde os grandes textos do Vaticano II. Em todo o caso, só
esta mutação das relações entre teoria e prática pode nos permitir compreender estes novos
projetos teológicos que constituem a “teologia política” e as diversas “teologias da
libertação”.
Esta atenção à prática é suficiente para nos convencer que uma hermenêutica cristã
não é para ser confundida com uma hermenêutica teórica que pretenderia uma espécie de
transparência entre os textos do passado e sua interpretação para hoje. Esta hermenêutica
ideal deve ser sempre completada por uma hermenêutica da suspeita que se interroga de
modo crítico sobre os pressupostos conscientes ou não da nossa própria compreensão, bem
como as condições de produção de textos para interpretar. Ela se interroga também sobre a
prática atual da Igreja, e sempre tendo em vista a libertação de homens e mulheres. Como
demonstram certos ensaios contemporâneos de hermenêutica feminina, uma prática eclesial
secular de tipo patriarcal, que não toma consciência de seus próprios condicionamentos e de
seus interesses, pode tornar-se uma prática ideológica.
Nas Igrejas deste tempo, a hermenêutica cristã quer romper com um dogmatismo
autoritário. Ela se expõe ao risco da interpretação e do erro, pois. Mas este risco é menor do
que aquele de um cristianismo histórico que será infiel à novidade permanente do
Evangelho.

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