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O lhares Stanislávski e a tomada de decisão

v. 7 Marco Antonio Rodrigues


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STANISLÁVSKI E A
TOMADA DE DECISÃO
Marco Antonio Rodrigues
Encenador teatral, foi fundador e diretor artístico do Folias, coletivo teatral de São Paulo. Atua como profes-
sor-encenador do Curso de Teatro da Escola Superior de Educação em Coimbra e na Escola Superior de
Música e Artes do Espetáculo do Porto, ambas em Portugal. Professor-encenador do Célia Helena Centro
de Artes e Educação.

Palavras-chave Resumo: Este artigo apresenta reflexões sobre a gramática stanislavskiana, considerando sua aplicação
Stanislávski. pedagógica na escola Célia Helena desde os anos 1970. Para tanto, apresenta-se uma contextualização
Teatro. histórica do trabalho de Stanislávski a partir das formulações do seu Sistema, os caminhos criativos  e as
Pedagogia.
Atuação. bases do pensamento e da ação do ator, encenador e pedagogo russo, fundamentais no panorama das artes
Processo Criativo. cênicas, desde o início do século XX até hoje.

Keywords Abstract: This article reflects on Stanislavski’s theatrical grammar, regarding its pedagogical application
Stanislavski. in the theater school Célia Helena since the 70s. It presents a historical contextualization of Stanislavski’s
Theater. work as of the formulations of his System. It is intended to discuss the creative paths and also the structural
Pedagogy.
knowledge developed by Russian actor and director, which are considered fundamental references within
Acting.
Creative Process. the field of the Performing Arts, from the beginning of the 20th century until today.

A
origem da pedagogia do Célia antes desenvolvido, corrigindo-se trajetórias a partir
Helena, desde sua fundação, em da própria compreensão de Constantin Stanislávski
1977, é a escola stanislavskiana. Por (1863-1938) na última etapa de vida, quando
conta da proximidade com Eugenio desenvolve procedimentos de investigação cênica
Kusnet (1898 – 1975), Célia Helena aplicava, na a partir de dois subconceitos definitivos: análise
construção pedagógica, os ensinamentos do mestre ativa e método das ações físicas. Este material é,
russo na vida cotidiana da escola. Entenda-se o desde então (início do século XXI, anos 2000),
sistema stanislavskiano como uma prática que alia o centro da investigação pedagógica da escola,
indissociavelmente ética e estética na prospecção contribuindo decisivamente para a aclimatação e
de uma gramática cênica. Grosso modo, pode- a prática do sistema, enquanto gramática cênica,
se entender esta aplicação pedagógica no âmbito no universo teatral brasileiro. Mais, como se trata
da escola em dois grandes períodos – o primeiro, aqui de um sistema, não um método ou manual de
que sofre a influência direta do olhar e do filtro do procedimentos, a dinâmica é dialética e constante
teórico, pesquisador e artista russo aqui domiciliado, no sentido sempre de uma atualização que não
Eugenio Kusnet e que vai da fundação da escola até cessa.
o início dos anos 2000. E, o segundo, que percorre Começando do princípio, importa situar que
todo o século XXI, aprimorando-se o trabalho o período de atuação de Constantin Stanislávski
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compreende as últimas décadas do século XIX e e com a presença, portanto, em oposição e radical
as três primeiras do século XX (Stanislávski mor- dessemelhança às artes filhas das técnicas reprodu-
re em 1938). Estes cinquenta anos marcam subli- tíveis (capazes de fixar o real com absoluta exatidão
nhadamente a contemporaneidade porque trazem podendo até reinventá-lo com absoluta verossimi-
mudanças definitivas no campo da ciência, da po- lhança), teria que reinventar-se, rebatizando sua
lítica e da sociedade. A invenção da luz elétrica, da identidade.
fotografia, do cinema. As teorias que vão compor a Se o teatro não é mais capaz de “iludir”, se não
física quântica, a partir das quais nascem um qua- tem mais o poder da prestidigitação mágica, se
se tudo – da televisão à bomba atômica, passan- seus telões pintados viram piada perto da materia-
do pelo computador e pelo celular. A Revolução lidade das telas, eletrônicas ou não, qual o espaço
Socialista. possível? A que se destina?
O teatro que era das artes cênicas, o campo É aqui que a imaterialidade do teatro,
privilegiado do ilusionismo, no que diz respeito à aparentemente sua fragilidade, é o instrumento
representação da vida, perde suas prerrogativas de principal de sua força. A imaterialidade que atraves-
simulação do real perante outras formas de repre- sa gregos, troianos e todos os antepassados elisabe-
sentação mais eficazes neste sentido como a foto- tanos é a singularidade da cena perante as outras
grafia e o cinema. E perde também sua nobreza e formas de representação. A imaterialidade que tem
seu refinamento burguês: entra em cena, por mãos como matéria-prima a sugestão, a possibilidade
socialistas, a bruteza do operário, a marginalidade imaginária de recriar mundos e utopias, é o que dá
do lúmpen, a sexualidade da prostituta. poder e força à cena. Daí talvez o medo que produ-
Em suma, o teatro é destronado do espaço za aos poderosos porque trabalha com ideias, com
confortável da representação ilusionista, tam- imagens, com possibilidades, com futuros. Com o
bém como parte da institucionalização da cultu- que não existe, mas pode facilmente vir a existir na
ra burguesa. Perde sua identidade e majestade. É cabeça e no coração de quem faz e de quem teste-
justamente nesta intersecção, nesta tangência, que munha o feito.
