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Resumo......................................................................................................................................

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2.1- O Papel dos Conteúdos Culturais nos Processos Inferenciais

Humanos..................................

2.2- O Papel dos Conteúdos Pragmáticos nos Processos Inferenciais

Humanos.............................

2.3- O Papel dos Conteúdos Afetivos nos Processos Inferenciais

Humanos...................................

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4.1- A Perspectiva de

Piaget........................................................................................................

4.2-A Perspectiva de

Vygotsky...................................................................................................
4.3-A Perspectiva de

Wallon.......................................................................................................

4.4-Algumas Perspectivas

Contemporâneas...............................................................................

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6.1-

Variáveis..............................................................................................................................

6.2-Variáveis Independentes....................................................................................................

6.3-Variável Dependente..........................................................................................................

6.4-Participantes........................................................................................................................

6.5-Instrumentos.......................................................................................................................

6.6-

Material................................................................................................................................

6.6-

Procedimento.......................................................................................................................

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Desde o final da década de 80 e início dos anos 90 é possível contemplar um aumento

no número de pesquisas que focalizam a influência da afetividade nos processos cognitivos.


Contudo, a maior parte dessas pesquisas debruça-se sobre a investigação da influência das

emoções no processamento da informação. Nesse viés, observa-se um número expressivo

de investigações com ênfase no processamento da informação, processamento este

envolvido no raciocínio dedutivo e indutivo, na memória, na resolução de problemas e na

transferência de aprendizagem.

Neste contexto, observa-se também uma ênfase na utilização de problemas que

apresentam conteúdos de enunciados neutros em contraposição a um número relativamente

pequeno de pesquisas que focaliza mais diretamente a influência, na resolução de

problemas e no raciocínio humano, da tonalidade afetiva dos enunciados, bem como dos

conteúdos de enunciados embebidos em valores positivos ou negativos.

Cagnin (2008) salienta que o grau de definição de um problema, bem como a

quantidade de conhecimento requerido para a sua solução, costuma ser parâmetro para a

categorização de muitos questionamentos na área da Psicologia Cognitiva. Nessa

perspectiva, o conhecimento requerido para a resolução de problemas chamados

³problemas dependentes de domínio´, problemas esses que costumam ser bem-definidos ou

pelo menos, parcialmente bem-definidos, como os problemas de matemática; física; entre

outros, tem sido um parâmetro para se estudar as diferenças de processamento cognitivo

entre peritos e novatos. A forma como os peritos / especialistas e os novatos / iniciantes

representam e organizam o conhecimento costuma ser a tônica de muitas pesquisas com

ênfase cognitivista (Catrambone, 2002; Novick & Bassok, 2005).

Algumas pesquisas apontaram para os efeitos diferenciados do grau de conhecimento

no desempenho de peritos e novatos em diferentes domínios (Lesgold & Lajoie, 1991;

Novick 1988; Bassok & Holyoak, 1989, citados por Cagnin, 2008). Estes estudos
apresentam evidências que sugerem uma categorização mais complexa do problema por

parte dos peritos que, por sua vez, agrupavam os problemas em termos de suas

características mais profundas, estruturais, em contraposição aos novatos, que tendiam a

agrupar problemas a partir de suas similaridades semânticas, superficiais, incluindo-se aqui

os conteúdos dos enunciados dos problemas. Todavia, outros estudos (Blessing & Ross,

1996; Ross & Warren, 2002; Bassok, 2001; 2003; Bassok, Wu & Olseth, 1995, citados por

Cagnin, 2008), especialmente nos domínios da física e da matemáticaþ demonstraram que

os conteúdos semânticos do problema em foco podiam ter uma influência mesmo na

solução de problemas por peritos, principalmente quando havia uma conexão empírica

entre os tipos de problemas e os conteúdos dos problemas. Nesse sentido, os peritos, ainda

que focalizassem com maior eficiência as estruturas profundas dos problemas em um dado

domínio, também sofreriam a influência das similaridades superficiais dos enunciados dos

problemas, tanto no processo de resolução de problemas   quanto no processo de

transferência de aprendizagem.

No que tange aos problemas bem-definidos independentes de domínio, como os

clássicos problemas dos ³Missionários e Canibais´ e o problema da ³Torre de Hanói´, da

Teoria do Espaço do Problema de Newell e Simon (1972), pode-se dizer que há evidências

empíricas de que vários aspectos do contexto do problema têm forte influência nas

representações que os indivíduos constroem, tais como o efeito do fraseado, o efeito da

interpretação semântica baseada no modo como os objetos são utilizados e o efeito do

conteúdo da história do problema.

De modo complementar, outros estudos clássicos com problemas bem-definidos

independentes de domínio como os de Jeffries, Polson, Razran e Atwood (1977), dentre


outros, também apontaram para a nítida influência dos conteúdos dos enunciados dos

problemas na sua resolução. Pode-se argumentar que esse tipo de problema, na medida em

que tem maior explicitação de suas condições, limites e estados iniciais e de meta, poderia

estar menos sujeito a este tipo de influência por ser mais ³fechado´ em suas condições.

Assim, conforme apontam as evidências dos estudos mencionados, há efeitos positivos dos

conteúdos dos enunciados na resolução desse tipo de problema, efeitos esses, não só dos

conteúdos semânticos, mas também de outras características de superfície de diferentes

naturezas.

As chamadas ³características de superfície´ de um problema referem-se àquelas

características mais periféricas como as características perceptuais; conteúdos dos

enunciados; e outras; que costumam ser vistas como tendo menor influência no processo de

resolução de problemas. Essas características são tradicionalmente vistas como estando em

contraposição às chamadas ³estruturas profundas´ do problema (por exemplo, relações,

princípios, equações, regras lógicas, etc.) as quais, por sua vez, são consideradas como

tendo uma influência direta na solução do mesmo. Contudo, apesar de uma tradicional

ênfase, dos estudos da área, nos aspectos mais estruturais e profundos dos problemas,

atualmente a importância das características de superfície tem sido focalizada, em especial,

o seu papel nos processos iniciais - representação e acesso - de resolução de problema e de

transferência analógica (Cagnin, 2008).

Nesse sentido, as similaridades de superfície como as tonalidades afetivas dos

conteúdos dos enunciados dos problemas, parecem ter um papel importante na facilitação

da representação mental inicial dos problemas e, conseqüentemente, na compreensão dos

seus argumentos e objetivos. Os estudos que apontam para a importância das similaridades
de superfície na transferência analógica costumam focalizar aspectos cognitivos destas

similaridades, em especial, a semelhança entre os conteúdos semânticos dos enunciados de

problemas análogos que evocam um contexto temático similar (Holyoak & Koh, 1987,

citado por Cagnin, 2008).

Entretanto, as tonalidades afetivas dos enunciados dos problemas poderiam ser

consideradas, como um tipo de característica de superfície especial, pois se, por um lado,

poderiam ser consideradas como característica periférica, ou seja, sem vinculação direta

com as estruturas profundas, por outro lado, o cunho afetivo dessas características parece

torná-las diferenciadas de outras características de superfície neutras.

Alguns estudos realizados no âmbito da memória têm apontado para o fato de que o

acesso aos conteúdos da memória depende não só do caráter semântico destes conteúdos, mas

especialmente do valor afetivo dos mesmos (Bower, 1981; 1992; Bower & Forgas, 2001).

Contudo, poucos estudos tem se debruçado sobre o efeito dos conteúdos valorativos nos

processos inferenciais das crianças.

Tendo em vista os estudos ainda incipientes nessa área e o anseio pelo estudo dos

entrelaçamentos e imbricações entre os processos cognitivos e os processos sociais durante

todo o transcurso da graduação em Psicologia, esta Monografia propôs-se a investigar os

efeitos, nos processos inferenciais envolvidos no raciocínio e na resolução de problemas,

dos conteúdos dos enunciados de problemas que apresentam uma valoração neutra ou

desfavorável em relação ao grupo social no qual a criança se insere ou não.

A partir desse enfoque buscou-se investigar se as crianças seriam influenciadas, de

modo diferenciado, em seu processamento da informação, pelos conteúdos dos enunciados

de problemas desfavoráveis ao grupo do qual ela fazia parte ou não. A pesquisa partiu do
pressuposto que, possivelmente, os enunciados de problemas desfavoráveis em relação ao

grupo social no qual os participantes não se incluíam poderia facilitar os processos

inferenciais desses indivíduos e vice-versa para os conteúdos desfavoráveis ao grupo em

questão.

Moreno, Sastre, Bovet e Leal (1999) alegam que os processos inferenciais são

influenciados tanto pela ação cognitiva quanto pela afetividade. Sendo assim, a afetividade

coabitaria psiquicamente em igual proveito com a cognição, e teria uma importância

considerável na organização do raciocínio humano, possibilitando-se até afirmar haver uma

interação dinâmica entre cognição e afetividade, sendo que eles ³não constituem dois

universos opostos´ (p.15).

Além disso, de acordo com Ladd (1999), a forma pela qual as crianças constroem seus

valores e representações sobre fatos cotidianos tem grande impacto sobre seu

desenvolvimento cognitivo. Nesse sentido é relevante refletir sobre o papel dos diferentes

tipos de conteúdo na cognição.

A cognição abarca os processos inferenciais, como a percepção, memória e raciocínio

por meio dos quais a criança adquire conhecimento, realiza planos e resolve problemas. A

relevância do estudo das capacidades cognitivas fundamenta-se pela influência

determinante do afeto sobre a cognição e o comportamento da criança. Assim, pode-se

afirmar que os aspectos cognitivos e as características psicossociais estão, muitas vezes,

interligadas (Sattler, 2001).

Com o intuito de compreender o papel dos diferentes tipos de conteúdos nos processos

inferenciais humanos, essa Monografia organiza-se em duas partes: a primeira consiste em

uma fundamentação teórica articulada nos três primeiros capítulos; e, a segunda parte
apresenta a parte metodológica da pesquisa de campo, apresentando os resultados obtidos, a

análise estatística dos dados e a discussão dos mesmos.

O primeiro capítulo teórico debruça-se sobre a apresentação dos conteúdos culturais,

pragmáticos e afetivos e seus respectivos papéis na cognição. Optou-se por uma subdivisão

em algumas seções mais amplas visando a uma melhor apresentação dos principais conceitos

apresentados.

Diante do fato de os conteúdos afetivos terem significativa influência nos processos

inferenciais, parecendo ter um papel importante na facilitação da representação mental

inicial dos problemas e, conseqüentemente, na compreensão dos seus argumentos e

objetivos, o capítulo dois dedica-se exclusivamente a apresentações de considerações sobre

o papel do afeto no raciocínio.

A fim de apontar para diferentes perspectivas que rompam com o dualismo afeto

cognição, o capítulo três expõe as perspectivas de três autores de relevante importância no

cenário do desenvolvimento cognitivo: Piaget, Vygotsky e Wallon. Além dessas

perspectivas, o capítulo três apresenta também algumas contribuições contemporâneas

pertinentes à relação entre afeto e cognição.

No que concerne à parte metodológica, o capítulo quatro expõe as principais hipóteses

de pesquisa, que nortearam todo o processo de coleta de dados e análise.

O capítulo cinco dedica-se a esmiuçar toda a metodologia da pesquisa, expondo as

variáveis independentes e a variável dependente do estudo. Ademais, o capítulo cinco

apresenta o perfil sócio ± demográfico dos participantes; os instrumentos aplicados aos

mesmos; o material utilizado na coleta de dados; e, o procedimento ético implementado.


O sexto capítulo consiste na apresentação dos resultados obtidos na pesquisa por meio

de uma análise estatística dos dados, onde priorizou-se o teste estatístico baseado na

Análise da Variância (ANOVA).

A partir da apresentação dos dados coletados, o capítulo sete se propõe a discutir os

resultados obtidos analisando- os sob a luz dos achados empíricos e modelos teóricos

existentes na literatura na área.

Por fim, o oitavo capítulo apresentará as Considerações Finais da Monografia,

destacando sua relevância para os contextos acadêmico e escolar, salientando as principais

teorias e modelos teóricos produzidos na área, as evidências empíricas encontradas na

pesquisa e as questões ainda não respondidas e que merecem ser investigadas

      



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Nos últimos vinte anos, o estudo do desenvolvimento cognitivo em crianças tem sido

contemplado em três fases: a primeira foca os processos intelectuais individuais, ou seja, o

contexto interpessoal; a segunda, proveniente de uma transição da cognição fria (³ 

 para a cognição quente (³ , chama a atenção para o fato de que

os processos cognitivos são socialmente situados; e, por fim, uma terceira perspectiva, mais

contemporânea, postula que a cognição é tipicamente situada em uma interação entre o

contexto social e o contexto físico, sendo raramente descontextualizada (Light &

Butterworth, 1993).

Light e Butterworth (1993) apontam que a tendência atual é a favor de uma análise

situada em que a competência cognitiva é definida em função do contexto e dos tipos de

conteúdos das estruturas de conhecimento. Neste sentido, é importante analisar o papel dos

diferentes tipos de conteúdos nos processos inferenciais humanos.

2.1-O Papel dos Conteúdos Culturais nos Processos Inferenciais Humanos

A definição de contexto, muitas vezes, fica implícita na teoria do desenvolvimento.

No entanto, uma abordagem de bom senso pode se concentrar sobre o ambiente físico,

social ou cultural de uma determinada tarefa intelectual. Além disso, o que se entende por

contexto, muitas vezes, permanece não analisado.

É possível, contudo, proceder a uma série de definições, das mais gerais as mais

específicas, em uma tentativa de estabelecer o que os diferentes teóricos podem realizar em

comum (Light & Butterworth, 1993).


Cole e Cole (1989) salientam a importância de um contexto cultural do

desenvolvimento. Esses autores apontam que nessa perspectiva enfatiza-se que o

conhecimento é ³tecido junto ao outro´, ³unido´, ³composto´ com o outro. Assim, o

contexto pode ser definido como uma rede que dá sentido às partes.

As variações no contexto cultural podem desencadear diferentes comportamentos.

Cole e Cole (1989) frisam o modo como os diferentes contextos culturais, em diferentes

sociedades, geram 


 diferentes. Ou seja, a transmissão da cultura, através da

linguagem e de outros artefatos gera diferentes guias para a ação. Estes são conhecidos

como esquemas de ação pragmática que influenciam no raciocínio.

Esses autores descrevem de várias formas como a cultura pode influenciar no

desenvolvimento cognitivo da criança, sugerindo que as culturas influenciam no

desenvolvimento, organizando a ocorrência de contextos específicos. A freqüência relativa

com que determinados contextos são encontrados promoverá diferentes habilidades, tais

como: a prática do esqui nos países em que há neve; ou, até mesmo, o desenvolvimento do

artesanato e de sociedades de subsistência simples em locais em que há matéria prima

adequada para tais atividades. Estas atividades, culturalmente específicas, podem ser

associadas com outros contextos e com responsabilidades diferentes, tais como a venda de

produtos, o que irá promover outros tipos de habilidades numéricas culturalmente

específicas.

Goodnow e Warton (1993) discutem que os contextos podem coexistir de forma que

as pessoas podem participar simultaneamente em vários modos culturais de conhecer. Por

exemplo, as crianças podem ser hábeis em matemática nas ruas e elas também podem

precisar dos conhecimentos matemáticos na escola. Não só a matemática, mas também a


botânica, a biologia, a física a medicina e outras formas de saber são praticadas em

situações do cotidiano.

Uma pesquisa interessante realizada por Carraher e Schliemann (1982), apresentada no

livro ³Na vida Dez, na Escola Zero´, expressa bem o papel dos conteúdos e contextos

culturais no raciocínio das crianças. Esses autores buscaram investigar a possibilidade de

que a competência matemática das crianças pobres não fosse observada na escola, apesar de

ela poder ser constatada na vida cotidiana. O estudo foi planejado visando apenas constatar

as diferenças entre a competência matemática de crianças pobres quando estas eram

examinadas na escola e fora do ambiente escolar. É relevante ressaltar que esses

pesquisadores tiveram o cuidado metodológico para que os mesmos números fossem

utilizados com cada criança para os problemas matemáticos que elas deviam resolver a fim

de que a dificuldade formal não diferisse entre as condições.

