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Marie-Louise von Franz concedeu duaseninevistas 2 rédio Cultura Francesa no final dos anos de 1970: 0 grito de Merlin e Sonhos ¢o destino, ambas tratando da questo existencial da bissca de sentido, que constitui o caminho dla alma para a autorrealizac40 e o encontro da propria identidade. Em Ogptio de Merlin, encontramos conceitos da psicologia junguiana presentes no processo de autoconhecimento. Em Somos ¢o destino, Von Franz identifica, no arcabougo onirico, a hipotese de contimuidade da alma paraalém da morte do corpo fisico. Neste pequeno livro encontramos: Von Franz tratando de grandes questoes que pulsam no fntimo de cada um de nos, Marie-Louise vor Fawr (1913-1998) trabalhow com June. por quase trinta anos. Autoridalereconhecida a dra ca Interpetasao psicologica de sonhos, cons de fadaetexos alquiricos, exereveu must livros sobre eases assuntos ‘Outros tts de sus autora pablicados pola Paulus ste A tudivtdwaet0 nos contos ie fada » A nterpetagia dos fonts de faa» O gato un conta da eevee eminina ® ‘utr Acterms afta cdoadulto contra o paraiso da hjdncla “Ait A BUSCA O SENTIDO Marie-Louise von Franz ABUSCA DO SENTIDO aloo Anne Pest oordanago: Oa pacar oan es dee) an open) Fs etc a “wet tt pone njsiaa tthe gee arse ins tetas ke gs eee ka ype, Feo) at ose are psp panna Ha eh a ae ‘Danone assim, robe scan nn yon Sho ie "opp lee amiapedpaee gre Joma peepee Fugen ae ligase heen ig ni tg mgm Halas ‘htop ok ‘noire sens, lta beeen: ‘ser sos ‘rowan tre lng anon ‘apr eng fee es ono ‘heii Oda current “movant Minty fos, ae “Fat aa reese ‘Smetana et irene nts esnips se ae a Cr isos eti, a Sute “fase ae penne eae ss es ee wats ahs ‘posts, weit “etter Sar “itn ee Marie-Louise von Franz, A BUSCA DO SENTIDO Entrevistas radiofénicas Tradugio: Naney Donnabella Inacio Guna, PhD “do origiak Lo Gute dy Sone auto: NancyBomabela eine Cua Deco eto Cdn Astin doe Santor oordanagi de revisor ga ee Lane Capa hlreloCrpanta ator impreaoe cabaret: PAULUS ads Inernacionsi de Catalogago ma Publica (CIP) (Camara Basta doLivo, SP, Bras Fan Mar Laue vor, 115-1958 ‘busca do seatdasenreystas acne Mae Lousevon Fane: ‘toda Nancy Denna nae Crh She Paso Ful, 20 (Gogo Are pue Truosrisiak aque dusens SoNoreaz20oa0142 187519612 scoleg nguan Til. Sve 0991 cop.s854 Indie para catitogo sisted: “iselog jinguana 1501954 loland igus iode-ebloxecia-CRB8/0016 . Cadastre-se receba informagbes sobre noss0s langamentos ‘hun Fraeisco Cru, 29 -08117-091 SS Paulo Bras) fel) oa73700-Fae()) 35792627 pechacomlr-edtrlopwehcombr INTRODUCAO A COLEGAO. AMOR E PSIQUE Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, ohomem descobriu novos caminhos que o levam para a sua interiori- dade: 0 seu préprio espaco interior tomna-se um lugar novo de experiéncia, Os viajantes desses caminhos nos revelam que somente 0 amor é capaz de gerar a alma, mas também ‘© amor precisa de alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicagdes psicopatolégicas para as nossas feridas e 0s nos- 505 sofrimentos, precisamos, em primeito lugar, amar a nossa alma assim como ela é. Desse modo é que poderemos reco- nhecer que essas feridas esses sofrimentos nasceram de uma falta de amor, Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nos: sa unidade e a realizacio de nossa totalidade, Assim a nossa propria vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa uunidade primeira Finalmente, ndo é 0 espiritual que aparece primeiro, mas © psiquico e depois o espiitual.€ a parti do olhar do imo es- piritual interior que a alma toma seu sentido, o que significa que a psicologia pode de novo estender a mo para a teolo- gia. Essa perspectiva psicolégica nova ¢ fruto do esforco para libertar a alma da dominacao da psicopatologia, do espirito analitico e do psicologismo, para que volte a si mesma, & sua propria originalidade. Ela nasceu de reflexées durante a pri 5 ca psicoterdpica, ¢ esté comecando a renovar o modelo ea f- nalidade da psicoterapia. € uma nova viso do homem na sua cexistencia cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimensbes diferentes de nossa existéncia para podermos reencontrar a nossa alma. Ela poderé alimen- tar todos aqueles que sio sensivels a necessidade de inserir ‘mais alma em todas as atividades humanas. ‘A finalidade da presente colecao é precisamente resttuir aalmaa si mesma ever aparecer uma geracao de sacerdotes ‘capazes de entender novamente a linguagem da alma’, como C.G.Jung 0 desejava. Léon Bonaventure NOTA DA EDICAO BRASILEIRA O texto que se segue é uma traducio para o portugues de duas entrevistas concedidas por Marie-Louise von Franz a Claude Mettra, produtor da programagao da estagao de radio Cultura Francesa, do grupo Radio France. A primeira, O grito cde Merlin’ foi divulgada em 18 de feverelro de 1978 e 16 de julho de 1979; 4 a segunda,“Os sonhos € o destino’ pade ser ouvida entre os dias 1° e 3 de dezembro de 1986, Esta ultima coincidiu com a época do langamento da versio francesa do livro Traum und Tod (Os sonhos e a morte), que fora tradluzida, para o francés, por Luigi Aurigemma, também presente du- rante a entrevista, Considerando-se que a lingua materna de Marie-Louise von Franz nao era o francés, algumas ligeiras adaptacbes fo- ram feitas durante a preparagao do texto naquele idioma. A publicacdo dessas entrevistas no ano de 2010, na Franca, fo acompanhada por 2 CDs com o registro das conversas, tal ‘como aconteceram. Esta edicéo brasileira, contudo, ndo traz ‘essas gravacbes, uma vez que os originais esto em frances, Nao obstante, a versio para o portugués tentou manter 0 mesmo tom coloquial registrado no texto original, também, ‘com pequenas adaptacoes para nossa lingua, para que onos- so leitor possa, igualmente, desfrutar da espontaneidade e ‘maestria da Dra. Marie-Louise na lida com a Psicologia Ana~ litica Junguiana, ‘As duas entrevistas foram concedidas quando a analis- ta é havia alcancado um alto nivel de exceléncia, tanto do jponto de vista da experléncia quanto do conhecimento 42 Pima humana, isso the conferia um lugar de destaque, néo