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Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Sebenta de
Direito Comercial
Prof. Dr. Miguel Pestana de Vasconcelos e
Prof. Dra. Mariana Fontes da Costa

Aulas Teóricas

Faculdade de Direito da Universidade do Porto

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Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Nota Introdutória

Esta sebenta respeita às aulas teóricas de Direito Comercial do ano letivo de 2020/2021,
lecionadas pelos docentes Miguel Pestana Vasconcelos e Mariana Fontes da Costa. A sebenta foi
realizada com os apontamentos da coordenadora Marta Correia e da vogal Helena Lourenço do
Departamento de Pedagogia da Comissão de Curso do 4º ano.
A sua elaboração foi realizada com o objetivo de auxiliar os estudantes para o exame de Direito
Comercial. Relevamos ainda que, a leitura desta sebenta não substitui a leitura da bibliografia
obrigatória ou recomendada, sendo apenas um instrumento de auxílio ao estudo.
Caso sejam detetados alguns erros, agradecemos que estes sejam comunicados através do email
da CC4: ccurso4fdup@gmail.com de modo a que o documento seja aperfeiçoado.

Bom estudo!

A Comissão de Curso do 4º ano de Direito

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Índice

▪ Página 4 – Noções Introdutórias (conceção histórica, noção de Direito Comercial Português,

Fontes do Direito Comercial)

▪ Página 12 – Atos de Comércio

▪ Página 23 – Os comerciantes

▪ Página 30 – Contrato de Compra e Venda Comercial

▪ Página 36 – Contratos Bancários

▪ Página 38 – Contrato Bancário Geral

▪ Página 40 – Contrato de Depósito

▪ Página 43 – Contrato de Mútuo Bancário

▪ Página 46 – Contrato de Conta

▪ Página 49 – Contrato de Locação Financeira

▪ Página 66 – Contrato de Cessão Financeira

▪ Página 71 – Insolvência e Recuperação de Empresas

▪ Página 102 – O estatuto dos comerciantes

▪ Página 114 – Empresas

▪ Página 126 – Trespasse

▪ Página 133 – Locação do Estabelecimento Comercial

▪ Página 134 – Títulos de Crédito

▪ Página 151 – Sinais Distintivos de Empresa

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Direito Comercial

I - Conceções de Direito Comercial


Evolução histórica do Direito Mercantil
O Direito Civil nasceu em Roma. Foi compilado, em grande parte, no Corpus Iuris Civilis e
foi sucessivamente recebido nas escolas dos glosadores, comentadores e por via da ciência jurídica
alemã.

O Direito Comercial surge na Idade Média e nasceu por causa das necessidades de comércio.
Em termos históricos, com a queda do Império Romano, as invasões bárbaras e a criação dos Estado
medievais houve um grande corte das relações comerciais. Só se desenvolveu novamente na Baixa
Idade Média, quando os comerciantes estão ligados às cidades medievais. Organizaram-se em
corporações que criaram um Direito próprio, específico, comercial que era, na génese, diferente do
Direito Comum de caráter romano-canónico. Isto é, tinha interesses diversos, ligados ao comércio,
para o qual o Direito comum não tinha soluções adequadas. Por exemplo, uma pessoa para ser
caldeireiro tinha de ser admitido na corporação, iniciava como aprendiz e ia subindo até ser mestre,
não podia partilhar os conhecimentos a terceiros. Eram agentes económicos à volta de um agente
económico e com proximidade física. O que se desenvolveu foi, então, um Direito ligado à pessoa do
comerciante, diferente do Direito Civil, com especificidades próprias.

Um Direito Comercial em sentido próprio, enquanto corpo ou sistema normativo autónomo,


tendo por função regular a atividade mercantil, terá surgido somente Época Medieval. Nasceu no séc.
XII (e cresceu nos séculos seguintes) em cidades italianas (Florença, Génova, Milão, Veneza, etc.),
enquanto intermediários do Oriente e Flandres (que compõe a Bélgica e Holanda) e a Inglaterra que
era forte nos têxteis. Era uma época de fraco poder político central e de forte ressurgimento do
comércio. Os comerciantes, organizados em corporações, passaram a constituir a classe económica e
politicamente dominante, criando condições para estes gerarem um Direito “especial do comércio”.

As primeiras fontes eram os costumes mercantis (originados nas práticas contratuais dos
comerciantes, cedo foram reduzidos a escrito, tendo sido desenvolvidos nos estatutos corporativos),
os estatutos das corporações dos mercadores e a jurisprudência dos tribunais “consulares”.

Foi com base nesta realidade subjacente que começaram a ser criadas regras e princípios
próprios que visavam o reforço do crédito, facilitar a celebração dos contratos estabelecendo menores
requisitos de caráter formal consagrando a liberdade de forma. Surgiram, também, a ilicitude de venda

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de bens alheios feita por comerciante, o estabelecimento comercial e sinais distintivos, as letras de
câmbio e livranças e institutos próprios como a falência.

Foi, portanto, o medievo Direito Comercial um “direito de classe”, um Direito criado pelos
mercadores para regular as suas atividades profissionais e por eles aplicado. Foi um Direito de cariz
“subjetivo”, que disciplina o comerciante e os atos deste relativos ao seu comércio.

A circulação de bens passa a ter um volume e uma intensidade nunca antes observada. Ligada
a esta atividade comercial havia um conjunto de necessidades que passava, desde logo, pelo sistema
de pagamento (a questão das diferentes moedas) e conceção de crédito. Assim surgem as letras de
câmbio (para fazer pagamentos à distância), que permitiam a conceção de crédito e que um sujeito
obtivesse um pagamento de modo a não ser assaltado (dava ordem de pagamento a uma sucursal sua).
O comércio fazia-se por via terrestre, mas também por via marítima e o risco dessa via era o
afundamento, por isso, nasceram os contratos ligados ao transporte marítimo. Nasceu também, nesta
altura, o comércio bancário, principalmente em Florença, no norte de Itália, os principais banqueiros
nos sécs. XV e XVI: eram os médicos, que criaram um sistema de sucursais em todas as cidades da
Europa no qual nomeavam um sócio local. Desenvolveu-se o comércio bancário desde logo no
empréstimo às várias coroas. Surgiu também o instituto da falência que é peculiarmente comercial. Se
um sujeito deixar de cumprir as obrigações os seus bens podem ser executados. Mas o incumprimento
no comércio tem um efeito sobre outros sujeitos que podem também não cumprir levando a um
incumprimento generalizado e, por isso, desenvolveu-se o instituto da falência conhecido como “banca
rota”. Inicialmente, era altamente punitiva para o sujeito que estava em falência- não podia exercer
comércio, podia ser preso, podia até haver um processo infamante.

O Direito Comercial teve, depois, um desenvolvimento muito relevante no séc. XVII quando
foram constituídas as companhias: em Amesterdão foi criada a companhia das Índias Orientais,
primeira sociedade anónima. O comércio das especiarias fazia-se essencialmente através de Lisboa
vindo da Índia, vendido na Flandres e depois os mercadores do norte da europa. Quando Portugal foi
integrado em Espanha, perdemos os negócios com a Holanda porque estavam em guerra. Por isso, a
Holanda precisava de chegar ao oriente, mas havia inúmeros gastos, exigia um investimento muito
avultado: construir navios, armar exércitos, colonizar territórios. Se um sujeito fosse sócio ele
respondia. Assim, o primeiro aspeto foi mobilizar capitais sem os sócios responderem, respondiam só
pelo valor da ação: surgiram as ações, participava nos lucros do seu empreendimento. Num segundo
momento, os próprios administradores deixaram de responder pessoalmente. Depois também se
impediu que os sócios, a todo o momento, pudessem pedir restituição do capital. A Companhia das

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Índias Orientais teve uma linha de desenvolvimento mais lenta por não poderem fazer este pedido.
Desenvolveu-se a bolsa de Amesterdão com um nível de notificação muito grande o primeiro mercado
de futuros ligados aos bolbos de tulipas com uma especulação enorme, foi o primeiro fenómeno de
especulação bolsista.

A figura mais relevante da vida comercial foi a das sociedades comerciais. A tecnologia jurídica
nasceu aqui porque permitir reerguer capitais elevadíssimos para o desenvolvimento de uma atividade.
Se os sócios respondessem não seria possível de outro modo.

A codificação mais relevante foi o “Code de Commerce” de 1807, que marca o início da etapa
Contemporânea na evolução do Direito Comercial. Os princípios da liberdade e da igualdade (perante
a lei), inspiradores da Revolução francesa, eram incompatíveis com a manutenção de um Direito dos
comerciantes (comerciantes enquanto classe corporativa). Determina uma série de atos como
comerciais que não têm de ser praticados por comerciantes, sendo que foi aí que se passou a acentuar
o caráter objetivo do Direito Comercial. Teve uma relevância muito grande nas codificações mercantis
do séc. XIX: nos códigos espanhóis, italianos, alemão, etc.

A próxima grande alteração em termos estruturais do Direito Comercial foi o Código Comercial
Alemão de 1897 (anterior ao BGB), ainda vigente. Este adotou novamente a conceção subjetiva de
direito mercantil- disciplina o estatuto dos comerciantes e os atos de comércio são atos de um
comerciante que pertencem à exploração da sua empresa comercial.

Os nossos códigos comerciais oitocentistas filiam-se também no referido sistema objetivo. O


primeiro, de 1833 (redigido por J. Ferreira Borges) e o segundo, ainda em vigor, embora com várias
normas alteradas e muitas revogadas (só temos um núcleo de normas vigente, muito à volta dos
contratos que estão regidos por este) que é o Código de 1888, de Veiga Beirão que começa por declarar
que “a lei comercial refere os atos de comércio, sejam ou não comerciantes as pessoas que neles
intervêm”. Tem um caráter essencialmente objetivo, mas também é introduzido um elemento subjetivo,
tendo um caráter misto.

