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PUC-SP
São Paulo
2019
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
São Paulo
2019
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total
ou parcial desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou
eletrônicos.
Assinatura:______________________________________________________
Data: 19/03/2019
e-mail: caio.janguas@gmail.com
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
Aos meus pais, que me criaram com dignidade,
liberdade e sabedoria.
O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
Brasil (CNPq) – Código de Financiamento 134261/2017-8.
A meus colegas de turma, Ênio, Jami, Lilian e Simone, que com muita
descontração fizeram os últimos dois anos e meio serem mais leves, e também aos
outros colegas que cursaram disciplinas comigo.
À minha namorada, Ana Luísa, por estar ao meu lado em todos os momentos.
A todos aqueles que tiveram paciência para ouvir um resumo desta pesquisa
sempre que me perguntavam do que ela se tratava.
Finalmente, à CNPq, que contribuiu com uma bolsa de estudos para que este
trabalho pudesse ser realizado.
Nam et si ambulavero in valle umbrae mortis, non timebo mala, quoniam tu mecum es.
(Psalmus, 23:4)
The greater our knowledge increases the more our ignorance unfolds.
(John F. Kennedy)
RESUMO
LISTA DE QUADROS
1. INTRODUÇÃO .........................................................................................................................................11
1.1 CONTEXTO E PROBLEMA............................................................................................................................ 11
1.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS .......................................................................................................... 17
1.3 HISTÓRIA DA M ATEMÁTICA E EDUCAÇÃO M ATEMÁTICA .......................................................................... 22
1.4 ORGANIZAÇÃO DA DISSERTAÇÃO .............................................................................................................. 24
2. VIDA, OBRA E OS CONTEXTOS MATEMÁTICO E LÓGICO NOS QUAIS ESTAVA INSERIDO
GEORGE BOOLE ........................................................................................................................................27
2.1 VIDA, OBRA E CONTEXTO MATEMÁTICO ..................................................................................................... 27
2.2 CONTEXTO DA LÓGICA............................................................................................................................... 37
2.2.1 Embates entre a Filosofia e a Matemática ................................................................................... 38
2.2.2 A lógica aristotélica .......................................................................................................................... 40
2.2.2.1 Proposições .................................................................................................................................................41
2.2.2.2 Silogismos ...................................................................................................................................................46
ANEXOS .....................................................................................................................................................108
ANEXO A – TRABALHOS PUBLICADOS DE GEORGE BOOLE ....................................................................... 108
11
1. INTRODUÇÃO
1 Para ver lista completa dos trabalhos publicados de Boole, vide ANEXO A.
2 São equações que a incógnita é uma função que aparece por meio de suas respectivas derivadas.
3 Utilizadas para resolução de equações diferenciais.
4 Ramo da Matemática que estuda as chances de ocorrência de experimentos.
5 Como pode ser visto em Neto [19--?], Kneale e Kneale (1962), Houser (1994), Babini (1967) e
Blanché (1985).
13
utilizada mais do que uma única página para falar de suas publicações, como são os
casos de Gregory H. Moore (1987), David Eugene Smith (1958) e também Ivor
Grattan-Guinness (1997). É possível que alguns destes autores citados, se não
todos, podem ter escrito seus livros baseados numa historiografia mais tradicional,
que não leva em conta algumas questões de História. Explicaremos melhor adiante.
É fácil perceber que Boole recebe mais atenção em livros de História da
Lógica e livros de História da Filosofia. Isso talvez se deva ao fato de ele ser
considerado mais um filósofo da Lógica do que um logicista6 em si, como aponta
Corcoran (2003, p.284): “George Boole (...) é classificado ainda mais como filósofo
da lógica do que como lógico”. Dentre alguns desses livros em que ele aparece
como figura mais relevante, vale citar três. O primeiro deles, intitulado O
Desenvolvimento da Lógica, de William Kneale e Marta Kneale (1962), dedica um
vasto capítulo para apresentar a vida de Boole e explicita as conclusões que ele
alcança em seus dois tratados sobre lógica, incluindo alguns exemplos. O segundo,
História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Russel, de Robert Blanché (1985), traz
as ideias de Boole contextualizadas em sua época, apresentando também suas hoje
descobertas limitações. E o terceiro, Boole’s Logic and Probability, de Theodore
Hailperin (1986), apresenta na sua introdução uma rápida biografia de Boole e trata
em todos os seis capítulos de ideias e conclusões lógicas de Boole, explicando-as
com exemplos e demonstrações, além de mostrar as mudanças que nelas
ocorreram para se chegar na lógica moderna.
Em um levantamento bibliográfico preliminar, notamos que são poucos os
estudos em língua portuguesa relacionados à história da matemática que tratam
sobre Boole ou sobre seus trabalhos acerca da lógica. A maioria dos livros
disponíveis estão no idioma inglês, sem tradução para o português. Para esta
pesquisa, inicialmente, decidimos verificar se existiam teses ou dissertações focadas
em Boole. Para tal, consultamos o banco digital de teses e dissertações da CAPES,
procuramos pelo verbete “Boole” e encontramos apenas 24 resultados. Desses 24,
refinamos nossa busca procurando os que tinham a palavra “Boole” ou “booleana”
no título, resultando apenas em 4 trabalhos. Desses quatro, dois eram focados na
aplicação da álgebra booleana em circuitos digitais, estando no universo das
Objetivo geral:
Conhecer o contexto de elaboração do tratado Mathematical Analysis of
Logic, a fim de compreendermos como a “algebrização do pensamento” pode ser
considerada a lógica do raciocínio dedutivo e do intelecto humano.
Objetivos específicos:
1) Compreender o contexto social, econômico, político e matemático que
circundava Boole em sua época para, dessa forma, apresentarmos Boole
como um homem inserido em seu tempo e preocupado com as questões
de sua época;
2) Descrever, a partir de um estudo dos capítulos 1, 2 e 4 do tratado
Mathematical Analysis of Logic de George Boole, como ele aproximou a
Lógica da Álgebra.
Após traçados os objetivos, apresentaremos a seguir os procedimentos
metodológicos que foram utilizados para direcionar nossa pesquisa.