apenas como acolaboradora mals virtuosadle Jung, mas a7 ‘ham como uma fonte propria de inspiracao para aqueles que tencontraram na Psicologia Analitca Junguiana 0 veiculo para Compreensao de si préprios e daqueles a quer assistem em seus consultérios analiticos. © registro dessas duas entrevistas nos permite visual zat de forma alegérica,certa condigao de transtus em que a ara. Marie-Louise se encontrava naquele periodo Podem-s dprecar tanto os seus comentarios acerca do curso da alma fuimana, enquanto se desenvoive nesta vida do aqui e agora, Comp também aprender com as eflexBes que ela nos oferece Em relagio as hipdteses e debativeis possiblidades de Pros” Seguimento deszaalma que ‘avez, corra do lado de i aP5 s Morte, Com 0 grito de Metin, 0 letor poderd, inclusive, ‘etomar alguns dos conceitos basicos que estruturam a Pst Tologia ungulana, o desenvolvimento do individuo e os de ‘efios por que passa neste percurso em diregao & sua propria wecatidade, Nessa sessio, tanto a figura mitologica de Merlin quanto 2 personalidade de Catl Gustav Jung so emuladas Gino referenciais desta incessante pulsdo para a autorreal Speao. Condigao esta também presente em cadaum dends,& espera de ser desenvolvida. ‘Na segunda entrevista, “Os sonhos e o destino’ a Dra. Marie-Louise ja se encontrava bastante acometida pela do- Ghea de Parkinson vindoafalecer dois anos mais tarde, Aa ereascutha o material onirico que vislumbra outra demanda crictencial relacionada @ etermidade, ou sea, & hipotese da continuidade da fruigBo da alma que talvez aconteca 2 des- petto da morte do corpo fisko. Sua voz, entso, ui mais Parc rer niosa, o tom é grave e lento, tipificando a condiao de que a a eternidade, sendo atemporal, ndo pode prescindir do que se constréi também no aqui e agora. A analista discute, nesse fromento, portant, a sua humanidade diante da eternidade! ‘Sendo, pois, material de Marie-Louise von Franz, sempre se esta diante de um elixir. "A despeito das minimas adaptacbes para o portugues {que manteve, inclusive, a repetitvidade de determinadas ox pressdes comuns no col6qul, esta edio brasileira também Fidequou o referencial bibliogréfico, de acordo com as publi- ‘cages disponiveis na nossa lingua. Indcio Cunha, PhO Analista Junguiano Belo Horizonte, 2018 OGRITO DE MERLIN Entrevista transmitida em 18 de fevereiro de 1978 € 16 de julho de 1979 Claude Mettra (CM): lencia de Merlin fala desta cratur, filha ‘de uma virger e do diabo, que, ap6s medrar por um longo ter: po pelo mundo, fnalmente sucumbiu aos encantos de Niniane, He se torna prisioneiro de seu poder e, depois, desaparece de nosso munda por haver se perdido na mundo do lado de a, de inde nao se pode mais ter contato com ele, a ndo ser através de 1 grito.Entretanto, eu creio, Marie-Louise von Franz, que tanto fesse grito de Merlin quanto a sua pessoa, propriamente dita, te nham sido muito importantes para vacé.! ‘Marie-Louise von Franz (MLVF):Sim, porque, para apsicalo- gia de Jung, o grande problema da modernidade é o proble- ‘ma do mal. Nao podemos mais escapar dessa questéo. Com todas as coisas que vém surgindo no mundo e tudo aquilo advindo das guerras mundiais, nfo podemos mais deixar de cconsiderar esse tema. Na teologia cristi, mas néo na sua préti- ‘a, hé uma tendénciaa se negar o mal ou sea, a privatio bon Isto € um otimismo cristdo que empresta ao crente um gran- de ian, @ que 0 impede de considerar o problema do mal de ‘modo mais sério. A questao do mal em qualquer pessoa é 0 Yon Franz, MLC 6 Jang 5a ita em nosso dpca So Paso: Cut 57, ap. ung on Fran, Alenda do Gra, $30 Paul: Cari 1981 " problema da sombra; do mal que Ihe é proprio, de sua som- bra, Todos temos uma tendéncia a nao olhar para nossa som- ‘bra oua empregar eufemismos e desculps-la com idealismos, Se vocé olhar a histéria do crstianismo, quantos milhdes de pessoas j8 morreram por causa desse idealismo? Merlin, por ser fio do diabo, mas tendo como mae uma mulher cristae ‘muito piedosa, une em si préprio esses problemas. Nos nioss0s dias, grande problema que pesa sobre nés 6 uma tendéncia a cedermos completamente ao mal, a ser- ‘mos possuidos por ele, ncorrendo no risco de nos tornarmos totalmente identificados com esse dominio. Vocé se lembra do que disse 0 assassino Manson:*"Eu sou Sata’. um quadro doentio, mas é mais uma questdo sintomatica, por assim di- ef e, na nossa opinio, hd uma grande unilateralidade, pois num momento tudo se mostra branco e, no outro, tudo se ‘toma negro. Como podemos observar em nossos pacientes € ‘em nés mesmos, se prestamos atencao aos nossos sonhos € tentamos encontrar um equilibrio interior, verificamos que 0 inconsciente esta sempre procurando unir 0s opostos emnés , também, relativizartais opostos,jé que, afinal, o mal pode também se revelar num bem. Devemos aprender a compre- tender que essa situacdo é algo sutil, bastante relativa, e que hhd nisso um problema de intencao etc, e que tudo isso acaba servindo mais para agugar a nossa conscléncia, E necessatio verificar o que verdadeiramente seja o mal em nds e nos ou: {ros, buscando o melhor julgamento dessa questdo, Nés ain- da somos completamente primitivs. Merlin é 0 simbolo daquilo que une o mal eo bem em si mesmo. Ele necessariamente ndo praticava o mal, mas apre- ciava bastante pregar certas pecas que interpretamos como sendo truques maliciosos. Esta era sua tragédia: ele via mais além [..] era profeta e enxergava bem mais longe do que to- 2 charles Miles Manson, ciminso american, martore her nec de sao aeassnats noe UA 2 dos 0s seus contemporadneos. Ele, frequentemente, pregava ppecas nas pessoas eelas sentiam que"isto é um truque diabé- lico, isto é maldoso”e, somente ao final, descobria-se que ele havia praticado o bem. Jung sempre dizia em conversas pri vadas: “Merlin, esta € a minha segunda personalidade; num certo sentido, isto sou eu’ E é por essa razao que me interesso por Merlin. isso também na vida de Jung. Ele quis participar de certas cortentes ideolégicas, mas era bastante subestima- do, como o fot Merlin Por outro lado, Merlin desapareceu da vida nos bragos