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RELAÇÕES DE GÊNERO EM O JOGO DE IFÁ

Lúcia Leiro

“... considero o escritor uma testemunha de sua época.”


(Maria do Carmo Pinheiro Torres, Ilhas Cercadas)

S
onia Coutinho, escritora baiana de Itabuna, cuja atuação literária
se inicia nos 60, em jornais de Salvador, atualmente, vive no Rio de
Janeiro. Sua última produção compreende contos e romances, sendo
que a primeira foi Do Herói Inútil, livro de contos, publicado em 1966, embora a
escritora considere O Nascimento de uma Mulher, também um livro de contos, de
1971, a sua estréia ficcional. O seu último livro, Os Seios de Pandora, é um romance
que toma como estrutura da narrativa o romance policial. A atmosfera de assas-
sinatos e crimes, no entanto, já estavam prenunciados em Atire em Sofia, de 1989,
e em O Caso Alice, de 1991.
O seu primeiro romance, O Jogo de Ifá, de 1980, vem sendo estudado
com mais interesse pela crítica feminista, haja vista os trabalhos escritos por Luiza
Lobo, Susan Quilan, Joyce Carlson-Leavitt, Rosana Patrício e, atualmente, por
mim. O texto de Coutinho chama a atenção pela construção narrativa inovadora,
na medida em que a escritora institui: 1) vozes narrativas múltiplas, justapondo o
discurso histórico-antropológico ao ficcional; 2) jogo intertextual através da in-
serção de textos já conhecidos, além de trazer à tona 3) questões ligadas a confli-
tos étnicos e de gênero. A autora, através de uma escrita fragmentada e labiríntica,
assume em suas produções uma dicção feminista, isto é, uma voz politizada,
consciente da condição da mulher na sociedade androcêntrica e burguesa: “Acre-
dito que, se não soubesse o lugar de onde escrevo – uma situação de mulher –
seria alienada.” (IARARANA, 1999, p.6).
Em suas produções, Sonia Coutinho constrói as suas personagens no
momento em que elas, na maturidade, evocam o passado num jogo rememo-
rialístico para entender a sua situação na sociedade e encontrar respostas para
seus conflitos no presente. Na verdade, o passado (que não é o passado cronolo-
gicamente distante) encontra-se imbricado ao presente, enredando-se na memó-
ria da personagem e na suja prática de vida, provocando conflitos. O lugar da
família, juntamente com a educação religiosa, permeará as reflexões das prota-
gonistas que responsabilizam a sua formação pelos conflitos, pelas angústias e
entraves vividos na maturidade dos quais não conseguem se livrar.
O espaço familiar corresponde ao lugar onde os papéis sociais são mol-
dados e, no caso das personagens de Coutinho, imersos em uma rígida socieda-
de de lastro agrário, católico e patriarcal: “...o preconceito, as idéias passadistas,
tudo que é produto da repressão sexual e do generalizado sentimento de culpa
que nos foi transmitido por essa educação religiosa ainda nos moldes medievais
ibéricos.” (COUTINHO, 1980, p.27).
Neste ensaio pretendo discutir como a questão das relações de gênero
atravessa toda a narrativa de O Jogo de Ifá, mostrando como um mesmo aspec-
to é vivenciado pelo homem e pela mulher distintamente, através do modelo
imposto pela sociedade. Embora o romance trate de duas personagens, que
têm os mesmos conflitos e estão no mesmo impasse, sendo uma masculina –
Renato – e outra feminina – Renata – pretendo centrar meu estudo na perso-
nagem feminina.
O romance apresenta o itinerário de personagens que enfrentaram os
papéis pré-fixados pela sociedade burguesa, permeado pelos resquícios das rela-
ções familiares do clã, o qual caracteriza-se pela centralização da autoridade pa-
terna e pela linhagem patrilinear como tronco principal para traçar a descendên-
cia comum, por isso está fixada a herança desta autoridade no sujeito masculino,
que deveria zelar pelo nome de pertencimento que identifica o indivíduo àquela
família. O patrimônio é passado pela linhagem masculina perpetuando e man-
tendo o poder, o econômico e a propriedade. Neste sentido, as mulheres esta-
vam impedidas de usufruir do patrimônio familiar, já que, nesses casos, a herança