Não se trata mais apenas de expor o que um autor realmente disse num
texto preciso, mas de estabelecer um diálogo com ele, a fim de dar ao texto
considerado sua função no interior da obra da qual é extraído e de apreciar
seu papel no pensamento filosófico do autor. (FOLSCHEID;
WUNENBURGER, 1997, p.49).
não tem seu lugar teórico natural em tal ou tal ciência, onde a história iria
levantá-lo, nem, aliás, na política ou na pedagogia. O lugar teórico desse
objeto não deve ser procurado senão na própria história das ciências,
porque é ela, e somente ela, que constitui o domínio específico onde
encontram seu lugar as questões teóricas colocadas pela prática científica
em seu devir. (CANGUILHEM, 2012, p.12)
(...) parece possível tentar uma definição, ainda que não formal ou
finalizada, do que seja o objeto da história da ciência, se for pensado na
intersecção de três esferas de estudo. A primeira dessas esferas [no caso, a
epistemológica] se refere aos aspectos intrínsecos das teorias e práticas
científicas sob estudo, combinando a crítica textual (assumida a partir de um
modelo filológico) e a análise teórico-contextual interna ao texto (através da
análise epistêmica de seus principais conceitos e argumentos). A segunda,
uma esfera propriamente historiográfica, concerne às várias formas através
das quais já se analisou um determinado problema, documento. Finalmente,
a terceira diz respeito ao contexto propriamente histórico, com destaque
para as circunstâncias sob as quais foi elaborada a documentação em
análise. (AFONSO-GOLDFARB; FERRAZ; WAISSE, 2013, p.45)
8Boole,G. The mathematical analysis of logic. London: Macmillan, Barclay & Macmillan, 1847. E-
book. Disponível em <https://goo.gl/j7PTE1>. Acesso em 11 abr. 2017.
22
9Para mais estudos sobre a relação entre Educação Matemática e História da Matemática, ler
Mendes (2013) e Miguel (1997).
23
Isto é, um diálogo necessário, como ainda observa Saito (2016b, p.257), para:
George Boole”, relacionamos aspectos sobre a vida e obra de Boole que possam ter
influenciado de certo modo a escrita de seu tratado The Mathematical Analysis of
Logic, tendo como foco o contexto da sociedade ao seu redor e os contextos
matemático, filosófico e lógico aos quais estava inserido. Também discorremos
sobre sua produção científica (ou seja, suas obras publicadas), a fim de irmos nos
aproximando da interface entre as esferas contextual e epistemológica.
No terceiro capítulo, denominado “Alguns aspectos da lógica de Boole em sua
obra The Mathematical Analysis of Logic: Being an essay towards a calculus of
deductive reasoning”, apresentamos uma análise interna do tratado Mathematical
Analysis of Logic e, para tanto, procedemos à explicação e ao comentário de texto –
a saber: capítulos 1, 2 e 4 do tratado – a fim de compreender suas ideias. Por fim,
apresentamos nossas considerações finais, nossas conclusões e os próximos
passos que a pesquisa pode assumir.
26
27
11A Inglaterra é dividida em condados (regiões utilizadas para propósitos administrativos, geográficos
e políticos naquele país) desde o reino de Wessex, em meados do período que esteve sob domínio
saxão. Essa divisão chegou à região central da Inglaterra após a conquista da Mércia pelos Wessex,
entre os séculos IX e X. (História dos condados ingleses. Disponível em <http://county-
28
aproximadamente a 193 km ao norte de Londres, como pode ser visto na Figura 2),
na Inglaterra, foi uma criança criada num lar de família modesta (BURRIS, 2018). O
ano de 1815 é um dos anos auges da Revolução Industrial inglesa, caracterizada
por um grande êxodo rural no país e aumento de capital nas grandes cidades. Sem
condições de arcar com uma educação de elite, John e Mary fizeram com que Boole
tivesse de frequentar a escola primária comum. (BROADBENT, 2007).
12Talvez seja válido aqui ressaltar que diversos autores julgam John Boole, acusando-o de ser
negligente e mal administrador do seu próprio negócio. O que esses autores talvez tenham
negligenciado em perceber é o que nota Bell (1965): o ano de nascimento de George Boole, 1815, foi
o ano da batalha de Waterloo, sendo que os anos seguintes foram muito difíceis para os
comerciantes em geral – John Boole sendo um deles, inclusive.
30
menino), onde ele defendia que o aluno primeiro deve entender os conteúdos para
somente depois disso guardar algo na memória. (MACHALE, 2014).
Outro ponto que nos chama a atenção na escola de Boole era o fato de
lecionar, para todos os alunos, aulas de línguas, focando principalmente na
conversação e na leitura de obras literárias, e não em gramática e vocabulário –
mais um aspecto que ia de acordo com a experiência de vida de Boole, que
aprendeu sozinho outros idiomas ao ler obras literárias escritas em outras línguas.
(MACHALE, 2014).
Boole acreditava que a educação moral também era responsabilidade do
professor; no caso, ela era a parte mais difícil do dever de um professor, mas a mais
alta em grau e importância. Para Boole, não se deveria medir esforços para se
formar a mente e o caráter de seus alunos, ensinando-os hábitos da indústria,
integridade, bondade mútua, a distinção entre o certo e o errado e a reverenciar as
coisas sagradas. Essas e outras características fizeram com que Boole se tornasse
um professor realizado e respeitado pelos seus alunos e pelos moradores de Lincoln
que vinham a conhecer o seu trabalho na escola. (MACHALE, 2014).
Nessa mesma época em que Boole retornou para Lincoln e abriu sua própria
escola, tornando-se administrador e professor para, finalmente, aplicar suas práticas
de ensino, foi fundado o Lincoln Mechanics Institute. Segundo Burris (2018), “este
era essencialmente um clube social comunitário que promovia leitura, discussões e
palestras sobre ciência. Foi fundado em 1833 e, em 1834, o pai de Boole tornou-se
o curador de sua biblioteca.” (BURRIS, 2018, sp).
Boole passou a frequentar o Instituto, participando das discussões
promovidas e acessando sua biblioteca. Broadbent (2007) ainda diz mais sobre a
relação de Boole com o Instituto:
14 Sir Isaac Newton, um dos desenvolvedores do Cálculo e da Mecânica Clássica. Em seu Principia
(1687), ele fundamenta a mecânica clássica e a lei da gravitação universal, além de demonstrar as
leis de Kepler. Viveu na Inglaterra, entre 1643 e 1727.
15 Joseph Louis Lagrange, um dos criadores do Teorema do Valor Médio. Em seu Mécanique
trabalhos sobre Lógica, Cálculo e Análise. Nasceu na Índia, em 1806, e faleceu na Inglaterra, em
1871, onde viveu desde sua infância.
20 William Rowan Hamilton, um dos criadores dos quatérnios. Escreveu trabalhos sobre mecânica
21 1842 – Exposition of a General Theory of Linear Transformations. Parte I and Parte II.
22 1845 – On the Equation of Laplace’s Functions.
34
modo que na época de George Boole o conceito atual de livro didático ainda não existia, sendo assim
impossível que estes tratados tenham sido escritos como tais.
35
Essa forte linha de desenvolvimento que foi a Álgebra, porém, tinha uma
característica específica, uma espécie de tendência: o uso de símbolos. Segundo
Burris (2018):
Por símbolos, aqui, devemos entender, como aponta Burris (2018), que
26
A citação foi escrita no século XX, de modo que, para o autor, o “século passado” refere-se ao
século XIX.