cde uma mulher. Esta é uma est6ria que Jung, frequentemen- te, citava em conexéo com a lendla de Lao Ts8,0 grande sablo 18s, que também, ao fim de sua vida, partiu com uma dan- sarina e desapareceu deste mundo, Essa é uma estéria que se diria estar relacionada ao problema da anima, do feminino, E este € outro problema do nosso tempo:o arquétipo ferninino ‘emerge da superficie; nés nao podemos mais ignorar 0 ele- ‘mento feminino. Merlin, de certo modo, talvez tenha ido lon- ‘ge demais em dirego a um lado, mas ele mostrou o caminho: © tinico caminho é 0 desenvolvimento do sentimento e, para um homem, isso se traduz em se ocupar de sta anima, o que implica uma diferenciagao dos seus sentimentos e também, de sua consciénecia, (CM: Gostaria de retomar um pouco dois pontos que so muito importantes e fundamentais na visdo geral que Jung nos pro oe, acerca da vida e da morte. O primelro, me parece, é 0 fato Je que Merlin reconhece em si proprio, jé no seu nascedouro, jueo mal no se encontra fora dele, mas existenele, assim como m cadla ser vivente. Em consequéra, essa zona de sombra a que voce se referiu ha pouco deve ser primeiramente reconhe: ida como sendo nossa propriedade, de forma a possibilitar que ta seja integrada & nossa personalidade, e ndo exclulda. Caso a 8 ‘excluso CO", Somos expostos a grandes desordens que nos, ConduzerM a profundas torments psicol6gicos. MivF:£ justamente isso! Hé mesmo um texto francés da len- da arturiana em que Merlin aparece a um heréi como som- ‘bra. Merlin incorpora em si préprio as caracteristicas daquilo, ‘que norieamos Como sombra, e nés a projetamos sobre ele. O grande Perigo, quando se ignora o mal, é que passamos a velo, sobsetudo, nos outros (o que chamamos de projecao] - ‘ou que, coma mao esquerda, se fagam agdes involuntérias e destrutivas. Tém-se boas inteng6es com a mao direita, mas a mao esauerda desfaz tudo; com pequenos truques o indivi- duo acaba enganando a si mesmo. (EMi:Gostatla que voltéssemos ao problema da projecso, porque tele é de capital importdncla e, geralmente, mal compreendido, Mv: Esta é uma palavra da qual os freudianos também se utilizar. Para eles, a projecdo é aquilo que eu vejo nos outros {e,desse modo, do lado de fora); é alguma coisa em mim que reprimi por causa de um conflito neurético.Jé para Jung, tudo normalmente projetado da nossa alma, mesmo quandonao tiver havido repressio, Tudo que pertence a nossa psique & {que nao reconhecemos (ou ainda nao reconhecemos) nos ‘parece como que pertencendo ao lado de fora, Jung diz que $6 se pode falar em projecao quando é chegado o momento de se recolhé-la, Hd alguns sintomas (que surgem) quando as, pessoas €stao inseguras, quando elas ficam fanéticas, quan- Go exageram, quando tém emocbes e afetos exagerados. Es- See sao 05 sintomas que nos levam a dizer: “Por que o senhor Fulano de Tal me irita mais do que o normal? Pode ser que cle nao $22 simpatico, mas nao preciso perturbar-me desse modo? $€ fico agitado demais sem que ele nada me tenha feito, nao ha razio alguma para estar to furioso, entao, isso 4 uma projecio, entéo aquilo que me irita nele esta er mim, 6alguma coisa de mim mesmo que vejo nele. E sempre se vé ‘que, se a pessoa reconhece isso, se ela se recolhe numa medi- tacao.e ve, com muita vergonha, que aquela é uma qualidade dela mesma, entdo 0 senhor Fulano de Tal exterior logo fica rnormalizado e as relacdes so harmonizadas. ‘EM: Isso quer dizer que a desordem do mundo exterior esté em MLLvF: Ela esté em nés. Tudo esta em nés. NOs somos respon siveis pela guerra, nds somos responsaveis por tudo que lacontece de mal, nao é?[. A tendéncia do homem é pensar: ‘Os outros s80 0s culpados! Eu tenho boas intencoes, nao faco nada, nao fago politica, fago meu trabalho, sou um homem, corajoso ou uma mulher corajosa..€hé, sell, 05 comunistas ou 0s capitalistas ou 0s outros “istas" que fazem tudo © que so a causa do mal Esso é puramente uma projegéo. Se nos. liritamos demas, isso ¢ uma projecéo [.] Quanto a mim, per cebo isso de forma bem simples, pela minha voz: minha voz se eleva ou tenho uma voz iritada quando falo de alguma coisa? Entdo digo para mim mesma: Aten¢ao, atendo: pro- Jecao! ‘EM: Como dlferenciay neste mundo que nos rodela, entre aqui: lo que 6 bom para nés, para nossa personalidade, para nossa integridade, em relagdo ao que devemos evitar? MLVF: Se voce ainda nao é neurético, vacé tem o que chama mos de instinto: tem um sentimento semi-inconsciente, um sentimento latente, de que tal pessoa nao é simpatica.E sim. plesmente isso! Da mesma forma, nao comemos coisas das ‘quais ndo gostamos e, geralmente, nés temos um bom instin to, Se somos neuréticos, ficamos inseguros. Entdo dizemos: 15 “Por que estou pensando isso?” etc. As pessoas se forcam a fazer coisas contra seu instinto ou vo contra seu instinto e, ‘entao, esse 6 0 momento em que elas devem ser corrigidas pelos sonhos, ja que os sonhos exprimem o instinto. De mi- ‘nha parte, se no sei, se nao tenho certeza, se me encontro em situagao em que digo para mim mesma: Esta situagao é feia, isso nao me agrads|..J, mas ndo consigo colocar o dedo tem cima‘, se nao sei o que ha [..1, devo me retirar ou seré que ‘minha tarefa ¢lutat, enfrentar essa situaca? ..] entdo obser- ‘yo meus sonhos e, geralmente, os sonhos dao uma indica¢ao clara: "Retire-se” ou "Voce deve ter a coragem de se manter nessa dificuldade’ Todas as possibilidades. (CM: Quer dizer que os sonihos nos fornecem, conquanto pos samas lé-10s, decifré-los, as indicagGes sobre os caminhos que devemos seguir? MLVF: Sim, absolutamente, CM: E qual é, na perspectiva junguian, a funcao do pesadelo? Vocé me diz que talvez seja absurdo separar 0 sonho do pe: delo, mas, MLvF: Um pesadelo é um eletrochoque da natureza. € quan- do se esta em uma situacéo muito perigosa e nao se tem. ‘compreensao; entao o inconsciente grta, por assim dizer, 20 seu ouvido: ‘Acorde, vocé est em perigo!” Imagine se voc8 tivesse este pesadelo: vocé esté em uma casa que pega fogo endo encontra a saida, Voce corre e desperta em desespero, Conscientemente, vocé néo sabe o que