Na última centúria, deram-se consideráveis desenvolvimentos no Direito Comercial. Deu-se


uma renovada tendência para sua internacionalização-uniformização (que caminha a par da
globalização da economia). Tem a ver com o próprio desenvolvimento das trocas comerciais muito
marcado antes da 1ª GM.

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Diversas convenções internacionais de âmbito potencialmente universal têm unificado os


sistemas jurídico-mercantis nacionais em setores específicos. Por exemplo, as convenções de Genebra
de 1930 e 1931 estabelecendo leis uniformes em matéria de letras e livranças e em matéria de cheques.

No que diz respeito a Portugal, a alteração foi na Comunidade Europeia. Os tratos constitutivos
das organizações internacionais de integração (com destaque para as Comunidades Europeias) e as
normas emanas dos respetivos órgãos vão unificando ou harmonizando o Direito Comercial dos
Estados-Membros em domínios vastos. O movimento de uniformização tem-se acentuado no campo
das relações comerciais internacionais.

Há um conjunto de convenções europeias a mais relevante é a Convenção de Viena


relativamente à compra e venda de mercadorias. Em 69 o Portugal não ratificou a convenção, só mais
tarde. Há, ainda, muito direito desenvolvido por organizações internacionais. Portugal tende a não
ratificar muitas destas convenções.

Por outro lado, tem-se desenvolvido um Direito uniforme de origem não estadual. Um Direito
feito de usos e costumes do comércio internacional, de usos e práticas negociais, por vezes reduzidos
a escrito e compilados, como é o caso do “Incoterms”, de cláusulas contratuais gerais, e que é aplicado
por tribunais arbitrais constituídos pelos sujeitos do comércio internacional. Neste âmbito, voltamos,
portanto, a deparar-nos com um Direito feito por comerciantes e por eles aplicado (em tempos da Idade
Média). Por isso se fala a propósito de moderna lex mercatória, criada a nível internacional e por
jurisdição arbitral.

Noção de Direito Comercial português


Circunscrevendo-nos ao quadro jurídico-positivo nacional, podemos definir o direito comercial
como o sistema jurídico-normativo que disciplina de modo especial os atos de comércio e os
comerciantes.

Podíamo-nos ver tentados, por causa do art. 1.º do Código Comercial, a definir este ramo do
Direito com referência apenas a atos de comércio. Todavia, a lei mercantil regula fenómenos que não
são atos comerciais nem seus efeitos diretos. Por exemplo, as obrigações especiais dos comerciantes
(firmas, escrituração mercantil…) e a organização interna das sociedades.

Por outro lado, a mesma lei, apesar de apresentar uma conceção objetiva, visa, sobretudo,
comerciantes: discriminando-os (arts. 13.º e ss. CComercial), estabelece o seu estatuto (18.º e ss.),
traça a organização respetiva, etc..

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Regulando este a organização dos sujeitos privados e as relações estabelecidas entre eles ou
entre eles e entidades públicas atuando como particulares, é inquestionável que o Direito mercantil é
fundamentalmente Direito Privado. Não obstante, as leis comerciais contêm também disposições de
Direito Público. Por exemplo, disposições que consagram deveres jurídico-públicos dos comerciantes-
relativos, por exemplo, às firmas, escrituração mercantil e inscrições no registo comercial (só que
servem predominantemente os interesses do tráfico jurídico-privado).

Dentro do Direito Privado e, em face do Direito Civil (Direito Privado Comum), o Direito
Comercial é globalmente considerado especial (e não excecional, embora contenha normas
excecionais). É um ramo jurídico com regras diferentes das do Direito Comum, aplicável somente a
certos sujeitos, objetos ou relações, mas sem excluir a aplicabilidade do Direito Civil enquanto direito
comum e subsidiário. O D. Comercial não é autossuficiente, especialmente no que diz respeito aos
contratos, ele não exclui, mas ele pressupõe o D. Civil.

Importa distinguir aquilo que é o comércio em sentido económico do comércio em sentido


jurídico.

É hoje vulgar falar-se de três setores de atividade económica: o primário (compreende a


agricultura, a pecuniária, a silvicultura, a pesca e a caça); o secundário (indústria) e o terciário (é
residual, compreende o que não cabe nos outros dois setores: comércio, transportes, fornecimento de
água, gás, eletricidade; atividade seguradora, bancária; profissões liberais, etc.). Numa outra
perspetiva, diz-se que a produção económica se processa através da indústria, criação de utilidades que
ficam incorporadas nos objetos produzidos, como a extrativa, agrícola, transformadora, transportadora
e comercial, e dos serviços (ações humanas que satisfazem imediatamente, de modo direto ou com
recurso a bens materiais, necessidades de outros homens).

O comércio em sentido jurídico, no seu cerne, engloba o comércio em sentido económico,


usualmente definido como atividade de interposição na circulação dos bens ou de interposição nas
trocas de mercadorias. Mas abrange também a indústria e os serviços. Por outro lado, não pode dizer-
se que o Direito comercial disciplina todas as atividades económicas. Ele quase não regula, por
exemplo, as indústrias extrativas, na agricultura (arts. 230.º; 464.º/2 CCom.), as indústrias e serviços
artesanais (arts. 230.º + 464.º/3 CComercial) ou os serviços dos profissionais liberais. O Direito
Comercial, como acabámos de ver, assenta essencialmente nos atos de comércio.

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Há uma corrente doutrinal com grande força na Alemanha que visa conformar o Direito
Comercial como o Direito das empresas ou à volta das empresas porque quase toda a atividade
comercial em sentido jurídico implica uma organização de fatores através da qual é exercida e que
assenta numa empresa. Tem uma grande parte verdade, pode dizer-se que o núcleo do Direito mercantil
está na empresa comercial, constituindo ela o “princípio energético” a que todas as legislações prestam
homenagem. Não é só um Direito das empresas, mas é um Direito muito construído à sua volta. É
igualmente defensável que o nosso Direito comercial deve ser um Direito à volta das empresas (um
Direito do estatuto dos empresários singulares e coletivos, dos direitos e negócios sobre empresas e da
tutela destas, dos negócios jurídicos de organização das empresas, dos “contratos de empresa”, ou seja,
contratos de concessão comercial, franquia, consórcio).

Todavia, o Direito Comercial português atual, além de admitir comerciantes não empresários
(há certos casos em que os comerciantes não têm empresa como um sujeito que vende coisas na rua),
regula atos de comércio esporádicos ou ocasionais que não têm que ver com empresas mercantis e cuja
disciplina não poderá dizer-se determinada por interesses ligados à empresarialidade. É o caso dos atos
ocasionais de fiança (art. 101.º CCom), do mandato (231.º e ss. CC), do empréstimo (394.º e ss. CC),
entre outros. Uma definição rigorosa do Direito comercial vigente não pode desconsiderá-los. Também
não é só o Direito Comercial que trata das empresas, há empresas não comerciais, no âmbito das
profissões liberais há diversas empresas como consultórios médicos.

O problema da autonomia do Direito comercial (ou da unificação do Direito privado): A


questão nuclear é a da autonomia substancial. Desde o século XIX, vem-se manifestando um forte
movimento doutrinal em prol da unificação do Direito privado. Tal homogeneização do sistema
socioeconómico ir-se-ia confirmando no plano jurídico: é evidente a “generalização” ou comunicação
de institutos jurídico-mercantis e originariamente utilizados apenas por um ou para comerciantes ou
para o comércio. Por exemplo, as letras de câmbio (ela não é só utilizada entre comerciantes, mas
também entre não comerciantes e operações não comerciais); sociedades (os tipos de sociedades
comerciais podem ser adotados para o exercício de atividades civis, como a pecuária); seguros (nascem
à volta do comércio marítimo mas são utilizáveis por pessoas e coisas fora do âmbito mercantil); a
falência ou insolvência (totalmente alargado pelo Código da Insolvência); os sinais distintivos do
comércio (logótipos, marcas); obrigações de escrituração e inscrição de certos atos no registo, entre
outros.

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Em vários países, operou-se mesmo a unificação legislativa: o código italiano de 1942 e o


brasileiro de 2002, influenciado pelo primeiro, sobretudo no domínio do Direito das obrigações. Foi a
parte contratual que foi unificada já que o Direito Comercial, no que diz respeito aos contratos, é muito
fragmentário por ser minimalista, assim, funcionam as regras comuns do D. das obrigações. Deixou
de haver especificidades do D. Comercial e passa a vigorar o regime geral.

É visível que esta tendência jurídico-positiva para a unificação denota o que desde há muito
tempo se vem chamando “comercialização” do Direito privado. O Direito comercial é uma parte
especial do D. Civil, mas houve uma expansão de um conjunto de figuras para sujeitos não comerciais.

Vão-se incorporando, no Direito civil, regras e princípios ou caraterísticas tradicionais do


Direito mercantil. É o caso de alguns princípios, como o do reforço do crédito (verificável em matéria
de falências ou insolvências, de solidariedade passiva nas obrigações), o da maior proteção da
confiança (ligado aos deveres de registo, à tutela da aparência), o da celeridade nas operações negociais
(assente na liberdade de forma nuns casos e na exigência de forma em outros), o da certeza nas
transações (brevidade dos prazos de prescrição); o da presunção da onerosidade.

Há figuras do Direito comercial previstas no Código Civil: a única razão pela qual a figura do
contrato da empreitada foi para o CC é porque não tínhamos um código Comercial.

Tal comercialização representa simultaneamente o triunfo do Direito comercial (ao impor as


suas regras ao Direito civil) e a morte “substancial” do mesmo direito (não havendo mais disciplina
especial, o direito comercial integra-se no direito comum).