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era transferida e administrada pelo marido. Exilada deste universo, as persona-
gens de Sonia Coutinho rompem com os modelos de representação de esposa e
mãe, questio-nados nos anos 60, quando os movimentos feministas, negro,
pacificistas explodem o establishment e os valores do modelo burguês.
Os anos 60 assistiram inúmeras manifestações e movimentos, tensões
em eixos ideológicos, conflitos étnicos e, na América Latina, à ditadura militar.
Pensamentos como o existencialismo de Sartre e o feminismo existencialista de
Simone de Beauvoir penetravam nas universidades, levando o sujeito a uma aventura
para dentro de si, refletindo sobre a sua condição humana e, inevitavelmente, sua
posição na sociedade. As protagonistas de Coutinho estão imersas nessa atmos-
fera, indagando-se sobre a questão humana e defendendo a idéia de que a cons-
tituição do ser está relacionada à escolha que a pessoa faz sobre a sua vida, como
afirmava Sartre, e que Beauvoir articulou e aplicou à condição da mulher – a
mulher enquanto sujeito responsável pelos seus atos e condutora de seu destino.
A protagonista de O Jogo de Ifá é uma jovem universitária que vivencia e
atua sobre as mudanças e aberturas ocorridas ao longo da década de 60,
protagonizadas pelos segmentos marginalizados na Europa, e repercutindo na
América Latina.
Em um dos trechos de O Jogo de Ifá, a consciência de pertencer a uma
comunidade cultural maior, a latino-americana, faz com que a personagem femi-
nina, em seus momentos de auto-descoberta, se coloque dentro de uma herança
social alicerçada na colonização católica ibérica. Em se tratando da mulher, as
concepções religiosas incidiram sobre seu corpo, regulando-o, reprimindo-o e
imprimindo-lhe mitos e precon-ceitos. No capítulo 7, do romance intitulado
Mulher e Latino-Americana, a referência às marcas da colonização são claras e estão
presentes na memória enquanto experiência coletiva e individual:

“Agora, parece incrível que fosse tão ingênua. Mas era ingênua sim, e crédula,
e honesta e quadrada. Assim, o máximo que conseguiu fazer, em matéria de
sexo, durante muito tempo – e se sentindo a criatura mais sórdida do mundo
– foi se masturbar interminavelmente. Porque uma coisa tão feia só poderia
ser praticada longe da vista de qualquer pessoa.” (COUTINHO, 1980, p.19).

Neste sentido, a voz narrativa se coloca como herdeira de um processo


historicamente vivenciado pelas mulheres de países latino-americanos que busca-
vam, através de uma viagem interior, identificar os discursos que perpetuaram e
mantiveram através dos tempos o controle sobre o seu comportamento, sobre-
tudo no que se refere às suas emoções e à sua sexualidade. A construção dos
papéis sociais está localizada dentro das instituições sociais e, no caso das perso-
nagens do romance, diretamente relacionada à religião, já que os protagonistas
estudaram em colégios religiosos.

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As personagens femininas de Sonia Coutinho, ao enfrentarem o modelo
burguês, romperam com o papel preestabelecido e buscaram novos/outros ca-
minhos, construindo suas próprias histórias de vida, negando não apenas o papel
de companheira (presente no discurso oficial e quase distante das práticas sociais)
e, algumas vezes, de mãe, mas rejeitaram e romperam com um legado de séculos
e disseram não ao destino de mulher.
Em O Jogo de Ifá, as personagens Renato e Renata percorrem o mesmo
caminho, sem com isso significar uma experiência individual simétrica,

“...no entanto, ambos estão no mesmo impasse, envolvidos numa crise existen-
cial. Em um sentido geral, os dois personagens/narradores possuem uma estó-
ria comum, mas a grande questão é por que apresentar essas experiências sob
duas perspectivas, por um homem e por uma mulher?” (LEIRO, 1998, p. 215).