se passa. [sso significa justamente o que 0 sonho quer dizer:"Vocé est em uma casa que esta pegando fogo e nao se da conta disso" Portanta, sso. quer dizer que vocé esta em um perigo psiquico (nao exterior, 16 ‘mas psfquico) que néo fol percebido. Isso éa natureza dando- the um eletrachoque. CME, nesse sentido, Jung ampliou consideravelmente a pers- pectiva para uma compreensdo do pesadelo ou do sonho, uma ez que ele extrapola em muito © ponto de vista sexual para abordar toda a totaldade existencial, Enfim, para lung, o sexo do tem o lugar predominante que tem pata Freud. MLvF: Sim. Por exemplo: se quisermos fazer desseinstinto a base das reagdes psiquicas, deixamos de levar em conta que hha também impulsos espirtuais no inconsciente. Mas, mes- mo se vocé considerar apenas o plano dos nstntos, simples mente a fome ea necessidade de nutricio so, equiido Jung, certamente muito mais primordiais do que a sexualidade. En tte 0s primitives, ou seo homem natural que vive na natu ‘za, 8085 do conteide das corversas gira em torno da comt- da, © nBo em tomo de mulheres, les ndo tém inibicéo, néo 10 Pudicos, mas a comida é o que se revela um problema, e {que logo se tomnaré um problema de novo, Nao se falara mals de sexo com a superpopulagdo que temos! ‘Ah! Hé ainda o instinto de dominacao de Adler a salien- tar. Agora, sabe-se também que o instinto de poder, o impul- $0 da dominacio, o poder, ¢ um fato importante, Assim é te mos tr. H ainda, para Jung, o impulso da indviduagso, de fe tomar vocé mesmo, que é mesmo mais marcante do que ‘odos 0s outros. 0 impulso mais fore é a necessidade de s¢ o1nar aqullo que se é.Além de tudo, cada planta, cada drvore, querer ela mesma, para falar poeticamente. totalidade dos Instintos de uma raposa é ser uma raposa e viver a vida de luma raposa; eo homem deve ser homem na sua totalidade. Jung dia sempre: “Somos muito inflizes, 0 passo que os Animats nao tém problemas: um tigre nao come magés! Mas © homem é um pervertido, e sua curiosdade, que herdou 7 dos seus ancestrais primatas, o faz desviar de seus instintos, Anoite corrige isso pelos sonhos. E por isso que damos tanta importancia aos sonhos. (EM: Mas em relagdo noite, que voce evocou, 0 sonho queabre 180 amplamente as portas do inconsciente, abre as portas que, na realidade, sdo de dois reinos. H inicialmente, 0 reino muito ‘antigo do inconsciente coletiva, enfim todas as lernbrancas de ma vida pertencente & tibo, da vida antes mesino que, talvez, ‘© homem fosse homem: e, depo's, hd 0 conjunto da vida cor- rente, desse rio que & 0 de nossa vida pessoal, Como se poder separar essas duas partes do sonho? MLvF: Na prética, € um pouco misturado. Raramente vocé tem sonhos puramente arquetipicos (como Jung os denomi- na), quer dizer, que vem do coletivo ou que sejam puramente ppessoais;sio misturados, Mas a maioria dos sonhos é pessoal endo se pode compreendé-los a ndo ser que se considerem as associacdes pessoais e se conhesa a historia, a biografia do sonhador. Digamos que alguém deteste a cor verde. Nao é preciso saber o que os simbolistas pensam do verde, mas é preciso procurar saber se, na sua juventude, alguma coisa the ‘aconteceu em que a cor verde desermpenhiou um papel nega tivo: ele quardou essa lembranca. Isso é 0 que se chama asso- ciagdo pessoal que vern do inconsciente pessoal. Se ele sonha com a cor verde em um contexto negativo, iso faz alusdo a ‘esse problema que ele uma ver viveu. Mas vé-se, muito fre~ ‘quentemente também, que as pessoas sonham com motivos ‘arquetipicos. Quando lhes perguntamos: “O que voc® tem a vver com essa figura?”, elas se assustam. Posso he dar um exemplo, Analisei um médico mexicano catélico, Um colega enviouro a mim dizendo: “é um homem, ‘muito simpatico, mas ndo 0 compreendo e nés nao avanga- ‘mosna analise’, Um homem simpatico entdo veloa mim enao ude estabelecerligacdo. Ele me sorria e sempre dizia: Mm. 18 fmm.s5 ele me sorria e, a tudo que eu dizia, ele murmurava: “sim, sim"; € eu perguntava:"Entao isso faz sentido para voce? Voce no demonstra reacio, ndo me dé retorno; voce est Compreendendo o que eu digo?”; “Sim, senhorita, sim”. Em Seguida, ele me fitava desse modo, sem me olhar nos olhos, (04 me dizia:“Mas, meu Deus, ou bem é ele que esté louco ou ou eu Ele tinha muitos sonhos pessoais. Como ele jé havia sido analisado antes, ee fazia tudo muito bem; trazia-me seus sonhos ¢ os interpretava. Mas eu me sentia muito mal, tinha a Sensagao de que nds néo nos compreendemasE eis osonho, ‘que ele teve: ele vé uma pedra, uma obsidiana, em uma drvore. Uma pedra enorme. € @ obsidiana salta da drvore e comeca a persequi-o. Ele core, corre e a peda o segue. De repent, ele vé ‘lguns trabalhadores que fazem um buraco quadrado na terrae ‘que the dizem: “Venha, depressa, aqui, coloque-se no meio, que ianquilo: E assim ele o faz. Entao a obsidiana torna-se muito ‘pequena e rola aos seus pés muito suavemente, Sem querer eu disse: Meu Deus, [sic], o que vocé tema Ver com o deus Tezcatlipoca?” Porque, vocé sabe, a obsidiana ©osimbolo desse deus. Ele me olhou inteiramente aturdido, \depois disse: Aht...nao sei’, mas logo apareceu a histéria: ele fra trés quartos asteca, até mesmo falava 0 navatle em sua Juventude, mas, como no México ainda ha racismo, ele repri- niu completamente esse aspecto. O ato de ser indio era uma, ‘questo de foro intimo, era um problema reprimido que en: {io apareceu nesse momento, Mas de Tezcatlipaca ele nada Conhecia, néo tinha associagbes. Foi apenas depois disso Aue foi pesquisar. Eu sabia mais do que ele, Apés encontrar 4s informagdes nos livros, ele se tornou americanista. Ficou de tal modo apaixonado pelos deuses de seus ancestrais que fescreveu trés bons livros sobre o assunto, Mas tudo velo des- se sonho puramente arquetipico dessa obsidiana que 0 as- Americans guise fee ao estudloso de assur relths 8 América. No ‘asm aqua Mesaaméra, 19 sombrava, © sonho Ihe dizia:"Os deuses de seus ancestrais 0 perseguem!” (CME: Quer dizer que os sonhos arquetipicos s80 téo perigosos, quanto os individuais; também carregados de risco de cisao? ML¥F: Sim, sim. O inconsciente é algo como a eletricidade de alta voltagem. Deve-se tocé-lo com precaucao e, sobretudo, ‘com compreenséo. CM: Vocé falou sobre o principio da individuagso, € o trajeto desse principio é restabelecer a comunicacao entre o conscier tee vinconsciente MLvF: Sim, (EM: Efetivamente, se lermos a historia de Merlin dessa maneira, peiceberemos sem diivida que Merlin, constantemente, insere ra sua vide consciente os elementos que tanto fazem parte de sua vida ancestral camo da vida de sua tribo. [MLvF: Sim, absolutamente Esso é uma caracteristica cultural do homem ocidental,Jé analisel coreanos e, agora, este me- xicano aqui, ¢ eles nao tém essa cisdo. Mais ou menos desde (05 tempos de Descartes, adquirimos esse racionalismo e uma cesura que nos isola do inconsciente. Merlin é 0 profeta que sempre tenta fazer 0s outros permedvels ao instinto, a0 in- Cconsciente, as imagens, aos sonhos... CM: Sim. Entdo Merlin ilustra mufto bem o que Jung vai reto~ ‘mar mais tarde sob o nome de imaginacao ativa. Quer dizer que, fem uma situaszo dificil, complicada, Merlin continua a inventar caminhos que Ihe permitam contornar as dificuldades € criar, 20 ‘BAI Universo nos quais possa se sentir 4 vontade e, em cor ela constuir constartemente uma stuacso de inversao. Num dos textos medieval, ele aparece com duas 189 redor do pescogo, 0 que masta, no fundo,@ como ocaduceu de Hermes ele une os opostos, 10 caminho da serpente que ndo val em lina eta esis que sao vi da matureza. A natureza faz ito do desenvolvimento da imaginacio ativa, que lo desenvolvimento da personalidade, como & que sta deve lidar com pessoas em softimento, para que tal limento possa ser colocado em pratica? Voltanclo ao caso do mexicano, eu the disse:*Fale com alpaca!" e Tezcatlipoca apareceuclhe em meditacéo deus, entd0, desemppenha o papel de Merlin; ele 6 0 eu 1 desde entao nao tive mais nada a fazer. Esse homem, #@ Visita porque estdligado a mim e eu a ele. NOs nos Pequenas visitas matuas porque temos uma gran- la um pelo outro, mas ele no precisa mais de mim lista, ¢ se ele est4 com algum problema eu Ihe digo: f Tezcatlipoca’ Esta a rota da individuacso, Ele posico de meditacdo (ele construiu um pequeno nto Ihe pergunta:“Tezcatlipoca, diga-me..” e en- lisse e & inacreditavel, Naturalmente, No ¢ Tezcatlipoca, é o seu simbolo do Self, aquilo ‘chama de Self que ¢ a personalidade total, supe- a, Ou superposta 20 ego. Para nés, 0 ego é apenas aquena parte da personalidade. € como no tomo. 0 ‘© centro do tomo, 6 0 Self o ego seria somente um Hétrons que gira em torno do centro, Merlin é uma per- 21 sonificacio do simbolo do Self. Ele une os opostos, sabe 0 fu- turo, encontra uma saida quando a situacao esta bloqueada; ‘mas trata-se também do inesperado, do irracional e, sobretu- do, € 0 grande desbloqueador. Sempre se vé como os cavale' ros da idade Média, com seus idealismos e seus principios, se colocavam em situagGes sem saida, e Merlin, entéo, aparecia ali na esquina, na hora certa, indicando-lhes 0 caminho que ‘nao havia sido pensado. (CM: Vocé fala muitas vezes no seu livioe na sua pesquisa (assim coma Jung) sobre a busca do Graal, que 6 impressionante na busca do Graal, contudo, &2 multipicidade das visdes, sonhos & _aparigdes. Que papel voc® atrbui a essa transformagéo da reai- ddade,a essa mistura de uma realidade aparente com uma irea~ Tidade real? Para vocé, qual é 0 sentido, portanto, dessas visdes relatadas na época medieval? MLVF: Esse é 0 outro mundo; é o que chamamos de incons- Ciente, E nés podemos nos treinar a vé-lo com novos olhos se observarmos as pequenas sincronicidades, e nos atentar- ‘mos para o problema das coincidénclas. Se, a invés de pas- sear por uma rua de Paris simplesmente dizendo: ‘As 9h30, devo estar em tal e tal lugar! pensando apenas em ter que comprar rapido @ minha passagem de énibus etc, e, 20 in- vés disso, me colocar num estado de humor um tanto quanto sonhador e dizer a mim mesmo: *O que esta por vir ao meu encontro hoje?" e abservar, nesse sentido, as coincidéncias [ul € como se voce estivesse realmente numa situacao oniri- ca. A mim, J aconteceu coisas que, na realidade, tive que me beliscar para me certificar de que nao estava sonhando. Mas, naturalmente, é preciso ter outra atitude consciente, é preci- so observar,é preciso estar aberto a todas as possbilidades e, lentio, veremos que, ainda hoje, a vida esta cheia de milagres, 2 €M:Coma o analista pode ajudar o outioa realizar aimaginagso. ava? MILvF: Comegamos, quase sempre, somente com os sonhos ¢,lentamente, os sonhos mostram seu cardter arquetipico e, jd estamos na mitologia. Depois de se ter trabalhado por bastante tempo com os sonhos pessoas, a mitologia apa- rece, como demonstrei no caso do mexicano. Nesse caso, 0 Inconsciente coletivo fez presente seu mito, por assim dizer, Nesse momento, foi seu mito pessoal que surgiu e, com ele, ia ctiatividade, uma vez que se tornou americanista e ago: Fa se encontra verdadeiramente criativo. Ele achou seu lugar ‘a historia, no mundo e, agora, sabe o que deve fazer. Nesse sentido, ele foi curado porque 2 neurose, a pior neurose néo. 50 0s sintomas, mesmo que sejam muito desagradéveis, mas ‘a pior neurose é ter o sentimento de que minha vida nao tem sentido. Hoje em dia, tem muito mais gente que sofre disso \do que de sintomas verdadeiramente neursticos, ou seja, de sintomas compulsivos ou algo assim. Eu tenho muitos ana- lisandos que nao apresentam sintomas psiquitricos ou psk- Copatolégicos, mas que vém simplesmente porque dizem: ‘Minha vida ndo tem mais sentido, esta vazia’ No inicio, comegamos sempre pelos sonhos, por precau- Gd0, € porque a imaginacao ativa é algo Intenso. Esta é uma pratica um tanto quanto forte, chela de eletricidade, e numi- ‘nose. Portanto, comecar com os sonhos é uma forma menos perigosa, pois, com eles, vé-se logo do que é que se trata, Podemos, enti, fazer uma reeducacio com essas pessoa ode-se reduzir-Ihes o racionalismo, ou mesmo dar-thes um ouco de razao, se necessério for, jd que, naturalmente, nao somos antirracionalistas. € somente uma