Os resultados obtidos nesse estudo mostraram que as crianças pobres que resolviam

corretamente problemas matemáticos em 98% dos casos fora da escola, não conseguiam

reslver mais do que 37% de continhas apresentadas no estilo escolar, embora essas

envolvessem os mesmos números que tinham surgido nos problemas resolvidos fora da

escola. Esses achados evidenciam que os diferentes contextos e a forma como os

conteúdos se apresentam nas tarefas parecem influir nos processos inferenciais humanos.

Nesse viés, é importante sustentar uma perspectiva pluralista sobre os efeitos

contextuais no raciocínio e na resolução de problemas. Assim, é possível ter uma

compreensão ampla de que a aproximação, por exemplo, seja um método suficientemente

preciso de raciocínio, como quando os cozinheiros resolvem os problemas das quantidades

em panificação usando aproximação grosseira, e não por medida exata das proporções. O

contexto adequado pode vir acompanhado de uma estratégia adequada.


Cole e Cole (1989) argumentam que o raciocínio geralmente vem acompanhado de um

regime adequado, ou regra contextual derivada da experiência, em que ocorrem

regularmente configurações. Estes esquemas de raciocínio pragmático podem ser abstraídos

do cotidiano, das experiências sociais.

O raciocínio cotidiano, geralmente, é baseado em tipos de conhecimentos culturais

específicos, cuja representação é evocada pelo contexto apropriado. Nesta perspectiva, o

contexto e o conteúdo são inseparáveis do processo de raciocínio.

Enquanto o contexto tende, mais freqüentemente, a ser definido em termos de

localização cultural e social, a cultura é mais facilmente transmitida através da linguagem.

Já o contexto lingüístico refere-se a todo o conjunto de características externas relevantes

para a análise de um enunciado. Contudo, o contexto cultural transmitido através da

linguagem expressa-se dentro de um determinado conjunto de circunstâncias físicas (Cole

& Cole, 1989).

Roazzi e Bryant (1993) apontam que a identificação da percepção de uma situação

particular, pelos diferentes participantes depende da identificação do seu quadro referencial.

Sendo assim, mesmo quando as tarefas têm conteúdo idêntico, as diferenças nos processos

de comunicação referencial podem ocorrer. A linguagem, sob a ótica do desenvolvimento,

marca a realização de outro nível cognitivo, e refere-se aos objetos que existem no espaço,

comuns tanto para o falante quanto para o ouvinte. O campo perceptivo pode ter prioridade

no processo de desenvolvimento e na comunicação referencial, e pode ser o primeiro

determinante contextual em que outros contextos são fundados.

A interpenetração da linguagem, percepção, pensamento e cultura, quando visto na

perspectiva do desenvolvimento e numa perspectiva pluralista, pode fornecer uma

explicação para muitos dos fenômenos da cognição situada.


No que tange ao raciocínio, as evidências de diferentes estudos (Kahneman & Tversky,

1972; Tversky & Kahneman, 1983; Johnson-Laird, 1991, D¶Andrade, 1991, Cheng &

Holyoak, 1985) sugerem que os diferentes tipos de conteúdos podem influenciar de modo

significativo como as pessoas raciocinam, sendo o raciocínio facilitado, por exemplo,

quando a tarefa envolvia conteúdos mais familiares.

Cagnin (2008) sustenta que alguns trabalhos no âmbito do raciocínio hipotético-

dedutivo, que priorizam o papel da representação mental ou do modelo mental, como na

acepção de Johnson-Laird (1991), têm demonstrado que os conteúdos das proposições

podem afetar de modo significativo a maneira como as pessoas raciocinam (Jonhson-Laird,

1991; D¶Andrade, 1991).

Girotto e Light (1993) postularam que o desempenho em tarefas de raciocínio

hipotético-dedutivo pode ser muito pobre quando os conteúdos das premissas são formais

ou muito afastados da experiência do dia a dia dos indivíduos.

Para Johnson-Laird (1991), os indivíduos raciocinam utilizando modelos mentais, ao

invés de sistemas lógicos. Também a essas conclusões chegaram outros autores, como

Kahneman e Tversky (1972) em suas pesquisas sobre probabilidade. D¶Andrade (1991),

alega que muito do raciocínio que as pessoas realizam depende de modelos culturais e esses

modelos culturais seriam mais do que apenas um tipo de ³pacote´ de informações sobre o

mundo.

Nesse sentido, Piaget, ao logo de sua obra, também propõe que as variáveis de

contexto e de conteúdo precisam ser consideradas como variáveis ³moderadoras´ que

afetariam o acesso à competência lógica subjacente, quando as competências lógicas já

tivessem sido construídas.


Em suma, pode-se concluir que, diferentes evidências empíricas na esfera do

raciocínio vêm apontando para o efeito positivo da proximidade dos conteúdos dos

enunciados dos problemas com as experiências concretas dos indivíduos e,

consequentemente, para uma maior dificuldade no desempenho de tarefas que envolvem o

raciocínio em uma situação-problema mais ³abstrata´ e mais formal do ponto de vista

lógico. Aspectos relacionados às trocas sociais e à cooperação entre indivíduos frente a

tarefas que envolvem a aplicação de regras de permissão/ proibição também parecem se

somar aos aspectos do conteúdo pragmático, a ser abordado na próxima sessão, o que

parece tornar o raciocínio humano ainda mais dinâmico e mais dependente do contexto e do

conteúdo cultural.

2.2-O Papel dos Conteúdos Pragmáticos nos Processos Inferenciais Humanos

O'Brien, Dias, Roazzi e Braine (1998), sugerem que os processos de raciocínio podem

ser descritos como aplicações de esquemas de inferência e propõem uma distinção entre

conteúdos pragmáticos e analíticos (ou formais). O conteúdo pragmático envolve o uso do

conhecimento do mundo real para interpretar e processar as premissas usadas como base

para o raciocínio. O conteúdo analítico, por sua vez, supõe uma habilidade para raciocinar

com premissas independentemente de sua base empírica.

Para Braine e O'Brien (1998), o conteúdo pragmático se refere à compreensão como um

todo, uma vez que o programa de raciocínio aplica os esquemas de inferência às

informações compreendidas pelas pessoas.


Esses autores apresentam três princípios gerais para influência dos conteúdos

pragmáticos na compreensão. O primeiro se refere à influência do conteúdo na forma como

as proposições são construídas. Tem sido amplamente reconhecido na literatura (Byrne,

Espino & Santamaria, 1999; Dias, 1996) que as pessoas se baseiam em seu conhecimento

prévio para dar sentido à situação atual. Assim, interpretações que lhes parecem plausíveis,

coerentes com sua visão de mundo, são mais provavelmente construídas do que outras que

parecem pouco plausíveis. Desse modo, as pessoas podem, diante de tarefas lógicas, estar

se baseando em premissas diferentes daquelas propostas pelo experimentador, se elas lhes

parecerem pouco plausíveis.

O segundo princípio se refere à lógica da conversação formulada por Grice (1961,

citado por Gouveia, Roazzi, Moutinho, Dias & O¶Brien, 2002). De acordo com este autor,

há uma diferenciação entre o significado literal de um enunciado e o sentido intencional do

falante ao enunciá-lo. Ele argumenta que o sentido do que o interlocutor diz deve ser

interpretado levando em conta tanto o que o enunciado significa independentemente de sua

situação de uso quanto à situação em que é dito.

Gouveia et.al. (2002, p. 222) afirmam que, segundo Grice, ³a conversação é regida

pelo Princípio da Cooperação que informa ao falante para fazer sua contribuição

conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo propósito ou pela

direção do intercâmbio conversacional em que ele está engajado´. No interior desse

princípio, funciona um conjunto de regras denominadas de Máximas Conversacionais, que

são as seguintes: faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto requerida para

o propósito corrente da conversação. E, faça com que ela não seja nem menos nem mais

informativa do que requerida; não diga o que acredita ser falso; seja relevante e claro.
Desse modo, tendo em vista que a conversação é regida pelo Princípio de Cooperação

e pelas Máximas, o ouvinte procura dar um sentido ao enunciado que esteja de acordo com

essas implicações conversacionais. Para isso, as pessoas acreditam que seus interlocutores

estão sendo o mais informativo, verdadeiro, relevante e claro que conseguem. Esta crença

interfere na compreensão, pois permite que muitas inferências desnecessárias sejam feitas.

É possível que o falante não tenha certeza se os componentes da proposição são verdadeiros

ou não. Essa incerteza é desconsiderada pelo ouvinte. Diante das tarefas lógicas, as pessoas

podem assumir as informações disponibilizadas no problema como verdadeiras e relevantes

para a resolução da tarefa, sem se preocupar em verificá-las e, por conseguinte, partindo de

premissas incorretas postularem conclusões erradas.

Gouveia et.al. (2002) destacam que apesar de o significado das partículas lógicas ser

fornecido pelos seus esquemas de inferência básicos, ele pode ser ampliado pelas

inferências convidadas, que dizem respeito ao terceiro princípio. Especificamente com

relação às sentenças condicionais, Geis e Zwicky (1971, citados por Gouveia et.al., 2002)

constataram que a sentença na forma "se p então q" convida à inferência "Se não p então

não q".

Sendo assim, a descrição na cláusula conseqüente só ocorrerá se a descrição da

cláusula antecedente ocorrer. Gouveia et.al. (2002) alegam que esse princípio

interpretativo faz a conexão entre a forma lingüística da sentença condicional e a tendência

de funcionamento da mente humana de transformar o condicional em bicondicional. As

pessoas fazem pragmaticamente estas inferências convidadas a menos que tenham motivo

para acreditar que não são apropriadas.

Para Cheng e Holyoak (1985), as pessoas são capazes de raciocinar corretamente a

respeito de assuntos concretos, realísticos ou temáticos por meio de estruturas de


conhecimento abstratas aprendidas indutivamente, tais como "permissão" e "obrigação".

Essas estruturas são denominadas esquemas de raciocínio pragmáticos, e consistem em

conjuntos de regras generalizadas e dependentes do contexto que, diferentemente de regras

puramente sintáticas, são definidas em termos de classes de objetivos (tais como realizar

uma ação desejada) e relações entre esses objetivos (cumprir um pré-requisito e poder

realizar a ação desejada). Esses autores defendem que as pessoas, ao raciocinar, utilizam

exclusivamente esquemas de raciocínio pragmáticos.

Os trabalhos de Cheng, Holyoak, Nisbett e Oliver (1986) complementaram, com a sua

proposta da existência de esquemas pragmáticos de raciocínio, as abordagens teóricas

prevalentes sobre o raciocínio dedutivo, uma delas com ênfase nas regras lógicas

independentes de domínio e a outra, com ênfase no papel do conhecimento de domínio

especifico. Através de evidências empíricas utilizando também a tarefa de Wason e

problemas análogos, esses autores apontaram para a dificuldade da transferência quando os

indivíduos eram inicialmente treinados com o uso de regras abstratas e depois tinham que

resolver problemas concretos que demandavam a aplicação de regras condicionais de

raciocínio. O treinamento do uso de regras condicionais de raciocínio só melhorou o

desempenho na situação-problema ³alvo´ quando, junto com as regras e princípios mais

abstratos, eram apresentados exemplos concretos que contextualizavam as tarefas. De modo

complementar, quando havia um breve treinamento para a construção de um esquema

pragmático de raciocínio, o desempenho dos indivíduos na resolução de problemas

concretos era bastante facilitado.

Nesse sentido, Stenning e Van Lambalgen (2004, citados por Cagnin, 2008), utilizando

também a tarefa de Wason, trouxeram achados que corroboraram a idéia inicial de Cheng
et.al. (1986) de que o raciocínio humano é especialmente sensível ao tipo de tarefa

apresentada, ao contexto, bem como aos conteúdos envolvidos na tarefa.

Ainda no que tange ao conteúdo pragmático, algumas pesquisas têm constatado que

crianças conseguem, em determinadas situações, apresentar raciocínio correto e

justificativas teóricas para suas respostas. Dias e Harris (1988) destacam a importância do

contexto no qual um silogismo, por exemplo, é apresentado para resolução por crianças de

4 e 5 anos de idade. Os resultados apontam que as crianças não só foram capazes de

resolver os silogismos com conteúdo contrário ao seu conhecimento empírico como

forneceram justificativas teóricas para sua resposta quando os mesmos eram apresentados

em situação de faz-de-conta. Contudo, diante do mesmo silogismo apresentado em

situações que não envolviam contexto de fantasia, as crianças falhavam na sua resolução e

tendiam a dar justificativas empíricas para as suas respostas.

Esses resultados chamam a atenção para o fato de que as crianças parecem interpretar a

tarefa do silogismo apresentado em situações que não envolviam contexto de fantasia,

como um teste de conhecimentos similar aos que ocorrem nas escolas. Assim, não faria

qualquer sentido chegar a uma conclusão cujo conteúdo é sabidamente contrário ao do

mundo empírico. Por outro lado, a situação de fantasia abre a possibilidade de se considerar

a existência de mundos alternativos em que as coisas não têm que ser exatamente iguais às

do mundo físico. Neste contexto, as conclusões contrárias ao seu conhecimento de mundo

são aceitáveis.

Em conjunto, esses estudos indicam que adultos e crianças parecem ter a capacidade

de resolver silogismos lógicos de forma apropriada. Entretanto, seus erros decorrem da

interpretação da tarefa de forma diferente daquela esperada pelo pesquisador. Ou seja, são

devidos aos processos pragmáticos de compreensão. É importante considerar então que o


raciocínio não ocorre no "vazio", e sim inserido em um contexto, onde as influências

pragmáticas se fazem presentes (Gouveia, Roazzi, O¶Brien, Moutinho & Dias, 2003).

Desse modo, para compreender como as pessoas raciocinam cotidianamente com e a

partir de sentenças condicionais é necessário considerar não só os aspectos lógicos do

raciocínio, mas também a influência do contexto e do conteúdo no qual as sentenças estão

sendo produzidas e interpretadas, o conhecimento de mundo das pessoas

Estudos direcionados para o raciocínio dedutivo em crianças (Light, Blaye, Gilly &

Girotto, 1989; e, Light, Girotto & Legrenzi, 1990; citados por Cagnin, 2008), também

apontaram para a importância da contextualização e da inteligibilidade da tarefa para o

sucesso no desempenho das crianças. O primeiro estudo empírico (1989) com crianças de 6

a 8 anos, e o segundo estudo empírico (1990), com crianças de 12 anos, destacaram que o

desempenho em tarefas de seleção que demandavam a aplicação de regras de permissão e

de proibição parece ter sido facilitado pela mediação de esquemas pragmáticos de

raciocínio.

Girotto e Light (1993), por sua vez, reforçaram a ênfase nos esquemas pragmáticos de

raciocínio e no papel do contexto como fator moderador da competência formal ao longo

do desenvolvimento humano. Para esses autores, a mediação do contexto é ³sempre´

requerida para a expressão da competência formal, o que realça ainda mais a importância

dos efeitos de contexto, não só ao longo do desenvolvimento cognitivo, mas também na

cognição adulta.

Outros estudos, como os de Dias (1988; 2000) e de Dias e Harris (1996), com crianças;

e de Dias, Roazzi e Harris (2005), com adultos não alfabetizados e adultos com baixa

escolaridade, também destacaram a importância dos conteúdos pragmáticos em tarefas que

envolviam silogismos e a compreensão de textos lidos em voz alta. Seus achados


apontaram para os efeitos da familiaridade dos conteúdos dos argumentos lógicos no

desempenho dos indivíduos. No entanto, em indivíduos adultos com baixa ou nenhuma

escolaridade, assim como acontece com crianças pequenas ainda não alfabetizadas, haveria

a preservação de uma competência lógica que independe da escolarização. E, nesse

contexto, a presença de instruções adequadas favorecia o raciocínio lógico que lidava com

premissas não familiares, algumas delas em contradição com o conhecimento empírico

cotidiano dos indivíduos.

