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Letramento no Brasil

Autor
Luiz Percival Leme Britto

1.a edição

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© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor
dos direitos autorais.

B862 Britto, Luiz Percival Leme.

Letramento no Brasil./Luiz Percival Leme Britto. — Curitiba:


IESDE Brasil S.A., 2005.

144 p.

ISBN: 85-7638-281-4

1. Alfabetização. 2. Escrita. 3. Leitura. I. Título.

CDD 372.4

3.ª reimpressão

Todos os direitos reservados


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Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482 • Batel
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Sumário
A sociedade de cultura escrita...............................................................................................7
O mundo escrito.......................................................................................................................................7
Língua e mundo.......................................................................................................................................8
As palavras e seus sentidos......................................................................................................................9
A identidade na sociedade de escrita.......................................................................................................11
A ordem da escrita...................................................................................................................................15
Escrita e poder.........................................................................................................................................17

Letramento: novas realidades, novos conceitos....................................................................21


As origens do novo conceito....................................................................................................................21
Novidades e continuidades......................................................................................................................22
Letramento: problemas conceituais.........................................................................................................26
Os termos em diálogo..............................................................................................................................29

A escrita na vida moderna.....................................................................................................35


A diversidade de uso e de formas da escrita............................................................................................35
As esferas de uso da leitura e da escrita..................................................................................................36
Formas de produção e circulação do conhecimento................................................................................41
As tecnologias de circulação da informação...........................................................................................45

Letramento e alfabetismo......................................................................................................51
Compreensões históricas do alfabetismo.................................................................................................51
Relação entre letramento e alfabetismo...................................................................................................53
Alfabetismo no Brasil..............................................................................................................................54
Evolução histórica do alfabetismo...........................................................................................................55
Níveis de alfabetismo..............................................................................................................................57
Caminhos e possibilidades.......................................................................................................................59

Pedagogia do letramento e da alfabetização.........................................................................63


Escrever e falar........................................................................................................................................63
A materialidade escrita............................................................................................................................66
Os discursos referenciados na tradição da escrita....................................................................................67
As instâncias de uso da linguagem..........................................................................................................70
Letramento como inclusão social............................................................................................................71

Leitura no espaço social........................................................................................................75


A leitura como valor e como mercadoria.................................................................................................75
Mitos e verdades sobre a leitura..............................................................................................................80
Uma história de leitor..............................................................................................................................82
Promoção da leitura e experiências estéticas...........................................................................................83

Leitura, escrita e subjetividade.............................................................................................87


A subjetividade na sociedade moderna . .................................................................................................87
A leitura e identidade...............................................................................................................................88
Formas de controle das práticas e dos objetos de leitura . ......................................................................92

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Ler e escrever para estudar...................................................................................................99
Estudar para aprender, aprendendo a estudar..........................................................................................99
Escrita e metacognição ...........................................................................................................................101
A organização do estudo..........................................................................................................................103
Recursos da leitura de estudo..................................................................................................................104
Constituição de acervo.............................................................................................................................107
Em síntese................................................................................................................................................107

Informação e conhecimento..................................................................................................111
A norma moderna....................................................................................................................................111
Constituindo a informação . ....................................................................................................................112
A informação como produto....................................................................................................................115
O que faz da notícia uma notícia?............................................................................................................116
Informação X conhecimento ..................................................................................................................118

Pedagogia da leitura e da escrita...........................................................................................123


Língua e subjetividade . ..........................................................................................................................123
A leitura e a escrita na base do conhecimento escolar.............................................................................125
Língua, norma e preconceito...................................................................................................................127

Referências............................................................................................................................139

Anotações..............................................................................................................................143

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Apresentação
Prezado(a) educador(a),