Stanislávski vai atuar. Nosso olhar hoje, um cen- Aqui entra definitivamente Stanislávski: neste
tenário depois, permite perceber que a exemplo mundo que se recém inaugura não há mais lugares
da física quântica que tem Bohr (1885 – 1962), para representantes e representações por mais es-
Heisenberg (1901 – 1976), Einstein (1879 – tupendos e mágicos artesãos que sejam. Chegaram
1955), Oppenheimer (1904 – 1967) e tantos os alquimistas, os intérpretes, os inventores de
outros como progenitores, também o Sistema mundo. O conceito de representação que regia e
Stanislavskiano vai se apropriar e aperfeiçoar a reinava hegemonicamente no palco é substituído
partir de Tchékhov (1860 – 1904), Nemirovitch pela prática da interpretação que vai implicar numa
Dantchenko (1858 – 1943), Meyerhold (1874 revolução da cena, da sua gramática, na formação
– 1940), Vakhtangov (1883 – 1922), estes três do ator e sua dramaturgia, na criação de uma dra-
últimos encenadores russos contemporâneos de maturgia da encenação e na consolidação do traba-
Constantin ou até de oposições e complementari- lho do encenador.
dades como aquelas que ou Meyerhold, ou Brecht Esta redefinição da função do palco no que diz
(1898 – 1956), ou Grotóvski (1933 – 1999) lhe respeito ao teatro vai pautar todo o trabalho do en-
vão apor sem necessariamente coabitar o mesmo cenador. Para esta cena é necessário primeiramente
tempo. um novo ator. O intérprete. Isto significa toda uma
O fato objetivo e que interessa aqui ressaltar é gramática a ser construída. Porque há uma diferen-
a percepção que, o teatro, ao lidar com o presente ça estrutural entre o conceito de representação, até
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então vigente, e o conceito de interpretação. A in- todo o resto meu, próprio. Tudo me pertence,
terpretação é pessoal, é ativa e é por isso que os pri- já que qualquer papel, em cada um de seus mo-
meiros passos na formação deste ator passam pelo mentos criativos, pertence a um indivíduo vivo,
conhecimento de si mesmo. O conhecimento de si isto é, ao artista, e não ao esquema morto de um
mesmo implica a amplificação de várias capacida- indivíduo, isto é, o papel (STANISLÁVSKI, apud
des, mas basicamente para o que aqui interessa, as D’AGOSTINI, 2018, p.92).
capacidades de perceber-se a si mesmo, e de uma
percepção pessoal do mundo e das circunstâncias A pesquisa de Stanislávski é longa e obsessiva.
ali presentes. O treinamento, porque pode-se assim O treinamento e a reflexão a que submete os atores
chamá-lo, à semelhança de um treinamento físico, e a si próprio são exaustivos. O sistema que acaba
tem como objetivo o domínio e expertise em tor- por criar vai colecionando uma série de conceitos
no de um instrumento – a própria personalidade. e ferramentas que culminam, no fim da vida, com
O ator não mais se esconderá atrás das palavras do a eleição de uma prática que vai ficar conhecida
texto que encena, num teatro até então dominado como Método de Análise Ativa através das Ações
pela palavra e pela dramaturgia enquanto literatura. Físicas. Há suficiente literatura a respeito. O capítu-
Neste teatro que se reinventa, estruturado sobre a lo que aqui nos interessa situar é o que diz respeito
imaterialidade da sugestão, já que tem que pres- a um exercício, estrutural na formação do ator, de-
cindir da magia do ilusionismo, o pensamento é a senvolvido nos primeiros semestres da escola Célia
força determinante. Para as velhas formas de repre- Helena e que entendemos ser a base do Método de
sentar, o texto, a personagem, definem todo o tra- Análise Ativa. O exercício é chamado de Tomada
balho do ator. Ele empresta o seu corpo, a sua voz de Decisão. Entramos em contato com ele em
para a personagem. No trabalho do intérprete, a 2002, através do trabalho realizado na escola, aqui
personagem não existe aprioristicamente. Existem em São Paulo, e posteriormente em Moscou, em
circunstâncias, fatos e acontecimentos que confor- vivência no GITIS, a Academia Russa de Arte
mam o enredo e a estrutura da obra dramatúrgica. Teatral. Este trabalho foi coordenado por Valentin
Existe o papel, em sua totalidade na obra, e existe Teplyakov, decano da Faculdade de Interpretação
o papel descrevendo as ações daqueles seres que daquela instituição. Durante alguns anos o traba-
atuam na obra. Do outro lado, existe a identidade, o lho, com a participação dos docentes e com super-
olhar de mundo, a percepção do intérprete sobre o visão do próprio Valentin foi sendo aperfeiçoado
papel. A forma com que vai interpretá-lo depende e concomitantemente aplicado com sucesso no
justamente deste instrumental que carrega. A per- âmbito da prática cotidiana e pedagógica da escola.
sonagem passa a ser a somatória desse encontro: Vale aqui lembrar então que a grande revo-
papel e intérprete. A personagem, sendo o teatro a lução levada a cabo por Stanislávski, diz respeito
arte do presente, só existe naquele momento do es- a não mais estar o ator a serviço do papel, mas o
petáculo, é quântica no sentido em que a leitura de contrário, o texto escrito a serviço do indivíduo, do
cada espectador lhe dará um caráter e é dialética, no ator.