Em uma perspectiva evolucionista, Cosmides (1989, citada por Cagnin, 2008) destaca

a importância das trocas sociais no raciocínio, ou seja, da cooperação entre indivíduos na

resolução de problemas adaptativos que surgiram no processo da evolução da espécie

humana. Para essa autora, a mente humana possui processos cognitivos mais especializados

para raciocinar sobre as trocas sociais. Utilizando também a tarefa de seleção de Wason,

essa autora creditou à sua teoria do contrato social, teoria essa que enfatiza os custos e

benefícios envolvidos nessas trocas, os diferentes efeitos de conteúdo encontrados no

raciocínio.

Assim, Cosmides (1989, citada por Cagnin, 2008), em contraste à perspectiva dos

esquemas pragmáticos de raciocínio de Cheng et.al. (1986), sugeriu que os efeitos de

conteúdo que influenciariam as regras de produção envolvidas na tarefa de Wason

dependeriam, principalmente, da relação custo/ benefício do tipo ³se você usufrui o

benefício, então pague o custo´, o que a autora também chamou de ³teoria do contrato

social´.

Nesse contexto, sua versão da tarefa de Wason envolveria uma troca social entre duas

pessoas, onde a relação custo/ benefício que cada pessoa arcaria seria avaliada, bem como a

violação das regras e a detecção de possíveis ³trapaceiros´ que pretendessem usufruir dos
benefícios sem pagar os custosONa concepção dessa autora, a boa competência humana na

detecção de ³trapaças´, em tarefas que envolvem relações sociais, seria facilitada por

³algoritmos de contrato social´ da mente humana, algoritmos esses de origem evolutiva

(Cagnin, 2008).

Autores como Sperber e Girotto (2002, citados por Cagnin, 2008), que defendiam uma

abordagem com ênfase nos esquemas pragmáticos de raciocínio, criticaram ferrenhamente

os estudos de Cosmides (1989), alegando que a tarefa de Wason utilizada para validar a sua

teoria baseada nas trocas sociais não foi manejada de modo adequado, pois a utilizaram

como uma tarefa de categorização e não como uma tarefa de raciocínio dedutivo.

Com o intuito de aplacar as críticas entre as teorias dos esquemas pragmáticos de

raciocínio e a teoria do contrato social, autores como Wagner-Egger (2001, citado por

Cagnin, 2008), propuseram uma compatibilidade e uma síntese dessas duas teorias.

Wagner-Egger (2001, citado por Cagnin, 2008) considerou ambas as teorias

complementares e não excludentes, utilizando em seus estudos, princípios de ambas as

teorias e, através de evidências empíricas, sugeriu que o desempenho nas tarefas de

raciocínio era afetado tanto pelos esquemas pragmáticos quanto pelos aspectos utilitários

(relação custo/ benefício) envolvidos nas tarefas.

Em suma, é relevante considerar que o raciocínio humano é dependente dos diferentes

tipos de conteúdo (Cheng & Holyoak, 1985), e que o conteúdo pragmático tem uma

influência significativa, como visto nos estudos, nesse processo.

2.3-O Papel dos Conteúdos Afetivos nos Processos Inferenciais Humanos


Segundo Fredrickson (2001), há uma variação na definição ³operacional´ de conceitos

como ³emoção´ e ³afeto´ na literatura científica. Nos muitos debates decorrentes dessa

conceituação, estabeleceu-se um certo consenso de que as emoções poderiam ser

consideradas como uma ampla classe de fenômenos afetivos. Para essa autora, o conceito

de afeto poderia ser visto como um conceito mais geral, o continente mais amplo que inclui

as emoções, os sentimentos, as atitudes, os humores e toda ordem de sensações físicas,

endócrinas e neurais correlacionadas.

Por outro lado, a concepção de afeto no senso comum, enfatiza os sentimentos, tais

como: a amizade; a simpatia; e, a afeição por algo ou por alguém como formas de afeto.

Nessa perspectiva, observa-se, no senso comum, uma priorização dos sentimentos como

sinônimo de afeto, em especial, os sentimentos dirigidos às pessoas (Cagnin, 2008).

Para Dai e Sternberg (2004) a palavra afeto seria mais indicada para definir estados

afetivos mais difusos, nem sempre acompanhados por uma alteração nítida no sistema

nervoso autônomo, como os estados de humor. Nessa perspectiva, apesar de se referir a

estados subjetivos que nem sempre possuem um referente bem definido, o termo afeto

parece carrear um ³tom´ avaliativo que se expressa através de uma valência positiva ou

negativa, valência essa que qualifica o estado subjetivo de modo mais amplo. A palavra

emoção, por sua vez, seria mais indicada para definir estados afetivos acompanhados por

uma alteração visceral e autonômica precisa e identificável. Assim, o termo afeto seria mais

apropriado para qualificar estados subjetivos menos definidos em sua origem e intensidade

e o termo emoção seria mais apropriado para qualificar estados subjetivos mais

diferenciados em sua origem, intensidade e duração temporal, como, por exemplo, as

emoções medo e raiva.


Damásio (2004) propõe um modelo hierárquico das emoções, onde emoções mais

indefinidas, difusas, as chamadas emoções de fundo, serviriam de ³base´ para as chamadas

³emoções primárias´, ou seja, emoções de origem inata, como o medo e a raiva, que, por

sua vez, seriam seguidas por emoções secundárias ou sociais, como a empatia. Nesta

concepção, o termo afeto poderia ser usado como sinônimo de emoção e de humor, embora

possa ter uma conotação mais genérica, ou seja, possa se referir às emoções, aos estados de

humor e aos sentimentos como um todo. Sendo assim, tudo que um indivíduo sente ou

manifesta em relação a outro indivíduo, a um objeto ou a uma situação poderia ser

considerado como uma forma de ³afeto´.

Diante desses apontamentos, percebe-se que parece não haver na literatura um

consenso absoluto na definição do termo afeto. E, por mais que as emoções e os estados

afetivos sejam considerados ³afetos´, eles podem ser diferenciados entre si em, pelo menos,

três dimensões: em termos de sua intensidade, de sua especificidade e pelo fato de serem ou

não estados difusos, imprecisos. Nesse sentido, é importante discriminar dois tipos de

dimensões afetivas: a primeira, relativa ao sujeito, ou seja, a dimensão afetiva que envolve

as emoções, os sentimentos e os estados de humor; e, a segunda relativa à dimensão afetiva

do estímulo/ tarefa.

Com relação á dimensão afetiva que envolve as emoções, os sentimentos e os estados

de humor, cabe ressaltar a relevância do Modelo de Bower. Este foi um dos primeiros

modelos que tentaram articular o afeto e a memória na Psicologia Cognitiva. Bower (1981)

destacou o fato de que as emoções poderiam ser consideradas como um ³contexto interno´,

contexto este que teria um papel de extrema importância no registro e na recuperação de

informações.
Bower (1981) salientou que o afeto e a memória poderiam ser articulados em um

sistema representacional cognitivo integrado. Para tanto, propôs um modelo de rede

associativa, destacando, em especial, os nodos cognitivos subjacentes a situações afetivas

onde há uma congruência de humor entre o momento de codificação e de registro de

informações e o momento de recuperação. Este autor destacou o fato de que a recuperação

de informações é dependente de dois tipos de fatores: o primeiro aponta para o fato de que

dois estados de humor semelhantes (no passado e no presente) favorecem a lembrança de

uma dada informação (neutra, no caso), ou seja, quando se aprende algo em um dado estado

de humor, esta informação será melhor recuperada quando se está no mesmo estado de

humor daquele do momento do aprendizado; e, também quando um indivíduo está em um

dado estado de humor (negativo ou positivo), ele tende a lembrar de informações e

vivências de mesma tonalidade afetiva do estado do humor, isto é, se alguém está triste em

um dado momento, tende a recuperar melhor vivências tristes do passado e não alegres (e

vice-versa).

De acordo com o modelo de rede de Bower as informações mais congruentes com o

estado atual de humor do indivíduo tornam-se mais salientes, ou seja, mais ativadas na

rede, o que leva a uma maior atenção e a um processamento mais profundo desta

informação. Por exemplo, um indivíduo em um estado de humor alegre tende a recuperar,

de modo preferencial, informações que possuam uma tonalidade também alegre,

compatíveis com seu estado atual de humor. Já um indivíduo em um estado de humor triste

ou em um estado de depressão tende, por sua vez, a recuperar informações com a mesma

tonalidade de seu estado afetivo (Cagnin, 2008).

Bower (1981) verificou o efeito de congruência emocional num estudo em que

apresentaram a uma amostra de sujeitos, previamente hipnotizados a sentirem-se alegres ou


deprimidos, a história do André, um personagem alegre e satisfeito da vida e a do Jack, um

personagem deprimido e falhado. Os resultados obtidos indicaram que os sujeitos evocaram

mais elementos informativos da história lida com que tinham maior correspondência

emocional.

Pinto (1998) ressalta que um outro tipo de implicação do modelo de Bower pode ser

vista quando a recuperação de determinadas palavras, imagens ou eventos frente a um

humor positivo é maior quando essas palavras, imagens ou eventos estão associados a um

humor também positivo no passado. Assim, as informações associadas a um humor

negativo no passado seriam mais recuperadas no presente quando o humor também fosse

negativo. Contudo, Cagnin (2008) chama a atenção para a observação que Clark e Teasdale

(1985) fizeram. Para esses autores os indivíduos variam entre si no que diz respeito às

palavras, imagens e eventos que estão associados com seus humores no passado. Desse

modo, o modelo de rede associativa da memória e do humor precisa levar em consideração

que os efeitos diferenciados do humor na recuperação de informações positivas e negativas

podem variar muito entre os indivíduos e entre os tipos de informações armazenadas pelos

mesmos.

A partir dessas informações, é possível apontar para dois tipos de efeitos do estado de

humor na memória: o primeiro se refere ao chamado efeito de ³congruência de humor´ e o

segundo se refere ao efeito de recuperação ³dependente do estado de humor´. O chamado

efeito de ³congruência de humor´ prediz que as pessoas tendem a reter mais e a recuperar

melhor eventos que tenham uma correspondência com a valência do seu estado atual de

humor. Já o chamado efeito de recuperação ³dependente do estado de humor´ prediz que as

pessoas tendem a recuperar melhor determinados eventos quando elas estão em um estado
de humor equivalente àquele em que estavam no momento da codificação e do

armazenamento.

Percebe-se que o efeito da ³congruência de humor´ implica que algumas informações,

em função de seus conteúdos positivos, neutros ou negativos, ou seja, de sua valência, são

mais facilmente recuperadas quando o indivíduo está em um estado de humor congruente

com estes conteúdos. Já o efeito da ³dependência do estado de humor´ implica que aquilo

que se recupera na memória durante um estado de humor é determinado, em parte, por

aquilo que foi aprendido ou focalizado quando se estava em um estado de humor

semelhante, sendo a valência afetiva da informação irrelevante nesse caso (Cagnin,

2008).

O modelo de Bower também propôs que o processo de evocação da emoção envolveria

um conjunto de regras de produção que avaliariam e reconheceriam as situações

particulares que demandariam diferentes respostas emocionais. Os conteúdos específicos

dessas regras de produção e os mecanismos envolvidos na avaliação da emoção têm sido

objeto de pesquisas contemporâneas como as de Smith e Kirby (2001) que objetivaram

explicitar os antecedentes das emoções e as diferentes funções das emoções na chamada

³cognição social´. Para esses últimos autores, os modelos de redes associativas parecem

prover a mais promissora integração entre as pesquisas que se preocupam com os

antecedentes cognitivos do afeto e as pesquisas que se preocupam com suas conseqüências

cognitivas.

Para Cagnin (2008) o modelo de rede associativa de Bower (1981; 1992) e de Bower e

colaboradores (Bower & Cohen, 1982; Bower & Forgas, 2001) apresenta características de

um modelo de memória ³híbrido´, como muitos modelos relacionados à transferência


analógica costumam ser, pois conjuga o   das redes neurais dos modelos

conexionistas com o uso de regras de produção típicas dos modelos seriais/ simbólicos.

Quanto á dimensão afetiva referente ao estímulo/ tarefa, observa-se que as pesquisas na

área, em geral, procuram alterar o humor dos participantes através da manipulação de

estímulos (positivos e negativos). No entanto, nem sempre, estes estímulos são suficientes

para provocar uma alteração do humor.

O estudo de Hesse, Kauer e Spies (1997), por exemplo, avaliou a equivalência de

tonalidades afetivas de histórias. Para avaliar os efeitos do humor, os sujeitos foram

divididos em três subgrupos, de acordo com as variações de humor por eles apresentadas.

Esses autores utilizaram uma escala correlata de auto-avaliação do humor. Os sujeitos que

apresentaram um aumento de mais de 10 pontos na escala utilizada foram classificados

como tendo exibido variação positiva de humor. Já os sujeitos que apresentaram uma

diminuição de mais de 10 pontos na escala foram classificados como tendo exibido

variação negativa de humor.

Hesse et.al. (1997) constataram que os sujeitos com um aumento ou uma diminuição de

10 pontos ou menos na escala podiam ser considerados como não tendo apresentado

variação de humor, assim como os sujeitos que não exibiram nenhuma diferença de pontos

na escala. Os resultados desse experimento apontam para o fato de que a conotação afetiva

de um problema assim como o estado afetivo do solucionador poderiam influenciar o tipo

de informação que se torna acessível na memória, informação esta que pode servir como


para a escolha de estratégias para a resolução de problemas análogos.

Nesse ponto, a pesquisa de Cagnin (2008), que segue os mesmos parâmetros da

pesquisa de Hesse et.al. (1997), procurou estudar, de modo mais específico, o efeito sobre a

transferência analógica da similaridade entre as tonalidades afetivas agradáveis/alegres e


desagradáveis/ tristes de histórias, que apresentam problemas análogos ao problema da

radiação de Duncker. Esses efeitos são, por sua vez, investigados a partir da preferência, na

situação-problema ³alvo´, por um modo de solução aprendido na situação-problema

³fonte´, quando vários modos de solução são apresentados aos participantes da pesquisa.

Cagnin (2008) objetivou investigar esse tipo de influência em dois intervalos de tempo

distintos: em sessões consecutivas e em sessões com intervalo de uma semana. Os

resultados encontrados apontam para a existência de efeitos positivos dessas similaridades

nos dois intervalos de tempo pesquisados, com maior freqüência relativa nas sessões

consecutivas. Desse modo, pode-se concluir que, quando há mais de uma solução

disponível e funcionalmente adequada para um determinado problema, similaridades de

superfície, como as tonalidades afetivas de histórias de problemas, influenciam a

preferência por um modo de solução.

Verificou-se ainda que esse tipo de influência das similaridades afetivas não depende

de uma alteração do estado de humor dos indivíduos. Para Cagnin (2008) o papel do afeto

na cognição poderia ser assim visto como mais abrangente do que o pressuposto na

literatura da área, pois mesmo quando os indivíduos não se consideram afetados em seu

humor pela leitura de histórias tristes e alegres, eles demonstram sofrer a influência das

tonalidades afetivas dessas histórias.

Essa autora destaca que tanto o estado de humor do solucionador quanto a tonalidade

afetiva do problema poderiam servir como


 para a escolha de um modo de solução,

quando há a possibilidade de escolha entre duas soluções igualmente legítimas. Esses

apontamentos dão margem para a hipótese de que esses dois tipos de


 de naturezas

independentes possam vir a interagir entre si.