E
ste livro trata de um tema que nos é bastante familiar: a reflexão sobre as práticas de leitura e
escrita na sociedade de cultura escrita e sobre as formas de ensiná-las. Nele, você encontrará
reflexões e análises sobre a relação entre língua e sociedade, sobre usos e conhecimentos, sobre
os modos como estas coisas participam na vida da gente e os sentidos que têm. Encontrará estudos
sobre comunicação, preconceito, informação. Encontrará, a todo o momento, um convite a pensar
sobre a língua, principalmente a língua escrita e os sentidos que ela tem em nossas vidas.
A perspectiva adotada nestas aulas não é a de oferecer modelos. Aqui, você não encontrará a
exposição de regras ou padrões de como ensinar a escrever e a ler, de como fazer o letramento. E isto
por duas outras razões.
A primeira razão decorre da idéia de que conhecer como se apresenta em nossas vidas a língua
escrita, seus usos e funcionamento, sua razão de ser na sociedade e na vida humana, é mais importan-
te e anterior ao aprendizado de regras de uso. De nada vale saber uma regra se não sabemos sua ori-
gem, seu sentido e seus valores. Muitas vezes o ensino de regras, como se fossem verdades absolutas,
esconde uma visão autoritária e preconceituosa de sociedade e de aprendizagem. A atividade reflexiva
sobre a língua, sobre seus usos e valores deve colaborar para que o estudante possa se ver como al-
guém que participa do mundo, que atua nele, intervindo na sociedade para torná-la mais justa e equi-
librada. Deve também contribuir para indagações mais pessoais sobre as formas de ser humano.
A segunda razão diz respeito à compreensão que tenho de como as pessoas desenvolvem suas
capacidades no uso da língua, em particular da escrita. Aprender a escrever e a ler (e outra coisa não
é o letramento senão isso) é aprender a organizar o pensamento de um certo modo, reinvestir cons-
tantemente em sua formação e na realização de suas expectativas. Para isto vale a pena ler, escrever
e ensinar a ler e escrever.
Em alguns momentos, talvez, você considere a análise muito amarga, desanimadora. Mas, so-
mente conhecendo a realidade como ela é, poderemos agir sobre a mesma, modificando-a e tornan-
do-a mais próxima de nossos sonhos.
Espero, com estas aulas, não só contribuir para sua formação, mas também incentivá-lo a so-
nhar com uma sociedade em que todos possam ler, escrever, trabalhar e, acima de tudo, viver com
qualidade.
Luiz Percival Leme Britto

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A sociedade
de cultura escrita
Luiz Percival Leme Britto*

A
presenta-se, nesta aula, uma análise de como a sociedade de cultura escrita
se constitui e se organiza, a importância da linguagem, o papel da escrita
na vida diária, assim como as formas de as pessoas serem, aprenderem e
atuarem nesta sociedade.

O mundo escrito
Quando pensamos sobre escrita, a primeira imagem que vem à cabeça é a
de uma linha de letras dispostas numa folha de papel. A esta imagem associamos
imediatamente à idéia de leitura, de livros, cadernos, jornais, revistas.
Esta imagem tem lógica. Afinal, ela remete ao fundamento da escrita, algo
que participa intensamente de nossa vida nas atividades mais variadas, incluindo
os afazeres cotidianos, o trabalho, as relações sociais, as atividades
culturais. Não seria exagerado dizer que a maioria de nossas ações do
dia-a-dia é diretamente mediata pela escrita. O que quer dizer o
“espaço escrito”?
Se pararmos para refletir sobre a sociedade em que vivemos e
observarmos como ela se organiza, como se distribuem as coisas no
espaço, veremos que a presença da escrita é ainda maior do que supúnhamos.
Tomemos como exemplo a imagem de um rio. Um rio qualquer, como por
exemplo, aquele que aparece no início do romance “O Guarani”, de José de Alen-
car. É o Paquequer. O narrador disserta longamente sobre este rio, descrevendo
como suas águas, serpenteando pela serra, vão cavando o espaço. O rio progride
no ritmo de uma serpente, em função das formas que formam o fluxo de sua tor-
rente. O rio é antigeométrico.
Pensemos agora no desenho de em um rio urbano, como por exemplo, o rio
Tietê que corta a cidade de São Paulo. Ele já não serpenteia, não se estreita ou
se alarga conforme avança. Não tem várzeas, nem mata ciliar; seus limites são
estabelecidos por margens de concreto, as quais recebem um gigantesco fluxo de
veículos. O rio é uma linha, um desenho geométrico ladeado por grandes aveni-
das. Ele é assim não porque tenha sido sempre desta forma, mas porque ganhou a Professor Doutor do Pro-
marca da urbanidade desenhada, projetada, esquadrinhada. grama de Pós-graduação da
Universidade de Sorocaba;
Na sociedade contemporânea, os lugares têm suas dimensões estabelecidas Presidente da Associação de
Leitura do Brasil; Autor dos
muito mais por sua projeção no papel que pelo próprio espaço físico. O mesmo livros A sombra do caos —
ensino de língua x tradição
ocorre com as chuvas e os ventos: as imagens de clima que se oferecem, em ani- gramatical; Contra o con-
senso — cultura escrita, edu-
mações, nos noticiários, são formas de representação e compreensão da realidade cação e participação.

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Letramento no Brasil

organizada na e pela sociedade da cultura escrita. E o mesmo ocorre com o Cos-


mo, que nos aparece em mapas celestiais, e com as fronteiras nacionais desenha-
das nos mapas políticos.
Portanto, pertencer à sociedade de cultura escrita e participar dela implica
muito mais que saber ler e escrever. É efetivamente viver sob um modo de orga-
nização e de produção social mediado pelo escrito.