Fontes do Direito Comercial português


Nas fontes do Direito mercantil, nos modos ou formas como se constitui e manifesta o direito,
convém distinguir entre fontes internas e fontes externas.

a. Fontes externas: cuja importância se tem vindo a acentuar, destacar as convenções


internacionais (art. 8.º, n.º 2 CRP) e os regulamentos e diretivas da Comunidade Europeia
(arts. 288.º do TFUE e 8.º/3 CRP).
b. Fontes internas: amplamente entendidas, de modo a abarcarem “atos legislativos” (leis
constitucionais, decretos-leis, decretos legislativos regionais) e regulamentos (do Governo,
das RA, das AL, incluídos os de entidades administrativas independentes- art. 267.º/3 CRP-
como a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários: 353.º CVM e o Banco de Portugal,
que os emite enquanto regulador): direito comercial de caráter regulamentar.

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A CRP contém algumas regras atinentes ao direito comercial: 61.º (iniciativa económica
privada, cooperativa, autogestionária); art. 81.º/f); 82.º; 85.º; 86.º; 99.º; 100.º; 293.º.

Mas as principais fontes do direito comercial são as leis ordinárias (as leis propriamente ditas
da AR e os decretos-leis do Governo). Nesta fonte, destaca-se o Código Comercial, que tem muitas
das suas normas alteradas, revogadas e tem vindo a ser completado com numerosa legislação
extravagante.

Também a jurisprudência e a doutrina são fontes de direito comercial: o Direito não se resume
aos textos normativos em si. As decisões judiciais participam na criação ou constituição do direito:
interpretam/concretizam normatividade jurídica (especialmente relevante no que toca a cláusulas
gerais e conceitos indeterminados), integram lacunas (a vida comercial é fértil na geração de
fenómenos novos) e destas decisões concretas vão-se inferindo normas, princípios normativos e,
mesmo, institutos jurídicos. Por sua vez, a doutrina releva principalmente enquanto “dogmaticamente
complementar” do direito jurisprudencial. Há um conjunto de soluções doutrinais que passam para a
jurisprudência, quanto mais trabalhado estiver maior é o trabalho de construção desse sistema jurídico
em si. As decisões incorporam a doutrina.

E os usos (práticas sociais estabilizadas) e os costumes (práticas sociais estabilizadas seguidas


com a convicção de serem juridicamente obrigatórias), apesar de serem muitíssimo menos
significativos do que em outras épocas, são ainda de alguma importância e devem considerar-se fontes
do direito comercial. Apesar de não constatarem do art. 3.º do CCom., eles podem manifestar regras
jurídicas, quer se trate de usos invocados pela lei (serão então fonte “mediata” do direito- arts. 1.º/1 e
3.º/1 do Código Civil), quer os usos solicitados para a interpretação e integração dos negócios jurídico-
mercantis. Têm um relevo muito grande na própria interpretação dos contratos e são um auxílio na
integração de lacunas

Aplicação da lei civil a matéria mercantil

A lei civil é aplicável a questões comerciais, nos termos do art. 3.º do CCom. E deste preceito
se poderia concluir ser legislação civil fonte de Direito comercial. Mas essa conclusão seria incorreta.
Sendo o Direito comercial Direito (privado) especial, lógico é que o Direito civil, enquanto Direito
privado comum, intervenha na disciplina de matérias mercantis quando o normativo especial se revele
insuficiente. Ora, a lei civil, quando subsidariamente se aplica a questões comerciais, intervém porque

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é lei comum e a esse título, não se transformando em lei especial-comercial nem manifestando Direito
especial-comercial.

O Direito civil não intervém somente para integrar lacunas da lei comercial quando não
integráveis por normas comerciais regulamentadoras de casos análogos. O Direito comercial é um
direito fragmentário, aberto ao recurso direto ao Direito comum na disciplina das situações e relações
mercantis. Nem todas omissões de regulamentação legal-mercantil significam verdadeiras lacunas,
algumas dessas omissões estão de acordo com o plano da lei comercial. Assim acontece, por exemplo,
com respeito à caraterização básica de tipos contratuais (arts. 874.º e 879.º: os efeitos do contrato de
compra e venda também valem para a compra e venda comercial- os artigos 463.º do CCom. não os
referem, nem tinham de os referir), ao regime geral dos negócios jurídicos (arts. 217.º-294.º CC) e dos
contratos (arts. 405.-456.º do CC).

Nós temos regras específicas para a compra e venda mercantil, mas essas regras pressupõe todo
o regime da formação dos contratos do Código Civil: o Código Comercial nem define o que é uma
compra e venda. O Direito Comercial pressupõe o Direito civil.

Nota: O Direito dos transportes tem um relevo enorme, ele próprio é um ramo do D. Comercial.
O transporte tem uma enorme importância. O D. Comercial tem aspetos muito especializados.

II. Atos de Comércio


Atos de comércio em geral
Qual é o interesse de qualificar um ato como sendo um ato de comércio? O relevo da
qualificação dos atos como sendo atos de comércio, hoje em dia, já não é muito grande. Durante muito
tempo os litígios relativos aos atos mercantis eram julgados por tribunais comerciais, mas a jurisdição
comercial foi extinta em 1932 e o Código de Processo Comercial foi revogado em 1939.

Há, essencialmente, três tipos de consequências:

a. Em regra, nas obrigações comerciais (resultantes de atos mercantis), os coobrigados são


solidários (art. 100.º CCom.). Por outras palavras, o regime regra é o da solidariedade.
É diferente a regra vigente no domínio das obrigações civis: art. 513.º do CC.
b. Segundo o artigo 15.º do CCom., as dívidas dos comerciantes casados derivadas de atos
mercantis presumem-se contraídas no exercício dos respetivos comércios. Faz uma ligação à
matéria de Direito da família.

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c. O art. 102.º CCom. estabelece um regime com particularidades para os juros relacionados com
atos comerciais.

Por outro lado, a qualificação como comerciantes de atos em geral importa ainda para qualificar
de mercantis outros atos que daqueles sejam acessórios, bem como para qualificar sujeitos como
comerciantes (art. 13.º CCom).

Noção de atos de comércio:


A noção do ato de comércio decorre do art. 2.º do Código Comercial: “Serão considerados
atos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código”. É uma
conceção, em si, objetiva, mas também tem uma nota subjetiva: “além destes, todos os contratos e
obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se contrário do próprio
ato não resultar”.

Pese embora, o facto de um ou outro ato “especialmente regulado”, ser também caraterizado
por notas subjetivas (é o caso do contrato de transporte- art. 306.º e ss. CCom), e de os atos de
comerciantes, para serem considerados atos de comércio subjetivos, terem de cumprir as duas
condições objetivas previstas no final do art. 2.º. Temos, assim, duas grandes categorias de atos de
comércio: (i) objetivos; (ii) subjetivos. O nosso sistema é misto (subjetivo e objetivo): por um lado,
atende à natureza dos atos e, por outro, à natureza dos indivíduos.

Quando falamos de atos de comércio, falamos de contratos e nalguns casos podemos ter atos
de comércio unilaterais como os negócios cambiários ou constitutivos das sociedades comerciais se
forem unipessoais. Em certos casos, os atos ilícitos podem ser comerciais: é o caso de um navio que
vai abalroar um outro navio e causa danos. É um ato ilícito de caráter mercantil.

A dificuldade em definir atos de comércio reside no facto de um ato de comércio não ser uma
realidade evidente, porque há muitos contratos, ainda por cima com a moderna aproximação
progressiva entre o Direito comum e o Direito especial (comercialização do Direito Civil ou
privatização do Direito Comercial) não é fácil percebermos em que casos se justifica estabelecer um
regime especial para uma série de contratos. Por exemplo, os contratos de consumo (entre empresas e
consumidores finais) não estão sujeitos ao mesmo regime que os contratos entre empresas, porque a
principal preocupação do legislador é proteger o consumidor contra potenciais abusos das empresas

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a. Atos de comércio objetivos e subjetivos


Atos de comércio objetivos
Nos termos da 1.ª parte do art. 2.º do CCom, são atos comerciais aqueles que se encontram
previstos no Código Comercial. É uma definição de atos de comércio objetivos por enumeração ou
catálogo, por enumeração implícita, mais precisamente (o preceito não explica os atos, remetendo
antes para outras disposições normativas).

Prevê o CCom., no estado atual, variados atos: fiança (art. 101.º), mandato (231.º e ss.), conta
corrente (344.º e ss.), transporte (366.º e ss.), empréstimo (394.º e ss.), penhor (397.º e ss.), depósito
(407.º e ss.), compra e venda (463.º e ss.), reporte (477.º, ss.), aluguer (481.º e 482.º). Relativamente à
maioria destes atos, o Código estabelece disciplina específica (regras próprias de cada um deles). Tal
não se verifica relativamente a alguns como o aluguer (art. 482.º) e as operações de banco (363.º). Não
há um regime específico que o CCom. dite para estes atos.

Quer isto dizer que são atos de comércio os atos concretamente caraterizados pelas notas
caraterizadoras ou requisitos previstos no CComercial. Assim sendo, mesmo os atos comerciais para
os quais o Código não estabelece disciplina específica ficam sujeitos às regras especiais comuns dos
atos de comércio em geral.

Mas será que podemos considerar apenas os atos “especialmente regulados neste Código”?

O Código Comercial é de 1888 e retrata uma realidade económica anterior, muito mais limitada
e diferente. Tem de ser possível leis anteriores, acompanhando a evolução económica, preverem novos
atos comerciais. Por isso se entende pacificamente que esta norma deve ser interpretada
extensivamente de modo a abarcar outras leis comerciais (interpretação atualista e extensiva).

