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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS


LETRAS – LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESA
DISCIPLINA: LITERATURA BRASILEIRA I
Turma: IH13-02
Discentes: Abilane Amorim Nobre & Lucas Limas de Sousa

INTERTEXTUALIDADE COM A CARTA DE CAMINHA

1. Introdução

A Carta Pero Vaz de Caminha faz parte da primeira manifestação literária


pertencente ao Quinhentismo, conhecida como a “Certidão do Brasil”, pois foi através
dela que os portugueses souberam quais riquezas a terra desconhecida tinha e como
eram as pessoas que habitavam o Brasil. O texto de Caminha revelou-se como um
importante documento histórico, conforme assinala Alfredo Bosi (1994):

O que para a nossa história significou uma autêntica certidão de nascimento,


[...] dando notícia da terra achada, insere-se num gênero copiosamente
representado durante o século XV em Portugal e Espanha: a literatura de
viagens. Espírito observador, ingenuidade (no sentido de um realismo sem
pregas) e uma transparente ideologia mercantilista batizada pelo zelo
missionário de uma cristandade ainda medieval: eis os caracteres que
saltaram à primeira leitura da Carta e dão sua medida como documento
histórico [...] (BOSI, 1994, p.14).

Pero Vaz de Caminha descrevia na carta a descoberta do paraíso, a postura


solene de Cabral ao ver os índios nus e foi a partir disso que se pôde traçar o perfil
do “selvagem”, da rica natureza a qual eles buscavam metais preciosos, logo,
dessa forma, garantindo uma imagem positiva da terra descoberta e de seus
habitantes.
Tratando-se das obras que fazem alguma referência à Carta de Caminha, seja
diretamente ou indiretamente, será abordado no decorrer desta elaboração
acadêmica o poema “Carta de Pero Vaz”, de Murilo Mendes, “Iracema”, de José de
Alencar, “Caramuru”, poema de Frei José de Santa Rita Durão, “Brasil 500”,
composição musical de Maurício Tizumba, e, por fim, o filme “O Descobrimento do
Brasil”, do cineasta Humberto Mauro.
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2. Intertextualidade com a carta de Caminha

Como sabemos, a Carta de Pero Vaz de Caminha é o retrato do que


colonizadores europeus viram em terras brasileiras, as quais eram conhecidas como
“o novo mundo”, que logo depois se tornaram território colonial. A intertextualidade,
pode ser percebida na obra do escritor modernista Murilo Mendes, na qual estabelece
relação direta com a primeira carta escrita em território brasileiro, em seu poema
“Carta de Pero Vaz”, a seguir:

Carta de Pero Vaz

A terra é mui graciosa,


Tão fértil eu nunca vi.
A gente vai passear,
No chão espeta um caniço,
No dia seguinte nasce
Bengala de castão de oiro.
Tem goiabas, melancias.
Banana que nem chuchu.
Quanto aos bichos, tem-nos muitos.
De plumagens mui vistosas.
Tem macaco até demais.
Diamantes tem à vontade,
Esmeralda é para os trouxas.
Reforçai, Senhor, a arca.
Cruzados não faltarão,
Vossa perna encanareis,
Salvo o devido respeito.
Ficarei muito saudoso
Se for embora d'aqui. (De História do Brasil, 1932).

Ao ler essa obra podemos perceber que a relação intertextual é destacada logo
no início, especificamente em seu título, pois está parafraseado que a carta que foi
enviada para o rei de Portugal é de Pero Vaz. Logo, podemos perceber que Mendes
faz o uso da ironia quando o eu-lírico cita algumas riquezas de forma exagerada que
poderão ser extraídas do Brasil e, nesse momento, há uma crítica aos portugueses,
devido à exploração humana e material que ocorreu naquela época.
José de Alencar também irá mencionar traços da Carta de Caminha em seu
romance indianista “Iracema”, obra na qual o índio é visto como um “bom selvagem”,
por serem descritos como puros, dóceis e submissos, não pondo dificuldades nas
imposições dos colonizadores portugueses, além de exaltar a fauna e flora do território
brasileiro recém descoberto, como se observa no trecho em destaque:
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Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a
asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não
era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu
hálito perfumado. (ALENCAR, 1959).

Dando continuidade à intertextualidade, Frei José de Santa Rita Durão, em seu


célebre poema épico Caramuru (1781), constitui intertextualidade com a carta de
Caminha em diversos trechos, entre as quais a estrofe XXI, quando fala sobre o jeito
despojado dos indígenas no ser e no comportamento, e a estrofe XXII, que narra a
beleza dos animais avistados, como veremos a seguir:

XXI

Vê-se no sexo recatado o pejo,


Sem mais que antiga gala que Eva usava,
Quando por pena de um voraz desejo,
Da feia desnudez se envergonhava;
Vão sem pudor com bárbaro despejo,
Os homens, como Adão sem culpa andava;
Mas vê-se, alma Natura, o que lhe ordenas,
porque no sacrifício usam de penas.