Língua e mundo
Com a língua, a gente dá nome às coisas, reconhece os objetos do mundo,
cria modos de ser e de ver. O educador Paulo Freire, ao defender sua concepção
de educação, insistia no fato de que as palavras são mais do que um instrumento
de comunicação. Para ele, a grande questão da alfabetização está relacionada à
tomada de consciência coletiva e a possibilidade de, pela aprendizagem da palavra
escrita, fazer novas e mais significativas leituras de mundo.
Para exemplificar a importância da consciência e auto-reconhecimento,
Paulo Freire conta um episódio de uma atividade de educação de adultos analfa-
betos, realizada com camponeses no Chile.
“Descubro agora”, disse outro camponês chileno, ao se lhe problematizar as relações ho-
mem-mundo, “que não há homem sem mundo”. E, ao perguntar-lhe o educador, em nova
problematização: “admitindo que todos os seres humanos morressem, mas ficassem as
árvores, os pássaros, os animais, os mares, os rios, a Cordilheira dos Andes, seria isto
mundo?” “Não”, respondeu decidido: “faltaria quem dissesse: isto é o mundo”. (FREIRE,
1976, p. 23).

A primeira impressão, essa idéia pode parecer sem sentido. Afinal, a ma-
téria física que faz o universo é independente da vida e da vontade humana, já
existia há muito tempo, antes de aparecer a humanidade, e continuará a existir
mesmo depois que não existirem mais homens e mulheres.
Mas o mundo, a vida humana – dirá o camponês chileno – existem porque
os homens e as mulheres não apenas existem, como sabem que existem, e repre-
sentam e afirmam sua existência, assim como afirmam a existência de todas as
outras coisas que os rodeiam, com suas palavras.
Poder dizer, poder falar uma língua, me permite pensar e me relacionar
com o outro, me faz ser gente, me faz humano, homem ou mulher, me faz ter
consciência de mim mesmo, do outro, do mundo e da vida. E esta possibilidade de
relacionar-se com o outro que faz de uma pessoa um ser social.
Mas é preciso perceber que a condição humana é social, e isso não apenas
no sentido de que a gente vive em grupos de uma forma organizada. Também as
abelhas e as formigas fazem isso. O ser humano é social num sentido mais pro-
fundo: sua sociabilidade está relacionada com sua capacidade de simbolizar e de
conhecer sua própria condição.
Por tudo isso, pode-se dizer que a língua é parte da condição humana, e é
base de todas as culturas. E enquanto coisa humana e fundamental para a vida,

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A sociedade de cultura escrita

para cada indivíduo e para a sociedade, ela é objeto de reflexão de muitas manei-
ras: científica, normativa, artística.

As palavras e seus sentidos


Também o poeta Carlos Drummond de Andrade tratou de pensar sobre a
língua. Ao compor um poema em que reflete sobre o ato de poetar, ele escreve
para ele mesmo, procurando explicitar os múltiplos sentidos que as palavras po-
dem ter.

Procura da poesia (fragmento)


(Drummond, Carlos de Andrade, 1945)

Penetra surdamente no reino das palavras.


Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los, sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiam na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Drummond reconhece que a poesia encontra sua matéria-prima nas pala-


vras. A poesia se faz com as palavras, assim como a consciência. Para poder viver
a poesia, é preciso penetrar no reino das palavras, que é o lugar da significação
da vida.

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Letramento no Brasil

E o poeta reconhece também que as imagens que faz escrevendo versos e


estrofes não seguem apenas a sua vontade. A poesia, diz ele, tem uma dinâmica
própria, independente da vontade individual. Por isso, se propõe a aceitar o po-
ema como ele é, assim como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no
espaço.
Ao refletir sobre o ato de fazer poesia, o poeta aceita a idéia de que as
palavras têm vida e autonomia. As palavras apresentam-se “em mil faces secre-
tas”, oferecendo sempre mais sentidos do que aqueles que a gente supõe serem
os definitivos. Mas também não está nas palavras o secreto da significação. Ele é
conseqüência daquilo que a gente faz com elas, do modo como o gesto humano
as compõe. É a gente que tem a “chave”, é a gente que, dizendo as palavras, faz o
movimento que dá vida a elas. E isto tanto quando alguém diz ou escreve alguma
coisa, como quando alguém ouve ou lê o que a outra pessoa disse ou escreveu. O
lugar da língua é a interação humana.

O sentido da palavra é complexo, fluido, estando em constante mudança.


Até certo ponto, ele é único para cada consciência e para uma mesma consci-
ência em circunstância diversa. Quanto a isso, o sentido da palavra é inesgo-
tável. A palavra adquire seu sentido na frase. A frase, entretanto, adquire seu
sentido somente no contexto do parágrafo, o parágrafo, no contexto do livro, e
o livro no contexto da obra do autor. (...) Em última instância, o sentido de uma
palavra depende da compreensão que se tenha do mundo como um todo e da
estrutura interna da personalidade. (VYGOTSKY, 1987, s. p.)