sentido de que cada apresentação é única e, portan- Na gramática Stanislavskiana, o ator, como
to, impossível de ser fixada. Stanislávski dá corpo, centro do palco, precisa em seu treinamento e
voz e espírito ao ator criando uma dramaturgia do formação desenvolver um amplo trabalho sobre
intérprete. A cena nunca mais será a mesma. si mesmo que envolve fundamentalmente, o au-
Nestes momentos não existe o papel. Só existe toconhecimento, a percepção crítica do mundo
eu mesmo. Do papel e da obra somente ficam as que o cerca, o aparelhamento físico, intelectual, ar-
condições, as circunstâncias de sua vida. Sendo tístico e cultural da sociedade. Precisa ampliar seus
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horizontes além dos preconceitos, das opiniões demovê-lo. No exercício de tomada de decisão, o
formadas, da moralidade vigente. Em suma, precisa outro é o si mesmo, como na vida.
desenvolver padrões éticos e individuais. O exercí- “Duas almas moram
cio da tomada de decisão tem esse claro propósito. no teu peito humano,
Originalmente individual, o exercício, como nas entranhas tuas.
tudo na gramática, se apoia em um fazer extre- Evita o insano
mamente simples: no dia a dia, estamos constan- esforço da escolha:
temente envolvidos em decisões, desde as mais precisas das duas.
simples às mais complexas: devo telefonar na tenta- Pra ser um, amigo,
tiva de resolver um problema emocional pendente deves ter contigo
ou devo aguardar que me chamem, devo chamar conflito incessante:
um táxi ou ir de ônibus, devo comer isso ou aquilo? um lado elevado,
Aqui, o exercício enfoca decisões complexas bonito, elegante;
que exigem uma reflexão pessoal e da ordem das o outro enfezado
escolhas: estou sendo chamado para realizar um e sujo, aos molambos.
trabalho profissional que desdenho, mas preciso Precisas de ambos.
do dinheiro. Devo fazer um aborto ou não: meu (A Santa Joana dos Matadouros,
companheiro quer que eu o faça, mas não é este Bertolt Brecht)
o meu desejo. Se não o fizer, posso perder meu
companheiro, se fizer abro mão do meu desejo. Fui Neste sentido, entendemos o treino em torno
aprovado para um aperfeiçoamento fora do país, da tomada de decisão como uma questão central
mas acabo de descobrir que meu pai tem que fazer na pedagogia da interpretação teatral. Ao longo dos
uma cirurgia delicada, dentre tantos outros exem- anos e na sequência da nossa prática, o exercício é
plos de situações. desenvolvido também com algumas variações: re-
Como se vê, decisões que envolvem uma or- alizado em duplas, a tomada de decisão cabe sem-
dem ética, profunda, pessoal e não decisões morais, pre a um dos jogadores. A tarefa do partner é criar
regidas por convenções sociais, por imposições dificuldades à tomada de decisão do outro, acres-
midiáticas, por senso comum. Enfim, decisões centando sempre novas circunstâncias ou novos
que me ponham em contato com questões reais, acontecimentos e argumentos agregados ao enre-
muito pessoais e que implicam em consequências do criado pelo primeiro.
nem sempre desejáveis. E são urgentes, da ordem Tanto no exercício individual, quanto naque-
do imediato, não podem ser adiadas, dentro das le de duplas, um dos objetivos centrais da prática
circunstâncias criadas. Há uma compressão do é que o exercício possa, a cada edição, mantida
espaço-tempo. O exercício, quando o praticante sempre a mesma estrutura da narrativa criada pelo
consegue se colocar efetivamente dentro da situa- jogador, ter resultados diversos e até antagônicos.
ção, tem resultados eloquentes do ponto de vista da É fácil constatar que esta prática é um treino
percepção de si mesmo. para a criação de dramaturgias pessoais e para o iní-
Além de implicar em: concentração, imagina- cio da compreensão dos princípios de ação envol-
ção, verdade e relação. A relação é a pedra de toque vidos nas técnicas de dramaturgia da cena.
do teatro. A relação é o que determina a qualidade Ação é conceito e palavra central na gramática
da ação que é sempre um movimento sobre o ou- stanislavskiana. Podemos pensar em ação do pon-
tro na busca da consecução de um objetivo. Agir to de vista cênico, como o movimento em direção
sobre o outro significa modificá-lo, convencê-lo, ao outro, a um objeto na busca da consecução de
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um objetivo. Este outro aqui referido é, também, Grotóvski, ao encher o cachimbo está, na ver-
o si mesmo. Na vida, como no palco, a tomada de dade, ganhando tempo, decidindo como melhor
decisão é um diálogo consigo mesmo. Passa pela abordar o problema e, o que nos interessa aqui, é
avaliação das circunstâncias com que se está lidan- justamente este momento em que age no sentido
do, com os prós e contras, com as consequências de qual solução dá à questão que o ocupa.