A partir dessas considerações é possível afirmar que na contemporaneidade, muitos

estudos (Schwarz & Skurnik, 2003; Pinto, 2004; Cagnin, 2008) tem se debruçado sobre a

influência do afeto e de suas múltiplas manifestações em praticamente todos os aspectos da

vida mental humana. Portanto, a compreensão do papel do afeto na memória, no raciocínio,

nos julgamentos e tomadas de decisão e em outros processos cognitivos torna-se

indispensável.

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Raciocinar e sentir são ações indissociáveis. Para respaldar tal afirmativa faz-se

necessário estabelecer algumas reflexões acerca do papel da afetividade no funcionamento

cognitivo, em especial, no raciocínio.

De acordo com Arantes (2003), os conhecimentos cognitivos e afetivos não podem ser

contemplados de forma dissociada, pois, sendo assim, seria credenciada uma postura

centrada na justaposição dicotômica entre cognição e afetividade, embasada no princípio de

que a razão e as emoções constituem dois aspectos diferenciados no raciocínio humano.

Para esta autora duas razões contribuem para a crença em uma intrínseca relação entre os

processos cognitivos e afetivos no funcionamento psíquico humano.

A primeira razão é de cunho psicológico. Arantes (2003) postula que o ser humano, na

contemporaneidade, não corre o risco de ser interpretado a partir de crenças arraigadas em

sua cultura, que consideram a inteligência e a afetividade dicotômicos e separados, no

processo de construção do conhecimento. Pelo contrário, acredita-se que o conhecimento

dos sentimentos e das emoções requer ações cognitivas, da mesma forma que tais ações

cognitivas pressupõem a presença de aspectos afetivos.

Em decorrência desse primeiro aspecto, debruçando-se sobre o campo educacional,

aparece uma segunda razão que leva ao rechaçamento da divisão histórica e culturalmente

estabelecida entre os "saberes racionais" e os "saberes emocionais". Entende-se que se os

aspectos afetivos e cognitivos da personalidade não constituem universos opostos, não há

nada que justifique a idéia de que existem saberes essencialmente ou prioritariamente

vinculados à racionalidade ou à sensibilidade. Sendo assim, essa indissociação entre


raciocinar e sentir permite integrar nas explicações sobre o raciocínio humano as vertentes

racional e emotiva dos conceitos e fatos construídos (Arantes, 2003).

Nessa perspectiva, tendo em vista o objetivo principal deste trabalho de refletir acerca

do impacto dos conteúdos valorativos no raciocínio das crianças, é relevante considerar

que não há uma aprendizagem meramente cognitiva ou racional, pois os alunos não deixam

os aspectos afetivos que compõem suas experiências do lado de fora da sala de aula,

quando estão interagindo com os objetos de conhecimento, ou não deixam "latentes" seus

sentimentos, afetos e relações interpessoais enquanto raciocinam.

Para compreender melhor a imbricação entre afeto e cognição e, consequentemente, o

papel do afeto no raciocínio, torna-se indispensável considerar a trajetória dos estudos já

realizados e os atravessamentos dessas duas vertentes indissociáveis.

Em um viés histórico, Cagnin (2008) destaca que a tradição platônica e, especialmente,

o dualismo cartesiano mente / corpo de Descartes inspiraram muitas abordagens

psicológicas do passado, especialmente no que concerne à relação entre o afeto e a

cognição. A famosa afirmação de Descartes na história da filosofia - "Penso, logo existo"-,

apontou para uma possibilidade de separação entre razão e emoção e, de certo modo,

consolidou implicitamente uma hierarquia entre tais instâncias do raciocínio humano, em

que o pensamento passou a agregar valor de excelência.

Nesse contexto, muitas vezes, a influência do afeto na racionalidade humana foi vista

como fonte de distúrbio e manifestação de forças ³primitivas´ que deveriam ser controladas

pela superioridade da razão. Na história da psicologia, o cenário parece não ser muito

diferente. Por influência da filosofia, de onde surgiram, durante muitas décadas as teorias

psicológicas, estudiosos dedicaram-se a estudar separadamente os processos cognitivos e

afetivos. A psicanálise freudiana, por exemplo, resgatou a importância do afeto e explicitou


sua nítida influência no comportamento humano, podendo ser contemplada, sob

determinada perspectiva, como reforçadora de uma idéia negativa da influência do afeto na

cognição (Cagnin, 2008).

Em outra vertente, a abordagem Behaviorista, de modo geral, também não se

preocupou em investigar essa influência. Por sua vez, a abordagem do processamento da

informação que a substituiu em hegemonia relegou a um segundo plano experiências mais

subjetivas, como a das emoções, e algumas concepções cognitivistas que buscam

compreender o raciocínio humano apenas em sua dimensão semântica ou por meio de

formalizações puramente lógicas, são exemplos de um modelo que foi indiferente ao papel

do afeto na cognição. Seja pela dificuldade em estudá-los de forma integrada, seja por

crença dos psicólogos e cientistas que se debruçaram sobre essa temática, tal separação

parece ter resultado em uma visão parcial e distorcida da realidade, com reflexos nas

investigações científicas e no modelo educacional ainda vigente.

É importante ressaltar uma exceção a essa regra nas abordagens evolucionistas da

psicologia, onde a relação entre o afeto e a cognição foi considerada e alcançou um status

positivo há mais tempo.

A abordagem evolucionista contemporânea, com suas evidências empíricas e ricas

reflexões teóricas como as de Cosmides e Tooby (2000), Seidl de Moura (2005) e Oliva,

Otta, Ribeiro, Bussab, Lopes, Yamamoto e Seidl de Moura (2006), vem trazendo

instigantes questões para o entendimento da filogênese e da ontogênese da mente humana e,

em especial, da relação entre o afeto e a cognição. Nesta vertente, a clássica dicotomia

razão ð emoção parece ser substituída por novos modos de integração. Assim, razão e
emoção passaram a ser vistas como complementares, desempenhando diferentes funções

em distintos momentos da filogênese e da ontogênese.

No final da década de 50 destaca-se a ênfase no processamento da informação com sua

especial focalização nas computações ³frias´, racionais, colocando em segundo plano o

papel dos estados afetivos e das influências socioculturais neste processamento. Sob a égide

do arcabouço do processamento da informação foram construídos muitos modelos teóricos

de inspiração computacional, alguns destes com excessiva formalização computacional,

como apontaram vários autores (Neisser, 1976; Searle, 1987; e, Bruner, 1997, citados por

Cagnin, 2008).

De certo modo, alguns desses modelos, especialmente aqueles construídos pela

chamada Inteligência Artificial (I.A.) ³forte´, teriam tomado a metáfora computacional de

forma literal, na medida em que deixaram de considerar o ser humano como um ³sistema

aberto´, ou seja, um sistema que está em constante interação com seu meio ambiente físico

e social, vendo-o, em contrapartida, como um sistema ³fechado´ em suas computações

(Cagnin, 2008).

Percebe-se, que ao longo da história da psicologia, os dois paradigmas hegemônicos,

inicialmente, o paradigma behaviorista, com sua ênfase nos aspectos conativos, ou seja, no

comportamento motivado e orientado para a ação; e, posteriormente, o paradigma

cognitivista, com sua ênfase nos aspectos cognitivos, ou seja, no processamento da

informação , não deram muita importância ao estudo dos processos afetivos e nem ao

estudo da relação entre as dimensões afetiva, conativa e cognitiva do comportamento

humano (Cagnin, 2008).

No passado, o estudo dos afetos na psicologia restringiu-se a teorias tais como a

Psicanálise e a outras teorias psicodinâmicas, que apesar de sua heterogeneidade teórica,


possuíam uma preocupação mais clínica e terapêutica. Dentre esses estudos, torna-se

relevante os achados da abordagem psicodinâmica, tais como os de Murray (1933), de

Feshbach e Singer (1957) e de Izard (1964), que enfocaram a influência do afeto em

situações-problema que exigiam, por exemplo, um julgamento cognitivo em um contexto

inter-pessoal. Estes estudos, de certo modo, foram precursores de muitos estudos

contemporâneos (Cagnin, 2008).

Bruner, Goodnow e Austin (1956) mentores do movimento denominado ³Ò  


´, foram também precursores da ênfase dada aos aspectos afetivos e

motivacionais envolvidos na percepção. Para Bruner e colaboradores, a percepção e

categorização social de pessoas, situações e experiências, seriam nitidamente influenciadas

pelo afeto, pois constatou-se que o que levaria alguém a dizer que uma dada experiência o

faz lembrar de tal pessoa ou de tal evento seria a evocação de uma resposta afetiva

associada a essa pessoa e/ou evento.

Cagnin (2008) ressalta que os trabalhos de Murray (1933) mostraram-se pioneiros na

verificação do papel dos estados afetivos em situações-problema que envolviam um

julgamento inter-pessoal. Com ênfase na influência dos estados afetivos positivos e

negativos na avaliação e no julgamento de pessoas, Murray apresentou, em um dos seus

experimentos, uma série de fotografias para que fosse avaliado, pelos sujeitos

experimentais, o grau de benevolência e de malícia das faces apresentadas. Foram duas as

condições experimentais manipuladas nessa pesquisa: uma delas envolvia o desempenho de

uma atividade prazerosa em um dia de sol e a outra envolvia um jogo que simulava

assassinatos em uma situação de escuridão. Após essas duas condições iniciais eram então

apresentadas as fotografias para serem avaliadas. Os resultados apontaram para um

aumento do julgamento negativo de malícia e de hostilidade das faces, após a vivência do


medo e, de modo oposto, para o julgamento positivo das faces, após a vivência de uma

brincadeira prazerosa.

Nesse sentido, Feshbach e Singer (1957) também estudaram os efeitos da expressão do

medo, bem como o da supressão do medo em situações experimentais que envolviam uma

percepção social. Três tipos de tratamentos experimentais foram propostos para os grupos:

no primeiro tratamento havia o incentivo da expressão do medo nos participantes, após os

mesmos terem sido submetidos a estímulos aversivos (choques elétricos) administrados em

intervalos de tempo intermitentes durante a apresentação de um filme; no segundo

tratamento, havia o incentivo da supressão do medo, após o recebimento do mesmo

estímulo e a apresentação concomitante do mesmo filme; e, por último, no terceiro

tratamento, o do grupo de controle, o filme era apresentado sem que houvesse a

administração de um estímulo aversivo.

Os resultados obtidos apontaram para uma percepção pessoal dos personagens do filme

como mais agressivos e/ou amedrontadores nas condições experimentais que envolviam a

estimulação aversiva, tanto na situação de expressão quanto na situação de supressão do

medo. Já o grupo de controle, que não sofreu esse tipo de manipulação, não apresentou tal

percepção. Como os autores observaram, os dados também sugeriram maior ³projeção´ de

sentimentos pessoais, especialmente no grupo submetido à supressão do medo, pois houve

nesse grupo maior uso de categorias relacionadas ao medo no julgamento dos personagens

do filme.

Anos depois, Izard (1964) relatou um estudo em que eram apresentadas quatro

condições experimentais a quatro grupos de sujeitos, onde em cada uma das condições uma

atriz desempenhava um papel: na primeira condição, a atriz desempenhava o papel de uma

pessoa ansiosa e com medo; na segunda condição, o papel de uma pessoa raivosa e hostil;
na terceira condição, o papel de uma pessoa entusiasmada e alegre; e, por último, na quarta

condição, o papel de uma pessoa amigável e gentil. Os sujeitos avaliaram seus sentimentos

antes e após a apresentação da atriz e desempenharam diferentes tarefas após terem

assistido à encenaçãoO

Os sujeitos que foram submetidos às condições em que os papéis teatrais eram

positivos (alegre e amigável) tiveram um comportamento mais construtivo durante a

execução das tarefas e os sujeitos submetidos às condições em que os papéis eram

negativos (raivoso e ansioso) tiveram um comportamento menos construtivo durante as

tarefas. Esses achados parecem reforçar os achados anteriores de Murray (1933) e Feshbach

e Singer (1957) sobre a importância dos estados afetivos no julgamento interpessoal e no

desempenho de tarefas de diferentes naturezas.

No que tange às pesquisas desenvolvidas no contexto behaviorista, pode-se destacar

alguns estudos, onde a influência do afeto na cognição foi o foco, como os de Byrne e

Clore (1970), sobre julgamento social e atração interpessoal, e os de Gouaux (1971) e

Griffitt (1970), sobre a atração interpessoal, dentre inúmeros outros.

Diante dos achados desses estudos, Forgas (2001) pontuou que as teorias

psicodinâmicas e as teorias de condicionamento poderiam ser criticadas por sua inabilidade

em explicar a maneira como múltiplas fontes de informações, afetivas ou não afetivas,

poderiam ser combinadas e integradas, por exemplo, quando as pessoas fazem um

julgamento social. Talvez essas teorias tenham falhado em uma explicação mais

convincente da relação entre afeto e cognição por não terem como referência um modelo

teórico bem articulado que precisasse as operações mentais envolvidas nesse contexto.

Entretanto, apesar das limitações teóricas, empíricas e, por que não dizer, de 
 


dessas teorias, a abordagem psicodinâmica proposta por Feshbach e Singer (1957) foi uma
das precursoras de muitas teorias contemporâneas, por ter sugerido, de modo mais

explicito, que a cognição poderia ser diretamente influenciada pelo afeto (Cagnin, 2008).

Desse modo, é possível perceber que pesquisas do passado apontam para a influência

dos estados afetivos nos processos cognitivos. Muitos desses estudos abordam o duplo

papel do afeto, especialmente a influência dos estados de humor nos ³conteúdos´ do

pensamento (o que as pessoas pensam), bem como no ³processamento´ cognitivo e nas

estratégias cognitivas utilizadas neste contexto (como as pessoas pensam). Vale ressaltar

que o afeto hoje em dia é considerado não mais uma mera fonte de ³distúrbio´ no

processamento cognitivo, como já o foi no passado, mas sim uma fonte de ³informação´ e

um meio de ³regulação´ da própria cognição (Cagnin, 2008).

Como destacaram Schwarz e Skurnik (2003) o papel do afeto, em especial de estados

afetivos, como os estados de humor, na cognição, vai variar de acordo com a natureza da

tarefa cognitiva, pois dependendo do tipo de tarefa, diferentes estados afetivos poderiam

facilitar ou dificultar a solução de problemas e o raciocínio. Para esses autores, um

determinado tipo de estado de humor poderia ter diferentes efeitos em momentos

diferenciados do processamento da informação.

Todavia, não são apenas os estados afetivos que poderiam suscitar algum tipo de

modificação no curso do processamento cognitivo, pois, na concepção desses autores,

estados não afetivos tais como, sensações corporais e experiências cognitivas como, por

exemplo, maior ou menor dificuldade experimentada no processo de recordação, também

poderiam influenciar no raciocínio. Assim sendo, diferentes processos parecem ocorrer em

paralelo, alguns desses podendo influenciar em maior ou menor grau a resolução de

problemas, sendo que alguns também poderiam somar forças entre si ou neutralizá-las, ou

seja, poderiam, juntos, ter efeitos diferenciados na resolução de problemas.


Quanto a esses diferentes processos, Dai e Sternberg (2004) sugerem que a infra-

estrutura do cérebro suporta várias funções mentais de ordem superior, que através de

mecanismos neuroquímicos importantes coordenam os aspectos cognitivos e emocionais.

Estes estão intrinsecamente relacionados tanto estruturalmente como funcionalmente e,

geralmente, são negligenciados ou não observados na pesquisa psicológica.

Cagnin (2008) aponta que alguns estudos teóricos de Schwarz e Skurnik (2003) e

estudos empíricos de Hesse et.al. (1997), chamaram a atenção para o fato de que a

conotação afetiva de um problema assim como o estado afetivo do solucionador poderiam

influenciar o tipo de informação que se torna acessível na memória, informação esta que

pode servir como


para a escolha de estratégias para a resolução de problemas.