36
Boole, por ter tido contato direto com seu amigo e mentor Gregory, esteve a
par de suas publicações no campo da Álgebra, apropriando-se de suas
nomenclaturas, terminologias e conclusões para fundamentar seus trabalhos.
Inclusive, no seu artigo ganhador do prêmio na Royal Society, Boole escreveu numa
nota de rodapé um agradecimento ao seu amigo Gregory: “Poucos em tão curta vida
fizeram tanto pela ciência. O alto senso que nutro por seus méritos como
matemático é misturado com sentimentos de gratidão pela assistência valiosa
prestada a mim em meus ensaios anteriores.” (BOOLE, 1844, apud MACHALE,
2014, p.71)27.
Por fim, outro amigo de Boole, De Morgan, também produziu trabalhos no
campo da álgebra simbólica, tendo também provavelmente influenciado os trabalhos
de Boole. Burris (2018) relata que:
Ou seja, podemos dizer que Boole publicou trabalhos condizentes com o que
era feito de pesquisa matemática em sua época (álgebra e lógica), mostrando que
ele era um homem inserido em seu tempo. Seus trabalhos foram reconhecidos pela
academia ainda em vida.
De fato, ele recebeu diversos elogios da Royal Society e do Instituto de
Mecânica, além de várias cartas de outros pesquisadores elogiando seus trabalhos.
28 William Thomson, que hoje é conhecido como Lord Kelvin. Tem trabalhos em eletricidade e
termodinâmica, sendo o criador da escala Kelvin de temperatura. Nasceu na Irlanda do Norte, em
1824, e faleceu na Escócia, em 1907, apesar de ter vivido grande parte de sua vida na Inglaterra.
29 Boole produziu trabalhos até quase o momento de sua precoce morte, ocorrida na própria cidade
de Cork, no ano de 1964, – aos 49 anos – por pneumonia. Deixou esposa e cinco filhas.
38
esta visão, utilizando as palavras “todo” e “alguns” também para o predicado. Exemplo: todos os X
são Y se tornaria todos os X são alguns Y. Mais detalhes serão expostos nas páginas seguintes.
32 Importante filósofo grego. Escreveu sobre física, metafísica, poesia, lógica, retórica, ética, biologia
e governo. Foi aluno de Platão. Viveu na Grécia entre os anos de 384a.C. e 322a.C.
39
matemática. Essa lógica, em meados do século XIX, ainda era o modelo que ditava
o raciocínio humano, como aponta Sousa (2012, p.49): “a Lógica Tradicional ainda
vigorava durante o início do século XIX e que sua força emergia pela figura de
lógicos aristotélicos como Richard Whately 33 ”. Também nesse sentido, Houser
(1994, p.602) aponta que “lógicos como Richard Whately e Sir William Hamilton
lançaram programas poderosos para expandir a lógica silogística 34”.
No século XIX, porém, houve um forte movimento de tentar matematizar a
lógica. Blanché (1985, p.271) argumenta que “Enquanto a lógica clássica continuava
com o seu impulso, uma outra forma de lógica, de inspiração matemática, ia
aparecer em meados do século XIX”. Ou seja, a lógica no século XIX estava
também sendo estudada e desenvolvida por matemáticos, porém seguia sendo
expandida por filósofos.
Sir William Hamilton fazia parte dos filósofos do século XIX que seguiam
expandindo a lógica aristotélica, enquanto De Morgan e Boole faziam parte dos
matemáticos também desse século que desenvolveram trabalhos no campo da
lógica, ajudando a aproximá-la da matemática – como é feito até os dias atuais.
Sobre essa nova perspectiva para a lógica, Sousa (2012, p.81) aponta que:
Em meados desse período [século XIX] surgiu uma nova visão sobre a
Lógica vigente. Essa, por sua vez, foi concretizada pela matematização da
Lógica que, respeitando o paradigma aristotélico, buscou expandi-lo a partir
de sua formalização. Isso se deu, especialmente em 1847, mediante os
trabalhos de Augustus de Morgan e George Boole. (SOUSA, 2012, p.81)
33 Richard Whately, filósofo e economista, foi um dos primeiros ingleses a defender a Lógica como
campo de estudo. Seus tratados valorizavam e expandiam a Lógica Aristotélica. Viveu pequena parte
da sua vida como professor de Economia e mais de 30 anos como Arcebispo de Dublin. Nasceu na
Inglaterra em 1787 e faleceu na Irlanda em 1863.
34 Referência à lógica clássica, ou lógica aristotélica.
40
Aristóteles foi um filósofo grego que viveu entre os anos 384 a.C. e 322 a.C. e
foi, nitidamente, um nome importantíssimo para o desenvolvimento da lógica. Sua
relevância é relatada através dos séculos – em alguns momentos com mais ênfase e
sendo ovacionado, e em outros com menos ênfase e sendo duramente criticado –,
mas fato é que seus tratados são tidos como uns dos primeiros que fundamentaram
a lógica. Dessa maneira, também pensa Abbagnano (2006, p.182):
(...) e tal disciplina é a lógica, a que Aristóteles chama analítica, tendo sido o
primeiro a concebê-la e fundá-la como uma disciplina em si, utilizando e
sistematizando as observações e os resultados dos seus predecessores e
especialmente de Platão. (ABBAGNANO, 2006, p.182)
Ainda sobre a história da lógica, vale apontar que Leibniz35 (1646-1716), que
também se dedicou ao estudo da lógica, apreciou grandemente o trabalho de
Aristóteles. Ao observar o rigor de suas proposições lógicas, disse “‘Aristóteles foi o
primeiro a escrever de maneira matemática 36 sobre assuntos não-matemáticos”
(LEIBNIZ, 1960, apud KUZICHEVA, 1992, p.1) 37 e, ao refletir sobre a teoria dos
silogismos de Aristóteles, afirmou que “a invenção da forma silogística é uma das
melhores e, na verdade, uma das mais importantes, que foi feita pela mente
humana. É uma espécie de matemática universal cuja importância é muito pouco
desconhecida". (LEIBNIZ, 1981, apud KUZICHEVA, 1992, p.3).
35 Gottfried Wilhelm Leibniz. Desenvolveu o Cálculo por meios diferentes dos usados por Newton.
Também escreveu sobre física e lógica. Foi um diplomata alemão, e viveu entre os anos de 1646 e
1726.
36 Apesar de Leibniz utilizar o termo “matemática” para se referenciar aos trabalhos lógicos de
Aristóteles, é cabível notar que não há nenhuma relação feita entre os escritos aristotélicos e a
matemática como a entendemos hoje, sendo importante neste trecho ressaltar apenas a admiração
de Leibniz pelo filósofo grego.