XXII

Qual das belas araras traz vistosas,


Louras, brancas, purpúreas, verdes plumas;
Outros põem, como túnicas lustrosas,
Um verniz de balsâmicas escumas.
Nem temem nele as chuvas procelosas,
Nem o frio rigor de ásperas brumas;
Nem se receiam do mordaz besouro,
Qual anta ou qual tatu dentro em seu couro. (DURÃO, 2021, p. 6)

Pero Vaz de Caminha desenvolve seu texto narrando a Dom Manuel I (rei de
Portugal e Algarves entre 1945 e 1521) a riqueza natural presente na terra, a
diversidade de aves e o povo que vivia no local. Percebe-se a interação das duas
obras, em relação à estrofe XXI de Caramuru, quando na Carta de Caminha é narrado
o momento em que a tripulação se encontra com um grupo de indígenas no litoral,
vestidos de forma diferente do costume dos portugueses, o que já lhes causa
estranhamento:

Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas
vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos
sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles
os pousaram. (CAMINHA, 2021, p. 2).
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A mesma relação intertextual observada em Caramuru é vista entre a estrofe


XXII e a descrição que Caminha faz de algumas aves que ele e os demais avistaram
ao caminhar na mata:

Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns


papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e
pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra. Porém
eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos,
somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante maiores que as
de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os
arvoredos são muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por
esse sertão haja muitas aves! (CAMINHA, 2021, p. 10).

Na música popular brasileira também há nas composições referências à


missiva de Pero Vaz de Caminha. Destacamos aqui Maurício Tizumba, cantor e
compositor brasileiro de Minas Gerais, que na música Brasil 500, do álbum intitulado
“África Gerais”, de 1996, no trecho inicial, menciona a Carta de Caminha:

Há quinhentos anos atrás, aqui do Brasil


Pero Vaz de Caminha escreveu
Uma carta
Para o rei de Portugal que dizia
Assim:
Aqui nessa terra tudo que se
Planta nasce, cresce e floresce
Deixa o povo plantar.
Deixa o povo colher.
Deixa o povo ser feliz.
O Brasil não pode ter miséria!
O Brasil não pode ter miséria!
Nessa terra de tanta fartura Olorum,
Xô miséria! (TIZUMBA, 1996).

Humberto Mauro, cineasta e diretor brasileiro, no filme “O Descobrimento do


Brasil” produzido em 1936, buscou na Carta de Pero Vaz de Caminha o roteiro de sua
produção: reproduziu no enredo a trajetória da frota portuguesa até a chegada na
costa brasileira em 1500, os primeiros contatos com os índios da região, até a
celebração da primeira missa, tudo sob a perspectiva do olhar de Pero Vaz, como
descrito a seguir:

Num primeiro olhar, H Mauro, busca com a câmera fazer o que Pero Vaz de
Caminha fez com a pena, ou seja, contar o fato como se fosse um repórter
filmando dentro do barco do Cabral. No filme este desejo se expressa logo
nas primeiras cenas onde são apresentados os personagens e onde Caminha
ganha destaque. No entanto, o tempo e a perspectiva do olhar fizeram com
que o filme conferisse à Carta outros significados. (LINO, 2001).
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Observa-se a relação da película elaborada por Mauro com a Carta de Caminha


muito além do aspecto da modalidade de produção. É uma releitura das primeiras
visões que o português relatou, agora a partir de uma nova perspectiva.

3. Considerações Finais

Podemos perceber a intertextualidade dos escritos de Caminha com várias


obras literárias, inclusive de outros gêneros. O escrito de Pero Vaz mostra muito bem,
em conjunto com outros textos, esse fenômeno de obras que se comunicam e
comungam de ideias, dialogam e até, por vezes, se antepõem.
A frase de Lavoisier (1777) ilustra claramente essa ideia: “Na natureza nada se
cria, nada se perde, tudo se transforma”. Ou seja, a literatura nasce da literatura e
cada obra é uma continuação, seja por consentimento ou contestação de obras
anteriores. Ademais, as obras citadas neste trabalho estabelecem diálogos com a
Carta de Pero Vaz de Caminha, seja através de crítica ou da abertura de uma nova
perspectiva.

Referências

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 35ª ed. São Paulo:
Cultrix,1994.

CAMINHA, Pero Vaz. A carta de Pero Vaz de Caminha. Ministério da Cultura.


Fundação Biblioteca Nacional do Livro, p. 1-14. Disponível em: <http: //www.
Objdigital.bn.br/Acervo Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf> Acesso em: 04 set. 2021.

DURÃO, Santa Rita. Caramuru. Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional


do Livro, p. 1-207. Disponível em: <http>:
//www.Objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/caramuru.pdf.> Acesso em:
04 set. 2021.

LINO, S. C. A História no Cinema de Humberto Mauro: uma análise do filme “O


Descobrimento do Brasil” – 1937. Locus: Revista de História, [S. l.], v. 7, n. 1, 2001.
Disponível em: periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20527. Acesso em: 6
set. 2021.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

TIZUMBA, Maurício. Brasil 500. Disponível em: <http: //www.letras.mus.br/mauricio-


tizumba/557614/> Acesso em: 04 set. 2021.

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