de assumir esta ou aquela posição. O movimento A tomada de decisão original, um indivíduo
é intrinsecamente ético porque é interior, porque lutando com suas incertezas e angústias imedia-
parte da necessidade e das angústias pessoais. tas não supõe o uso de palavras (a palavra, grosso
O exercício vai possibilitar também a distin- modo, pode ser definida como uma consequência,
ção do que é ação cênica. Grotóvski, numa conver- uma abstração da ação), mas, ações físicas, que vão
sa famosa, disponível na Internet, discorre sobre o acompanhá-lo no processo de o que fazer com seu
tema a partir do conceito de ação física desenvolvi- problema.
do por Stanislávski:
Em ação
O que é preciso compreender logo, é o que não são
ações físicas.  As atividades não são ações físicas.  Uma senhora entra num grande supermerca-
As atividades no sentido de limpar o chão, lavar os do acompanhando sua filha e seu neto de apenas
pratos, fumar cachimbo, não são ações físicas, são três anos. A mulher pede a avó que supervisione
atividades.  Pessoas que pensam trabalhar sobre o o neto enquanto ela se dirige ao outro extremo do
método das ações físicas fazem sempre esta confu- supermercado. A avó dá a mão ao neto e percorrem
são.  Muito frequentemente o diretor que diz traba- um corredor de produtos de higiene. Distrai-se,
lhar segundo as ações físicas manda lavar pratos e o ocupada em verificar o preço de algum produto.
chão.  Mas a atividade pode se transformar em ação O neto, entediado, sai silenciosamente na direção
física.  Por exemplo, se vocês me colocarem uma de outro corredor, contíguo, onde alguma coisa o
pergunta muito embaraçosa, que é quase sempre a atraíra. Quando a avó olha em volta, não o encon-
regra, eu tenho que ganhar tempo.  Começo então tra. Rapidamente, vira-se para uma direção, em se-
a preparar meu cachimbo de maneira muito “sólida”.  guida para a outra. Anda rapidamente na direção
Neste momento vira ação física, porque isto me ser- do fim do corredor. Olha para a direita e para a
ve neste momento.  Estou realmente muito ocupa- esquerda. Vira-se, de chofre, para o lugar de onde
do em preparar o cachimbo, acender o fogo, assim partira. Corre até a extremidade oposta. Mesmo
depois posso responder à pergunta. (Grotóvski, movimento de olhar à direita e à esquerda. Nada.
1988). Retorna lentamente até o local original bem em
frente ao produto que a atraíra. Para por longos se-
Alguém que até agora tenha tido a paciência gundos. E corre rapidamente na direção de uma das
de ler este pequeno ensaio, poderá pensar: “bom, extremidades onde já estivera. Quando está próxi-
falávamos de tomada de decisão, e agora aparece ma, ouve, pelas costas, vindo do fundo do corredor
aqui esta coisa de ação cênica e ação física, qual o a voz do neto, todo feliz, vindo em sua direção, com
sentido disso?” um produto nas mãos. Ela se volta, corre na direção
Na verdade, continuamos a dissecar aqui a to- do neto e o abraça, chorando e rindo.
mada de decisão e que a ação física e ação cênica É uma cena profundamente pungente. Veja,
são dois pré-requisitos do trabalho, além dos “pós- que não se chama atenção aqui para quaisquer
-requisitos” sobre os quais também temos a preten- emoções ou sentimentos envolvidos. O que se
são de mais adiante nos debruçar! observa são ações físicas. Se este pequeno enredo
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fosse desenvolvido por um intérprete, o que terí- rística da ação. Se ela chamasse pelo nome do neto
amos em jogo, seria precisamente isto: ações físi- várias vezes, coisa que não o fez, a cada vez que cha-
cas. O exercício de tomada de decisão é orientado masse, o tom, o volume, a textura, o ritmo da voz,
nesta direção: não cabe ao intérprete preocupar- seria diferente.
-se com emoções e sentimentos. Stanislávski vai Como se demonstra, por este prosaico exem-
comprovar, a partir de suas experiências, práticas e plo, o exercício de tomada de decisão é a base do
pesquisas, que não há como controlar emoções e trabalho de análise ativa através do método das
sentimentos, estes conceitos tão caros aos aprendi- ações físicas. Que por sua vez é a base do trabalho
zes da difícil arte da cena. Mas há como controlar gramatical da cena, podendo ser aplicado em qual-
variáveis, ou circunstâncias, colocando-se fisica- quer estética. Mas a questão estética não faz parte
mente em situação: as emoções dizem respeito à deste capítulo, não vamos aqui examiná-la agora,
quantidade de energia envolvida na consecução mas já já, no lugar dos “pós requisitos”.
de um objetivo. A nossa avó, se ocupa em procu- Como unidade celular do trabalho de inter-
rar o neto, deixado ciosamente sob a sua guarda. pretação, a tomada de decisão faz parte de todas as
Quando não o encontra, esquadrinha em seus pen- etapas do processo de criação, interpretação e repe-
samentos o que pode ter acontecido ao neto, desde tição de um acontecimento teatral. De forma lúdi-
as mais prosaicas situações até as mais trágicas, tipo ca e despretensiosa podemos examinar a justeza ou
sequestro ou coisa que o valha. A partir daí, avalia não desta afirmação aqui. A título de curiosidade
o que fazer: procurar a mãe, na outra extremidade mesmo: A tomada de decisão é constituída de uma
do grande supermercado, correndo o risco de dis- pequena unidade dramatúrgica. Como ponto de
tanciar-se do neto mais ainda, avisar a segurança do partida da análise ativa, nesta ou em absolutamente
supermercado, para que alerte a todos pelo sistema quaisquer outras situações dramatúrgicas, cabe aos
sonoro, deixando a mãe, ao ouvir o aviso, em esta- intérpretes, ao encenador, num primeiro momento
do muito agitado. Enfim... Todas estas ações, correr, de abordagem do texto, do roteiro, da ideia, elencar
olhar atentamente, percorrer todo o corredor para as situações, os acontecimentos, ali relacionados.