37 LEIBNIZ, G.W. Fragmente zur Logik. Berlin, 1960, p.7.
41
Aristóteles defendia que a lógica deveria, sob toda e qualquer condição, ser
analisada juntamente com a linguagem, pois somente esta, em sua sintaxe, poderia
ser capaz de chegar a conclusões corretas. Abbagnano (2006, p.184) aponta que:
2.2.2.1 Proposições
Blanché (1985, p.32): “mas o verbo é necessário para constituir uma verdadeira
proposição, isto é, um discurso declarativo, portador de uma asserção e, portanto,
susceptível de ser verdadeiro ou falso.”
As proposições, em si mesmas, devem seguir apenas três princípios
fundamentais:
1- Princípio de Identidade: A é A;
Ex.: Seja A um cachorro -> Princípio: Cachorro é cachorro.
2- Princípio de não contradição: é impossível A ser A e não-A ao mesmo
tempo;
Ex.: Seja A um cachorro -> Princípio: Impossível um cachorro ser cachorro
e não ser um cachorro ao mesmo tempo.
3- Princípio do terceiro excluído: A é x ou não-x, não há terceira
possibilidade.
Ex.: Seja A um cachorro e x um ser vivo -> Princípio: Um cachorro ou é um
ser vivo ou não é um ser vivo, não há terceira possibilidade.
Desta maneira, podemos enumerar no Quadro 1 a seguir alguns exemplos de
proposições e algumas não-proposições.
É Não é
Frase Motivo
Proposição proposição
Frase declarativa que pode ser verdadeira
ou falsa – contendo um verbo. Sabemos
Deus existe. X que nem todos concordam com esta
proposição, mas isso não a impede de ser
verdadeira ou falsa.
Quantos anos você
X Perguntas não são proposições.
tem?
Vá agora para o seu Exclamações/ordens/conselhos não são
X
quarto! proposições.
Frase declarativa que pode ser verdadeira
ou falsa – contendo um verbo. Apesar de
não sabermos determinar o valor de
Há vida em Marte. X verdade desta afirmação, ela não deixa de
ser uma proposição, pois pode ser
verdadeira ou falsa: verdadeira se houver
vida em Marte, falsa se não houver.
Gostaria de comprar Uma frase que exprime um desejo não é
X
um carro novo. uma proposição.
43
38
Sabemos que esta imagem não representa um quadrado, mas sim um retângulo. Porém, os lógicos medievais
o chamaram de “quadrado dos opostos”, e assim o mantivemos na versão que elaboramos.
46
2.2.2.2 Silogismos
Admitimos que perder as suas folhas seja representado por A, ter folhas
largas por B, e videira por C. Se A pertence a B (porque toda a planta de
folhas largas perde as suas folhas) e se B pertence a C (porque toda a
videira é uma planta de folhas largas), então A pertence a C, por outras
palavras, toda a videira perde as folhas.42 (Aristóteles, 1831, apud Blanché,
1985, p.48).
Aristóteles empregou como requisito que, para que uma conclusão seja válida
e verdadeira, as premissas devem também ser válidas e verdadeiras, além de causa
da própria conclusão. Segundo Abbagnano (2006, p.188):
Segundo Exemplo:
Premissa 1: Todos os mamíferos são mortais. (Premissa verdadeira)
Premissa 2: Todos os cães são mortais. (Premissa verdadeira)
Conclusão: Logo, todos os cães são mamíferos. (Conclusão verdadeira)
A partir das premissas deste exemplo – todas verdadeiras - podemos ver que
o termo “mortais”, que aparece nas duas premissas simultaneamente, é o termo
médio – que não aparece na conclusão. Dessa forma, pela conclusão, o termo maior
é o que aparece na primeira premissa, “mamíferos”, e é o predicado da conclusão.
Por consequência, o termo menor é o que aparece na segunda premissa, “cães”, e é
o sujeito da conclusão. Nesse caso, ao observarmos a conclusão, percebemos que
ela é verdadeira, porém não houve inferência, já que por não estarem formalmente
adequadas, as premissas não têm relação com a conclusão.
Para evitar então que as falácias pudessem ser propagadas, Aristóteles criou
três figuras43 de silogismo – que dependem da função do termo médio –, estudou-as
e organizou-as de modo que todas as conclusões que pudessem ser obtidas por
meio delas fossem sempre verdadeiras. Essas figuras basicamente seriam uma
ordenação formal dos sujeitos e predicados das premissas, ou seja, dos termos
maiores, médios e menores, de modo a se obter sempre uma conclusão verdadeira.
Segundo Abbagnano (2006, p.187):
43Entendemos como figura cada uma das formas que o silogismo pode tomar, dependendo da
posição do termo médio: se sujeito ou predicado das proposições.
51
44 Que pode ser utilizado para aumentar ou ampliar a memória; que facilita a memorização.
53
cada figura. Smith (2018) aponta quais são esses versos, que foram compilados nos
Quadro 3 a seguir:
como devoto dessa busca pela verdade juntamente com outros nomes por ele
conhecidos. Segundo Boole (2015b, p.13):
E aqui devemos notar que nos trechos em que Boole afirma “com o avanço
de nosso conhecimento de toda a ciência verdadeira” e “sinceros devotos da
verdade” é possível perceber uma provável influência das ideias positivistas 46 de
Auguste Comte47 (1798-1857) que pairavam sobre a Europa em meados do século
XIX, justamente época em que Boole escreveu esse tratado.
De fato, os ideais positivistas também parecem se expressar na seguinte
passagem de Boole (2015b, p.9):
45 John Flamsteed, astrônomo inglês. Fez as primeiras observações registradas de Urano e catalogou
mais de 3000 estrelas. Foi o primeiro Astrônomo Real Britânico, assumindo este posto em 1675.
Viveu na Inglaterra entre 1646 e 1719.
46 O Positivismo tem a ciência como investigação do real. Ele abandona as causas dos fenômenos
em prol de pesquisar a verdade de suas leis. Seu método caracteriza-se pela observação, a fim de se
prever o que possa acontecer. Defendia que a humanidade passou por melhoramentos contínuos,
saindo de uma época obscura num passado para uma civilização esclarecida.
47 Isidore Auguste Marie François Xavier Comte. Filósofo francês, foi um dos consolidadores da
com elas, como pode ser visto em “uma observação importante, que mais de uma
vez foi feita, de que uma coisa é chegar a premissas corretas e outra é deduzir
conclusões lógicas, e que o negócio da vida depende mais do primeiro que do
segundo” (BOOLE, 2015b, p.13). Como veremos no próximo capítulo, os ideais
positivistas, combinados com os novos desdobramentos matemáticos do século XIX,
fizeram-no dar um tratamento matemático à lógica clássica e inseri-la no rol das
ciências.