questo de recon- Ciliar 0 irracional da vida com a vida da razio. A razio tem seu lugar na vida, hd momentos em que se deve empregar 1 razBo. Mas ha momentos em que se deve deixar viver 0 23 sentiment, a fantasia, a fantasia criativa, sobretudo para se encontrar um sentido, Vocé se lembra de que, nas Memérlas, Jung disse: “Eu fiz esse livo sobre a mitologia, mas quando 0, terminel, disse a mim mesmo:'Tudo isso esta muito bem, mas qual é 0 meu mito, qual é 0 mito no qual eu vivo?" E, entdo, ele comecou a fazer a imaginagao ativa;iniciou um descen: 50, permitindo que os simbolos do inconsciente emergissem para que, topando com eles, encontrasse seu mito." (CM: Ha muita gente que diz: ‘Claro, eu tenho sonhos; mas, a0 mesmo tempo, arma que no consegue se lembrar deles. En: to, essa auséncia de memoria do que foi vivido no espaco no- turno representa um tipo de censure que ¢ imposta asi mesmo. para impedir que o sonho penetre a vida real? MLvF: Sim, sim, em geral, sobretudo, se a pessoa vive uma vida extrovertida demais, muito voltada para o exterior, e faz muita coisa. Eu mesma, se fago muitas coisas, se vejo gente demais 0 dia todo, se nao tenho um momento de tranqull dade, minha tendéncia no sonar. € também um proble- ma energetico: a energia esta totalmente direcionada para a adaptacdo externa, mas o inconsciente tem necessidade de certa energia para engendrar um sonho. Entdo, se gasto toda a minha energia, quando acordo, tenho um sentimento vago: "Tive um sonho, mas no posso mais me lembrar’ Ao passo que, sempre quando me retiro e vivo muito tranquilamente © pouce falo, tenho grandes sonhos chelos de cor. Mas, 3s vezes, eu também os tenho, se eles so necessirios, no melo dda confusdo. Isso depende, mas, em geral, pode-se dizer que essa éa regra, E, também, isso acontece quando as pessoas nao gos- tam de seus sonhos. Frequentemente tenho analisandos que dizer: “Ah, sempre tenho esses pequenos sonhos pessoais, “Jak Memos Sons Refltes, io de ance: Nova Front 2006 24 ‘absurdos. Eu fico com inveja. Lemos nos livros sobre os mag- hificos sonhos que outras pessoas tém, mas 0 que tenho sao ‘apenas esses pequenos sonhos bobos e absurdos” Mas Jung sempre diz: "Nao ha sonhos bobos, ha somente pessoas to- las que nao os compreendent’. Sempre digo que devemos ter a humildade de analisar esses pequenos pedacos de so- ho absurdos. E se vocé emprega a energia, se os analisa e se obedece a0 que dizem, entdo, geralmente, os sonhos se tomam mais ricos. € como se o inconsciente dissesse:"Ah, se voce quiser me escutar, eu tenho muito a Ihe dizer! Mas, se nao o escutamos, ele nada diz Pouco a pouco, as pessoas tem. mais sonhos, mais interessantes, desde que, verdadeiramente tenham a atitude de dar atengao aos seus sonhos, Tive como analisando um homem que me disse: “Sra, von Franz, quero fazer uma anélise porque tenho depressio, mas vocé nao poders trabalhar com os sonhos, pois eu nunca sonho' Eu rie Ihe disse:"Até agora, isso nunca fol um proble- ‘ma. E na primeira conversa, nés somente tocamos nos pro- bblemas pessoais. Vi um pouco onde estavam os complexos. A igente nota isso na voz: quando a voz muda, isso nos fala dos omplexos, ndo €? Depois de fazer minhas anotacées, ele dis- se: "O que vamos fazer se nao tenho sonhos?" Respondi-ihe: "Ea mesma coisa, agora vamos falar de outras coisas, nao se preocupe. Sempre se tem um sonho!” EM: Quando nos lembramos de um sonho,é possivel reconst HHo.com fielidade, primeiro na sua integridade e, depois, em Luma sucessio de imagens, tals como apareceram no sonho? MLvF: Para o primeito ponto a resposta é ndo, absolutamen fe! No podemos controlar isso. Nos laboratdrios de sonho, ‘quando a pessoa comeca com 0s REM ela & acordada ime Shc sie americana para Rp Ee Merny, que em ponuges sca Inter rpaodosoner ican 25 dlatamente e & convidada a contar sonho enquanto esta ainda inteiramente fresco, por assim dizer. E depois disso deixam-na dormir novamente e, de manha, Ine perguntam se teve um sonho ea deixam conté-lo, Assim se pode comparar ‘como eles 540 relatacios no momento em que foram sonha- dos e como so informados depois, em uma situacdo normal ‘quando se acorda de manha. As diferencas nao sao grandes. As vezes, hé epis6dios esquecidos ou o sonho ¢ encurtado.. Tive um colega que receava que (neste tipo de experimento) 1s cenas desagradaveis do sonho fossem reprimidas e que ‘apenas as boas fossem lembradas. Ele conduziu varios experi- mentos esso nao se confirmou. Em geral, areprodugio é fel. ‘Mas o problema do tempo é de fato real. Fol isso que le- ‘you Jung, entre outros, postular aideia de que, nas camadas pprofundas do inconsciente, hi uma relatividade do tempo, ‘como no mundo microfisico des étomos. Os sonhos so, 3s vezes, como pacotes de imagens, mas, quando vamos conts~ -los, € necessério transformé-los numa sequéncia discursiva de cenas, Entdo, mesmo que eu tenha verdadeiramente so- inhado:"€stou em uma catedral e vejo uma imagem; e, depots, eu entro em uma catedra’, pela manha vai ser contado: "Eu tentro em uma catedral, (e depois) estou em uma catedral, instintivamente nés colocamos ordem. Mas isso nos chega {quase todo dia; 0 individuo diz a0 analista:’Ainda tenho um. equeno fragmento, mas nao sei onde ele se encaixa, nao sel se est no comeco, no fim ou no meio... Enfim, vou conté-lo" Entao, se vé que nao se pode colocé-lo nstintivamente numa ssequéncia, a imagem velo no pacote. (CM: E como se pode sonhar, por exemple, em um milésimo de segundo cu um centésimo de segundo alguma colsa que leva ‘mos alguns minutos para relatar? Quer dizer que a imagem é cextremamente violenta e répida, e no pode ser contada a no seem um tempo muito longo. 