Mas quando é que uma lei pode, para estes efeitos, ser qualificada de comercial? Há que atender
a três hipóteses:

i. Trata-se de uma lei que substitui normas do CComercial – estamos a referir-nos a leis que
vieram regular de outra forma matérias que estavam inicialmente previstas no CCom.. Seria
estranho considerar comerciais atos previstos, de modo mais desenvolvido e/ou atualizado, mas
com idêntica fisionomia, fora do Código. É esta ideia que decorre do art. 4.º da Carta de lei de
28 de junho de 1888. Por conseguinte, são objetivamente comerciais os atos constituintes de
sociedades comerciais previstos no CSC; os negócios respeitantes às letras, livranças e
cheques, regulados nas LULL e LUch; as operações de bolsa no CVM; os contratos de

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transporte de mercadorias por mar, de fretamento, de transporte de passageiros pelo mar,


regulados pelo DL 352/86 de 21 de outubro, DL 191/87 e DL 349/86; os contratos de seguro
disciplinados pelo RJCS. Regimes específicos para alguns contratos bancários como a locação
financeira. Depois temos, no que respeita à falência, decorre do CIRE.
ii. A própria lei qualifica os atos como comerciais: O Código Civil, no capítulo da “locação”
contém “disposições especiais do arrendamento para fins não habitacionais” (arts. 1108.º-
1113.º): entre esses fins encontra-se o comércio (e a indústria). A locação de estabelecimento
“comercial ou industrial” e o trespasse de estabelecimento comercial ou industrial merecem aí
algumas regras específicas. Todos são materialmente comerciais, não obstante estarem
previstos no CC. O professor entende que há normas do CC que são materialmente comerciais
e, por isso, são atos de comércio.
Vários decretos-leis reguladores de certas modalidades de sociedades, caraterizam-nas
explicitamente como “sociedades comerciais”. Aqui o problema está resolvido.

E quando não se verifica nenhuma destas hipóteses?

Na maioria dos casos, as leis não se autoqualificam explicitamente como comerciais, civis, etc..
Assim, levanta-se a possibilidade de qualificar outros atos que não estão previstos no Código
Comercial como atos comerciais. Como saber então se estamos perante uma lei mercantil prevendo de
algum modo atos (objetivos) de comércio?

Conjunto de posições doutrinais consideradas mais relevantes pelo professor:


 Ferrer Correia- principais comercialistas e especialistas em DIP. Qualifica certos atos
como comerciais atendendo ao seguinte critério: se a disciplina desses atos viesse
satisfazer necessidades de caráter comercial. Isto é, lei mercantil seria a que disciplina
tos tendo em vista satisfazer necessidades do comércio.

i. Qualificação de atos de comércio por analogia (questão que divide a doutrina, já que o art.
3.º do CCom. não nos dá resposta).
Hoje em dia, podemos qualificar certos atos como comerciais não só diretamente, mas
também por analogia. Há um conjunto de outros atos não previstos no Código Comercial,
mas que podemos considerar como atos comerciais recorrendo à analogia. O recurso à
analogia legis não levantará grandes dúvidas.

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Veja-se a título de exemplo o art. 230.º do Código Comercial e o seu significado no


quadro dos atos de comércio: Qualifica como empresas comerciais sejam elas singulares
ou coletivas, um conjunto de empresas que pratiquem determinados atos/atividades
elencadas pelo legislador de 1888. Empresas no sentido de conjunto ou séries de atos
objetivamente comerciais enquadrados organizatoriamente (atos praticados no quadro de
organizações de meios pessoais e/ou reais).
Nos termos do nº 1, é empresa comercial qualquer empresa transformadora, está aqui
abrangido todo o setor secundário da economia, o que está em jogo é a atividade industrial
de produção de bens. O nº 2 trata de contratos de fornecimento, que cabem aqui pois o
contrato de fornecimento é um contrato que se prolonga no tempo, pelo qual uma das partes
se obriga por um prazo pré-determinado a fornecer bens, neste caso, géneros quer a
particulares, quer ao Estado a preços pré-convencionados. Tem um risco associado.
No nº 3, inserem-se os agentes intermediários, porque são alguém que se entrepõe entre as
trocas, são agentes de outrem, estão entre a produção do bem e o consumo final desse bem.
Portanto, o contrato de agência e de intermediação são contratos comerciais, pelo que são
empresas comerciais. Nos termos do nº 4, uma empresa que explore uma sala de cinema,
de teatro, ou de espetáculos é uma empresa comercial: exploração de espetáculos públicos.
Ao abrigo do nº 5, quaisquer editoras são empresas comerciais. Pelo nº 6, empresas de
construção de casas são empresas comerciais, edificar ou construir casas para outrem com
materiais subministrados pelo empreiteiro. Finalmente, o nº 7 prevê o transporte por água
ou por terra.
Estamos face a um conjunto/atividade, são atos objetivamente comerciais e são
enquadrados transitoriamente, são praticados no exercício de uma empresa, são atos
relativamente aos quais há uma organização e são praticados em série. Englobam-se aqui,
não só os atos em que o exercício da empresa se traduz: a construção, os produtos em si,
mas também um conjunto de atos desde que sejam na exploração dessa empresa. Não só os
centrais, mas todos os atos acessórios no exercício dessas organizações empresariais, como,
por exemplo, obter os materiais para construção dessas casas.
Ainda antes de chegar à analogia, alargamos o âmbito das atividades comerciais através de
uma interpretação extensiva das normas. Temos aqui um campo muito amplo para
interpretações corretivas, extensivas, atualistas e analógicas. Veja-se o nº 7, em 1888 não
havia transporte aéreo regular, daí que não se tenha previsto, mas hoje em dia não faz
sentido excluí-lo: recorremos à analogia legis (com base na lei) para qualificar certos atos
como comerciais.
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No caso do art. 230.º/6, a norma faz referência à construção de casas, mas ela pode e deve
ser alargada à construção de outras obras: pontes, aquedutos, barragens, vias de
comunicação. A normas deve ser estendida analogicamente (analogia legis) a essas outras
empresas de construção- empresas construtoras de edifícios no mais amplo sentido.
No n.º 2 também podemos inserir o fornecimento de serviços não apenas de bens (fornecer
géneros é fornecer bens). Hoje em dia, termos uma terciarização da atividade económica,
na altura, não era o caso. Esta norma tem sido a mais fértil fonte para, através da
interpretação extensiva ou de integração, por analogia legis, se reconhecer a comercialidade
de uma série de espécies empresariais. Por interpretação extensiva: empresas fornecedoras
de água, gás ou eletricidade. Por analogia: empresas de fornecimento de serviços como
empresas hoteleiras, de publicidade, de informações comerciais, de gestão de bens, de
tratamentos de beleza, de reparação de automóveis, entre outras.

O Dr. Coutinho Abreu entende que parece ser certo que a atividade de muitas empresas
atrás apontadas não se desenvolve dentro do referido condicionalismo: os respetivos
empresários não se obrigação (ou podem não se obrigar) a sucessivas prestações de serviços
contra um preço previamente fixado. Falha aqui a analogia legis. Então como qualificar
essas empresas de prestação de serviços (designada assim para as distinguir das empresas
de fornecimento propriamente ditas- implicantes de contratos de fornecimento), que têm
crescido consideravelmente, mas que não são análogas às previstas no n.º 2 ou noutros do
art. 230.º, nem a nenhuma outra norma comercial? Nós podemos criar um princípio geral
que se aplique a um conjunto de casos para os quais não há um regime específico e não se
possa recorrer à analogia iuris. É aqui que surge a analogia juris (disciplina dos casos
omissos através de princípios gerais obtidos através de induções lógico-generalizadoras de
uma série de normas legais), recorremos à teologia imanente ao sistema legal mercantil, ao
seu espírito, que nos leva à seguinte conclusão: há um princípio geral de Direito comercial
segundo o qual as empresas de serviço são, em regra, comerciais. Assim, por exemplo,
devem ser qualificados de comerciais os “empreendimentos turísticos” do DL 39/2008.
E, ainda, no que toca ao trespasse e locação de estabelecimento comercial (que são atos de
comércio objetivos), recorrendo, mais uma vez à analogia juris, diremos, pois, que os
negócios sobre empresas comerciais são atos objetivamente comerciais. A solução é
razoável e assim o professor entende que pode ser utilizada.

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Posto isto, aqui fica uma definição de atos de comércio objetivos: os factos jurídicos
voluntários (ou os atos, simplesmente) previstos em lei comercial e análogos.

Atos de comércio subjetivos


Temos de atender à 2ª parte do art. 2.º do CComercial.

Temos 3 condições cumulativas para a qualificação de um ato como sendo subjetivamente


comercial:

i. São atos praticados pelo comerciante (art. 13.º CCom.): todos os atos dos comerciantes.
Qualquer sociedade comercial é, por inerência, a partir do momento em que esteja constituída
e mesmo que esteja inativa (antes de iniciar a atividade), comerciante, o que significa que os
seus atos serão, em princípio, atos de comércio. Este é um requisito positivo;
ii. Os atos dos comerciantes não podem ser de natureza exclusivamente civil: não significa que o
ato tenha de estar previsto em lei comercial, pois assim seria um ato objetivamente comercial.
São atos de natureza exclusivamente civil os que, por sua natureza ou essência, não são
conexionáveis com o exercício do comércio, não se concebendo nem dirigidos a auxiliar,
promover ou levar a cabo o exercício do comércio, nem a deste dependerem. São, portanto,
atos de natureza exclusivamente civil os atos de caráter extrapatrimonial como o casamento, a
perfilhação, a designação de tutor pelos pais: atos de caráter pessoal. É o que decorre da
doutrina italiana.
A doação tanto pode ser exclusivamente civil (se for uma pessoa singular, por exemplo) como
não ser. Há um conjunto de doações que estão conexionadas com o comércio e, nessa medida,
não tem caráter exclusivamente civil, são atos com causa mercantil, promotores do exercício
do comércio: as gratificações a empregados (doações remuneratórias- art. 941.º CCivil), bem
como as doações feitas pelos comerciantes com fins reclamísticos ou propagandísticos: doar
canetas, pens, caneca, etc. são negócios a título gratuito mas com uma finalidade lucrativa no
seu cerne.
Atos que não sejam de natureza exclusivamente civil, mas que são atos em que não se possa
dizer que eles não têm natureza civil:
 Porque conexionáveis com o exercício do comércio em geral, também as rendas
perpétuas e vitalícias (arts 1231.º e ss. do CC) não são atos essencialmente civis.
Suponha-se um comerciante que adquire uma pintura muito valiosa, obrigando-se a
pagar, como “renda”, determinada quantia em dinheiro por tempo ilimitado.