Esta forma de ser da língua é resultado do fato dela ser um produto essen-
cialmente social e histórico. Ela não é a criação de uma mente brilhante nem so-
brevive porque se definem regras e modelos. A língua é o fruto da própria história
dos grupos humanos, que, se constituindo, constituíram as formas de simbolizar
e de compreender a realidade. Por isso é que se pode afirmar que o ser humano é
um ser histórico.
A língua é parte da vida humana em sua história concreta e participa de
todas as esferas de constituição dos sujeitos, tanto em sua singularidade como
em seu pertencimento a um grupo social. Ela está na base da cultura. O lingüista
russo Mikhail Bakhtin identifica esse fato e analisa suas implicações:
A palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de cola-
boração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de
caráter político etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e
servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. (...) A palavra constitui
o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não
tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo
de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases
transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais. (BAKHTIN, 1981, p. 41).

Estudando o fenômeno da linguagem humana e procurando compreendê-lo


em sua dimensão histórica, este estudioso observa que a língua serve de base a

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A sociedade de cultura escrita

todos os processos, está presente em todas as relações sociais. Da mais simples


conversa até o mais importante dos comunicados, todos os enunciados são rea-
lizados por meio das palavras. Bakhtin percebe que os significados lingüísticos,
apesar de manifestarem um valor, não estão prontos, como se fossem frutas ma-
duras que a gente apanha numa cesta. Nem são únicos e constantes. Os signifi-
cados das palavras e das frases se estabelecem ao longo da história dos grupos
humanos, em função das relações que os indivíduos estabelecem entre si e pelos
modos como percebem e modificam o mundo físico. E, como a vida, eles estão
sempre se transformando.
Por isso, além dos significados imediatos, por assim dizer já congelados,
relativos às coisas e aos fatos cotidianos, as palavras comportam outras possibili-
dades de sentido, menos precisas e que depende do uso e da forma como a gente
percebe o mundo. A língua é a expressão do processo de simbolização e de cons-
trução de sentidos. Isto é o que o poeta quer representar quando cria a imagem
das “mil faces secretas” de cada palavra, e também é isso que o lingüista quer
que a gente compreenda quando afirma que as palavras são compostas por uma
“multidão de fios ideológicos”.
Mesmo as palavras mais simples e comuns, e principalmente elas, podem
ter muitos outros sentidos além do sentido mais imediato.

A identidade na sociedade de escrita


A escrita é parte do cotidiano. Ela está nas placas de rua, nos cartazes,
anúncios, orientações. Está na cédula do dinheiro e nos recibos de pagamento.
Mais ainda, ela inspira o próprio modo de ser urbano. Está na numeração das ca-
sas, na metragem dos terrenos, no desenho das construções, na simetria das ruas
e avenidas.
Por isso, raramente a gente toma a distância necessária para fazer uma aná-
lise do que ela representa, as funções e papéis que cumpre e qual sua natureza e
suas características.
A sociedade contemporânea se organiza com base no sistema da escrita,
existindo muitas áreas de atuação e de conhecimento organizadas exclusivamente
com base nesse sistema. Mais ainda, todos os cidadãos estão inscritos nesta so-
ciedade. Sua existência se manifesta não porque existem fisicamente, mas porque
tem o reconhecimento escrito dessa existência. Por exemplo, quando alguém é
parado na rua por um policial ou na portaria de uma empresa, o que
lhe pedem não é que diga quem é, mas sim que mostre o documento Por que uma
de identidade. pessoa só existe
O romance O falecido Mattia Pascal, do escritor italiano Luigi se estiver escrita
Pirandello, publicado no começo do século XX, ilustra bem essa situ- na sociedade?
ação. A história é a seguinte:

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Letramento no Brasil

O falecido Mattia Pascal


(resumo)
Mattia Pascal é um sujeito que viveu sua infância e juventude de forma
abastada e inconseqüente. Quando adulto, já pobre, mal casado, perde a mãe e
a filhinha, a quem amava e por quem vivia.
Desesperançado, Mattia resolve abandonar tudo e sair da cidade. Acaba
rumando para Monte Carlo, cidade famosa por seus Cassinos, localizada no
sul da França, perto da fronteira com a Itália.
Lá, arriscando a sorte, ele ganha uma fortuna e, mais desanuviado, resol-
ve voltar para casa e restabelecer sua vida. Para sua surpresa, quando já estava
próximo de sua cidade, descobriu, por uma notinha de jornal, que era tido
como morto! Encontraram um cadáver de um homem nos arredores e, como
Mattia estava desaparecido, supuseram que o corpo seria dele.
Como Matia não tinha alegria em sua vida anterior nem sentia amor por
ela, resolveu manter a farsa, inventou uma nova personalidade para viver e
saiu mundo a fora.
No início, entusiasmado por estar livre de problemas e com dinheiro no
bolso, gostava da vida solitária a que se obrigara a se confinar. Passava os
dias svendo os outros viverem. Aos poucos, porém, percebeu que não podia
fazer nada, porque era, para a sociedade, um inexistente. Não podia ter uma
casa (como registrá-la em seu nome?), não pôde dar queixa à polícia quando
foi vítima de um roubo, não pôde se casar quando se enamorou de uma moça.
E tudo isso porque ele era simplesmente a sombra de um homem Não tinha
documento e, portanto, não existia.
Depois de dois anos, perambulando para um lado e para o outro, sem
rumo e sem vida reconhecida, já sem tanto dinheiro, Mattia resolve voltar para
sua cidade, onde passou a viver semiclandestino, sem assumir publicamente
sua identidade, com sua tia Scolastica, trabalhando na biblioteca.
A história de Mattia Pascal é contada por ele mesmo, com a ajuda do
padre. Ela ficaria guardada em segredo enquanto ele vivesse. E assim termina
o romance:

O falecido Mattia Pascal


(fragmento final)
(PIRANDELLO, Luigi , 1972)

Agora vivo em paz, juntamente com a minha velha tia Scolastica, que
quis oferecer-me abrigo na sua casa. Minha estapafúrdia ventura fez-me, re-
pentinamente, subir no seu conceito. Durmo na mesma cama em que faleceu
minha mãe e passo grande parte do dia aqui, na biblioteca, em companhia de
padre Elígio, que ainda está longe de ter conseguido uma arrumação criteriosa
para os velhos livros poeirentos.
Levei perto de seis meses para escrever esta minha estranha história, au-
xiliado por ele. De tudo o que aqui relatei, ele guardará segredo, como se o
tivesse sabido sob o sigilo sacramental.

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A sociedade de cultura escrita

Discutimos juntos, longamente, a respeito dos meus casos e, a miúdo,


declarei-lhe não ver que utilidade possa tirar-lhe deles.
– Para começar, esta – diz-me ele – que fora da lei e fora daquelas parti-
cularidades, alegres ou tristes que sejam, graças às quais nós somos nós, meu
caro Senhor Pascal, não é possível viver.
Mas peço-lhe observar que não reentrei, absolutamente, nem na lei nem
nas minhas particularidades. Minha mulher é mulher de Pomino e eu não sa-
beria, realmente, dizer quem eu seja.
No cemitério de Miragno, na cova daquele pobre desconhecido que se
matou na Stià, ainda se acha a lápide ditada por Lodetta:
VÍTIMA DE ADVERSOS FADOS
MATTIA PASCAL
BIBLIOTECÁRIO
ALMA GENEROSA CORAÇÃO ABERTO
AQUI VOLUNTARIAMENTE
REPOUSA
A PIEDADE DOS CONCIDADÃOS
PÔS ESTA LÁPIDE
Levei ao túmulo a coroa de flores que prometera e, de vez em quando, vou
lá, ver-me morto e enterrado. Algum curioso me segue, de longe; depois, na
volta, reúne a mim e sorri e considerando minha condição – pergunta-me:
– Mas, afinal de contas, pode-se saber quem é o senhor?
Encolho os ombros, entrefecho os olhos e respondo:
– Ora, meu caro... Eu sou o falecido Mattia Pascal.

Este breve exemplo mostra o quanto estamos impregnados de escrita, o


quanto vivemos num mundo regulado por papéis, normas e documentos e o quan-
to a sociedade de escrita determina as condições de existência e as formas de
viver de cada um. Mattia Pascal, vivendo clandestinamente, sendo oficialmente
uma pessoa morta, não existia oficialmente.
De fato, uma pessoa sem registro em cartório praticamente não existe para
o Estado. Ela não pode vir a ter nenhum outro documento (por exemplo, carteira
de identidade ou de trabalho), não tem como se matricular na escola, votar ou
candidatar-se a um cargo público, abrir uma conta em um banco, casar formal-
mente, ter propriedade regularizada ou receber herança, aposentar-se ou dispor de
qualquer benefício social. Só poderá ser sepultado como indigente.
Mesmo assim, é grande a quantidade de pessoas que no Brasil ainda vive
nestas condições. É o que mostra a matéria transcrita a seguir.

21% dos bebês não são registrados


(FOLHA DE S. PAULO, 2002).