26 im. E como Poincaré, que viu as solugbes das equa- {goes fucsianas em um segundo, eisso Ihe tomou trés quartos de hora em sequida para escrevé-las. Ele estava simplesmen- {no seu sofa (ele explica em Science and Method) e viu assim. (estalando os dedos), num flash, em um momento. Esta é uma funcao da intuigdo, que é uma percepgio através do incons- lente em que, as vezes, se vé, por assim dizer, as coisas em bloco, em conjunto. Nas mitologias dos primitivos, por exemplo, se voce festuda as linguas primitivas, as palavras tém vinte sentidos, fas nao so de modo algum fixas em um sentido. As palavras {..] nas grandes palavras primitivas hd todo um cosmo que & esignado por essa palavra, Ainda é desse modo na vis8o do Inconsciente, por assim dizer. O inconsciente tem uma visio hintética das situagées, pode-se dizer. A esséncia do simbolo sinda é assim, segundo Jung. O simbolo nao tem um sentido, ‘Nao se pode dizer:"A cor verde é a esperanca’ Cada simbolo tem um sentido absolutamente complexo que nao se pode Jamais esgotar; de acordo com Jung, nao podemos jamais fesgotar[..J. Com a linguagem e com © argumento racionel, nao pademos jamais esgotar o sentido de um simbolo. Fica Sempre um resto, nao conhecido, do qual ainda se poderao deduzir algumas coisas, (EM: Quer dizer que a figura simbolica tira seu significado parti: feular de outras figuras simbolicas as quais ela se acha assoclada? MLvF: Sim. Entao, para nao nos perdermos nesse oceano de sentidos diferentes, observamos sempre o contexto, nao é? Por exemplo, o ledo as vezes tem a ver com 0 poder, com 0 Sexo; € a realeza, é 0 sol, ¢ aquilo que devora, é aquilo que faquece. Veja, isso jé é uma mistura: a realeza € 0 sol se mi turam. O calor e 0 sol se misturam, mas o calor eo rei nao se ‘misturam. Voce vé que hd um monte (porassim dizer todo um a campo) de sentidos diferentes. Por conseguinte, se alguém, durante anoite, sonha com um ledo, 0 que escolher? Entre to- dos.os sentidos, qual escolher? Entio observamos o contexto. Observamos se 0 leo é perigoso: nesse caso, a tendéncia ‘optarmos pelo lado devorador, do poder. 0 leao ¢ também simbolo do diabo no cristianismo; e se o ledo é positivo, se no sonho é, por exemplo, um guia que conduz, ou algo neste sentido, diremos entdo que se trata da realeza, algo relativo & qualidade solar, com a lluminagio etc E por isso que a interpretacao dos sonhos néo ¢ algo puramente racional, é uma arte, que necesita de uma sen- sibilidade artistica; é necessério um sentimento, Mas é tam- bem um problema de linguagem: como se pode dizé-lo a0 ‘outro? Se voce esta lidando com uma pessoa culta, pode fazer alusBes posticas e sutis. Se for uma pessoa ingénua, deve ser preciso. Se for uma pessoa do povo, aluém do povo |}, en- ‘do eu digo: 0 ledo, isto que esta em voce, ele faz AARRH, © pertence a voce" Se analiso alguém que nao tem educacao. ‘alguma, eu fago uma encenacao do ledo para expressar aqui- lo que desejo dizer. ‘CME é essa riqueza de figuras simbélicas que, em parte, explica a atengdo que Jung deu @ alquimia. Porque, para alguém que. entra pela primeira vez nesse territerio alquimico,é bem eviden- tea prodigiosa riqueza das imagens utiizadas pelos escritos dos alquimistas, o que é impressionante, MLvF: € isso que impressiona; mas poderla dizer que, se voce colecionar todos 0s contos de fada do mundo, teré também. uma enorme riqueza de simbolos. E isso é o que também se ‘mostra especial com a alquimia ~ e creio que é por isso que a alquimia é 0 mito dos tempos futuros, é o mito profético da tera de Aqusrio: a alquimia &3 linguagem...da matéria. Ea lin~ ‘guagem de um tertitério onde a psique e a matéria se tocam, 28 © € por iss0 que especialmente, uma linguagem criadora, E voce vé agora que, em toda a fisica moderna, investigam- se problemas que os fisicos americanos dizem existr na re- \c40 entre a matéria ea mente, entre, digamos, a materia & 8 psique. Agora, por exemplo, apareceu na América um livro excelente, O Tao da fisca, de Fritjof Capra, que tenta provar que a fisica moderna se aproxima das ideias hindus e que, no fundo, 0 cosmo é uma enorme estrutura viva que é tanto mental quanto materia. Capra nada sabia sobre a alquimia e ‘por isso que ele procurou o Oriente. Ele buscava um mito da matéria, entdo ele foi ao hinduismo. Mas, se nao quisermos ir to longe, nds temos um mito da matéria que é, precisamen- @ alquimia. E af vocé tem de tudo, tem aquilo que aborda- ‘mos no comeco. A alquimia se ocupa do problema do mal. A lquimia é, essencialmente, feminina e se ocupa do problema {da matéria e do principio feminino. Portanto, as duas coisas ‘que faltaram até o presente no crstianismo se encontram de forma compensatéria na alquimia.£ por isso que, na alquimia,, emos uma linguagem para encontrar solucdes para esses ols grandes problemas que ainda nao resolvemos. EM: Porque o projeto alquimico consiste, em esséncia, er fazer sugit da matéria espirta que all se encontra escondido. MILvE: Sim. Para eles, a matéria nao é morta, ndo é uma ma- {éria inanimada: eles tém inclusive a ideia da anima mundi, 4 ideia de que a matéria tem uma psique. E agora, o biélogo Rensch, por exemplo, diz que a psique, provavelmente, no fomecou a existir num dado momento da evolucio; diga- ‘mos, com os vertebrados ou algo assim. Ele diz que a psique deve ter sempre existido e, para nao empregar o nome psi ue, falou de protopsique. Ele prope que ja deve haver uma protopsique no étomo. Vocé vé que ai também ha uma ten. Intiva de retornar as ideias da alquimia, de reunir aquilo que 29 Co cartesianismo de tal forma separou: sujeito € objeto, ratio e matérla morta, EM: Sin, bor, ai nds nos encontramos no plano da eneria Catia, quer dizer, em um Universo que é, essencialmente, de~ finido pela sua capacidade de metamorfose. E¢ preclsamente’ ‘o-homem que aqui esté para manifestar essa possibildade de transformagao do mundo. E, num certo sentido, justarnente por sera crlatura,torna-se mesmo maior do que seu proprio criador, se criadorinominado que vive num dominio do lade de la MIF: € por isso que 0 alquimista sempre diz: “Aquilo que 2 natureza debxou imperfeito, a arte da alquimia completa, portanto, ele continua a obra de Deus, ela a coloca naquele ‘mundo do lado de la. (CM: Entdo, no didlogo entre Jung #2 alquimia, hd un ponto que ‘me parece muito interessante. £ que 05 alouimistas sempre de~ fenderam que no conhecimento, que é 0 fundamento de suas ppesquisas, permanece, ainda secreto, um conhecimento, const derando que uma grande quantidade de mentes era bastante ‘obscura para acomodar 9 que eles tinham a dizer. E essa vocar (do esoterica da alquimia debsoura a maigem e a protegeu, em: Certo sentido, das incurses que pudessem tila do caminho| mas.ao mesmo tempo impediura de fecundar como poderia ter sacontecido. MLvF: As ciéncias.. ‘CM: Com todas as civilizagées em que vivernos. Nesse caso, ‘como Jung via o problema aberto pela alquimia? [ML¥F: Para Jung, isto era um problema de coragem, porque cle sabia que se publicasse livros sobre a alquimia, diriam que 30 ‘le era esotético, que era ocultista. 