Em outra vertente, estudos que focalizam os processos de categorização (Urada &

Miller, 2000; Innes-Ker & Niedenthal, 2002), de julgamento (Schwarz & Clore, 1983;

Tiedens & Linton, 2001) e da tomada de decisão (Luce, Bettman & Payne, 1997), destacam

que os estados afetivos são vistos como capazes de influenciar os processos de

categorização, de julgamento e de tomada de decisão, bem como de influenciar as

estratégias adotadas e o tipo de informação que está sendo recuperada na memória.

O estudo de Arantes (2000) é interessante, pois salienta uma significativa correlação

entre os aspectos afetivos e cognitivos subjacentes ao funcionamento psíquico. Este estudo

identificou como as pessoas raciocinam e analisam uma determinada situação de acordo

com seus estados emocionais. A amostra de pesquisa foi dividida em três grupos distintos

de docentes, sendo cada um deles induzido a experienciar um determinado estado

emocional antes de solicitado a resolver uma situação-problema. Enquanto no primeiro

grupo, denominado positivo, foi solicitado aos docentes que recordassem, escrevessem,

comentassem e dramatizassem uma experiência pessoal na qual se sentiram satisfeitos e


felizes por terem ajudado alguém, no segundo, denominado negativo, a mesma atividade

solicitada esteve centrada numa experiência negativa. Tratava-se, pois, de solicitar que

recordassem uma situação, vivida por eles, em que se sentiram insatisfeitos e infelizes por

não poderem ajudar alguém. Com o terceiro grupo, denominado neutro, não foi realizada

nenhuma atividade prévia à coleta de dados.

Foi escolhida uma situação dilemática relacionada a conteúdos de natureza moral para

essa investigação por ser de entendimento corrente que alguns conteúdos morais solicitam,

implicitamente, a articulação entre os aspectos cognitivos e afetivos durante o raciocínio.

Assim, foi apresentado um conflito ligado a uma temática que faz parte do cotidiano das

escolas públicas brasileiras e que mobiliza a preocupação daqueles que trabalham nesse

contexto: o consumo de drogas pelos alunos. Foi solicitado aos sujeitos que opinassem

sobre os sentimentos, pensamentos e desejos de uma professora, ao flagrar um aluno

fumando maconha durante o horário de aula.

Os resultados obtidos nessa investigação (Arantes, 2000) mostraram que um mesmo

conflito pode receber tratamentos diferentes e antagônicos, dependendo do estado

emocional prévio do sujeito que o enfrenta. Enquanto o grupo positivo encarou o aluno

drogado como uma pessoa boa e com um futuro promissor, o grupo negativo o viu como

uma pessoa problemática, perigosa e, portanto, indesejável. O grupo positivo apresentou

em suas respostas diferentes formas de ajudar o aluno. Já o grupo negativo apontou, como

melhor forma de resolver o conflito enfrentado, excluí-lo da instituição escolar.

Os resultados dessa investigação parecem demonstrar que quando os sujeitos estão

felizes há uma tendência a analisar e compreender as necessidades e problemas dos demais,

elaborando um raciocínio com estratégias de ação mais solidárias e generosas. Os mesmos

resultados indicam também que os estados emocionais influenciam o raciocínio e a tomada


de decisão tanto quanto as capacidades cognitivas. Assim, quando um indivíduo é

solicitado a a resolver problemas, a forma como esse organiza seu raciocínio parece

depender tanto dos aspectos cognitivos quanto dos aspectos afetivos presentes durante o

funcionamento psíquico, sem que um seja mais importante que o outro.

Diante dos estudos apresentados foi possível perpassar sucintamente a trajetória

traçada pelas discussões decorrentes do papel do afeto no raciocínio. Nota-se que não há

proficiência nas polarizações entre o campo da racionalidade e da afetividade. O afeto e o

raciocínio humano se sustentam na indissociação - de forma dialética-,de emoções e

pensamentos, de aspectos afetivos e cognitivos. Percebe-se que é na interação com o meio

social e cultural que sistemas organizados de pensamentos, sentimentos e ações são

viabilizados.
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4.1-A perspectiva de Piaget

  
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O primeiro autor que questionou as teorias que tratavam a afetividade e a cognição

como aspectos funcionais separados foi o biólogo e epistemólogo suíço Jean Piaget (1896-

1980). Em um trabalho publicado a partir de um curso que ministrou na Universidade de

Sorbonne (Paris) no ano acadêmico de 1953-54, ; 


 
 
   



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;, o autor chamou a atenção para o fato de

que, apesar de diferentes em sua natureza, a afetividade e a cognição são inseparáveis,

indissociadas em todas as ações simbólicas e sensório-motoras. Piaget postulou que toda

ação e pensamento comportam um aspecto cognitivo, representado pelas estruturas mentais,

e um aspecto afetivo, representado por uma energética, que é a afetividade (Arantes, 2000). 

Yves de La Taille (1992), um grande estudioso da obra de Piaget, afirmou que uma

maneira interessante de compreender a articulação, feita por um determinado autor, entre

afetividade e cognição é analisar as concepções deste acerca do tema do juízo moral. Para

este autor a moralidade humana é o palco onde a afetividade e a razão se encontram, por

vezes em forma de confronto.

Na ótica de Piaget (1988), não existem estados afetivos sem elementos cognitivos,

assim como não existem comportamentos puramente cognitivos. Quando este autor discute

os papéis da assimilação e da acomodação cognitiva, afirma que esses processos da

adaptação também possuem um lado afetivo: na assimilação, o aspecto afetivo é o interesse

em assimilar o objeto ao  , tendo como aspecto cognitivo a compreensão. Por outro lado,

na acomodação a afetividade está presente no interesse pelo objeto novo, enquanto o

aspecto cognitivo está no ajuste dos esquemas de pensamento ao fenômeno.

Nessa perspectiva, o papel da afetividade para Piaget (1953) é funcional no raciocínio.

Ela é a fonte de energia de que o raciocínio se utiliza para seu funcionamento. Esse autor

explica esse processo por meio de uma metáfora, afirmando que ³a afetividade seria como a
gasolina, que ativa o motor de um carro mas não modifica sua estrutura´ (p.5). Ou seja,

existe uma relação intrínseca entre a gasolina e o motor (ou entre a afetividade e o

raciocínio) porque o funcionamento do motor, comparado com as estruturas mentais, não é

possível sem o combustível, que é a afetividade.

La Taille (1992) sustenta que o dualismo entre afetividade e cognição é fácil de ser

compreendido quando esses dois termos são contemplados como complementares: a

afetividade seria a energia, o que move a ação, enquanto a razão seria o que possibilita ao

sujeito identificar desejos, sentimentos, e obter êxito nas ações. Sob esse olhar, não há

conflito entre essas duas partes.

É possível observar que na relação do sujeito com os objetos, com as pessoas e consigo

mesmo, existe uma energia que direciona seu interesse para uma situação ou outra, e a essa

energética corresponde uma ação cognitiva que organiza o funcionamento mental. Nessa

perspectiva, Piaget (1953) ressalta que ³é o interesse e, assim, a afetividade que fazem com

que uma criança decida seriar objetos e quais objetos seriar´ (p.10). Desse modo, todos os

objetos de conhecimento são simultaneamente cognitivos e afetivos, e as pessoas, ao

mesmo tempo que são objeto de conhecimento, são também de afeto.

No transcorrer de seu trabalho, Piaget incorpora um outro tema na relação entre a

afetividade e a cognição, que são os valores. Ele considera os valores como pertencentes à

dimensão geral da afetividade no ser humano e afirma que eles surgem a partir de uma

troca afetiva que o sujeito realiza com o exterior, com objetos ou pessoas. Eles surgem da

projeção dos sentimentos sobre os objetos que, posteriormente, com as trocas interpessoais

e a intelectualização dos sentimentos, vão sendo cognitivamente organizados, gerando o

sistema de valores de cada sujeito. Os valores se originam, assim, do sistema de regulações


energéticas que se estabelece entre o sujeito e o mundo externo (desde o nascimento), a

partir de suas relações com os objetos, com as pessoas e consigo mesmo (Arantes, 2003).

No que tange aos valores, Piaget (1992) atenta para o fato de que havia um acordo

entre autores de diferentes orientações teóricas quanto ao fato de que o respeito é o

sentimento fundamental da vida moral. O mesmo não ocorria, contudo, quanto às relações

entre o respeito e a lei moral. Em vários textos, esse autor contrapõe, de um lado, Immanuel

Kant e Émile Durkheim e, de outro, Pierre Bovet. Para Kant e Durkheim, o respeito é

conseqüência da lei moral, ou seja, é na medida em que o indivíduo obedece à lei moral que

ele é respeitado; segundo Bovet, o respeito às pessoas é condição prévia da lei moral, visto

que o indivíduo atinge o respeito à Lei através das pessoas. Piaget procura minimizar as

divergências em torno dessa questão submetendo-a ao método genético. Este método

aplica-se ao seu livro Y $  


      þ que consiste em um estudo

psicogenético sobre as relações entre o respeito e a lei moral (Freitas, 2002).

Quanto a essas relações, Piaget (1992) caminha em consonância à Bovet (1912) e

atribui, explicitamente, a origem de suas pesquisas ao artigo  


  


   O Bovet (1910), em um trabalho anterior, já revelara sua intenção de aplicar o

método da psicologia experimental ao estudo dos sentimentos morais: "Tratar-se-ia de

mostrar que os fatos concretos que estão na base das construções da ética podem ser objeto

de um estudo conduzido seguindo os métodos da psicologia científica." (p. 305)

Bovet (1912) procurou estabelecer quais são as condições necessárias para que o

sujeito sinta que deve (ou não deve) agir de uma determinada maneira. Segundo ele, duas

condições são necessárias e juntas, suficientes para que surja a consciência de obrigação no

sujeito: que uma ordem seja dada; e, que essa ordem seja aceita por aquele que a recebe.

Para Bovet essa ordem ou proibição pode ser: dada sem indicação, sem motivos e sem
sanções; válida até novo aviso; e, em relação a um ato subordinado a circunstâncias

exteriores que devem ser reconhecidas pelo sujeito. Freitas (2002) destaca que para que

uma ordem seja aceita, o seu autor deve ter prestígio ou autoridade aos olhos daquele que a

recebe, ou seja, deve existir uma relação de respeito.

Freitas (2002) chama a atenção para o fato de que poucos anos antes, o autor Ferenczi

(1991) escrevera sobre por que as crianças obedecem a seus pais. Segundo ele, é porque há

uma relação de amor entre a criança e seus pais que ela os obedece de bom grado. Inspirado

nessa idéia, Bovet (1912) define o respeito como ³... uma relação      de natureza

afetiva, na qual o amor e o medo são, em doses diversas, os constituintes característicos".

(p. 118).

Piaget (1992) incorpora a concepção de Bovet (1912) e, através deste, também a idéia

de Ferenczi (1991). Todavia, Piaget percebe que a tese de Bovet é limitada na medida em

que se questiona: "se todo dever emana de personalidades superiores a criança, como esta

adquirirá uma consciência autônoma?" (Piaget, 1992, p. 308).

Em seus experimentos, Piaget (1992) encontra no jogo de regras um terreno propício

para o estudo da questão de como é possível a aquisição de uma consciência autônoma.

Para esse autor as regras do jogo, assim como as regras morais se transmitem de geração

em geração e se mantêm unicamente graças ao respeito que os indivíduos têm por elas. No

entanto, há uma diferença essencial: enquanto as normas morais são impostas pelos adultos,

as regras do jogo, pelo contrário, são elaboradas apenas pelas crianças (Freitas, 2002).

Para Piaget (1992), o fato de que essas regras não têm um conteúdo moral

propriamente dito não era relevante, visto que, neste ponto, ele estava inteiramente de

acordo com Bovet (1912): "Com efeito, como Bovet mesmo, aliás, reconheceu sem
cessar... os deveres não são obrigatórios por causa de seu conteúdo, mas pelo fato de

emanarem de indivíduos respeitados" (p. 311).

Em contrapartida, se o respeito é um sentimento que se desenvolve na criança em

função da interação que ela estabelece com o seu meio social, interessava a Piaget o tipo de

relação social estabelecida. Ele distingue dois tipos de relação social: a coação social e a

cooperação (La Taille, 1992). Piaget (1988) define a coação social como: "... toda relação

entre dois ou indivíduos na qual intervém um elemento de autoridade ou de prestígio"; e,

cooperação como "... toda relação entre dois ou indivíduos iguais ou que acreditam ser

iguais, ou seja, toda relação social na qual não intervém nenhum elemento de autoridade ou

de prestígio" (pp. 225-226).

Os resultados das pesquisas de Piaget (1976; 1978; 1988) sobre as regras do jogo

levam-no a sustentar a tese kantiana da existência de duas morais: a moral da heteronomia e

a moral da autonomia. Ademais, Piaget (1992) levanta a hipótese de que existiria um

processo evolutivo em direção à segunda. Essa hipótese foi corroborada mediante o estudo

dos efeitos da coação social e da cooperação na formação da consciência moral do sujeito.

Desde antes da publicação de Y$  


    þ Piaget (1930) defende a

idéia da existência de um paralelismo entre o desenvolvimento da lógica e da moral no ser

humano. Posteriormente, no curso que ministrou na Sorbonne, Piaget (1954) estende esse

paralelismo ao mostrar que as construções cognitivas caminham paulatinamente com a

constituição dos sentimentos. Em outras palavras, Piaget traça um paralelo entre o

desenvolvimento cognitivo e o desenvolvimento da afetividade e mostra que a emergência

dos sentimentos morais faz parte de um processo mais amplo: o desenvolvimento da

afetividade (Freitas, 2002).


Por sua vez, em Y$  
     é possível encontrar a idéia de que as

relações afetivas que se estabelecem entre os seres humanos estão na origem da ação moral.

Piaget (1992) postula que "... a condição primeira da vida moral é a necessidade de afeição

recíproca" (p.138). Desse modo, assim como o organismo humano constrói as estruturas

mentais na interação incessante que estabelece com o meio físico e social, Piaget buscou

explicar o percurso que conduz o ser humano da anomia à autonomia moral.

La Taille (1992) alega que em um primeiro momento, a regra confunde-se com o

hábito: há regularidades, mas a criança não as sente como obrigatórias, ou seja, não há

normas propriamente ditas. Em função disso, Piaget (1992) chamou de anomia a esse

período do desenvolvimento moral. Não há consciência de obrigação nesse período, porque

é somente por volta de 1 ano e meio a 2 anos que ocorre a primeira diferenciação do eu

com o outro, condição necessária para que as trocas inter-individuais, isto é, as interações

sociais propriamente ditas, sejam possíveis. A idéia de Bovet (1912) foi corroborada pelo

estudo sobre as regras do jogo: para que haja sentimento de obrigação é necessário que se

estabeleça uma relação entre, no mínimo, dois indivíduos.

Segundo Piaget (1988), a partir das interações o respeito é construído e torna-se "... a

expressão do valor atribuído aos indivíduos, por oposição às coisas ou aos serviços" (p.

127). E, o valor é definido como "uma troca afetiva com o exterior, objeto ou pessoa"

(Piaget, 1954, p.355).

Freitas (2002) salienta que o respeito unilateral é a primeira forma de respeito que

aparece no desenvolvimento do ser humano. Esse sentimento constitui-se nas relações de

coação social, cujo protótipo é a relação estabelecida entre a criança e seus pais ou com

outros adultos significativos para ela. A obediência tem origem nesse tipo de relação. A

criança atribui um valor absoluto às normas, opiniões e valores desses adultos. Ela imita os
exemplos que eles lhe dão e adota a sua escala de valores. Entretanto, Piaget (1992)

constatou que a obediência conduz a uma atitude paradoxal: o sujeito considera a regra

como sagrada e imutável, mas, na prática, ele não a segue. Ele denominou "realismo moral"

a tendência da criança (e do adulto que permanece criança) a considerar os deveres como

exteriores ao indivíduo, a seguir as normas literalmenteþ sem compreendê-las, e a julgar a

gravidade de uma falta em função do resultado do ato ou do caráter material do ato e não

em função da intenção do agente. O realismo moral é produzido pela conjunção do

egocentrismo com a coação social.