cima e para baixo uma ou duas vezes, parar e pen- É o único momento, talvez, em que se parte para
sar o que fazer, ou seja, ações externas e internas, uma análise do texto na perspectiva da conversa.
são igualmente ações físicas que vão culminar na Isoladas as circunstâncias, fatos e acontecimentos,
tomada de decisão. A intérprete envolvida nestas o ator correlaciona tudo à sua compreensão de
circunstâncias não vai pensar antes de tudo que vida, às suas vivências, à sua memória.
suas mãos estão frias, que todo seu couro cabeludo Há muita confusão com relação a esta questão
está arrepiado, que suas pernas estão bambas. Estas da memória em Stanislávski. Muita gente respeitada
“emoções” são consequências das circunstâncias trabalha com este conceito de memória afetiva de-
com que trabalha. Se a intérprete se preocupasse senvolvido por Stanislávski nos primórdios da sua
com emoções e sentimentos – é bom anotar de pesquisa como ferramenta em situação de cena, de
novo – não teria espaço interno para se ocupar das espetáculo. Stanislávski, quando da sistematização
circunstâncias e de seu objetivo! Note-se, também, da Análise Ativa e do Método das Ações Físicas,
que a ação – (agir para encontrar o neto) é decor- na prática, rejeita este conceito. São inúmeras as si-
rente das ações físicas: perceber a ausência do neto, tuações em que se posiciona a esse respeito, onde
constatar o sumiço do neto, procurar em uma dire- defende que, na medida em que as circunstâncias
ção, procurar em outra direção, avaliar o que fazer, se modificam diariamente, desde as que dizem
tomar a decisão – é progressiva, é cumulativa e tem respeito à política, ao país, passando por aquelas
um ápice, uma culminância. Que é outra caracte- que dizem respeito ao parceiro, ao partner e até as
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circunstâncias que se referem ao público – diverso priedade. Do fundo do lote chega Abel sonolento. Caim
a cada dia, o intérprete atua no presente, no dia de o vê do canto do olho, resmunga.
hoje, em seu próprio nome. Na prática, cada ensaio,
Caim: Milagre. Domingo e o senhor no lar.
cada espetáculo, é uma improvisação a partir de
Abel: Salve irmão Caim.
uma partitura de ações que vão sendo descobertas
diariamente. O teatro é a arte do presente, afirma- Caim: Salve o senhor e limpe as remelas no balde.
ção peremptória à arte do intérprete. Portanto, os Olhe a pinta de ressaca. Ontem o senhor be-
recursos da memória servem como instrumentos, beu, desleixado dos pampas?
na primeira etapa da análise ativa a um cruzamento Abel: O sábado é líquido.
das lembranças pessoais com a imaginação criadora Caim: O senhor se faz complicado. Meses fazia
para compreender as situações descritas no papel. É que não o encontrava. Muito feliz fui por al-
ponto de partida para a compreensão da literatura guns meses. Maldita sombra minha, me estra-
cênica: como eu agiria nestas circunstâncias? Por gou o domingo.
que o “personagem” age assim e não assado? O in- Abel: Ardente e plúmbeo o céu esta manhã…
térprete transfere para situações análogas àquelas Belo.
descritas no papel, suas vivências, ou experiências, Caim: Sim, pois é. Faz uma umidade bíblica.
ou sua imaginação. O ator age como um policial Abel: Hoje finalmente chega aquela chuva.
investigando um crime: desconfia da cena, procura Caim: Nãaaaao... porra... É por isso que ficou no
indícios, rastros, ele duvida. A dúvida é o que ajuda terreno. Por isso hoje é domingo e não traba-
a compreender o que acontece, que nem sempre a lha. A chuva maldita de cada verão. A chuva
literatura dramática resolve. parceira sua, a chuva escura.
Então, ultrapassado o treinamento com toma- Abel: Natalício. No primeiro chuvisco a terra dá
da de decisão em si, seguindo a linha pedagógica, o seu fruto. Hoje nascem. Desde o mais pro-
entramos na análise ativa propriamente dita, neste fundo da terra molhada. Uma epifania, irmão
momento em que a memória afetiva nos ajuda a Caim...
compreender o texto a partir de uma abordagem Caim: Epifania uma invasão de besouros?
muito pessoal. Agora já estamos, pois, lidando Macumba de bruxa, melhor dizendo. Tudo
com um texto dramatúrgico. Novamente a toma- que é maldito é negro, será a vontade de
da de decisão é ferramenta necessária: situadas as Deus...?
circunstâncias, os acontecimentos, os fatos elenca-
Abel: Não tem criatura mais formosa. Hoje haverá
dos no texto, a tarefa agora é trazer o abordado para
alumbramento.
perto de si. Como estudo, descrevo aqui uma abor-
Caim: Apagão haverá! Formosa uma barata preta,
dagem sobre um pequeno fragmento de Terrenal –
sim senhor.