Em 2000, 21,3% dos nascidos no país não foram registrados. Segundo


o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a situação é pior nas

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Letramento no Brasil

regiões mais pobres do país. Na região Norte, 48,2% dos bebês não tinham
certidão de nascimento. No Nordeste, o percentual era de 35,6%.
O Sudeste é a região com o maior percentual de crianças registradas perto
do nascimento: só 6,3% ficam sem a certidão no ano do parto. A seguir, apa-
recem as crianças do Sul (11,3%) e o Centro-Oeste (19,7%).
Mesmo ainda em patamares elevados, os números melhoraram na década
de 90. Em 1991, 29,2% das crianças brasileiras não eram registradas. No Nor-
te, o percentual chegava a 65,1%. No Nordeste, a 53,6%.
Para chegar aos sem-registro, o IBGE compara o número de registrados
com as estimativas para o total de nascimentos.
O IBGE pesquisou também a retirada tardia da certidão. Em 1990, 25,6%
das crianças recebiam o registro até dez anos após o nascimento. Em 2001, o
percentual foi de 27,5%. Para o gerente do Departamento de Indicadores So-
ciais do IBGE, Antônio Tadeu de Oliveira, isso mostra que mais gente está se
regularizando. O fenômeno, segundo ele, é mais intenso nos anos eleitorais,
quando as pessoas são estimuladas a tirar título de eleitor.
Como solução, Oliveira sugere que o governo incentive hospitais e ma-
ternidades a ter convênios com cartórios para que o registro ocorra no local
de nascimento. É que cerca de 95% dos partos, segundo o IBGE, são feitos na
rede hospitalar. Em 2000, 2,5 milhões de crianças foram registradas, contra
3,2 milhões nascidos na rede de hospitais. Para 2000, a projeção do total de
nascimentos do IBGE era de 3,5 milhões.

Mortes
Para o IBGE, mais dramática é a falta de registro de mortes, pois não há
outra oportunidade para ele ser feito a não ser logo após o óbito. Em 2001,
22,8% dos mortos não entraram nas estatísticas. Em 1991, o percentual era de
28,3%. No Nordeste, chegou a 42,7% em 2001. Segundo o IBGE, a situação
estimula os cemitérios clandestinos.

A leitura desta notícia permite ver a enorme correlação que existe entre a
escrita e os modos de inserção social. É exatamente nas regiões mais pobres do
país, menos urbanizadas e industrializadas, onde se verificam os maiores índi-
ces de crianças sem registro de nascimento. Nas regiões mais desenvolvidas, o
grupo dos sem-registro é o das pessoas mais pobres. Estas pessoas vivem uma
situação em que são submetidas à cultura escrita, produzem para ela e pouco se
beneficiam dela.

A cultura escrita se manifesta não só nos texto que lemos e escrevemos,


mas também no modo de organização do tecido social; no esquadrinhamento
geométrico do espaço; na matematização do tempo; na institucionalização da
pessoa; na disciplinarização das ações cotidianas.

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A sociedade de cultura escrita

A ordem da escrita
É difícil imaginar eventos em que a escrita, em palavras e outros símbolos,
não se apresente de algum modo. Ela está no bilhete e na declaração de guerra, nos
contratos de compra e venda e nas certidões de nascimento e outros documentos
de identificação das pessoas, nos álbuns de família e nos testamentos. Ela é visível
e significativa nos espaços urbanos, nas escolas, nas placas de rua, nas fachadas
das lojas, nas igrejas, agremiações e clubes, nos locais de trabalho e de lazer.
A força da escrita fica evidenciada de muitas maneiras. O domí-
nio e o uso da escrita são usados como indicador de desenvolvimento
e progresso de sociedades. A porcentagem da população alfabetizada
Como e por que a
é um importante índice de desenvolvimento social e a meta de esten- escrita surgiu?
der a alfabetização a todos como condição de cidadania é priorizada
por inúmeros países.
A importância do surgimento da escrita para a história das civilizações é
tão grande que é considerada como um marco fundamental do desenvolvimento.
Costuma-se chamar de pré-história o período anterior à escrita.
Mesmo assim, cabe fazer uma pergunta aparentemente óbvia: Para que ser-
ve a escrita?
A pergunta tem pelo menos três respostas que se complementam.
A primeira resposta é que a escrita é um instrumento de comunicação à
distância, permitindo que se relacionem verbalmente pessoas afastadas uma da
outra no espaço e no tempo. Através de um texto escrito, uma pessoa localizada
em Recife pode comunicar-se com outra em Porto Alegre. E pode escrever hoje
para ser lida daqui a uma semana, um mês, um ano.
Durante muito tempo, este foi o único processo de comunicação à distância.
Talvez por isso ainda se afirme que aí reside a razão da invenção da escrita. Existe
uma história de que a invenção da escrita aconteceu porque as pessoas, em tempos
antigos, tinham necessidade de se comunicar à distância. Como a voz não chegava
onde estava aquele com quem se queria falar e nem sempre os mensageiros eram
de confiança ou não conseguiam transmitir a mensagem como haviam recebido, a
solução foi criar um sistema estável, que representasse o que se queria dizer.
Essa é uma história interessante e até poderia ser verdadeira. Afinal, as
cartas são um pedaço importante nas relações entre as pessoas e entre diversas
instituições. Elas fazem parte da vida particular de muita gente (as correspondên-
cias pessoais e, em tempos mais recentes, as eletrônicas) e também da atividade
pública, em que se multiplicam as cartas comerciais, os ofícios, comunicados etc.
Mas a história foi outra. A escrita, mesmo servindo para a comunicação à distân-
cia e tendo sido usada pra isso desde muito cedo, tem sua origem ligada a outras
necessidades das sociedades organizadas.