Para Freitas (2002), do ponto de vista do desenvolvimento moral, o respeito unilateral é

essencial, pois é através deste que formas superiores de respeito se tornam possíveis. Pode-

se dizer que, o respeito unilateral é condição necessária, mas não suficiente, para que se

construam outras formas de respeito. Além disso, se os adultos impõem à criança certos

valores como devendo ser respeitados, ela pode compartilhar os valores de sua cultura e,

mais tarde, organizar a sua própria tábua de valores.

As pesquisas que Piaget (1992) realizou sobre os efeitos da cooperação entre iguais

sobre a consciência moral da criança mostraram-lhe que, devido a esse tipo de relação

social, um outro tipo de respeito pode constituir-se: o respeito mútuo. Há respeito mútuo

quando os indivíduos se atribuem reciprocamente valores equivalentes. Em um primeiro

momento, esse tipo de relação é possível entre aqueles que compartilham uma mesma

escala de valores.

La Taille (1992) destaca que a relação de cooperação impõe apenas a norma de

reciprocidade que obriga cada um a se colocar mentalmente no lugar do outro. Em função

disso, a atitude da criança em relação às regras muda: primeiramente, a regra não é mais

sagrada e imutável, ela torna-se o produto contingente da vontade coletiva; em segundo


plano, a criança compreende a diferença entre uma regra e uma lei e que nem sempre a

regra é justa; e, por fim, ela admite, então, que a modificação da regra não significa,

necessariamente, uma transgressão. Isto é, o sujeito descobre a sua capacidade de instituir

normas. Está dado o primeiro passo em direção à conquista da consciência moral

autônoma.

No entanto, se a reciprocidade fosse possível apenas entre os indivíduos que

compartilham os mesmos gostos, opiniões e valores, o ser humano ficaria restrito a

compartilhar a mesma classe de valores.

Nessa vertente, Piaget (1988) estabelece a diferença entre a reciprocidade espontânea -

típica das relações de amizade - e a reciprocidade normativa, na qual a substituição

recíproca dos pontos de vista torna-se uma obrigação. Com isso, Piaget (1992) não foi além

das relações de simpatia, regidas pela reciprocidade espontânea, mas já nesse momento

esclareceu que tais relações estão fora da esfera moral. Piaget (1992) ressalta "quanto à

simpatia, não reveste, aos olhos da consciência, nada de moral por si mesma: não basta ser

sensível para ser bom" (p.315).

Por outro lado, Piaget (1992) considera a reciprocidade espontânea condição

necessária para que a reciprocidade normativa de ordem moral se torne possível. Para ele

uma norma moral adotada por um indivíduo em relação a um outro não pode ser

contraditória em relação àquelas que ele aplica a um terceiro e nem em relação àquelas que

ele gostaria que se observasse em relação a ele próprio.

Na perspectiva piagetiana, aquele que não compreende o princípio de não-contradição

não é, portanto, capaz de ter um comportamento ético, visto que ele não tem as condições 

  para sê-lo. Segundo a teoria piagetiana, esse princípio é construído graças às trocas

que o sujeito estabelece com o meio e, do ponto de vista psicogenético, ele aparece, ao
mesmo tempo, no raciocínio e na ação: o primeiro torna-se lógico e a segunda, moral

(Freitas, 2002).

A substituição recíproca de pontos de vista é a condição que define a reciprocidade

normativa de ordem moral. Respeitar o outro consiste, então, em atribuir à sua escala de

valores um valor equivalente ao da sua própria escala. Isso não significa, absolutamente,

adotar a escala de valores do outro, pois, nesse caso, não importa o conteúdo dos valores ou

convicções de cada um, mas sim o fato de se ter uma escala de valores. A própria pessoa,

então, reveste-se de um valor moral (Freitas, 2002).

Sendo assim, é pela constituição da vontade, que o indivíduo pode superar seus desejos

imediatos e a conservação dos valores propriamente dita torna-se possível. O exercício da

vontade manifesta-se no conflito entre duas tendências, por exemplo, como no caso em que

se vacila entre um prazer tentador e um dever. Quando o dever, momentaneamente,

esmorece diante do desejo, a vontade restabelece a ordem dos valores. Dessa forma, é

possível que a tendência, inicialmente, mais fraca torne-se a mais forte (Freitas, 2002).

Piaget (1989) comparou a vontade à operação lógica. Segundo ele, a vontade equivale,

no plano afetivo, às operações; e, no plano cognitivo, a capacidade operatória liberta o ser

humano das ilusões perceptivas (a vontade, os desejos e os interesses imediatos), o que lhe

permite estabelecer fins prioritários a longo prazo, ou seja, construir um projeto de vida.

Mais tarde, o pensamento formal abre novas possibilidades: ao mesmo tempo em que o

sujeito se torna capaz de raciocinar sobre hipóteses, os fins de sua ação ultrapassam as

fronteiras do real, dando origem a valores, ideais, tais como a igualdade, a justiça, a

solidariedade e a liberdade.

Freitas (2002) sustenta que a capacidade de ser normativo, a constituição da vontade e

a construção de valores possibilitam a formação completa da personalidade. Podemos falar


em personalidade, no sentido piagetiano, a partir do momento em que o indivíduo elabora

um projeto de vida, quando ele define um ideal. A personalidade é um instrumento, ao

mesmo tempo, de autodisciplina e de cooperação com os outros: o  torna-se

  þ na medida em que renuncia a si mesmo, inserindo o seu ponto de vista entre

os outros, e se curva às normas da reciprocidade.

Segundo Piaget (1988), a personalidade autônoma é "o produto mais refinado da

socialização" (p.245), pois é somente em uma relação de respeito mútuo entre

personalidades autônomas que é possível, simultaneamente, a diversidade e a igualdade.

Cabe ressaltar que o fato de a teoria de Piaget romper com as dicotomizações e refletir

acerca das imbricações dos conteúdos afetivos e sociais no raciocínio é, indiscutivelmente,

relevante. Entretanto, é fato que a teoria de Piaget tem suas falhas, principalmente no que

tange ao seu método de estudar o juízo moral. La Taille (1992) alega que Piaget fornece a

condição necessária ao desenvolvimento da moral autônoma, mas não a condição

suficiente. Piaget apresenta como a inteligência permite organizar o mundo afetivo, mas

não aborda como a afetividade torna o respeito mútuo possível de ser seguido em um viés

prático.

4.2-A perspectiva de Vygotsky

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O psicólogo Lev Semenovich Vygotsky (1896-1934) também tematizou as relações

entre afeto e cognição, postulando que as emoções integram-se ao funcionamento mental

geral, tendo uma participação ativa em sua configuração. Reconhecendo as bases orgânicas

sobre as quais as emoções humanas se desenvolvem, Vygotsky buscou no desenvolvimento

da linguagem - sistema simbólico básico de todos os grupos humanos -, os elementos

fundamentais para compreender as origens do psiquismo.

A linguagem, produto e expressão da cultura, configura-se, na teoria de Vygotsky,

como um lugar de constituição e expressão dos modos de vida culturalmente elaborados. A

linguagem forneceria, assim, os conceitos e as formas de organização do real. De acordo

com Oliveira (1992) a linguagem seria "um modo de compreender o mundo, se

compreender diante e a partir dele e de se relacionar com ele" (p.75).

Oliveira (1992) chama a atenção para o fato de que Vygotsky considerava como um

dos principais defeitos da Psicologia tradicional a separação entre os aspectos intelectuais e


os aspectos volitivos e afetivos, propondo a consideração da unidade entre esses dois

processos.

Vygotsky (1996) explicita claramente sua abordagem unificadora entre o raciocínio e o

afeto, postulando que o raciocínio tem sua origem na esfera da motivação, a qual contem

inclinações, necessidades, interesses, impulsos, afeto e emoção. Nesta esfera estaria a razão

última do pensamento e, assim, uma compreensão completa do raciocínio humano só seria

possível a partir da compreensão de sua base afetivo- volitiva. Esse autor afirma que:

"A análise em unidades indica o caminho para a solução desses problemas de

importância vital. Demonstra a existência de um sistema dinâmico de significados em que o

afetivo e o intelectual se unem. Mostra que cada idéia contém uma atitude afetiva

transmutada com relação ao fragmento de realidade ao qual se refere. Permite-nos ainda

seguir a trajetória que vai das necessidades e impulsos de uma pessoa até a direção

específica tomada por seus pensamentos, e o caminho inverso, a partir de seus pensamentos

até o seu comportamento e a sua atividade´ (Vygotsky, 1989, p.7).

Para compreender o papel do afeto no raciocínio em Vygotsky é preciso

primeiramente ter como ponto de partida o fato de que a palavra cognição não aparece nos

escritos desse autor, pois apenas muito recentemente o termo "kognitivnii", referente a

cognição, entrou para o léxico da psicologia soviética. Desse modo, os psicólogos

soviéticos até então estudaram as funções mentais (pensamento, percepção, memória e

atenção) de forma integrada, pois essa interfuncionalidade reflete-se na compreensão do

termo "consciência". A organização dinâmica da consciência aplica-se ao afeto e ao


intelecto. Assim, é possível entender que ³... os processos pelos quais o afeto e o intelecto

se desenvolvem estão inteiramente enraizados em suas inter-relações e influências mútuas´

(Wertsch, 1990, p.63).

O conceito de consciência em Vygotsky não se remete em absoluto a nenhum

fundamento da Teoria Psicanalítica, mas está ferrenhamente atrelado a proposta de

Vygotsky de construir uma nova psicologia despida do reducionismo e do idealismo que

reinavam na época. Para Vygotsky a consciência devia ser concebida como uma

organização objetivamente observável do comportamento, que é imposta aos seres

humanos através da participação em práticas sócio ± culturais (Oliveira, 1992).

Oliveira (1992) ressalta que a consciência para Vygotsky remete a um salto qualitativo

da filogênese e é o componente mais elevado na hierarquia das funções psicológicas

humanas. Sendo, portanto, a essência da psique humana, constituída por uma inter-relação

dinâmica e em constante transformação ao longo do desenvolvimento, entre o intelecto e o

afeto.

É através de um processo de internalização das formas culturalmente dadas, mediado

pelas interações sociais, que a consciência vai se constituindo e, por conseguinte, um

processo de constituição da subjetividade a partir de situações de intersubjetividade vai se

estabelecendo. Tendo em vista esses processos, a passagem do nível interpsicológico para o

intrapsicológico açambarca as relações interpessoais densas, mediadas simbolicamente, e

não trocas mecânicas limitadas apenas ao intelecto. Ademais, envolve a construção de

sujeitos singulares, com trajetórias únicas e experiências particulares em sua relação com o

meio e com outras pessoas (Oliveira, 1992).

A formação da consciência e a constituição da subjetividade despertam a atenção para

o aspecto da mediação simbólica e, com isso, para a relevância da linguagem para o


desenvolvimento do homem. Para Vygotsky (1989) os processos mentais superiores,

resultado da inserção do homem num determinado contexto sócio ± histórico, são processos

mediados por sistemas simbólicos, sendo a linguagem, sistema simbólico básico de todos

os grupos humanos, a fornecedora dos conceitos e das formas de organização do real que

constituem a mediação entre o sujeito e o objeto do conhecimento.

No que tange á linguagem, Arantes (2003) salienta que em Vygotsky distinguia, no

significado da palavra, dois componentes: o "significado" propriamente dito (referente ao

sistema de relações objetivas que se forma no processo de desenvolvimento da palavra); e,

o "sentido" (referente ao significado da palavra para cada pessoa). Assim, neste último,

relacionado às experiências individuais, é que residem as vivências afetivas. Em tal sentido,

Oliveira (1992) afirma que "no próprio significado da palavra, tão central para Vygotsky,

encontra-se uma concretização de sua perspectiva integradora dos aspectos cognitivos e

afetivos do funcionamento psicológico humano" (p.81).

Sendo assim, o sentido da palavra liga seu significado objetivo ao contexto de uso da

língua e aos motivos afetivos e pessoais dos seus usuários. Relaciona-se com o fato de que

a experiência de cada indivíduo é sempre mais complexa do que a generalização contida

nos signos (Oliveira, 1993).

Diante dessas constatações, é possível notar que a internalização, enquanto processo de

constituição da subjetividade, e a questão da construção do significado são absolutamente

relevantes para compreender a abordagem unificadora entre afeto e intelecto proposta por

Vygotsky.

Para Vygotsky é através da internalização da linguagem que o indivíduo passa a ser

capaz de utilizar a linguagem como instrumento de pensamento, com a função de adaptação

pessoal. Essa forma internalizada de linguagem, que pode ser chamada de discurso interior
é um discurso sem vocalização, uma espécie de diálogo consigo mesmo, voltado para o

raciocínio, com a função de auxiliar o indivíduo em suas operações psicológicas. Por esses

atributos, o discurso interior é fragmentado, abreviado, predominando o sentido sobre o

significado das palavras. Desse modo, no plano intrapsicológico o indivíduo lida com a

dimensão do significado que relaciona as palavras aos conteúdos afetivos e culturais muito

mais do que ao seu aspecto objetivo e compartilhado (Oliveira, 1992).

Por mais que uma exposição articulada sobre o papel da afetividade como item

específico de estudo na obra de Vygotsky seja sumária, é válido destacar a relevância das

conexões entre as dimensões cognitiva e afetiva do funcionamento psicológico do homem

propostas por sua teoria. Vygotsky (1987) sustentou de forma veemente que o raciocínio

relativo á resolução de uma tarefa, que tenha uma importância significativa para a

personalidade do indivíduo, apresenta conexões profundas entre o afeto e a cognição muito

mais significativas do que as conexões entre as emoções e o devaneio.

4.3-A perspectiva de Wallon

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Henri Wallon (1879-1962), filósofo, médico e psicólogo francês, reconheceu na vida

orgânica as raízes da emoção, fato que viabilizou também contribuições significativas


acerca do papel do afeto no raciocínio. Wallon interessou-se em compreender o psiquismo

humano, debruçando-se sobre a dimensão afetiva, criticando vorazmente as teorias

clássicas contrárias entre si, que concebiam as emoções ou como reações incoerentes e

tumultuadas, cujo efeito sobre a atividade motora e intelectual é perturbador, ou como

reações positivas, cujo poder sobre as ações é ativador, energético. Criticando tais

concepções, pautadas, a seu ver, numa lógica mecanicista e linear, Wallon rompe com uma

visão valorativa das emoções, buscando compreendê-las a partir da apreensão de suas

funções, e atribuindo-lhes um papel central na evolução da consciência de si. Em suas

postulações concebe as emoções como um fenômeno psíquico e social, além de orgânico

(Arantes, 2000).

A partir de uma teoria fundamentada na emoção, Wallon concebe a dimensão afetiva

como conceito fundamental da sua teoria psicogenética da aprendizagem. Em sua obra,

Wallon define que ³as emoções, assim como os sentimentos e os desejos, são

manifestações da vida afetiva. Na linguagem comum costuma-se substituir emoção por

afetividade, tratando os termos como sinônimos. Todavia para Wallon estes não o são. A

afetividade é um conceito mais abrangente no qual se inserem várias manifestações´

(Galvão, 1999, p.61).

Para Wallon, a afetividade é um domínio funcional, cujo desenvolvimento é

dependente da ação de dois fatores: o orgânico e o social. Entre esses dois fatores existe

uma relação estreita e recíproca, que impede qualquer tipo de determinismo no

desenvolvimento humano (Mahoney & Almeida, 2005). Assim, Wallon (1959) considera

que ³« a constituição biológica da criança ao nascer não será a lei única do seu futuro

destino. Os seus efeitos podem ser amplamente transformados pelas circunstâncias sociais

da sua existência, onde a escolha individual não está ausente.´ (p. 288). Ao longo do
desenvolvimento do indivíduo, esses fatores em suas interações recíprocas modificam tanto

as fontes de onde procedem as manifestações afetivas, quanto as suas formas de expressão.