Pequeno mistério ácrata, de Mauricio Kartun. A peça
trata da relação entre Caim, Abel e o Tata (o pai), Abel: Besouro tourinho. Brilhante e de corno ele-
é uma recriação contemporânea do mito. O frag- gante. Um rinoceronte miniatura. Criatura
mento usado é o trecho inicial da peça: que cada ano vem à terra para amar e para...
Caim: Para comer os meus pimentões, vem! Praga.
Cena I Que não me adentre nenhum na estufa, hein??
Cataclismo.
Abel: Nem boca tem quase , quantas vezes preciso
Terreno baldio. Caim, com as costas curvadas, levanta
lhe explicar. Cada ano nesta época, a mesma
um pequeno muro com escombros. Laboriosamente
história... Nascem e morrem em alguns dias e
pedra sobre pedra construindo pouco a pouco a pro-
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só fazem vagar, buscar parceria, amar e copu- Caim: Não tenho mortos eu. Não tenho história. A
lar. Seres de luz... história começa comigo. Me faço a mim mes-
Caim: De sombra. Copular e encher de ovos o mo.
terreno para que nasça a sua praga, os vermes. Abel: Sob a terra estão as raízes.
Apocalipse do meu pimentão. Caim: Não me misture os reinos. Vegetal é vegetal.
Abel: Vivo das minhocas, Caim, o tourinho as en- E animal... é o senhor. A história começa aqui
gendra. e o senhor quer ficar de fora. Estamos crian-
Caim: Engendro. O senhor o disse… Negro e lu- do uma cidade nova, flamante paróquia. Algo
xurioso... puxante. Populoso. Mas o bárbaro prefere
Abel: Seu radiante estado larval, as minhocas. Sua o atraso. O nômade prefere vagabundear...
juventude. Estamos construindo o futuro e o senhor
Caim: Minhoca!!!! A juventude é minhoca... prefere andar por aí. Não entende que somos
Abel: O animal mais forte do mundo. Seria bom pioneiros...
que o respeitasse. Abel: Fracassos somos. O único lote vendido
Caim: Respeito só ao Tatita. Às suas Relíquias e ao em todo o leilão é esse que comprou Tatita.
Pimentão. Fracassos...
Abel: Aguenta no lombo trinta vezes o seu próprio Caim: As pessoas não têm visão de futuro.
peso, sabia? Abel: Fica fora de mão, a iluminação não chegou
Caim: Todo preguiçoso se interessa pelo curioso... e nunca fizeram o pavimento. Puro arco de
entrada na estrada, puro anúncio na fachada e
Abel: Um prodígio.
depois só lama.
Caim: Infrutuoso. Tem lombo de carroceiro e se
Caim: Mas é calmo. Um éden. Aqui está tudo por
dedica a vagabundear. E à concupiscência.
fazer. Nossa terra bendita. Verde e amarela, as
Como o senhor. Por isso...
gloriosas cores do pimentão. Por alguma razão
Abel: Na natureza está a riqueza.
Tatita nos deixou aqui, não é? Completamos
Caim: Para rico, o meu pimentão. A natureza come a sua obra. O dia em que ele voltar...
na minha mão.
Abel: Esqueceu da gente o Tata, o senhor não per-
Abel: E depois diz que sou eu quem esquece as es- cebe? Anos e anos sem voltar e o senhor con-
crituras... “Contemplai como crescem os lírios tinua esperando.
do campo. Eles não trabalham e não fiam, mas
Caim: Parece que quem esqueceu é o senhor. Os
nem Salomão em toda sua glória esteve mais
seus ensinamentos, seus versículos. Ah Tata,
esplendidamente vestido.”
onde andarão os teus cânticos... Em que do-
Caim: E o que tem a ver contemplar lírio com mas. Em que cavalgadas. Manda um sinal para
olhar besourudo? o cético...
Abel: O besouro é belo. Abel: Quando éramos guris assim – ele nos dei-
Caim: Praga de Egito, o besouro. xou. Uma eternidade, nem um cartão postal
Abel: No Egito foram sagrados. chegou e o senhor continua esperando .
Caim: Mas veja como acabaram. Todos múmia. Caim: Uma eternidade diz o impreciso. Fim de
Praga suburbana o cascudo. Debaixo da urbe. outono do ano retrasado. Ganhavam cor os
Nas sombras. Subsolo sublevado. Bom é a cara últimos frutos. Pimentão tardio. Ponto oito
ao sol, maltrapilho. Por baixo só os infernos. metropimentão. Divino.
Abel: Sob a terra estão os mortos. Abel: Um cartãozinho branco e preto. Nem se deu
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ao trabalho... Jesus Maria da Doma e Folclore. inicia. Pequenos atritos que construíram a luta atu-
Como gosta de Alegrete. O cabritinho. al. No segundo exercício, dois irmãos discutem a
Caim: Não senhor. Vê-se que não memora. Santa venda de um apartamento que o pai lhes destinara
Cruz da Milonga. Ponha cabeça. A sua está es- em vida. O primeiro deles, bem-sucedido na vida,
tragada de tanta cana. Um menino vestido de com carreira sólida, deseja promover uma ampla
camponês rodeado de ovelhas, o cartão era... reforma no apartamento, valorizando-o para então
Chapelão de aba larga, o menino alado. Atrás vendê-lo. O segundo, desempregado, necessitando
como fundo e paisagem uma camada patagô- urgente de dinheiro quer fazê-lo de imediato.