As duas personagens saem de uma cidade conservadora, Salvador, e


partem para o Rio de Janeiro (cidade mais cosmopolita) em busca de melhores
oportunidades. Apesar de terem o mesmo percurso de regresso à cidade onde
nasceram e terem tido uma formação escolar e familiar semelhantes, as experiên-
cias de ambos são distintas, uma vez que os papéis internalizados pelas persona-
gens determinarão a sua visão de mundo e a sua relação com o outro. O conflito
se instala quando ambas as personagens não correspondem ao modelo de represen-
tação burguês exigido tanto para o homem quanto para a mulher. Ele não se
tornou um profissional bem sucedido e não construiu uma família estável; ela,
desquitada (de dois casamentos), mora sozinha e se mantém. A discussão de
gênero perpassa ao longo da narrativa, sobretudo ao tratar de assuntos como
sexualidade e profissão:

“Mas ela, embora não tenha concluído um curso universitário (ao contrário
do irmão, encaminhado pela família neste sentido porque era homem, preci-
sava preparar-se para a vida), fez por conta própria os seus cursos de línguas,
de datilografia, tem condições de trabalhar e se sustentar.” (COUTINHO,
1980, p.55).

Este trecho nos remete ao livro de Virginia Wolf (1985), intitulado Um


Teto todo Seu, no qual a escritora inglesa refere-se à possível existência de uma irmã
de Shakespeare que, pela educação conferida à mulher dentro das construções e
relações de gênero, não teria a projeção do irmão, já que lhe seriam tiradas todas as
condições de desenvolver-se fora do espaço doméstico e alcançar destaque na
esfera pública.
Uma das únicas profissões destinadas à mulher burguesa, desde o século
XIX, o magistério, não causaria nenhuma instabilidade na ordem social, já que as
atividades educacionais não alterariam o papel destinado à jovem pela sociedade,

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isto é, de esposa e mãe, mas confirmaria e re-forçaria uma possível naturalização
da mulher para o cuidado com as crianças. No romance, o título universitário é
visto pelos familiares da jovem como um lustre, um status que garantiria um casa-
mento promissor:

“...a família sempre fez questão de que ela se formasse, embora a profissão de
professora, no entender deles [os pais], não devesse representar nada de signifi-
cativo, para a sua vida conjugal, em termos econômicos ou quaisquer outros.
Simplesmente, seria uma espécie de ornamento, enfeite. Um presente deles,
como um dote – nossa filha é formada.” (COUTINHO, 1980, p.56).

Em relação ao protagonista, Renato, a estabilidade profissional é cobra-


da pela família, correspondendo a uma exigência da sociedade, no momento em
que o pai o compara com os filhos de seus amigos, que conseguiram se destacar
e notabilizar-se no seu meio como negociantes ou profissionais liberais. A falha
do filho desnorteia o pai que busca a consolidação do status da família na socie-
dade, revelando a afirmação da estrutura patriarcal pelo controle econômico:

“– Os filhos de Joaquim estão bem de vida – irrompe o pai, inesperadamente.


– Paulo é dono de uma grande loja de tecidos, Manoel é engenheiro, tem
convites para trabalhar até no exterior, ganha um ótimo salário. Os filhos de
todos os meus amigos estão bem de vida. Você, meu filho, largou o curso
universitário pela metade, decidiu virar jornalista e eu até pensei que fosse para
a frente.” (ibid., p.60).

As diferenças na construção dos gêneros são percebidas também quan-


do se trata da sexualidade. De Renata, a família exige a virgindade, representando
uma marca de valor para a sociedade, condição que deveria ser mantida pela
jovem e salvaguardada pela família, a fim de proporcionar-lhe um bom casa-
mento. Na ótica da personagem, já na maturidade, a virgindade se tornou um
estorvo e um trauma, na medida em que a sua idéia sobre sexo foi eivada pela
concepção de pureza e pecado propagada pela educação católica, primeiro con-
flito no seu percurso de mulher casada:
“....o fato de ter permanecido virgem, praticamente, até os 25 anos – através de
todo aquele primeiro casamento. Sim, em grande parte porque acreditou no
que lhe disseram durante a infância e a adolescência inteiras, em casa e no
colégio religioso, onde estudou: que era feio fazer sexo, que sexo é pecado, que
uma mulher se conspurca, fazendo sexo. Isto tinha sido transmitido a todas as
mulheres de sua geração, e não sabe como as outras reagiram (evitavam falar a
respeito, mesmo quando íntimas suas). Mas ela, ah, ela acreditou. E então,
mesmo quando deixou de acreditar, aquilo ficou indelevelmente impresso em
algum recanto de sua mente.” (ibid., p.19).