4 se comentava que ele ‘era confuso, que ere mistico[.1 entao, ainda por cima, falar de ‘lquimia... Além disso, ele me dizia:“Eu sabia que estaria aca bado no mundo cientifico’e:Mas é a verdade, entdo eu hes respond: Tanto faz!” As geragées que virgo mais tarde nao Set40 to limitadas e verdo que isso nao é de todo irracional, que se pode compreender 2 alquimia, que nao é totalmente ‘culta ou obscura, mas que necessita ainda de certo desen- \olvimento, sobretudo das cléncias naturais, para se juntar a (CM: Mas ele ndo teria visto na alquimia a imagem daquilo que os é proposto? Diferentemente de um grande numero de te- logos ou fildsofos que fugiram da matéria se refugiaram nas bsttagbes, os alquimistas procuraram a natureza, Eles olharam hatureza e procurarem na sua esséncia material 0 segredo da existéncia. Eles votaram a ela e confrontaram-na como nés Jamnbém deveriamos alhar para nés préprios, votando-nos para nossa zona sombrla para lumina MLvF: Sim, absolutamente, e vocé vé agora essa tendéncia (eral que se pode verificar pelo modo como se trata o corpo tualmente. Tudo isso interessa ao corpo e a psicologia. Ha fscolas de psicologia na América onde tudo o que se faz é to- far 05 pacientes: eles sao abracados, emputrados, acolhidos com tapinhas nas costas etc. So tratados fisicamente [..] A moda agora é:treinamento sensorial e todos esses processos. | existe uma ideia de que nossa psique esta igada a materia 1 eles procuram a psique no corpo, mas no sabem (e é por Js50 que empregam meios tao primitives e, para nés, barba- fos) que 0s alquimistas, através de uma meditacao interior, sempre entraram em contato com a matériae, também, com seus corpos. Por exemplo, se voce pensar em Paracelso, sua ‘slquimia é centrada no firmamento interior que é, por assim 31 dizer a visdo interior ou a visio psiquica do corpo materia Poderiamos dizer que o corpo material tem umn aspecto psi {quico € is0 0 Oriente sempre viu: ioga & entrar em contato ‘com seu corpo gracas & introspecco. 80 6 a alquimia. A al {quimia €a mesma coisa que aioga taista~ sobretudo aioga taofstachinesa, que &a mais préxima, que é pura alquimia. Al 16s compreendemos o que ela é. $6 que, como Somos mal extrovertidos,apesar de vermos a importincia do corpo e do ue esté dentro dele, trtarnos o corpo como um outro, como se com ele lutdssemos, ao invés de nos isolarmos, de meditar+ mos e de falarmos com o corpo. Es6 assim ento que apren- deriamos 0 que ¢ a alquimia. A alquimia é uma via introver- tida, consiste em contatar a matéria, ndo a partir dos meio extrovertidos, a0 exterior, n30 a medindo, mas contatandox como interior de si proprio. (CM: Vocé evocou essa admirével imagem de Paracelso, que] fala do céu interior, Tudo se passa, pols, como se nossa psique| estivesse bloqueada por elementos subjetivos que a impeder cde penetrar o mundo que ela prdpriacarrega. Da mesma foray {que no conseguimos nos desvencilhar do barro que nos macus la, que estamos fadaclos a cartegar todos 0 dias. MLvF: Sim, sim, justamente. € por Isso que é t8o importante trabalhar também com a sombra.£ somente depois que voc tiver passado por essa porta desagradével, através da qual s ‘observa a sombra, que voce pode penetrar o céu interior, quer dizer, as camadas da psique que funcionam no estado pur fe que no so aviltadas ou neurotizadas pela sombra qu se reprimiu. Nesse caso, Freud tinha absoluta razao: ha um: ‘camada de repressio em multas pessoas, fatos reprimidos desagradaveis etc. que impedem a psique de se manifestar, Ha repressées mesmo para as pequenas preocupacoes did rlas. Se vocé se perguntar: “Por que isso me incomoda tant 2 Assim? geralmente vocé ji vé que existem colsas Id atrés. A pessoa se preocupa com coisas que nio so absolutamente importantes e ha problemas que geralmente so muito exa- jerados. Os outros dizem: “Vamos, ndo se importe, seja um. ouco filésofot’, mas ndo se consegue, o afeto esta fixado no omplexo. Os complexos so 0s pequenos diabos que nos tormentam durante a vida. Acreditamos que esto no exte- Flot, mas na realidade é o complexo. De minha parte comeco or ai e digo: "Nao, isso nao esta em ordem’, Depois eu me pperqunto:*O que hé por detrés, por que isso me perturba de al modo?" Assim vocé penetra como que por camadas,entra ‘ada vez mais fundo e, quando tiver passado por essas ca- madas de pequenos problemas, disputas, conflitos maritais fc, problemas com as criancas, problemas com impostos, voce alcanga lentamente o que esta Id atrés, mais profundo, F por isso que jamais rejeitarei essa camada suja. Entre os al quimistas, alguns dizem que se deve eliminasla, mas muitos fifrmam: "Nao. € nessa camada que se deve agarrar, é nela fue se encontra acura’ Estes pertencem 3raca de alquimistas {ve privilegiam o cozimento e dizem que "6 preciso pegar 0 homer 1a onde ele se encontra” Se ele tiver problemas com Jmpostos, esse ¢ 0 seu problema, 6 ai que o encontraremos, thas logo se vé que isso é um subterfigio e que, no ceme, 0 problema & muito mais profundo, é tal e tae tal etal Assim. cdesce lentamente em direcao as camiadas mals profundas. IM: Creio que vocé fotlevada ultimaments, a estudar 0 proble- Ip da bruxaria e o problema dos exoicismos. O mal revelado praticas de bruxaria pertence 8 zana de sombya de que voce oy ILvF: Sim, mas era também, sobretudo, porque a sombra era sojetada, considerando-se a repressao que havia em relagéo. i principio feminino. Tudo que se reprime se torna daninheo, 33

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