56
57
48Index law, como Boole a chama. Hoje em dia, essa lei é conhecida como “Lei do idempotente”.
Este nome foi dado em 1870 pelo matemático Benjamin Pierce (1809-1880), de Harvard. (BURRIS,
2018).
58
No prefácio de sua obra, Boole relata ter escrito este seu primeiro tratado de
lógica em poucos meses (apesar de ter refletido sobre o tema em outras épocas de
sua vida), tendo sido motivado a escrevê-lo depois que se interessou pelo debate
lógico (apresentado no capítulo 2) que aflorava entre seu amigo, o professor
Augustus de Morgan, e Sir William Hamilton, um filósofo escocês. Boole (2015b, p.1)
apresenta:
minha atenção foi direcionada para o debate que aconteceu entre Sir W.
Hamilton e Professor De Morgan; e fui induzido pelos interesses que
inspirou, para retomar o tópico quase esquecido de investigações
anteriores. (BOOLE, 2015b, p.1)
Após ter explicitado ao leitor o que o levou a escrever seu tratado de lógica,
Boole seguiu para a Introdução, onde explica alguns pensamentos, mostra algumas
convicções e aponta aspectos de sua obra. Boole, nesse capítulo, pareceu ter duas
grandes intenções:
1) A primeira, justificar de duas maneiras por que ele acreditava que a lógica
poderia ser considerada uma nova forma de matemática, e não uma área
da filosofia, que é como se pensava em seu tempo:
a. Na primeira das justificativas, defendeu a Lógica como uma forma
de Análise Matemática, juntamente com a Álgebra e com o Cálculo,
enfatizando suas similaridades;
b. Já na segunda justificativa, procurou utilizar argumentos do próprio
William Hamilton para defender o ponto de que a lógica deveria ser
associada à matemática;
61
2) A segunda, Boole pretendia mostrar que essa lógica que ele propunha
poderia ser considerada como a lógica do pensamento dedutivo e do
intelecto humano.
Vamos apresentar aqui, separadamente, cada uma delas.
Via-se cada vez melhor que as leis que regem a álgebra especificam um
certo domínio, mas que se pode entender a álgebra num sentido mais geral,
de maneira que os seus cálculos possam aplicar-se, mediante o abandono
de algumas das suas leis, a entidades diferentes daquilo a que chamamos
de números. (BLANCHÉ, 1985, p.272)
Ou seja, Boole expôs seu ponto de vista de que a Álgebra poderia ser
utilizada para resolver problemas diversos, dando indícios de que utilizaria métodos
algébricos para solucionar os problemas de lógica que trataria nos próximos
capítulos de seu tratado. Note que o autor afirma que esse princípio algébrico foi de
fundamental importância para o desenvolvimento da Análise matemática,
aproximando os dois ramos de estudo.
Ainda na mesma justificativa, Boole mostrou as similaridades entre a Análise
e o Cálculo. Para isso, primeiramente, ele não limita a aplicação da Análise
Matemática, alegando que essa é uma área de estudo ainda recente no século XIX.
“A história da Análise pura é, pode-se dizer, muito recente para nos permitir
estabelecer limites na extensão de suas aplicações.” (BOOLE, 2015b, p.4). Assim,
num segundo momento, ele finalmente aproxima esses dois ramos da matemática,
admitindo que:
E aqui devemos observar, tal como indica Corcoran (2003, p.264), que:
Em outros termos, por essa passagem, Boole justificava que a Lógica deveria
ser considerada uma área da Matemática e, para reforçar essa ideia, apresentou
uma segunda justificativa, isto é, de que a lógica deveria ser associada à
matemática, como antecipamos. Boole argumentou com os escritos de William
Hamilton de forma a, a partir deles, concluir que a lógica deveria justamente ser um
campo da matemática, e não da filosofia ou da metafísica.
Boole iniciou sua argumentação destacando as duas definições que Hamilton
dá para a filosofia (ciência de uma existência real e pesquisa de causas), além de
enfatizar o desmerecimento que este tem para com a matemática e a visão que
possui de que, por ser uma ciência superior, cabe à filosofia o estudo da lógica.
Segundo Boole (2015b, p.10):
Boole (2015b, p.11), após ter retomado a definição dada anteriormente por
Hamilton, reforçou que ela era comum entre os escritores antigos, trazendo uma
passagem de Seneca49 (4a.C. – 65d.C) em sua Epístola LXXXVIII:
49Lucius Annaeus Sêneca. Foi um importante escritor e filósofo da época do Império Romano. Viveu
em Roma entre os anos de 4a.C. a 65d.C.
64
Geometria, e seus teoremas construídos sobre a doutrina geral dos símbolos, que
constitui o fundamento da Análise reconhecida.” (BOOLE, 2015b, p.12)
Essa foi a segunda justificativa do porquê Boole defendia que a Lógica
deveria ser um ramo da Matemática, finalizando assim o que parece ter sido a
primeira de duas grandes intenções que ele apresenta na Introdução de seu tratado.
Já para delinear a sua segunda grande intenção, que era mostrar que essa
lógica que ele proporia poderia ser considerada como a “lógica do pensamento
dedutivo”, Boole reivindicou que seu método, apresentado nos capítulos seguintes
de seu tratado, fosse considerado o Cálculo do Raciocínio Dedutivo. Segundo Boole
(2015b, p.1):
De fato, para dar suporte a essa reivindicação, Boole admitiu que a teoria da
lógica tinha muitos pontos em comum com a linguagem, sendo a proximidade desta
com a lógica a responsável por tornar a lógica possível. Boole (2015b, p.4) defende
que:
Boole, nesse ponto, reflete sobre noções gerais que tornam a lógica possível,
noções essas que estão intrínsecas na mente humana: a concepção de classe e a
possibilidade de designar seus membros individuais por um nome (ou uma
característica) em comum. Boole chamará cada membro de uma classe de objeto 50.
Para ele, também, a importante função mental de eleição deriva da nossa
50Uma classe, para Boole, nada mais é do que uma espécie de grupo no qual os elementos (objetos)
com determinada característica em comum pudessem ficar juntos e organizados.