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No caso de Renato, a virgindade aparece como um problema a ser
resolvido, já que, para a sociedade patriarcal e ocidental, a afirmação da masculi-
nidade e inserção do jovem no mundo adulto perpassa pelo ritual das práticas
sexuais, mais precisamente à prática heterossexual, na medida em que é em rela-
ção à mulher que o masculino se constitui, como mostra o seguinte fragmento:

“Você sabia que eu, até os 26 anos, não tinha conseguido trepar com mulher
nenhuma, para valer? Já estava certo de que era impotente, quem sabe um
veado enrustido, pensei até em suicídio, no fim acabei me conformando. Me
achava o sujeito mais diferente e solitário do mundo, não teria coragem de
partir realmente para a veadagem. Então, eu era meio gente.” (COUTINHO,
1980, p.76).

A personagem Renato internaliza os valores da sociedade, evidenciando,


através de seu conflito, a violência de gênero, flagrada pela tentativa de suicídio,
ao supor que seria impotente ou veado, duas marcas excludentes do ser homem,
porque não se inserem no constructo masculino. Tratando-se de um personagem
que teve uma formação católica e repressiva, sua escolha recai sobre uma mulher
negra. Ao casar-se com uma negra, com quem tem prazer sexual, explicita as
marcas sexuais estereotipadas pela cultura baiana, acabando por provocar e ex-
por o racismo presente na sociedade, um racismo gendrado:

“Com a educação que teve, ah, ele precisava da sensação de estar Pecando. O
Pecado em alto estilo. Não conseguiria fazer sexo com uma garota qualquer,
boazinha, não ia fazer isso com ela. E o sexo, para ele [Renato] seria insípido
como arroz sem sal. Sexo era uma coisa terrível, precisava ser cercado por um
ritual diabólico – uma bruxa negra, alguém que se parecesse com as imagens
que o excitavam durante a masturbação, na adolescência. A Mulher na Visão
dos Padres. Oito anos de colégio religioso produziram seus frutos – ele foi
preparado para um Anjo Mal.” (ibid., p.60).

Enquanto que para a sociedade burguesa a virgindade feminina significa


um bem a ser preservado pela jovem para o casamento – através dos vários
mecanismos de controle – para o homem a sua permanência sinalizava uma
dúvida quanto à sua orientação.
Pelo percurso dos dois personagens, percebe-se que o romance oferece
dois indivíduos que fracassam ante às expectativas que a sociedade burguesa
estabelece para os distintos papéis representados por homens e por mulheres e
que os sentidos acionados pelos sujeitos na sua leitura de mundo são construídos
por lugares gendrados.
As experiências de mulheres nos textos de Coutinho, tanto no que diz
respeito à sua sexualidade quanto ao trabalho profissional, questionam a naturali-

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zação dos papéis sociais, rompendo com o modelo que limitava os seus espaços
de ação. Algumas delas continuaram enredadas em vozes que se multiplicavam
vigilantes e punitivas, enquanto outras transgrediram e experimentaram os desa-
fios de uma nova forma de estar no mundo e assumiram as conseqüências de
suas escolhas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COUTINHO, Sonia. O Jogo de Ifá. Salvador: Fundação Cultural do Estado,


Ática, 1980.
IARARANA, Revista de Arte, Crítica e Literatura. Entrevista com Sonia
Coutinho. Org. Aleilton Fonseca; Elieser Cesár; Carlos Ribeiro. Salvador,
Fundação Cultural do Estado da Bahia, p.5-7, ago. 1999.
LEIRO, Lúcia. A voz narrativa de O Jogo de Ifá. In: ALVES, Ivia; PASSOS,
Elizete; MACÊDO, Márcia. (Orgs.). Metamorfoses – gênero na perspectiva
interdisciplinar. Salvador: UFBA/NEIM, 1998. p. 215-229.
WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.

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