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Letramento no Brasil

A escrita é uma tecnologia que, mais que a simples transposição para a


forma gráfica, constitui documentos materiais. É um equívoco a idéia de que
sua primeira função foi a comunicação à distância. Ao contrário, ela surgiu
como forma de registro em razão do desenvolvimento do comércio e da pro-
priedade privada, bem como da sofisticação de procedimentos litúrgicos. À
escrita estão associados os aparecimentos da matemática, das ciências ociden-
tais e das temais formas de tecnologia.

As primeiras formas de escrita apareceram nos agrupamentos humanos por


volta de 7.000 anos atrás, num momento histórico caracterizado pelo notável de-
senvolvimento do comércio e sua expansão entre diferentes povos, assim como
o desenvolvimento das ciências, das formas de governo, da agricultura, da reli-
gião, das artes. Ou seja, a escrita é o resultado da complexificação das relações
sociais.
A escrita funciona como elemento organizador da atividade social, como
instrumento de registro e documentação. Sua invenção resultou do desenvolvi-
mento dos grupos humanos e, principalmente, da necessidade de fazer registros,
de anotar coisas e de ampliar a capacidade de armazenar e de registrar informa-
ções importantes.
Mais complexas e diversificadas, as sociedades se viram diante da neces-
sidade de recursos de organização dos afazeres cotidianos que dependem da me-
mória (registro de estoques, contas) e de marcação de tempo e lugar. Precisavam
de alguma forma de documentação das transações comerciais (compra, venda,
empréstimos, dívidas), de registro da posse de propriedade e seu direito de uso.
Precisavam de um sistema capaz de estabelecer leis estáveis e que não dependes-
sem da memória e fundamentassem as normas e os padrões de conduta. Precisa-
vam manter os rituais e as tradições religiosas.
A terceira resposta diz respeito a certas características próprias da escrita.
Ao fixar as palavras e permitir que a pessoa possa retomar o que se disse, a escrita
funciona como uma tecnologia que permite a expansão da memória. A partir da
escrita, uma pessoa sabe mais do que guarda em sua cabeça, ela tem sempre à
disposição, de forma organizada, a informação escrita.
O filósofo grego Platão chegou mesmo a manifestar sua preocupação com
essa possibilidade que a escrita oferecia. Ele acreditava que, por causa do registro
escrito e da possibilidade de consultá-lo, seus discípulos se tornariam mais pre-
guiçosos, não se preocupando mais em saber de cor suas lições.
Hoje, é verdade, outros instrumentos têm essa mesma capacidade. É o caso
da máquina fotográfica, da filmadora, do gravador e, acima de tudo, do computa-
dor. Mas todas essas novas tecnologias, que ampliam as possibilidades de pensar e
de representar, só se tornaram possíveis na história humana em razão da escrita.

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A sociedade de cultura escrita

Escrita e poder
Não há relação direta entre desenvolvimento tecnológico e transformações
nos processos de produção da informação com a efetiva democratização ou com
o fim das desigualdades. E isto porque, como adverte o educador francês Jean
Foucambert
A importância da escrita deve ser encarada não apenas em função de seu papel como
meio de comunicação e expressão, mas também, e sobretudo, como instrumento de pen-
samento. De um pensamento adaptado às novas exigências do progresso tecnológico. Se
existe uma relação entre o mercado de trabalho e a leitura e, conseqüentemente, a escola,
é preciso, nessa nova necessidade global, procurar dar para o maior número possível de
pessoas uma formação intelectual que desenvolva a utilização de operações abstratas e,
portanto, um domínio melhor da língua escrita, cujo exercício torna viável esse modo de
pensamento. (FOUCAMBERT, 1997, p. 12)

Em outras palavras, participar da sociedade cultura escrita supõe mais que


saber ler e escrever. Na medida em que a pessoa busca um trabalho, na medida
em que utiliza os instrumentos técnicos que constituem o espaço urbano, em que
organiza seu tempo e seu deslocamento em função da organização produtiva e
jurídica, ela necessariamente está submetida à ordem da cultura escrita.
Quanto maior for sua participação na cultura escrita, maior será sua neces-
sidade de utilização de informações veiculadas em textos escritos, assim como
será maior sua interação com discursos mais distantes das formas co-
tidianas de apreensão da realidade, formas que implicam raciocínios Quais as relações
abstratos. Provavelmente, também será maior sua produção de textos entre a escrita e o
para registro, comunicação ou planejamento. Em resumo, maiores se- exercício do poder?
rão exigências de realização de tarefas que clamem controle, inferên-
cias e ajustes diversos.
Numa sociedade como a nossa, a escrita, enquanto manifestação formal dos diversos
tipos de letramento, se tornou mais do que uma tecnologia. Ela se tornou um bem social
indispensável para enfrentar o dia-a-dia, seja nos centros urbanos ou na zona rural. Neste
sentido, pode ser vista como essencial à própria sobrevivência no mundo moderno. Não
por virtudes que lhe são imanentes, mas pela forma como se impôs e a violência com que
penetrou nas sociedades modernas e impregnou as culturas de um modo geral. Por isso,
friso que ela se tornou indispensável, ou seja, sua prática e avaliação social a elevaram a
um status mais alto, chegando a simbolizar educação, desenvolvimento e poder. (MAR-
CUSCHI, 2000, p.17).