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 Conexão com o comércio podem ter também os factos jurídicos ilícitos, geradores de
responsabilidade civil extracontratual. Acontece com efeito comerciantes, no exercício
do respetivo comércio, lesarem ilicitamente terceiros, com dolo ou mera culpa (ex: um
comerciante dedicado ao transporte de mercadorias causa negligentemente com o seu
camisão um acidente de que resultaram ferimentos num peão e danos numa moradia).
Estes factos ilícitos resultam do exercício do comércio.
iii. Por fim, um ato de natureza não exclusivamente civil de um comerciante é subjetivamente
comercial “se o contrário do próprio ato não resultar”. Tem sido feito equivaler ao seguinte: se
do próprio ato não resultar a não ligação ou conexão com o comércio.
Assim, se do próprio ato resultar a ligação com o comércio, o ato é comercial (ex: um merceeiro
compra uma carrinha a um agricultor, declarando destinar-se o mesmo ao transporte de
mercadorias de e para a sua mercearia); se do próprio não resulta a sua não ligação com o
comércio, o ato é igualmente comercial (ex: o merceeiro faz a compra sem nada declarar acerca
do destino da carrinha); se do próprio ato resulta a não conexão com o comércio, a ato não é
mercantil (ex: o merceeiro ao comprar a carrinha, declara que a utilizará como caravana nas
férias).
Se um comerciante de automóveis adquire uma TV para a sua casa, não está conexionado com
o comércio. O que é relevante, em termos de prova, é necessário que a sua conexão resulte das
circunstâncias concomitantes à prática do ato, isto é, que seja claro no que diz respeito à prática
do ato, que não está relacionado com o seu comércio. Um comerciante de automóveis que
compra um fogão. Resulta do próprio ato que ele não vai pôr um fogão no stand de carros,
contudo um comerciante que explora uma livraria e adquire uma carrinha. Pode estar
conexionado com o seu comércio, mas se diz que é para ser usado pela sua família, o projeto
de utilização do veículo comunicado ao seu vendedor é importante.
Têm de ser conexionáveis com o seu comércio em termos gerais, só excluindo os atos que
resultem que não têm de estar conexionados com o exercício do seu comércio.
“Próprio ato” significa não apenas o facto jurídico em si, mas também as circunstâncias
concomitantes que auxiliem na sua compreensão (não revelam, pois, as circunstâncias
posteriores conducentes, eventualmente, a outra compreensão). No terceiro caso do merceeiro:
se atendêssemos simplesmente ao ato negocial, às declarações negociais das partes o
constituem, concluiríamos tratar-se de um ato mercantil- dele não resulta uma não conexão
com o comércio. Todavia, porque devemos atender às circunstâncias concomitantes, no caso
ao verdadeiro projeto de utilização dado a conhecer pelo comerciante, o ato há de ser
qualificado de civil.
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Discutiu-se se seria uma presunção legal. Não é, não se conclui que do facto de determinado
sujeito ser comerciante, que os atos por ele praticados são comerciais.

Definição de atos de comércio subjetivos: os factos jurídicos voluntários dos comerciantes


conexionáveis com o comércio em geral e de que não resulte não estarem conexionados com o
comércio dos seus sujeitos.

b. Atos de comércio autónomos e atos de comércio acessórios


Atos de comércio autónomos: qualificáveis em si próprios como comerciais, isto é, são
aqueles que são qualificados de mercantis por si mesmos, independentemente de ligação a outros atos
ou atividades comerciais.

Atos de comércio acessórios: cuja comercialidade decorre do facto de se ligarem ou


conexionarem a atos mercantis. O CCom. prevê alguns atos acessórios:

❖ fiança (art. 101.º); mandato (231.º- quando alguma pessoa se encarre da praticar um ou
mais atos mercantis por mandato de outrem); empréstimo (394.º- a coisa cedida tem de
se destinar a qualquer ato mercantil); penhor (art. 397.º- se o objeto garantido decorrer
de um ato mercantil); depósito (art. 403.º- géneros ou mercadorias destinados a
qualquer ato de comércio).

Tem-se questionado a possibilidade de qualificação como comerciais de atos de não


comerciantes não especialmente regulados na lei mercantil, mas acessórios de atos objetivamente
comerciais. Por exemplo, uma pessoa que compra dez arrobas de queijo da serra para revender e, para
transportar os queijos, compra caixas de madeira e utilizada uma viatura dada de aluguer por um
agricultor. A compra das caixas e o aluguer da viatura são qualificáveis como atos de comércio pelo
facto de serem acessórios de um ato mercantil (compra dos queijos para revender)? Ou o mandato para
o depósito de mercadorias que o comerciante adquire para revenda?

Há quem responda afirmativamente. De acordo com a “teoria do acessório”, todo o ato de um


não comerciante efetivamente conexionado com ato objetivamente mercantil é ato de comércio. O ato
base é um ato objetivamente comercial e autónomo. Resposta negativa é dada pela doutrina
dominante.

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Para Coutinho de Abreu, a teoria não vale na sua máxima extensão: não parece legítimo que se
afirme um “princípio geral” segundo o qual todo e qualquer ato de não comerciantes seria mercantil
quando conexionado com atos objetivos de comércio (não há lugar à analogia juris). Não obstante, já
parece legítimo qualificar de comerciais certos atos de não comerciantes por serem análogos a atos
acessórios de comércio previstos na lei (analogia legis).

c. Atos formalmente comerciais e substancialmente comerciais


Atos formalmente comerciais (a que se contrapõe os substancialmente formais) - é o conjunto
de atos que nasceram no âmbito da atividade mercantil, mas que se generalizaram a um conjunto de
atividades económicas que não tem caráter mercantil. Por outras palavras, são os esquemas negociais
que, utilizáveis quer para a realização de operações mercantis, quer para a realização de operações
económicas que não são atos de comércio nem se inserem na atividade comercial, estão contudo
especialmente regulados na lei mercantil, merecendo portanto a qualificação de atos de comércio.

É o exemplo dos negócios cambiários (relativos às letras de câmbio). Porque previstos na lei
uniforme de letras e livranças, são, em si, atos comerciais, mas a utilização das letras comerciais pode
fazer-se no âmbito civil, e, aí, são formalmente comerciais, mas substancialmente não o são.

d. Atos bilateralmente comerciais e atos unilateralmente comerciais


Os atos podem ser bilateralmente comercias quando o sejam relativamente a ambas as partes.
Ex: A celebra com C, seguradora, um contrato de seguro relativo aos seus estabelecimentos mercantis
(tanto pelo lado de A, como de C, o contrato é objetivamente comercial). A, produtora de automóveis,
vende 10 automóveis ao seu concessionário B (a venda é ato de comércio e a compra também é
comercial).

São unilateralmente comerciais os atos cuja comercialidade se verifica só em relação a uma


das partes. Ex: O stand revende esse automóvel ao consumidor final: é comercial por parte do vendedor
e não comercial quanto aquele que adquire, não é comercial por parte de ambos os sujeitos. E,
professor, compra a B um automóvel para seu uso e da sua família (a venda é objetivamente comercial,
a compra é civil).

Qual o regime jurídico dos atos unilateralmente comerciais? Responde-nos o art. 99.º do
CCom. Estão sujeitos, em regra, à disciplina mercantil. O regime do ato alarga-se a ambas as partes,

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mesmo que seja um ato unilateralmente comercial. Excetua-se, porém, as disposições da lei comercial
que só forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o ato é mercantil e não à outra parte.

Isso é especialmente relevante no regime da solidariedade (art. 100.º CCom.) que só se aplica
aqueles sujeitos por cujo ato seja comercial. Ex: O stand vendo o automóvel a A, B e C, eles não são
devedores solidários. Se A e B agricultores venderem a C, supermercado um conjunto de produtos
para revenderem, eles são conjuntamente devedores e não devedores solidários quanto à entrega dos
produtos porque se trata de uma atividade agrícola e não comercial.

Deve, contudo, acrescentar-se uma categoria mais geral de exceções à aplicação das
disposições da lei comercial. Quando o ato unilateralmente comercial seja contrato de consumo,
aplicam-se a ambos os contratantes as regras especiais das relações de consumo. É um regime
expansivo. Ex: A é um comerciante que vende um livro a um consumidor, entramos no âmbito do
consumo que é um regime específico e toda a transação é abarcada por esse regime específico, ele é
unilateralmente comercial. Havendo um consumidor, o ato todo é regido pela relação de consumo,
estando afastado o regime do D. Comercial, embora algumas particularidades importem ver
posteriormente.

Regime relativo às taxas de juro mercantis


O regime decorre do art. 102.º do C Comercial.