Bezerra (2006) destaca que a afetividade que inicialmente é determinada basicamente

pelo fator orgânico passa a ser fortemente influenciada pela ação do meio social. Assim,

Wallon defende uma evolução progressiva da afetividade, cujas manifestações vão se

distanciando da base orgânica, tornando-se cada vez mais relacionadas ao social ± e isso é

visto tanto em 1941, quando ele fez referência à afetividade moral, quanto em suas teorias

do desenvolvimento e das emoções, que permitiram evidenciar o social como origem da

afetividade.

Conceitualmente, a afetividade deve ser distinguida de suas manifestações,

diferenciando-se do sentimento, da paixão e da emoção. A afetividade é um campo mais

amplo, já que inclui esses últimos, bem como as primeiras manifestações de tonalidades

afetivas basicamente orgânicas. Isto é, afetividade é o termo utilizado para identificar um

domínio funcional abrangente e, nesse domínio funcional, aparecem diferentes

manifestações: desde as primeiras, basicamente orgânicas, até as diferenciadas como as

emoções, os sentimentos e as paixões (Mahoney & Almeida, 2005).

Embora sejam geralmente confundidas, essas formas de expressão são diferentes.

Enquanto as primitivas manifestações de tonalidade afetiva são reações generalizadas, mal

diferenciadas, as emoções, por sua vez, constituem-se em reações instantâneas e efêmeras

que se diferenciam em alegria, tristeza, cólera e medo. Já o sentimento e a paixão são

manifestações afetivas em que a representação torna-se reguladora ou estimuladora da

atividade psíquica. Ambos são estados subjetivos mais duradouros e têm sua origem nas

relações com o outro, mas ambos não se confundem entre si (Mahoney & Almeida, 2005).
Sendo assim, a afetividade, com esse sentido abrangente, está relacionada aos estados

de bem-estar e mal-estar do indivíduo. A afetividade se desenvolve, podendo ser

identificada, em duas etapas, sendo a primeira de base mais orgânica, e a outra de base mais

social. Quando os motivos que provocam os estados de bem-estar e mal-estar estão

primordialmente ligados às sensibilidades interoceptivas, proprioceptivas e exteroceptivas,

observa-se uma etapa em que a afetividade é de base orgânica ± a chamada afetividade

orgânica. Quando os motivos que provocam os estados de bem-estar e mal-estar já não são

limitados às sensibilidades íntero, próprio e extero, mas já envolvem a chamada

sensibilidade ao outro, a afetividade passa para um outro patamar de base fortemente social

± a chamada afetividade moral. Assim, a afetividade evolui para uma ordem moral e seus

motivos são originados das relações indivíduo-outro, sejam relações pessoais ou sociais

(Mahoney & Almeida, 2005).

Na concepção de Wallon, as teorias sobre as emoções são essencialmente mecanicistas

e pouco inteligíveis. Ele as percebe, primeiramente, como reações incoerentes e confusas, e

em seguida, destaca o poder motivante que têm as emoções consideradas por ele positivas:

³O estudo da criança exigiria o estudo dos meios onde ela se desenvolve. É impossível

de outra forma determinar exatamente o que é devido a este e o que pertence ao seu

desenvolvimento espontâneo´. (Wallon, 1982, p.189).

Dessa forma, é possível afirmar a partir das idéias de Wallon, que os conteúdos

valorativos carreados de aspectos sociais e afetivos intervêm no desenvolvimento psíquico

da criança, através de suas sucessivas experiências e das dificuldades, ou não, para vencê-

las, já que a criança depende dos adultos que a cercam para viver e sobreviver durante

muito tempo.
Sendo assim, a emoção ocupa um lugar privilegiado nas concepções psicogenéticas de

Wallon, pois para ele a emoção é vista como instrumento de sobrevivência imprescindível à

espécie humana e por sua vez também a afetividade, onde as emoções se manifestam. A

emoção, segundo Dantas (1992) é simultaneamente social e biológica em sua natureza, pois

realiza a transição entre o estado orgânico do ser e a sua etapa cognitiva, racional, que só

pode ser atingida através da mediação cultural, isto é, social.

A dimensão afetiva que é de fundamental importância para Wallon, seja do ponto de

vista da construção da pessoa, como do ponto de vista do conhecimento é, portanto,

marcante para o desenvolvimento da humanidade que se manifesta a partir do nascimento e

estende-se pelo primeiro ano de vida da criança. Wallon explica que uma criança sadia,

quando já está se relacionado afetivamente bem com o meio que a cerca, sente necessidade

de ser objeto de manifestações afetivas para que, assim, seu desenvolvimento biológico seja

perfeitamente normal (Dantas, 1992).

Wallon (1989) sustenta que o bebê, se não fosse pela sua capacidade de mobilizar

poderosamente, no sentido do atendimento de suas necessidades, ele pereceria. É neste

sentido que Wallon considera a emoção fundamentalmente social, ela fornece o primeiro e

mais forte vínculo entre os indivíduos e supre a insuficiência da articulação cognitiva nos

primeiros momentos da vida do indivíduo (Bezerra, 2006).

Já no terceiro ano de vida, acontece uma reviravolta nas condutas da criança e nas suas

relações com o meio, o qual é de suma importância para a existência da criança e que

Wallon acredita haver desde o período fetal, prolongando-se para além do nascimento. É

nesta fase que se iniciam os conflitos interpessoais, onde a criança opõe-se a tudo o que

julga diferente dela, que venha de outro. O conflito eu-outro não é exclusivo do estágio da

formação do eu, que Wallon chama de personalista, pois surgirá uma nova crise de
oposição no período da adolescência, crise essa necessária para a reconstrução da

personalidade, sendo, na sua opinião, um importante recurso para a diferenciação do eu

(Bezerra, 2006).

Assim, percebe-se que para Wallon, afetividade, além de ser uma das dimensões da

pessoa, é uma das fases mais antigas do desenvolvimento humano, pois quando este, tão

logo deixou de ser puramente orgânico passou a ser afetivo e, da afetividade lentamente

passou para a racionalidade. A afetividade e a inteligência estão imbricadas, havendo um

predomínio da primeira e, mesmo havendo logo uma diferenciação entre as duas, haverá

uma permanente reciprocidade entre elas, pois, como afirma Dantas (1992): ³ao longo do

trajeto elas alternam preponderâncias, e a afetividade reflui para dar espaço à intensa

atividade cognitiva assim que a maturação põe em ação o equipamento sensório-motor

necessário á exploração da realidade´ (p.90).

Dessa forma ³a afetividade depende, para evoluir de conquistas realizadas no plano da

inteligência e vice-versa´ (Dantas, 1992, p. 90). Partindo desse pressuposto, Wallon alega

que o desenvolvimento intelectual envolve muito mais do que um aparato cerebral. Esse

autor pressupõe a participação de uma dimensão afetiva do indivíduo, que contribui para

permitir uma construção cognitiva mais dinâmica e efetiva. Sendo assim, a teoria inspirada

em Wallon pressupõe um movimento dialético entre afetividade, emoção e subjetividade

com processos cognitivos, interação social e racionalidade, mutuamente imbricados e

relacionados em via de interdeterminação (Bezerra, 2006).

Dourado (2005) chama a atenção para o fato de que as idéias de Wallon têm como base

quatro elementos que se comunicam o tempo todo: afetividade, motricidade, capacidade

cognitiva e a formação da personalidade. Todos estes estão íntima e indissociavelmente

relacionados entre si.


No entanto, quando Wallon coloca a afetividade em primeiro lugar, ele destaca seu

impacto no raciocínio, pois considera que, através da emoção que é uma impressão corporal

de uma estado interno, que faz a comunicação e o intercâmbio entre os indivíduos, são

provocadas as primeiras representações, figurações que adquirem consistência nos

movimentos (Mahoney & Almeida, 2005).

Quanto à inteligência, Wallon diz, que toda a atividade cognitiva, ou seja, todo o

armazenamento organizado de informações da criança implica em sua origem e em seu

desenvolvimento, em inevitáveis componentes afetivos que por si mesmo impulsionam a

aprendizagem.

Desse modo, a aprendizagem, na perspectiva de Wallon, ocorre a partir de situações

que intercomunicam afetividade e cognição. Godoy (1997, p. 35) estabelece a importância

de alguns elementos que possibilitam a aprendizagem tais como: o auto-conhecimento, a

autonomia e a auto-regulação da conduta. Contudo, a auto-estima é, para este autor, sem

sombra de dúvida um dos elementos mais importantes para facilitar o processo de

aprendizagem do indivíduo.

Segundo Bean et.al. (1995) a auto-estima afeta a aprendizagem. Pesquisas realizadas

tomando como foco a análise a auto-imagem e a relação com o desempenho cognitivo

mostram forte relação entre a afetividade e a capacidade de aprendizagem de adolescentes e

crianças. Em geral, aprende mais rápido e com mais facilidade o aluno que está bem

afetivamente. Seu desempenho tende a ser efetivamente positivo, pois a auto-estima

elevada corrobora para uma ação sobre a realidade mais firme e convicta.

Para Wallon, uma aprendizagem significativa é consolidada quando ajusta raciocínio,

análise e imaginação com afetividade e emoção, onde o vínculo afetivo será um grande

facilitador das atividades cognitivas e simbólicas, dimensão possibilitadora de uma


racionalidade melhor definida e de um saber mais prazerosamente construído (Bezerra,

2006).

Diante das considerações enunciadas, percebe-se que Wallon procurou conceber a

afetividade como a chave para o desenvolvimento cognitivo e a formação da personalidade

do indivíduo. A sua teoria psicogenética é, na verdade uma teoria do sujeito, da sua

condição puramente orgânica e biológica a uma ascensão ontológica racional tipicamente

identificada com a condição humana.

Entretanto, para Wallon, esse sujeito é historicamente determinado, pois sua história

de vida, suas experiências sociais e culturais são definidoras de sua personalidade e lhe

permitem construir sua autonomia dentro das possibilidades da sua interação social. Isso

fará com que o sujeito que conhece, conheça pela interação dialética e dinâmica com os

demais sujeitos bem como com a cultura e a realidade social. Essa concepção é, portanto,

bastante identificada com o papel transformador de uma educação escolar voltada para

contribuir para o desenvolvimento intelectual e de valores sociais e culturais nos indivíduos

(Mahoney & Almeida, 2005).

Sendo assim, Wallon solidifica uma contribuição importante para se pensar os efeitos

dos conteúdos valorativos no raciocínio a partir da importância que atribui à afetividade no

processo de formação do indivíduo. Nesse viés, esse autor considera que as emoções vão se

subordinando cada vez mais às funções mentais, de modo que a afetividade reflua para dar

espaço à atividade cognitiva.

Em suma, como Dantas (1992) aponta, para Wallon, a relação entre emoção e razão

pode-se evidenciar pela seguinte afirmativa: "A razão nasce da emoção e vive da sua

morte" (p.90). Ou, ainda como afirmou Galvão (1995, p.57): "é uma relação de filiação e,

ao mesmo tempo, de oposição."


4.4-Algumas perspectivas contemporâneas

Na contemporaneidade, algumas perspectivas teóricas têm emergido com o intuito de

questionar os tradicionais dualismos entre afetividade e raciocínio. As teorias de Piaget,

Vygotsky e Wallon, outrora apresentadas, embora sob diferentes aportes teóricos e

objetivos de estudo, somaram esforços no propósito de integrar dialeticamente essas duas

vertentes e abriram caminho para que outras reflexões contemporâneas acerca desta

temática fossem postuladas.

Uma das perspectivas que põe em xeque a dicotomia historicamente consolidada entre

razão e emoção é o modelo de funcionamento do sujeito psicológico proposto por Araújo

(1999). Este modelo considera a noção de complexidade, de que cada sujeito é muito mais

do que um aparelho cognitivo, afetivo, biológico ou sociocultural, mas um ser que vive

imerso em relações com um universo objetivo e subjetivo, e que possui uma atividade

intelectual e afetiva que lhe permite organizar e interpretar essas relações com o mundo

interno e externo.

Affonso (2007) alega que, ao propor uma forma de funcionamento psicológico

sistêmico, o modelo elaborado por Araújo considera a existência de diferentes dimensões

constitutivas do sujeito (sistemas biológico, cognitivo, sociocultural e afetivo), todas

igualmente importantes, e que estão em contínuas interações ente si e com o mundo

externo. Assim, esse modelo permite uma visão integrada e dinâmica dos diversos aspectos

que constituem os seres humanos.


Percebe-se então, que o modelo de Araújo (1999) sustenta que, diante de uma

determinada situação, os estados afetivos do sujeito em relação àquele contexto específico,

poderiam interferir simultaneamente nas diferentes dimensões constitutivas desse sujeito e

na sua interação com o meio externo.

Em consonância com o modelo de Araújo (1999), uma outra perspectiva, de merecida

observação, é a Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento de Moreno, Sastre,

Bovet e Leal (1999). Essa teoria fundamentou-se nos pressupostos da teoria piagetiana e na

teoria dos Modelos Mentais, enunciada pelas Ciências Cognitivas, com o intuito de integrar

dentro de uma teoria evolutiva ± construtivista, elementos da Episteologia Genética e das

Ciências Cognitivas, na busca de uma explicação do raciocínio humano que considere ao

mesmo tempo aspectos estruturais internos ao sujeito e os aspectos externos a ele (Affonso,

2007).

Moreno et.al. (1999) definem os ³Modelos Organizadores´ como ³uma organização

particular que o sujeito, a partir de uma situação determinada, realiza dos dados que

seleciona e elabora, do significado que lhes atribui e das implicações que deles se derivam.

Tais dados procedem das percepções, das ações e do conhecimento em geral que o sujeito

possui sobre uma situação dada, assim como das inferências que, a partir de tudo isso,

realiza. O conjunto resultante está organizado por um conjunto de relações que conferem

uma coerência interna, a qual produz, no sujeito que a elabora, a idéia de que mantém uma

coerência externa, isto é, uma coerência com a situação do mundo real que representa´

(p.68).

Diante da definição de ³Modelos Organizadores´ enunciada por Moreno et.al. (1999) é

possível perceber que estes sintetizam o resultado das diversas atividades cognitivas

concluídas pelos sujeitos na avaliação de uma determinada situação. Percebe-se também,


que nessas situações, a partir das quais é possível realizar diversas interpretações, o sujeito

não retém todos os dados da realidade. O sujeito os seleciona, retendo aqueles que para ele

são mais significativos, rechaçando aqueles que não considera relevantes ou pertinentes.

Affonso (2007) chama a atenção para o fato de que os dados não considerados como

significativos para o sujeito não fazem parte de seu modelo, mesmo que sejam

fundamentais para o entendimento adequado da situação. Também podem figurar no

modelo, dados que não existem na realidade objetiva, mas que são produtos de inferências,

ou da invenção de dados considerados necessários para a compreensão da situação

observada.

Além disso, destaca-se que as atribuições de significados podem variar de acordo com

a singularidade de cada indivíduo, cultura e contexto. Tanto na abstração de dados como no

processo de atribuições de significados, estão em jogo as experiências significativas de

cada indivíduo em relação a seus valores, sentimentos, crenças e representações,

relacionadas àquele contexto específico (Affonso, 2007).

A partir dessas sucintas sinalizações constata-se que, tanto na perspectiva de Araújo

(1999) quanto na de Moreno et.al. (1999), os componentes afetivos podem interferir na

forma como o sujeito interpreta, raciocina e atribui significado às diferentes situações do

dia a dia; no julgamento de dados que considera relevantes e que, portanto abstrai dessas

situações; e, nas implicações que poderão levá-lo a mobilizar ou não os seus recursos para

uma determinada ação.