66
Figura 5 - Exemplo da visão geral do processo que torna a lógica possível, segundo Boole
algébrico que opera sobre signos 51, classificar esses signos segundo a sua
função, e em seguida encontrar o análogo dessas funções nas formas da
linguagem comum, de maneira a poder traduzir estas em signos algébricos,
e prestando-se como eles a um cálculo. (BLANCHÉ, 1985, p.274)
Cabe aqui salientar uma observação feita por Kneale e Kneale (1962), que
perceberam que Boole, na prática, utiliza o “Universo” de uma maneira ligeiramente
diferente da qual ele o apresenta. O “Universo” não é utilizado em sua definição
mais abrangente, sendo a reunião de todos os objetos concebíveis, mas sim acaba
sendo limitado pelo que se está a falar. Esse “Universo” é conhecido como “Universo
do discurso”, nomeado assim por De Morgan, mostrando mais uma vez que Boole
tinha conhecimentos dos trabalhos de seu amigo. Segundo Kneale e Kneale (1962,
p.415):
52Note que aqui Corcoran escreve como se o feito de Boole fosse algo “inédito”. De fato, Aristóteles
não reconhecia em sua lógica clássica essas duas entidades, o “universo” e a “nulidade”. Corcoran
(2003, p.272) relata “Em sua lógica, Aristóteles não reconheceu o termo universal ‘entidade’ ou ‘coisa’
nem reconheceu o termo nulo ‘não-entidade’.”
70
todos seus objetos são, por definição, animais, e a classe de tudo o que vive
embaixo d’água. Podemos facilmente perceber que essas duas classes são, como
aponta (i.), subclasses do Universo, pois essas classes podem ser concebidas.
Também podemos facilmente conceber, como indica a premissa, objetos comuns às
duas classes (por exemplo peixes) e objetos que estão em apenas uma delas (por
exemplo cachorros, que pertencem à classe dos animais, e bactérias subaquáticas,
que pertencem à classe de tudo o que vive embaixo d’água). E, por fim, como
aponta (ii.), podemos conceber objetos que não estão em nenhuma das classes (por
exemplo uma árvore). A Figura 6 a seguir representa esse exemplo.
Figura 6 - Exemplo para elucidar os itens (i.), (ii.) e (iii.) dos elementos da álgebra de Boole.
Boole, para apresentar o item (iii.), atribui letras maiúsculas (X, Y, Z) para
designar cada indivíduo de uma classe e, por fim, para generalizar o nome desta
classe. A classe T, por exemplo, seria a classe que une todos os membros
individuais (objetos) Ts que tenham uma característica específica em comum.
Segundo Boole (2015b, p.14):
Para trazer à discussão o item (iv.), Boole solicitou ao leitor que este
concebesse uma classe em que seus objetos fossem letras minúsculas. No caso,
“símbolos x, y, z”, que ele denominou “símbolos eletivos”. Fato é, se esses símbolos
fazem parte de uma única classe, é esperado que todos tenham alguma
característica em comum. Boole então apresenta esta característica ao leitor: cada
um desses símbolos (representados por letras minúsculas) pode selecionar, dentro
de uma classe qualquer, objetos que possuam uma característica qualquer em
comum, mais intrínseca (ou não) do que a característica que já os mantinha unidos.
Esses símbolos representam “o processo mental de separar ou eleger os elementos
das classes (ato eletivo característico do raciocínio na mente humana)”. (SOUSA,
2012, p.168).
Por exemplo, suponha o símbolo eletivo representado pela letra minúscula x,
que tem como característica a seleção de objetos de outras classes que sejam da
cor azul. Assim, x pode selecionar objetos azuis de qualquer outra classe: carros
azuis da classe carros, camisetas azuis da classe camisetas, dentre outras. Se por
acaso usássemos o símbolo eletivo x para selecionar do Universo (como Boole o
define) todos os objetos que tenham como característica ser da cor azul, o ato desta
seleção nos conceberia a classe X, “Azul”, em que todos os objetos individuais X
pertencentes a essa classe têm uma característica em comum. Nas palavras de
Boole (2015b, p.14):
Note que os símbolos eletivos são o paralelo que Boole faz com a função
mental de eleição – uma das noções gerais que tornam a lógica possível,
apresentada na sua Introdução.
72
Note que Boole ressalta que quando não se indica qual a classe sob a qual se
está a fazer uma seleção com um símbolo eletivo, deve-se considerar o Universo
como um todo. Note também que, comparando com a lógica aristotélica, o símbolo
de igualdade representa a cópula – o verbo de ligação. Na frase “Todo homem é
racional”, o sinal de igualdade representa o verbo “ser” conjugado, no caso, o “é”.
Para trazer à discussão o item (vi.), Boole apresenta formalmente a operação
de multiplicação e a operação de subtração (complemento ou negação), deixando
de formalizar a operação da adição. Porém, é fácil notar que para ele a adição
representa a união de duas classes, bem como a multiplicação indica a intersecção
de duas classes e a subtração o complemento de determinada classe, ou seja, todos
os objetos que não fazem parte desta classe.
Na visão de Boole, a respeito da multiplicação, o produto xy deve ser
interpretado como sendo primeiramente a seleção dos objetos do conjunto Universo
que contenham a característica y, e desses, a seleção dos que contenham a
característica x53, de modo que o resultado dessa multiplicação sejam objetos que
possuam tanto a característica y quanto a característica x. Nas palavras de Boole
(2015b, p.14):
53 Note aqui que, para Boole, a multiplicação deve ser “lida” da direita para a esquerda, ou seja, a
primeira seleção realizada por um símbolo eletivo é a seleção do símbolo que se encontra à direita na
multiplicação. Em xy, primeiro seleciona-se y, para a partir desta seleção, selecionar posteriormente
x.
73
Para resumir o que até agora foi apresentado e trazendo à tona o interesse
lógico que esta álgebra do pensamento sugerida por Boole tem, Blanché (1985,
p.276) faz o seguinte apontamento:
Por fim, Boole discute as três leis indicadas em (vii.), que são as “leis de
combinação e de sucessão”. (BOOLE, 2015, p.15). No caso, são as leis distributiva,
comutativa e lei do índice54. As leis distributiva e comutativa são análogas às leis da
álgebra dos números reais, sendo uma exceção apenas a lei do índice. Sobre essas
leis, Boole relata como apresentado abaixo.
A primeira delas, a distributiva, Boole (2015b, p.15) relata da seguinte
maneira:
incomum56 aos olhos da álgebra dos números reais. Nas palavras de Boole (2015b,
p.17):
De fato, esta lei não é válida na álgebra dos números reais, exceto por dois
casos específicos: para os números 0 e 1, pois 0 2 = 0 e 12 = 1, podendo exceder
nosso diagnóstico para 0n = 0 e 1n = 1. Podemos então sugerir que a lógica proposta
por Boole é uma espécie particular de álgebra, na qual os símbolos numéricos
poderiam receber somente os valores 0 e 157.
Inclusive, no Pós-Escrito do tratado, Boole expõe a peculiaridade da álgebra
que acabara de criar: ela poderia se assemelhar à álgebra dos números reais, desde
que somente se admitisse os valores 0 e 1 para a realização dos cálculos. Boole
(2015b, p.87) relata que:
56 Alguns autores, como por exemplo Broadbent (2007, p.324), acreditam que a lei do índice tenha
marcado uma ruptura com a álgebra dos números reais.