A taxa de juro tem sempre de ser registada por escrito. No que diz respeito aos juros moratórios
legais e aqueles para os quais não se estabeleceu numa taxa, temos um regime muito específico: a lei
estabelece-o para os titulares de empresas comerciais, estamos aqui com o comerciante em sentido
subjetivo- importa que seja titular de uma empresa mas importa que seja uma empresa comercial.

A taxa é fixada por uma portaria conjunta, semestralmente, entre o Ministro das Finanças e o
Ministro da Justiça. Acontece é que, por força da transposição da Diretiva 2011/7/UE relativa aos
atrasos no pagamento nas transações comerciais, esta norma foi alterada. Os juros moratórios legais e
os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo nunca pode ser inferior ao valor da taxa de
juro aplicada pelo Banco Central Europeu que se calcula do seguinte modo: parte-se da mais recente
operação principal de refinamento efetuada antes de 1 de janeiro ou 1 de julho, consoante o semestre
e a essa taxa acrescem 7 pontos percentuais.

Na Diretiva, há esta forma de cálculo de taxa, mas, com um limite mínimo. A taxa não decorre
do aviso, dá-se publicidade a esta taxa. Neste momento é de 7%. Naqueles casos em que estejamos

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face a transações realizadas entre empresas, o valor a considerar não é 7%, mas 8%. Se o devedor for
ele próprio uma empresa, sobe um ponto percetual.

O DL 62/2013 de 10 do 5 transpõe a Diretiva relativa aos atrasos nas transações comerciais.


Ela tem um regime que se aplica às transações entre empresas e depois o negócio tem de ser um
negócio entre empresas ou entre empresas e entidades públicas oneroso. A questão é que empresa para
este efeito é aquele sujeito que, não sendo uma entidade pública, desenvolva uma atividade económica
ou profissional autónoma podendo, mesmo, ser uma pessoa singular. Ou seja, aqui a empresa não é
uma empresa comercial, abrange todas as atividades económicas, abrange os profissionais liberais.

Isto relativamente às especificidades da taxa de juros moratórias quanto às transações entre


empresas e entre empresas e entidades públicas.

Temos um conjunto de regras especiais para o vencimento dos juros moratórios. Temos
obrigações puras. Se o sujeito não exigir o cumprimento, o que sucede é que enquanto não o fizer, o
outro não está em mora. Para estes casos, a lei leva à constituição de juros de mora, mesmo que o
credor não tenha interpelado a outra parte, tem a ver com o envio das mercadorias e com o envio da
fatura.

O primeiro ponto tem a ver com, sempre que do contrato não constar um prazo ou uma data de
vencimento, a obrigação vence juros de mora 30 dias depois do adquirente receber a fatura ou então
30 dias antes de receber os bens ou a prestação dos serviços quando a data da fatura seja incerta.
Sempre que a fatura tenha sido enviada antes, depois da receção dos bens ou da prestação dos serviços
e, naqueles casos em que haja uma obrigação ou convencional ou legal da aceitação das mercadorias
ou do serviço, 30 dias contados dessa data e o devedor receba a fatura em data anterior ou em data da
verificação da conformidade desses bens ou serviços. Temos um conjunto de regras específicas em
que não tenham sido fixados prazos de pagamento e não tenha sido verificado o vencimento. Aqui a
lei estabelece um critério para fixar juros de mora.

Os atos subjetivamente comerciais: Os comerciantes


Os sujeitos de atos de comércios e das relações jurídico-mercantis podem ser comerciantes e
não-comerciantes. Os sujeitos (singulares ou coletivos) com capacidade civil de exercício possuem
capacidade comercial de exercício, podem praticar atos de comércio (art. 7.º CCom.).

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Porém, os atores determinantes no direito mercantil são os comerciantes. E tem alguma


importância saber quem é (e não é) comerciante já que os comerciantes possuem um estatuto próprio
que se traduz principalmente no seguinte:

a. Os atos dos comerciantes são considerados subjetivamente comerciais nos termos do art. 2.º/2.ª
parte do CCom.;
b. As dívidas comerciais dos comerciantes casados presumem-se contraídas no exercício dos
respetivos comércios (art. 15.º CCom.; e tais dívidas são, em princípio, da responsabilidade
dos comerciantes e seus cônjuges- art. 1691.º/1/d) do CCivil);
c. A prova de certos factos em que intervém o comerciante é facilitada (arts. 396.º e 400.º CCom.);
d. Prescrevem no prazo de dois anos “os créditos dos comerciantes pelos objetos vendidos a quem
não sejam comerciante ou não os destine ao comércio…”- art. 317.º/b) CCivil;
e. Nos termos do art. 18.º do CCom., os comerciantes estão obrigados a adotar uma firma (nome
que adotam no comércio), a ter escrituração mercantil, a fazer inscrever no registo comercial
os atos a ele sujeitos, a dar balanço (com os ativos e passivos- há regimes específicos no âmbito
do CCom.) e a prestar contas nos termos legalmente exigíveis. Está previsto no art. 18.º do
CCom e em legislação especial relativamente aos dois últimos pontos.

Para ser um ato subjetivamente comercial, um dos requisitos cumulativos é ser um ato praticado
pelo comerciante, assim, temos de saber quem cabe nesta noção.

a. Noção de comerciante
A análise dos diferentes requisitos enunciados no art. 13.º do Cód. Comercial para as pessoas
singulares
Nos termos do n.º 1 do art. 13.º do CCom., para serem comerciantes, as pessoas têm de preencher 3
requisitos:

i. Têm de ter capacidade de exercício – entende a doutrina tradicional e dominante referir-


se a norma à capacidade de exercício (a capacidade de agir - aptidão para atuar
juridicamente, por ato próprio ou mediante procurador). Assim, a prática de atos comércio
e a profissão mercantil hão-de referir-se à capacidade de agir, não à mera idoneidade para
se ser titular de direito e obrigações. O art. 13.º tem de se articular com o art. 7.º, ambos do
CCom., relativo à capacidade de exercício para prática de atos de comércio.
Sendo assim, os menos (não mancipados) e os maiores acompanhados não poderiam ser
comerciantes: a lei protege o património destas pessoas dos riscos do comércio. Mas não é
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assim. Tendo em vista outras normas legais, o requisito da capacidade previsto no art. 13.º
tem de ser compreendido com algumas restrições. Na verdade, a al. c) do n.º 1 do art. 1889.º
do CCivil permite aos pais, enquanto representantes do filho e desde que autorizados pelo
Ministério Público, adquirir estabelecimento comercial ou continuar a exploração do que o
filho haja recebido por doação ou sucessão. O mesmo é permitido ao tutor ou administrador
de bens do menor (arts. 1938.º/1/f) e 1971.º/1 e 2 do CCivil).
Em suma, os menores e maiores acompanhados que exerçam o comércio por intermédio
dos representantes devidamente autorizados pelo MP devem ser considerados
comerciantes, têm o estatuto de comerciantes. Elas não têm estatuto de comerciante quando
exerçam o comércio apenas por si, quando o representante não é legítimo ou quando não
haja autorização do MP.

ii. A prática de atos (objetiva e substancialmente) comerciais - atividade qualificada pela


lei como comercial e que se traduz em atos. Estes atos de comércio não podem ser quaisquer
atos de comércio, têm de ser atos que, pela sua substância, demonstrem que a atividade
praticada por aquela pessoa é tida pela lei como comercial. Também cabem aqui atos de
comércio acessórios. Estão fora os atos formalmente comerciais e os atos de comércio
subjetivos.

iii. O caráter profissional dessa prática - as pessoas têm de exercer uma atividade comercial
ou praticar atos de comércio com profissionalidade, isto é, de modo habitual e sistemático
(não é comerciante quem pratica esporadicamente atos mercantis). Entende-se como
atividade regular que seja exercida pelo sujeito como forma de sustento. Não se exige que
a profissão comercial seja a única exercida pelo sujeito, nem que seja a título principal (é
comerciante quem exerça uma profissão não mercantil a título principal e uma outra a título
secundário, mas autónomo, que seja mercantil). Nem se exige, para que haja profissão
comercial, que a respetiva atividade seja exercida de modo contínuo ou ininterrupto (por
exemplo, é comerciante quem explore um parque de campismo somente nos períodos de
veraneio).
As pessoas que exercem profissionalmente uma atividade comercial só são comerciantes
quando a exerçam em nome próprio (pessoalmente ou através de representantes). São,
portanto, comerciantes os menores e maiores acompanhados e não os seus representantes,
os empresários mercantis e não os seus mandatários ou representantes, etc.

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É correto diz-se que os comerciantes são, afinal as pessoas (singulares) que exploram (a título
de propriedade, locação, usufruto, etc.) empresas comerciais (os empresários comerciais)? É
tendencialmente correto, mas não inteiramente. A larga maioria dos comerciantes explora empresas
comerciais (empresas com objeto mercantil), para desenvolver a sua atividade têm um conjunto de
fatores que organizam para a sua atividade. Mas não todas. Exemplos: os vendedores ambulantes-
casos em que uma pessoa adquire a mercadoria, transporta a mercadoria na bagagem e expõe num
local autorizado. Aí existe uma atividade, é comerciante mas não há uma organização mínima que
sustente a atividade, mas são casos muito limitados, geralmente há uma organização mínima; os
especuladores que, com profissionalismo e apenas munidos de computador, telefone, livros e revistas,
compram e revendem participações sociais na Bolsa.

Quando é que se começa a fazer profissão do comércio? Só depois da prática reiterada de atos
mercantis durante algum tempo? Não há uma resposta única. Determina-se quando há atos reveladores
da possibilidade de certo sujeito se dedicar ao exercício habitual de uma atividade comercial. A questão
apresenta maior relevo, porém, a propósito dos comerciantes-empresários. Tem-se entendido, com
apoio no art. 95.º CCom. que uma pessoa passa a ser comerciante logo que abre um estabelecimento
pronto a funcionar.