Em um viés absolutamente diverso, outra perspectiva pertinente ao estudo dos

impactos do afeto no raciocínio diz respeito à Psicologia Evolucionista. A partir dos anos

90, as bases biológicas do comportamento humano passaram a protagonizar o cenário de

investigação da comunidade científica, fato que contribuiu para o surgimento da Psicologia


Evolucionista, que se baseia nos pressupostos da teoria da evolução das espécies de Charles

Darwin, e desenvolvimentos posteriores (neodarwinismo) (Oliva, Otta, Ribeiro, Bussab &

Lopes, 2006).

Barkow, Cosmides e Tooby (1992, citados por Oliva et.al., 2006), foram os pioneiros

dessa abordagem e consideraram a existência de uma natureza humana universal

constituída de mecanismos psicológicos, produtos da evolução. Esses mecanismos são

adaptações resultantes de um processo de seleção natural ao longo do tempo evolutivo. A

Psicologia Evolucionista é também influenciada pela concepção modular proposta por

Fodor (1983) sobre a mente humana.

De acordo com Oliva et.al. (2006), a Psicologia Evolucionista possui uma visão

abrangente da mente humana, em que a emoção e a cognição são ³faces da mesma moeda e

não moedas diferentes´ (p.57). Sendo assim, essa perspectiva contempla as emoções como

programas super-ordenados que coordenam muitos outros, onde cada emoção atua sobre

vários outros programas adaptativos, desativando alguns, ativando outros e mudando os

parâmetros de terceiros, permitindo que todo o sistema opere de modo eficaz e harmonioso,

toda vez que se defrontar com certos tipos de condições.

É interessante destacar que na perspectiva da Psicologia Evolucionista, o conceito de

cognição refere-se a todas as atividades cognitivas, independente delas serem  


 ou

 . A partir dessa visão, as emoções podem ser compreendidas como forças

impulsionadoras, que foram moldadas pela seleção natural e que motivam à ação,

impulsionando os sujeitos a utilizarem suas capacidades cognitivas (Workman & Reader,

2004, citados por Oliva et.al., 2006). É possível compreender então, que as estruturas

físicas e as capacidades cognitivas e emocionais evoluíram para resolver problemas de

significado adaptativo para os indivíduos.


Nos moldes da perspectiva evolucionista, no que tange às interações entre afeto e

raciocínio, é válido analisar a contribuição de Damásio (1996) sobre a hipótese de marcador

somático. Este autor sustenta que as atividades somáticas, implicitamente, criam tendências

no comportamento humano, influenciando nos processos de raciocínio e tomada de decisão.

Esta hipótese explica-se pelo fato de o setor ventromedial do córtex pré-frontal ser crítico

para essas operações, apesar de a hipótese não se aplicar necessariamente ao córtex pré-

frontal como um todo e não ser uma tentativa para unificar as funções do lobo frontal

operando com um único mecanismo. A idéia fundamental da hipótese do marcador

somático é a de que as respostas a estímulos acontecem em múltiplos níveis de operação,

alguns dos quais ocorrem explicitamente (conscientemente) e outros implicitamente (não -

conscientemente) (Oliva et.al., 2006).

A hipótese do marcador pode ser contemplada como uma rejeição à idéia de que o

raciocínio humano e a tomada de decisões sejam propiciados por mecanismos de conexão

restritos ao condicionamento ou à cognição no sentido tradicional. Oliva et.al. (2006)

chamam a atenção para a descrição dos casos clínicos que inspiraram a teoria do marcador

somático propostas por Damásio (1996).

Segundo esses autores esses casos elucidam as ligações entre razão e emoção. Alguns

pacientes estudados por Damásio (1996), com lesões nos lobos pré-frontais, como é caso do

famoso Phineas Gage, embora revelassem um bom desempenho em testes de inteligência,

memória, aprendizado e cálculos aritméticos, apresentavam uma grande perturbação nos

processos de tomada de decisão, associada a mudanças de personalidade e a

desajustamentos no contato social. Dentre as características identificadas, destacaram-se

alterações emocionais atenuadas, que prejudicavam o raciocínio e pareciam impedir a sua

funcionalidade nas situações cotidianas.


Diante disso, Damásio (1996) concluiu que a aparente frieza de raciocínio parecia

impedir a atribuição de valores e perturbar a tomada de decisão e desenvolveu uma teoria

sobre o raciocínio e as decisões, na qual marcadores emocionais atuam como parte

essencial do processo. Sendo assim, o comportamento de decidir sobre algo, para Damásio

(1996), exige uma atividade cerebral explícita (sob o domínio de estruturas ou mecanismos

cognitivos, como o raciocínio, por exemplo); e, outra implícita (sob o domínio de

mecanismos emocionais).

Fundamentando-se também nos pressupostos da Psicologia Evolucionista, de que a

cognição e a emoção são consequências da evolução biológica e cultural da humanidade,

emerge uma outra perspectiva possível para o estudo das imbricações entre o afeto e o

raciocínio: as Neurociências.

Ao longo de quase todo o século XX, as Neurociências priorizaram os processos de

raciocínio, pensamento e intelecto, isto é, os aspectos perceptivos e cognitivos do

comportamento, atribuindo às emoções aspectos desvinculados da atividade cerebral.

Estabeleceu-se, assim, a concepção improcedente, de que é possível conhecer a mente sem

pensar nas emoções. No entanto, pesquisas recentes (Gray, Braver & Raichle, 2002; Moll

& Oliveira ± Souza, 2008; Almada, 2010) em Neurociências tem demonstrado o contrário.

Para Almada (2010) o afeto e cognição contribuem, de maneira conjunta e igual, para o

controle do raciocínio e do comportamento. Para esse autor todo comportamento e todo

raciocínio supõe relações intrínsecas entre processos afetivos e processos cognitivos. Gray,

Braver e Raichle (2002) através de técnicas de neuroimagem examinaram e manipularam a

conjunção das tarefas cognitivas e dos estados mentais na atividade cerebral, focando

especificamente no córtex pré-frontal lateral, um local em potencial para a integração afeto-

cognição. Após o cumprimento das etapas necessárias à pesquisa, esses neurocientistas


concluíram que não apenas a emoção contribui para a relação do raciocínio e

comportamento, mas também a cognição pode contribuir para a regulação da emoção.

É importante ressaltar que esse achado não é unânime entre os neurocientistas. LeDoux

(1996), renomado autor da Neurociência, por exemplo, estabeleceu que os processos

afetivos possuem clara independência em relação aos processos cognitivos, tanto por suas

origens quanto por suas funções. Esse autor, apesar de instituir a anterioridade dos

processos emocionais na estruturação do comportamento, não exclui a ideia de que o afeto

se relaciona em nível funcional com a cognição. Mais precisamente, ele afirma, de modo

categórico, que os processos afetivos e processos cognitivos interagem nos níveis

funcional, neurofisiológico e neuroanatômico. Se processos emocionais e processos

cognitivos têm percursos neurais próprios e particulares, também é verdade que, no âmbito

dos raciocínios e da regulação do comportamento, há uma cooperação e integração

funcional. Sendo assim, ainda que a cognição possa exercer papel relevante na regulação do

afeto, é preciso cautela quando se atribui à racionalidade um papel anterior ou superior em

relação às emoções. Mais que isso, o afeto está no núcleo das relações entre raciocínio e

comportamento, regulando estes de maneira significativa (Almada, 2010).

Cagnin (2008) sustenta que os sistemas neurais relacionados aos processos cognitivos

e emocionais poderiam ser vistos como independentes em muitas das computações

específicas, modulares, que provavelmente estão relacionadas a níveis mais elementares de

processamento, como também poderiam ser vistos como complementares e integrados em

níveis mais superiores ou ³centrais´ de processamento. Embora não haja um total consenso,

em relação ao ³grau´ de modularização dos processos cognitivos e dos processos

emocionais, em muitas das abordagens científicas contemporâneas, tanto das chamadas

Neurociências, como da Psicologia Cognitiva e mesmo da Psicologia Evolucionista, parece


haver certo consenso de que estes processos se articulam e sofrem influência mútua de

modo mais dinâmico do que se supunha no passado.

Além dessas perspectivas apresentadas, ainda há duas perspectivas promissoras,

alicerçadas nos fundamentos da Psicologia Social Norte - Americana, que podem ser úteis

no estudo do papel do afeto no raciocínio: a Cognição Social e a Neurociência Social.

Pode-se dizer que a Cognição Social integra uma série de micro-teorias que, ao longo

do tempo, foram se desenvolvendo no contexto da Psicologia Social para explicar os modos

pelos quais as pessoas raciocinam sobre si mesmas e sobre as coisas; formam impressões

acerca de outras pessoas ou grupos sociais; e, explicam comportamentos e eventos. Essa

perspectiva apóia-se no modelo de processamento de informação (que considera a atenção e

percepção, a memória e o julgamento como diferentes etapas do processamento cognitivo),

dedicando-se, assim, a estudar o conteúdo das representações mentais e os mecanismos que

se encontram subjacentes ao processamento da informação social (Carlston, 2010).

Algumas questões chaves têm permeado as investigações na área da Cognição Social.

Elas dizem respeito principalmente ao grau em que o processamento cognitivo é automático

ou controlado, à influência da motivação e do afeto na cognição social e ao fato de a

cognição ser abstrata ou situada (Ferreira, 2010).

No que diz respeito à automaticidade ou não do processamento da informação social,

os resultados têm apontado que as pessoas podem realizar tanto julgamentos mais

espontâneos e automáticos, quanto julgamentos mais conscientes e reflexivos, sendo que o

uso de um tipo ou outro irá depender principalmente de sua motivação e habilidade em

cada situação (Pennington, 2000).

Quanto ao debate acerca das influências da motivação e do afeto na Cognição Social,

foco pertinente a esse trabalho, percebe-se que este tem permeado essa área de estudo.
Pesquisas nessa vertente apontam que os afetos e motivações individuais interagem com as

cognições na determinação do comportamento social (Schwarz, 1998). Nesse sentido, os

fatores afetivos podem interferir no grau de esforço cognitivo despendido no

processamento da informação social, bem como direcionar tal processamento, ao facilitar a

ativação de esquemas relevantes às metas do indivíduo.

Por outro lado, tem-se também verificado que a codificação, elaboração e julgamento

sociais são mediados pelas emoções, na medida em que elas contribuem para a ativação de

informações com elas congruentes, além de provocarem reorganizações mentais que se

mostrem mais consistentes com as experiências afetivas individuais (Ferreira, 2010).

As investigações iniciais na área da cognição social dedicaram- se, sobretudo, a

esclarecer as diferentes características associadas à representação e processamento da

informação social, ou seja, seu principal foco era uma cognição social abstrata e vinculada

ao que se passava no interior da cabeça do indivíduo. Mais recentemente, porém, os

psicólogos sociais cognitivistas passaram a explorar as características da situação social que

interferem nas estratégias de processamento, ou seja, uma cognição social situada. Com

isso, a ênfase se deslocou do pensamento sobre os estímulos sociais para o pensamento no

contexto social (Schwarz, 1998).

Os resultados iniciais de tais estudos já puseram em evidência que os julgamentos

sociais de uma mesma pessoa alvo podem diferir em função dos diferentes indivíduos que

realizam tais julgamentos, a depender da natureza das interações de cada um com a pessoa

alvo. Desse modo, um conjunto de pessoas interagindo ativamente e compartilhando suas

avaliações, transmitirão informações que serão interpretadas e integradas diferentemente

por cada percebedor (Smith & Collins, 2009).


Para Ferreira (2010) entre os principais fenômenos psicossocias investigados

atualmente, na perspectiva da cognição social, encontram-se o , a formação de

impressões, a percepção de pessoas e os estereótipos. No contexto do cognitivismo, o é

conceituado como um autoesquema, isto é, como uma representação mental que contém o

conhecimento do percebedor acerca de si próprio, no que se refere a suas características de

personalidade, papéis sociais, experiências passadas e metas futuras.

Ademais, as pessoas diferem em termos dos atributos que consideram centrais à sua

autodefinição, das dimensões distintas de seus autoesquemas que podem ser ativadas em

situações diversas, das informações relativas a seu autoconceito que são processadas de

modo mais completo e que são mais facilmente relembradas, e da forma com que a

autodefinição do indivíduo afeta as crenças e expectativas que ele traz para uma

determinada situação social. Pode-se afirmar então que, o  decorre, portanto, de um

processo flexível e construtivo de julgamento sobre si mesmo, que leva o indivíduo a se

apresentar de diferentes maneiras, a depender do ambiente social em que se encontra

inserido, o que irá contribuir para sua adaptação a esse ambiente.

De acordo com Quinn, Macrae e Bodenhausen (2003) as pessoas costumam realizar

inferências iniciais (formação e percepção de pessoa) baseadas em estereótipos, o que

significa dizer que essas categorias sociais são ativadas de modo automático ou

inconsciente, tão logo o percebedor identifica um determinado indivíduo como pertencente

a certo grupo social. Posteriormente, dependendo de sua motivação e habilidade, poderá

corrigir essa impressão inicial, com base em informações mais individualizadas e que se

mostrem congruentes ou incongruentes com seus estereótipos.

Diante desses dados, é possível perceber que a investigação atual na área da Cognição

Social, no que tange à relação entre afeto e raciocínio, é fundamental para a compreensão
da ampla gama de fenômenos responsáveis pela atuação do indivíduo em seu contexto

social.

Por último, no que concerne à perspectiva da Neurociência Social, pode-se afirmar que

esta surge movida principalmente pelo interesse de investigar as possíveis associações

existentes entre a Cognição Social e as funções cerebrais, com o intuito de compreender o

papel desempenhado pelas estruturas neurais no processamento da informação social

(Adolphs, 2009). O pressuposto básico é, portanto, o de que determinados mecanismos

neurocerebrais são responsáveis pelo raciocínio social, isto é, que existem determinadas

estruturas cerebrais especializadas nas atividades de autopercepção e percepção dos demais

indivíduos e grupos sociais, bem como nas ações que permitem a vida em sociedade.

Ferreira (2010) destaca que o advento de novas técnicas de imagens neurais, em

especial a ressonância magnética funcional, tem permitido a localização precisa de

diferentes estruturas cerebrais, proporcionando assim consideráveis avanços à Neurociência

Social. Nesse sentido, evidências já disponíveis apontam que determinadas regiões do

córtex cerebral superior são especializadas em determinados processos sociocognitivos,

como, por exemplo, a percepção de si mesmo, a detecção e compreensão de faces, vozes e

movimentos humanos, a percepção de sentimentos dos outros, a atribuição de estados

mentais ao outro. Por essa razão, lesões cerebrais nessas áreas podem afetar negativamente

os julgamentos, o raciocínio e, por conseguinte, as interações sociais.

Adolphs (2009) adverte que o cérebro e a Cognição Social são modulados pelo

contexto social e pelo autocontrole volitivo. Desse modo, a Neurociência Social pode ser

vista como um campo promissor de investigação na área de Psicologia Social que poderá

indubitavelmente contribuir para maior compreensão dos conteúdos valorativos no

raciocínio social.
É válido ressaltar que a apresentação dessas diversas perspectivas de reflexão acerca da

relação entre os diferentes tipos de conteúdo e o raciocínio humano não teve como intuito

eleger pontos de vista superiores ou inferiores; limitados ou satisfatórios. Mas sim, apontar

para diferentes formas de se conceber o entrelaçamento desses dois aspectos sem

reducionismos ou supervalorizações.

A partir dessa sucinta revisão da literatura acredita-se na possibilidade de que os

enunciados de problemas contendo conteúdos valorativos possam ter impacto sobre a

resolução de problemas das crianças, podendo facilitar ou dificultar o raciocínio. Essa

investigação constitui o principal objetivo desse estudo e aponta para a incipiente discussão

desse tema na área da Psicologia Cognitiva. Portanto, acreditamos que uma pesquisa que

tenha por objetivo esclarecer as nuances pertinentes a essa temática pode vir a trazer

subsídios importantes para um melhor entendimento do papel dos conteúdos valorativos

nos processos inferenciais.

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