57 Essa é a base do que hoje consideramos ser a álgebra booleana: uma álgebra que aceita somente
estudo das probabilidades. Fato que efetivamente se comprovou, ao passo que em 1854 ele publicou
o tratado “Leis do Pensamento”, que é uma espécie de avanço ao conteúdo apresentado no “Análise
Matemática da Lógica”, porém direcionado ao estudo das probabilidades.
77
A expressão de uma verdade não pode ser negada por uma operação
legítima, mas pode ser limitada. A equação y = z implica que as classes Y e
Z são equivalentes, membro a membro. Multiplique por um fator x, e temos
xy = xz, que expressa que os indivíduos que são comuns às classes X e Y
também são comuns a X e Z, e vice-versa. Esta é uma inferência
perfeitamente legítima, mas o fato que ela declara é menos geral do que foi
afirmado na proposição original. (BOOLE, 2015b, p.17)
59É fácil perceber que o universo U (das camisas) não fica totalmente representado com as classes a
(Amarelas) e m (Mangas Curtas), existindo ainda objetos que não fazem parte nem de uma classe,
nem de outra.
79
Exemplo 2 (numérico):
Concebamos a classe (Z) dos números inteiros (nosso universo do discurso).
Usaremos os símbolos eletivos s e t para designar, respectivamente, a seleção dos
números menores que +6 e dos números maiores que +3. Uma possível
representação do nosso universo é apresentada na Figura 960 a seguir:
60Pela definição do nosso universo Z (conjunto dos números inteiros), fica fácil perceber que todo ele
é representado com as classes s (menores do que +6) e t (maiores do que +3), não restando nenhum
objeto fora delas.
80
Uma sentença que afirma ou nega, como Todos os homens são mortais,
Nenhuma criatura é independente.
Uma proposição tem necessariamente dois termos, como homens, mortais;
o primeiro dos quais, ou o de quem se fala, é chamado de sujeito; o
segundo, ou aquilo que é afirmado ou negado do sujeito, o predicado. Estes
são conectados juntos pela cópula é, ou não é, ou por alguma outra
modificação do verbo ser.
O verbo ser é o único verbo reconhecido na lógica; todos os outros são
resolvíveis por meio do verbo ser e um particípio ou adjetivo, exemplo: "Os
romanos conquistaram"; a palavra conquistada é tanto cópula quanto
predicado, sendo equivalente a "foram (cópula) vitoriosos" (predicado). Uma
proposição deve ser afirmativa ou negativa e deve ser também universal ou
particular. (BOOLE, 2015b, p.19)
Para justificar a criação da quarta figura de silogismo (ver Quadro 5), Boole
defende que a obrigatoriedade das premissas seguirem uma ordem baseada na
disposição dos termos menor e maior é meramente uma convenção, de modo que
as premissas poderiam ter suas ordens trocadas sem nenhum ônus para a validade
da conclusão. Ele observa que o método algébrico que apresentará tornará isso
92
evidente, de modo que sempre a conclusão mais geral será obtida. Segundo Boole
(2015b, p.34):
Boole, então, percebeu que essa nova visão menos restritiva que procurava
implementar à lógica clássica por meio de uma álgebra da lógica daria mais
abrangência aos escritos de Aristóteles. Para ele, os escritos aristotélicos
“restringiam a ordem dos termos de uma conclusão” e “limitavam sua natureza”.
Ainda segundo ele (2015b, p.34):
Porém, Boole não acreditava que estava criando uma inédita e revolucionária
lógica. Muito pelo contrário, não negou em momento algum a lógica aristotélica,
tendo plena convicção de que Aristóteles estava correto, mas este apenas não
avançou o suficiente em seus escritos. Corcoran (2003, p.270) aponta que:
Boole era um exímio analista matemático que achava que conhecia a lógica
de Aristóteles e que achava que a lógica de Aristóteles era perfeita até onde
ia. No entanto, (...) Boole não achava que a lógica de Aristóteles fosse
profunda ou ampla o suficiente. Um dos objetivos do trabalho de Boole era
preservar os resultados que Aristóteles alcançara e, ao mesmo tempo,
contribuir de duas maneiras contrastantes para o desenvolvimento do
projeto que Aristóteles havia iniciado. (...) Boole queria, por um lado, unificar
a lógica de Aristóteles e fornecer uma base matemática-algébrica.
(CORCORAN, 2003, p.270)
Note que é possível fazermos uma analogia para a visão de Boole em relação
à lógica aristotélica com a visão de Einstein em relação à mecânica de Newton ou
com a visão de Newton (gravitação universal) em relação às três leis de Kepler do
movimento planetário62. De fato, como aponta Corcoran (2003), é possível que o
próprio Boole tenha aceitado essa analogia até certo ponto e que ele sentiu sua
relação com Aristóteles comparável de alguma forma à relação de Newton com
Kepler (baseado em Boole, 2015a, p.5). Segundo Corcoran (2003, p.270):
Boole pode ter visto a relação de sua lógica matemática com a lógica
silogística de Aristóteles, assim como Einstein veria a relação de sua
mecânica relativista com a mecânica clássica de Newton. Em ambos os
casos, grosso modo, a teoria mais antiga forneceu um paradigma e uma
classe de resultados aceitos para o novo, e os resultados mais antigos
deveriam tornar-se aproximações ou casos limitantes para resultados na
teoria mais recente. Em ambos os casos, o teórico posterior aceitou o que
ele considerou serem os objetivos do teórico anterior, mas depois produziu
uma nova teoria que ele adotou para melhor cumprir esses objetivos.
(CORCORAN, 2003, p.270)
62Em cada uma das duas analogias, a teoria mais recente foi pensada como uma ampliação da mais
antiga. Por exemplo, podemos inferir que do ponto de vista de Newton, a teoria de Kepler deu uma
descrição correta dos movimentos dos planetas, mas sem explicação; Newton explicou por que
Kepler estava certo.
94
Boole, após apresentar sua visão sobre silogismos e adicionar uma quarta
figura aos seus modos, agora vai finalmente apresentar ao leitor como se faz um
silogismo segundo os critérios de sua álgebra.