nica de merda. As serras peladas e sem graça Em ambos os casos, como no original de
que o horizonte nos deu. Glória Senhor. Mauricio Kartun, é o território que está em dis-
Abel: Tempão que se foi e o senhor ainda espera... puta. A análise ativa aqui, através das ações físicas,
Dois bonezinhos, o terreno e nunca mais. Só leva os intérpretes a, em se colocando em situações
cartão. similares ao texto, compreenderem vivencialmente
questões lá abordadas, questões obscuras, questões
Caim: Tempão diz o inexato. Vinte anos pontual-
não resolvidas.
mente na semana passada. E não são cartões
Note-se que aqui, a tomada de decisão é fun-
postais: são escrituras. Vê-se que o senhor não
damental para a prática dos atores: o exercício se dá
missiona, não honra. Tinha esquecido... Da
de forma improvisada, é preciso estar atento ao ou-
data, do cartão. tro e às alterações interiores que a atitude do outro
Abel: Ele me esquece, eu o esqueço. (KARTUN, vai provocar e como reage o antagonista a isso.
2014, p. 1-2). Ao final desta sessão, as circunstâncias são
cotejadas com aquelas situadas no texto. Aos in-
Na análise das circunstâncias apresentadas por térpretes e ao encenador cabe a avaliação crítica
esse trecho de Terrenal, surgem os elementos cen- das descobertas surgidas naquela oportunidade.
trais da cena: dois irmãos, um terreno contíguo que Note-se que muitas questões que não estavam pre-
dividem, de um lado, uma criação de minhocas, do viamente circunstanciadas vão se esclarecer a partir
outro, a plantação de pimentões, um pai ausente há do exercício. Uma notadamente relevante diz res-
vinte anos, discordâncias dos dois irmãos sobre o peito ao objetivo de cada um dos jogadores. Como
modo de viver, etc.; opiniões contrárias sobre as se sabe, objetivo é um conceito central dentro do
qualidades do terreno. sistema stanislavskiano. Repisando, o trabalho do
Num primeiro momento, a tentativa de com- intérprete é sobre o outro, sobre o objeto, sobre
preender o que acontece fará com que os intérpre- o partner. Ele quer convencer, demover, enfim,
tes trabalhem com situações análogas às do texto um quer alterar a posição do outro sobre alguma
com que tenham ou imaginem ter intimidade. Os questão. No caso do presente exercício e do texto
atores combinam entre si algumas condições e par- que estamos a estudar como exemplo, influir sobre
tem para uma improvisação: no primeiro exercício, o outro a partir de algo relacionado ao território,
um casal comemora anos de convívio sob o mes- ao terreno do loteamento onde vivem. Nesta pe-
mo teto: o primeiro quer ir a um restaurante que quena fração podemos perceber abordagens ab-
previamente reservara, ver pessoas, estar na rua. solutamente diversas do primeiro para o segundo
O segundo foi ao mercado bem cedo, comprou exercício: no primeiro, o do casal, há uma relação
vários provimentos e quer que façam um almoço afetiva com relação ao território, a casa onde vivem.
íntimo em casa. Eles não concordam. O exercício é O jogador “a” que quer valorizar a casa como um
útil em vários aspectos, além de situar-se digamos, território íntimo, o jogador “b” que prefere que a
nas épocas anteriores ao conflito com que a cena se comemoração se dê fora de casa. Além disto, dizer
lhares

O
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alguma coisa a respeito da relação amorosa dos A questão do super-objetivo entra aqui como
dois, permite situar o objetivo central da cena – a um rápido parênteses, relevante para o aonde se
importância do território como o espaço afetivo quer chegar, desde o exercício de tomada de deci-
pelo qual lutam. são lá atrás. A tomada de decisão vai sempre bali-
O segundo exercício tem conotação total- zar toda a criação cênica, que é em última análise
mente diferente: o apartamento não tem valor afe- um trabalho prático de construção de um edifício
tivo para nenhum dos dois. Tem valor monetário, de imaginação, colocando-nos, portanto, sempre
financeiro e revela a visão de mundo de cada um diante de caminhos a serem escolhidos.
deles e por tabela, a relação fraterna daqueles dois Vamos voltar, então, aos exercícios de tomada
irmãos. O objetivo que surge: qual a melhor for- de decisão com os dois casais de atores a respeito
ma de fazer com que o território traga benefícios de Terrenal.
para um e para outro. Note-se que os objetivos A próxima etapa do trabalho seria de apro-
só se afirmam após a realização do trabalho e não ximação com o texto teatral. Continuamos a fa-
aprioristicamente. zer estudos de improvisação em torno do texto,
Sempre, a situação de improviso, levadas em acumulando circunstâncias que não foram ainda
conta rigorosamente as circunstâncias propostas abordadas. Por exemplo, num segundo momen-
no texto, cria possibilidades e alternativas não de- to, poderíamos enfatizar a ausência do pai e quais
tectadas na leitura e o treino com a tomada de deci- as consequências disto sobre aquele fragmento.
são é determinante para tanto. Continuamos a trabalhar sempre a partir dos intér-
É fácil perceber que o material recolhido nos pretes, lembrando que não existem personagens,
dois exercícios leva a caminhos diversos, porém, existem os atores e suas experiências e seus olhares
absolutamente compatíveis com o texto teatral, o de mundo naquelas situações. Assim, vamos nos
que nos leva a uma outra questão, extremamente acercando do texto, até que as palavras da drama-
relevante, caso fossemos encenar o texto em tela: a turgia começam a surgir naturalmente no corpo
do super-objetivo. dos atores, porque, não nos esqueçamos que nossa
O germe nascido nesta rápida abordagem em perspectiva é sempre a pesquisa das ações físicas
análise ativa pode ser descartado ou confirmado. que animam a relação dos atores.