Pessoas coletivas: As sociedades comerciais como comerciantes por natureza: o art. 13.º, nº 2, do
Cód. Com. e 1.º, nº 2, do Cód. das Sociedades Comerciais
Prescreve, ainda, o art. 13.º CCom. que são comerciantes as sociedades comerciais. Nos termos do
n.º 2 do art. 1.º do CSC para serem sociedade comerciais têm de preencher dois requisitos:

i. Têm de ter por objeto a prática de atos de comércio (atos objetivos de comércio);
ii. Têm de adotar um tipo de sociedade comercial previsto de modo tipificado no CSC: uma
sociedade anónima, por quotas e sociedade em comandita.

As sociedades comerciais de que tratamos adquirem a qualidade de comerciantes pelo menos a


partir do momento em que adquirem personalidade jurídica (art. 5.º CSC). As sociedades, depois de
celebrado o contrato, só adquirem personalidade jurídica após o registo: art. 5.º CSC. Ainda não há
pessoa jurídica, antes, não há uma entidade, mesmo que pratiquem atos do comércio. Não é necessário,
portanto, que pratiquem primeiro quaisquer atos de comércio compreendido no seu objeto.

O CSC no seu art. 1.º, n.º 4, permite que as sociedades que tenham exclusivamente por objeto a
prática de atos não comerciais adotem um dos tipos ou formas das sociedades comerciais, sendo-lhes

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então aplicável o regime deste Código. As sociedades civis de tipo ou forma comercial, porque lhes
falta um dos requisitos das sociedades comerciais- não têm objeto comercial, não se propõe a exercer
uma atividade mercantil- não são comerciais. Logo, não são comerciantes, na medida em que o art.
13.º/2 CCom. qualifica de comerciantes somente as sociedades que sejam comerciais.

Com grande importância prática temos as sociedades civis sobre a forma comercial. Sociedades
cujo objeto não seja a prática de atos comerciais. Não são sociedades comerciais, mas podem adotar
um dos tipos das sociedades comerciais. Adotando-se um tipo societário desta natureza, mesmo que a
sociedade tenha por objeto uma atividade não comercial aplica-se o regime das sociedades comerciais.
Ex.: A, B e C, comerciantes, criam uma sociedade por quotas para exploração da sua plantação de
laranjas. Podem fazê-lo, é a sociedade que compra tudo o que é necessário à exploração, é a sociedade
que celebra contratos, etc. Isto não se trata de atividade comercial: a atividade agrícola está fora do
comercio conforme vimos anteriormente, pelo que é uma sociedade civil sob a forma comercial. As
sociedades são comerciais desde que tenham por objeto uma atividade comercial, de contrário, são
sociedades civis sobre a forma comercial.

As demais pessoas coletivas: a aplicação analógica dos critérios do art. 13.º, nº 1 e a qualificação
como comerciantes das EPEs, cooperativas, ACEs, AEIEs que tenham por objeto a prática de atos de
comércio
Além das sociedades comerciais, outras pessoas coletivas podem ser comerciantes.

a. Entidades públicas empresariais (EPE) - cabem no n.º 1 do art. 13.º (não são sociedades e,
por isso, não cabem no n.º 2) - “profissão” pode caraterizar o exercício de atividades por parte
de pessoas jurídicas e a EPE tem capacidade para praticar atos de comércio (art. 58.º do RSPE).
São comerciantes quando o seu objeto consista no exercício de atividades jurídico-mercantis.
São comerciantes quando as respetivas empresas (objeto) são comerciais. Empresas públicas
constituídas pelo Estado para o desenvolvimento de atividades comerciais;
b. Agrupamentos complementares de empresas (ACE) e agrupamentos europeus de
interesse económico (AEIE) - não são sociedades, sobretudo por não terem escopo lucrativo.
São comerciantes quando tenham objeto comercial cabendo igualmente no n.º 1 do art. 13.º
CCom. Também podemos retirar isto do art. 3.º, nº 2 do DL 148/90;
c. Cooperativas - entidades igualmente sem fim lucrativo, mas tendo por objeto a prática de atos
de comércio são comerciantes (art. 13.º/1 CCom.). Não visam o lucro, mas um conjunto de

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outras vantagens e benefícios para os cooperantes, contudo, podem ter por objeto a prática de
atos comerciais.

Deve entender-se que estas diversas pessoas coletivas adquirem a qualidade de comerciantes pelo
menos a partir do momento em que passam a gozar de personalidade jurídica (art. 57.º RSPE; 16.º
CCoop.; art. 1.º DL 148/90).

b. Sujeitos não qualificáveis como comerciantes


Não são comerciantes os que exercem atividades não mercantis, sendo estas atividades as não
qualificadas legalmente de comerciais e as não análogas às comerciais. Sendo certo ainda que a lei,
por vezes, exclui expressamente certos setores de atividade económica do campo da comercialidade.

Pessoas excluídas da qualificação em função do setor de atividade em que se inserem:


profissionais liberais, agricultores, trabalhadores artesanais, trabalhadores autónomos.

a. As pessoas que exercem uma atividade agrícola (e não exerçam uma outra atividade
considerada comercial)- valendo aqui um conceito amplo de agricultura, que compreende a
atividade agrícola em sentido estrito e tradicional (cultivo de terra para obtenção de colheitas),
a silvicultura, a pecuária, e ainda a cultura de plantas e criação de animais sem terra ou em que
esta apresenta caráter acessório (vejam-se os artigos 230.º/1.º (primeira parte), 464.º/1 e 4 do
CCom.);
b. Os artesãos: produtores qualificados que, podendo servir-se de máquinas, utilizam
predominantemente o seu trabalho manual e, como instrumentos, ferramentas. O CCom. nos
artigos 230.º/1.º, 2.ª parte e 464.º/3, exclui do comércio a atividade artesanal industrial-
transformadora exercida “diretamente” pelos artesãos (oleiros, ferreiros, latoeiros, sapateiros,
alfaiates, costureiros, cesteiros, etc.). Por sua vez, as atividades artesanais de outro tipo
(situadas sobretudo no domínio dos serviços), quando exercidas diretamente pelos artesão
(eletromecânicos, estucadores, cabeleireiros, esteticistas, etc.), também não são comerciais, já
por não se acharem especialmente reguladas na lei mercantil, mas por serem análogas às
previstas no art. 230º. Há empresas artesanais (muitas vezes, é exercido de modo não
empresarial), mas mesmo nestes casos, os artesão-empresários que exerçam “diretamente” a
respetiva atividade, não são comerciantes.
c. Os profissionais liberais: pessoas singulares que exercem de modo habitual e autónomo
atividades primordialmente intelectuais, suscetíveis de regulamentação e controlo próprios (a
cargo, em grande medida, de associações públicas- “ordens”, “câmaras”), bem como sujeitos

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coletivos cujo objeto consista numa atividade profissional-liberal (por exemplo, sociedades)
também não comerciantes. O que acontece é que estas atividades podem ser desenvolvidas por
via societária, podem ter objetivos não comerciais e aí estamos face a sociedades civis que
sempre que adotarem forma comercial são sociedades civis comerciais e aplica-se-lhes o
regime das sociedades comercias. Os atos típicos das atividades respetivas não são qualificados
legislativamente de mercantis. As sociedades de profissionais liberais são sociedades civis,
embora podendo adotar formas ou tipos comercias.
Muitas vezes o que aqui é constituído são empresas que visam agilizar determinadas atividades
e para isso são constituídas empresas de diversas formas, é uma matéria típica de direito
económico.

Próximo dos profissionais liberais (e alguns artesãos) temos uma série de trabalhadores
autónomos igualmente não comerciantes - escultores, pintores, escritores, cientistas, músicos. As
atividades próprias destas pessoas não são legalmente qualificadas de mercantes (art. 230.º/3.º CCom.).

Depois, não são comerciantes as sociedades sem personalidade jurídica. As sociedades


adquirem personalidade jurídica com o seu registo, é necessário o contrato em si, o chamado ato
constitutivo, mas para que obtenham personalidade jurídica torna-se necessário que se proceda ao
registo. Estas sociedades, embora não registadas podem ser objeto de declaração de insolvência.

Pessoas impedidas por lei de serem comerciantes: os arts. 14.º e 17.º do Cód Comercial e o
caso das associações, fundações e pessoas coletivas de direito público com exceção das EPEs; o
insolvente judicialmente inibido de exercer o comércio (art. 189.º CIRE).

a. Artigo 17.º do CCom.: as pessoas coletivas públicas territoriais (o Estado, as RA e as AL)


podem praticar atos de comércio até de forma sistemática e habitual, podem explorar direta e
imediatamente empresas comerciais (não personalizadas), mas nem por isso adquirem a
qualidade de comerciantes. A lei veda a qualificação e o estatuto de comerciante a estas
entidades. As pessoas coletivas públicas de tipo institucional (institutos públicos - serviços
personalizados, fundações públicas, estabelecimentos públicos), excetuadas as referidas EPE,
também não podem ser comerciantes. O “Estado” mencionado no art. 17.º deve por ser
interpretado extensivamente de maneira a abarcar estas pessoas coletivas públicas que
prosseguem uma administração estadual indireta ou uma administração autónoma.
Este artigo também exclui associações fundações de direito privado com fim desinteressado ou
altruístico (uma misericórdia que explore uma empresa hospital, não é comerciante).