Mas é preciso cautela para não derivar desta análise um raciocínio ingênuo
de que quanto mais a pessoa aprender a escrita, mesmo neste sentido forte de um
sistema amplo e complexo, melhor se colocará na escala social.
Há um vínculo estrito entre a escrita e as formas de exercício do poder, em
pelo menos dois sentidos. Em primeiro lugar, está o fato de que uma técnica tão
poderosa será, na sociedade de classes, desigualmente distribuída e desigualmen-
te possuída. Quem mais domina as formas e objetos da escrita e mais faz uso dela
são os grupos que detêm o poder econômico e social. Em toda sua história, e até

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Letramento no Brasil

hoje, a escrita foi produzida e apropriada pelos grupos dominantes, ainda que sempre tenha havido
muitas formas de ruptura e de disputa.
Em função dessa posse desigual, os processos de escritas e os objetos culturais a ela vinculados
(seja porque nasceram dela, seja por que se transformaram ao se incorporarem a este modelo) ga-
nham, principalmente nas formas hegemônicas de cultura, a feição e os valores daqueles grupos que
a controlam, mesmo que haja expansão de certas formas de uso. A produção da arte, dos discursos
jurídicos e morais, das normatizações de comportamento e de formas de compreender a vida, a pró-
pria expressão oral (que é uma fala original, mas uma fala espelhada nas práticas escritas), tudo isso
comporta um viés de classe, de expressão de poder.
A apropriação dos discursos referenciados neste sistema decorre das possibilidades objetivas de
participação e inserção da pessoa nos espaços sociais, o que, por sua vez, se relaciona com as formas
pelas quais as diferentes classes sociais e frações de classe se organizam e articulam a distribuição e
a posse deste “bem social”.
Uma educação democrática supõe o compromisso político com transformações nas estruturas
de poder e não apenas de formação de indivíduos competentes para disputar, em condições desiguais,
um lugar ao sol.

1. Reunidos em pequenos grupos, façam uma breve análise de como o espaço em que vivem ma-
nifesta a lógica da sociedade de cultura escrita. Não se limitem à presença objetiva do escrito,
considerando também a geografia.

2. Cada participante deve listar as situações de uso da escrita em sua vida, incluindo tanto as ati-
vidades de cotidiano, como as de estudo, trabalho e lazer. Em seguida, o grupo deve fazer um
quadro das várias listas e verificar o que é comum e o que é particular de cada pessoa.

3. Relendo a aula, listem as funções da escrita na sociedade moderna.

4. A partir do que estudamos e de suas considerações pessoais sobre a vida em sociedade, redija
um texto em que analise as relações entre escrita, leitura e poder e os caminhos que podemos
trilhar para buscar uma sociedade mais justa e equilibrada.

A presença do escrito nas sociedades contemporâneas é tal que ela supera toda capacidade de conservação, mes-
mo para a maior biblioteca do mundo, que é a do Congresso dos Estados Unidos, que seleciona e a outras biblio-
tecas os materiais que não pode aceitar. Aliás, é preciso pensar não apenas nos livros, mas também em todos os
materiais impressos. Qualquer um pode fazer a experiência, observando quantos materiais impressos chegam na
sua caixa de correio. (CHARTIER, 1999, p. 27)

Considerando essa observação do historiador francês Roger Chartier, faça uma verificação dos
impressos que participam de suas vidas e analise a importância (ou a irrelevância) de cada um deles.

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A sociedade de cultura escrita

CHARTIER, Roger. A Aventura do Livro do Leitor ao Navegador. São Paulo: Unesp, 2000.
Neste livro, ricamente ilustrado e de linguagem acessível e estilo agradável, o historiador fran-
cês conta a história do livro e as transformações por que passa a sociedade contemporânea, em parti-
cular as relações com o escrito, em função das novas tecnologias da informação.
OLSON, David. O Mundo no Papel – as implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita.
São Paulo: Ática, 1997.
O livro analisa os elementos constitutivos do aprendizado da leitura e da escrita e as implicações
para o pensamento e para a produção do conhecimento dos modos de ser da cultura escrita, tratando
de esclarecer sobre as instituições e atividades comerciais, legais, religiosas, políticas literárias e cien-
tíficas quando os documentos escritos passam a ter um papel fundamental na sociedade ocidental.

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Letramento no Brasil

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