Sobre o procedimento utilizado em seu tratado, Boole (2015b) afirma que não
somente as leis de conversão e silogismos poderiam ser deduzidas por meio de
proposições lógicas, mas também seria possível a resolução dos sistemas mais
complexos de proposições, a separação de qualquer elemento proposto e a
expressão de seu valor em termos dos elementos restantes, com cada relação
secundária envolvida. Dessa maneira (2015b, p.6):
Seria prematuro falar do valor que o método pode ter como instrumento de
investigação científica. (...) O objetivo dessas investigações foi, em primeira
instância, confinado à expressão da lógica recebida e às formas do arranjo
aristotélico, mas logo se tornou evidente que restrições eram assim
introduzidas, que eram puramente arbitrárias e não tinham fundamento na
natureza das coisas. (BOOLE, 2015b, p.7)
Um silogismo se dá da forma:
𝐸𝑞𝑢𝑎çã𝑜 𝑑𝑎 1𝑎 𝑃𝑟𝑒𝑚𝑖𝑠𝑠𝑎
{ 𝐸𝑞𝑢𝑎çã𝑜 𝑑𝑎 2𝑎 𝑃𝑟𝑒𝑚𝑖𝑠𝑠𝑎→ 𝐶𝑜𝑛𝑐𝑙𝑢𝑠ã𝑜
𝑇𝑜𝑑𝑜 𝑌 é 𝑋 𝑦(1 − 𝑥) = 0
{ 𝑇𝑜𝑑𝑜 𝑍 é 𝑌→ {
𝑧(1 − 𝑦) = 0
Para chegar a uma conclusão válida, de forma geral, Boole defende que seu
método é conveniente por se basear na eliminação do termo médio. Deve-se
primeiramente deixar o termo médio como fator de um lado da primeira premissa e
como fator do outro lado na segunda premissa, para posterior multiplicação das
equações e eliminação do termo médio. Boole diz (2015b, p.35):
97
Há, porém, uma restrição. As duas equações das premissas não podem ser
ambas da forma ay = 0, sendo que uma delas deverá ser resolvida 63 antes da
aplicação do método da eliminação do termo médio. Boole (2015b, p.33) explica:
𝑦(1 − 𝑥) = 0 𝑦(1 − 𝑥) = 0
{ → {
𝑧(1 − 𝑦) = 0 𝑧 − 𝑧𝑦 = 0
63
Neste contexto, resolver uma equação para Boole significa reescrevê-la de outra maneira que seja
mais apropriada para a aplicação de seu método.
98
𝑦(1 − 𝑥) = 0
{ → 𝑦(1 − 𝑥)𝑧 = 0𝑧𝑦 → (1 − 𝑥)𝑧 = 0𝑧 → 𝒛(𝟏 − 𝒙) = 𝟎
𝑧 = 𝑧𝑦
A conclusão em negrito pode ser lida como “Todo Z é X” (Quadro 4), que é
uma proposição universal afirmativa (A). Essa era exatamente a conclusão obtida
por Aristóteles na sua Primeira Figura de silogismo no caso das premissas serem
AA. O verso mnemônico bArbArA pode ser utilizado para lembrar-nos o caso AAA
da primeira figura, que foi exatamente o caso desse exemplo.
Boole, além desse exemplo, apresentou alguns outros em seu tratado, de
modo a justificar a eficácia e uso do método que acabara de propor. Dessa maneira,
ele completa uma parte da algebrização da lógica e do pensamento dedutivo
humano, cumprindo um dos objetivos que tinha se proposto. Ele conseguiu, após
esse tratado, colocar em xeque a até então exclusiva associação da Lógica com a
Filosofia, acrescentando muito ao debate que já se realizava na época de sua
publicação.
99
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
aprofundados por não fazerem parte desses objetivos, mas que podem iluminar
outras investigações para estudos futuros.
O primeiro e talvez mais importante ponto que pode ser levantado como
possível futuro estudo é o de utilizar o conteúdo e resultados obtidos nesta pesquisa
para a produção de atividades para formação de professores, seja ela inicial ou
continuada. Isto vai de acordo com a proposta do segundo eixo de pesquisa do
grupo HEEMa apresentada no item 1.3 deste trabalho, onde a articulação entre
história e ensino tem o intuito de propor atividades para a formação de professores
de matemática. Ou seja, após esta pesquisa criar a interface entre história e ensino
e servir como material bibliográfico para a reflexão do professor (finalizando assim o
primeiro eixo), o próximo passo seria a produção de atividades para a formação
deste mesmo professor.
Essas atividades podem seguir diversos caminhos, por exemplo, podem
seguir o rumo da possibilidade de se explorar o desenvolvimento do pensamento
algébrico por meio de discussões de lógica, como as propostas por Boole. Ou seja,
é possível a criação de atividades que usem a lógica proposta por Boole e que
tenham como objetivo principal trabalhar o desenvolvimento do pensamento
algébrico em alunos e professores. Também, por exemplo, podem ser propostas
atividades para trabalhar com alunos e professores o pensamento lógico, o
encadeamento de ideias e provas matemáticas.
Não distante destes pontos de pesquisa futura, é possível também a partir da
investigação das possibilidades trazidas pela abordagem algébrica de Boole para a
Lógica, propor uma reformulação da disciplina de Lógica na formação de
professores, sejam eles de cursos relacionados à área de computação ou não. É
possível utilizar uma abordagem que concatene lógica e álgebra, de modo a
modificar o modo como a disciplina comumente a disciplina é apresentada.
Outros pontos que cabem também investigação são de questões mais
internas, como por exemplo o Unitarismo e as crenças de Boole, e o quanto isso
pode ter influenciado em sua obra. Nossas leituras nos levam a acreditar, mesmo
que de maneira ainda superficial, que a religião pode ter tido um papel importante
nos escritos de Boole.
Resta também investigar se a formalização da Matemática proposta por
Hilbert dependeu de alguma maneira da algebrização da Lógica. Para compreender
102
REFERÊNCIAS
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KOLMOGOROV, A.N. (Ed.); YUSHKEVICH, A.P. (Ed.). Mathematics of the 19th
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Men in History. 1 ed. Abington: Routledge, 1998.
107
APÊNDICES
ANEXOS
• Ode to the Spring (1830) The Lincoln Herald, dated May 28th.
• Letter to the Editor (1830) The Lincoln Herald, dated June 12th.
• Letter to the Editor (1830) The Lincoln Herald, dated June 26th.
• Lines to a Departed Friend, From the Greek (1830) The Lincoln Herald, dated
July 15th.
• To the Evening Star, From the Greek of Bion (1830) The Lincoln Herald, dated
August 25th.
• Letter to the Editor concerning Remarks on a Paper by the Rev. Brice Bronwin,
On the Solution of a particular Differential Equation (1848) Philosophical
Magazine, Vol. 33, No. 3, p. 211.
• Notes on Quaternions (1848) Philosophical Magazine, Vol. 33, No. 3, pp. 278-
280.
• Letter to the Editor (1851) Cambridge and Dublin Mathematical Journal, Vol. 6,
pp. 284-285.
• An Account of the late John Walsh of Cork (1851) In a letter from Professor
Boole to Professor de Morgan. Philosophical Magazine, Vol. 2, No. 4, pp. 348-
358.
• Letter to Dr. Ryall (1859) An Investigation into the condition of the children in
the Cork Workhouse, by John Arnott, MP (privately published pamphlet). Cork.