Se descartado, continuamos a pesquisa com outros Relação é a palavra mágica da cena. E o segun-
estímulos a partir de avaliação conjunta de intér- do momento, também delicado, da pedagogia da
pretes e encenador. Se confirmado, pode apontar cena praticada no Célia Helena. Como vimos aqui,
caminhos para a descoberta do super-objetivo a tomada de decisão, que num primeiro momento
que é, em última análise, a abordagem temática da trabalhava com materiais absolutamente pessoais
encenação. O super-objetivo diz respeito à escrita do aprendiz, agora, já foram circunstanciadas a uma
cênica. Decorre da escrita dramatúrgica, mas não dramaturgia. A pessoalidade aqui entra em contato
é exatamente coincidente. Por exemplo, e de for- com dois objetos: o texto literário, que pode ser ou
ma bastante superficial, podemos pensar em Otelo não dramatúrgico, pode ser um roteiro, um poema,
como a tragédia do ciúme, na assinatura shakespea- uma ideia, e o parceiro com quem vai ter que lidar.
riana, mas do ponto de vista da escrita cênica, Otelo Autonomia é uma palavra chave que é tra-
pode ser encenada como a tragédia da propriedade. balhada desde a entrada do estudante – por isso
O super-objetivo é um conceito estruturante para Stanislávski fala tanto em ética, porque é preciso
a encenação porque todos os fatores componentes desenvolver a personalidade à distância dos pre-
– da criação artística dos intérpretes à cenografia, conceitos, do obscurantismo, da moralidade cas-
figurinos, música etc.. – são atravessados por ele. tradora e desenvolver uma percepção do mundo
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mais ampla, mas abrangente, mais solidária e mais tempo, o que aconteceu antes etc. Fatos concretos,
pessoal. Não esquecer que a argamassa da arte são acontecimentos... O ator deve prestar atenção ao
horizontes e utopias. que não entende (é isso que também vai explorar
O momento da chegada do estudante, da en- na improvisação) e deve, no dizer brechtiano “es-
trada dele na escola, como dissemos, é o momento tranhar aquilo que parece comum e achar natural
da desintoxicação, do trabalho sobre si mesmo no aquilo que parece estranho”. Dados objetivos são
sentido de abandonar o universo mítico confor- o que vão nutrir e animar seu exercício. São esses
mado pelas mídias e pela comunicação de massa. pressupostos que vão balizar sua pesquisa. Como
Ganhar identidade, individualidade é muito diver- já anotamos, nada de emoções ou sentimentos. E,
so de personalismos e egolatrias. a partir daí, surgem as ações físicas, que correspon-
É a partir da autonomia que vai sendo dem ao que foi levantado como material expressivo.
conquistada par e passo, da compreensão de si Vai descobrir no exercício da cena o que quer do
mesmo, de seus limites e ambições, que o ator- outro e como trabalhar para consegui-lo.
aprendiz vai praticar a análise ativa. Vamos nos Em síntese, o trabalho de Análise Ativa atra-
deter um pouco mais neste segundo momento em vés do Método de Ações Físicas consignado por
que a tomada de decisão vai ser redirecionada para Stanislávski nos últimos anos de vida é a culminân-
o trabalho com o outro, tendo um texto como ob- cia de toda uma vida dedicada à compreensão do
jeto. Como avaliar as circunstâncias que devem ser fenômeno teatral em sua centralidade, refundando
levadas em conta ou não para a consecução de uma a função e o significado da atuação. Stanislávski as-
improvisação a partir de um fragmento? O traba- sinala os princípios básicos de uma gramática que
lho de “mesa” para instrumentalizar a improvisação pode conter qualquer linguagem estética, das mais
consiste em anotar informações substantivas a res- conservadoras às manifestações de vanguarda. O
peito do que ocorre na cena, desprezando adjetivos, centro é o indivíduo, sua personalidade, sua capaci-
supostas impressões, interpretações e achismos. dade de observar e traduzir o mundo. De interpre-
O ator deve fazer ao texto perguntas muito simples tá-lo.
que digam respeito, por exemplo, às horas, local,

Referências (Itália), em junho de 1988. Disponível em: <https://4portascpc.


D’AGOSTINI, Nair. Stanislávski e o método de análise ativa: a cria- weebly.com/jerzy-grotowski.html> acesso em setembro de 2020.
ção do diretor e do ator. São Paulo: Perspectiva, 2018. KARTUN, Mauricio. Terrenal – pequeno mistério ácrata. Trad.
GROTÓWSKI, Jerzy. Sobre o Método das Ações Físicas. Palestra BOAL, Cecília. Texto original de Maurício Kartun com tradução
proferida por Grotówski no Festival de Teatro de Santo Arcangelo de Cecília Boal, versão não publicada. 2014.

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