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b. Artigo 14.º do CCom: Sujeitos legalmente inibidos da profissão de comércio. Ainda que
exerçam o comércio, ele não deverá ser exercido a título de profissão, como “modo de vida”
delas. Associações de fim desinteressado ou altruístico; associações de fim interessado ou
egoístico mas ideal (associações recreativas culturais, desportivas, etc.- não tem por objeto
interesses materiais). Ex: de uma associação promotora de cultura teatral que gere um
“cineteatro” ou uma associação recreativa que explora um negócio de bar. As associações de
fim interessado ou egoístico de cariz económico não lucrativo (associações mutualistas,
sindicais, de empregadores, etc.) já não pode dizer-se não terem “por objeto interesses
materiais”, mas não fazem profissão do comércio, são atividades acessórias e ou instrumentais
(ex: uma associação sindical que explora uma escola de formação profissional).

Contratos comerciais
a. O regime da compra e venda comercial
A compra e venda corresponde, no núcleo dos núcleos, ao comércio em sentido económico: troca
de um bem corpóreo por um preço. Isto está na essência do comércio.

Entre as empresas é comum haver contratos de fornecimento que, na essência, assentam em


compras e vendas. O franchising assenta em transações de compra e venda entre as partes. No âmbito
civil, não temos compras e vendas em série.

Temos o regime civil da compra e venda previsto no CC, mas no CCom temos as especialidades
da compra e venda mercantil. Como grande parte dos contratos, o regime da compra e venda mercantil
assenta na compra e venda civil que é o regime mais moderno (artigos 874º a 939º do CC), mas é um
regime complementar, não substitui o do Código Comercial. Decorre do Código Civil por duas razões:

a. Em primeiro lugar, tem a ver com a própria natureza fragmentária do regime da compra e venda
mercantil. O nosso Código Civil é um código moderno e bem estruturado e que consagra um
conjunto de figuras que elas próprias têm relevo no D Comercial.
b. Em segundo lugar, toda a estrutura básica da compra e venda tipo: elementos caraterísticos da
compra e venda, toda a sua estrutura básica está no CCivil. Assim, o regime do CCom. Não é
um regime afastado deste, mas que o pressupõe.

Por outro lado, o CCivil tem uma técnica apurada e retrata uma realidade económica muito mais
próxima da nossa do que aquela que o CCom. teve em mente. É muito mais amplo, é lá que consta o
regime de bens alheios, de coisa defeituosa, de bens onerados, entre outros.

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A compra e venda comercial é um ato objetivamente comercial (artigo 463º e seguintes do CCom).
O regime assenta no art. 463.º do CCom. que permite qualificar determinadas vendas como atos
objetivos do comércio e assim aplica-se o regime desse artigo que tem algumas especificidades
relativamente ao Direito Civil. Contudo, uma venda pode ser um ato subjetivamente comercial e não
objetivamente comercial. Uma sociedade comercial, qualquer ato que pratique, enquanto comercial, é
um ato subjetivamente comercial. O relevo é que uma compra e venda comercial pode não ser realizada
por um comerciante. Um produtor de máquinas vende uma máquina a C é uma compra e venda
comercial subjetivamente, a diferença não sendo objetivamente comercial não se aplica o art. 463.º.

A qualificação da compra e venda como comercial decorre do preenchimento dos requisitos do art.
463.º que são essencialmente compras para revenda. A compra e venda é não comercial se preencher
o art. 464.º.

Estamos face a compras e vendas comerciais quando:

a. Há uma compra de coisas móveis para revenda ou para aluguer;


b. A venda de coisas móveis que foram compradas para esse fim;
c. A revenda de títulos de crédito pertence aqui à compra e venda mercantil sempre que tiverem
sido adquiridos para ele efeito;
d. A compra e revenda de bens imóveis quando as compras foram feitas para esse fim;
e. As compras para revenda de fundos públicos ou de outros títulos negociáveis;
f. As compras e vendas de participações sociais. Essas são sempre mercantis.

Estamos face a compras e vendas não mercantis quando (art. 464.º):

a. Venda de coisas que se destinem ao consumo do próprio ou da sua família, mesmo que depois
venham a ser revendidas.
b. Vendas realizadas no âmbito da propriedade agrícola, por um proprietário.
c. Compras que os artesãos, oficias, mestres, mecânicos adquiram para transformar e vender nos
seus estabelecimentos.
d. Atividades relativas à pecuniária (para engordar): a própria revenda de animais não é mercantil.

Aspetos do regime que são mais relevantes/ especificidades da compra e venda comercial:
O preço pode ser fixado por qualquer meio desde que haja critérios de determinabilidade, caso
contrário o negócio será nulo. Também é possível, neste caso, que seja cometido ao terceiro a

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faculdade de fixar o preço do contrato. Se o terceiro não o fizer, se outro regime não for acordado, nos
termos da lei, o contrato deixa de produzir efeitos.

A lei, no Direito Civil, admite a venda de coisa incerta e a venda de esperança, mas não admite
a coisa de venda alheia (art. 892.º do CC). A particularidade aqui é que é lícita a venda de bens alheios
(art. 467.º/2.º ponto). Não transmite a propriedade, mas o ato, em si, não é nulo. O vendedor (que vende
a coisa alheia) fica obrigado a adquirir, de modo legítimo, a propriedade da coisa que vendeu e de
entregar ao comprador. Se não o fizer, incorre em irresponsabilidade. Nasce um dever de aquisição
do bem para ser entregue ao adquirente e transmitir a propriedade ao próprio adquirente, se não tem
de indemnizar a parte.

Venda sobre amostra ou vendas de uma coisa que se determina unicamente por qualidade conhecida
no comércio (art. 469.º)
Nos termos do art. 469.º, elas consideram-se sempre feitas sob condição de a coisa ser conforme
à amostra ou a essa qualidade com base na qual a coisa foi adquirida. Considera-se sempre que ela está
sujeita à coincidência entre aquilo que foi vendido e a coisa que venha a ser entregue (ex: café
colombiano). O comprador, mal receba a mercadoria, tem de examiná-la no ato de entrega e poderá
ou não reclamar quanto à sua qualidade. Se o comprador não examinar a mercadoria na altura, tem 8
dias para reclamar, depois disso já não o pode fazer mais, estabiliza a transação (artigo 471º do CCom).
O vendedor pode exigir que o comprador proceda ao exame das fazendas no ato da entrega.

Regime das coisas que tenham sido vendidas à vista se não tiver sido fixado prazo para a entrega da
coisa
Quando assim for, o vendedor pode fazê-lo fixar judicialmente, isto sempre que o prazo seja
necessário, mas pode não ser necessário nos termos do art. 777.º do CCivil, pode ser uma obrigação
pura e não a prazo. Quando a obrigação carece de prazo, não é pura, então pode-se recorrer a este
regime, mas pode ser uma obrigação não sujeita a prazo.

Compra e venda de coisas que não tenham sido à vista ou que não possam determinar-se por uma
qualidade conhecida no comércio: venda a contento
Um sujeito, se depois examinar a coisa e ela não lhe convier ele pode devolvê-la e o contrato
não se consolida: art. 470.º CCom. Regime do art. 471.º: se o comprador, recebida a coisa, não

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examinar logo que ela seja entregue ou examinando-a logo, não reclamar contra a sua não
conformidade ou então se a não examinar imediatamente e não o fizer dentro do prazo de 8 dias (que
é o prazo máximo para a reclamação), a venda consolida-se: princípio da estabilidade e celeridade nas
transações comerciais, se não reclamar não pode reclamar mais e com isto estabiliza-se a relação
comercial. O vendedor pode exigir que o adquirente a examine imediatamente, no ato de entrega.

Regime específico relativamente ao incumprimento do contrato previsto no art. 474.º CCom


Na eventualidade daquele sujeito que, comprou uma coisa móvel, não cumprir a sua obrigação,
pode o vendedor depositar a coisa ou fazê-la revender. Esta revenda, no entanto, tem de ser feita em
hasta pública ou então, se aquele bem tiver um preço cotado em bolsa ou em mercado por um corretor,
ao preço corrente.

Este regime é diferente do Direito Civil, onde, se um sujeito não pagar o preço, se já tiver
transmitido a propriedade, não pode vender um bem que não lhe pertence. Vendeu, transmitiu a
propriedade, o devedor não paga o preço: pode recorrer a uma interpelação cominatória e pode resultar
numa resolução do contrato por causa do incumprimento definitivo, adquire o bem e vendo-o a quem
quiser, readquire a propriedade.

Aqui o vendedor que já transmitiu a propriedade pode revender o bem. Se o montante for
inferior ao preço, se só consegue obter 90€ em vez de 100€ na revenda, aí tem de, a título
indemnizatório, o devedor, pagar essa diferença, que seriam os 10€. Se conseguir revender por preço
superior, terá de entregar a diferença ao comprador. Em qualquer circunstância tem de comunicar à
contraparte que vai proceder à revenda.

O problema é que a revenda tem de ser em hasta pública o que não é nada “prático” para um
vendedor. Tem de ser vendido por corretor, por isso esta figura é diferente do regime geral, tem
especialidades no que diz respeito ao regime de incumprimento, mas não tem interesse para o
comerciante dado o caráter pesado de instrumentos para a efetivar, é mais fácil resolver o contrato. O
vendedor tem sempre de entregar a fatura das coisas vendidas e caso receba o preço: o próprio recibo.
A emissão de fatura é própria.

Estas são as particularidades da compra e venda mercantil.

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Regime utilizado na prática como mecanismo de tutela do comerciante: regime da venda com reserva
da propriedade
Esta modalidade muito utilizada no comércio, vem prevista no art. 409.º do CCivil. Nos termos
do art. 886.º, sendo a coisa vendida, transmitindo-se a propriedade (transmite-se por via do contrato)
e, sendo feita a sua entrega, o vendedor não pode resolver o contrato por falta de pagamento do preço.
Pode executar o comprador, mas isso depende sempre de este ter bens. Se pudesse resolver o contrato,
atendendo aos efeitos retroativos da resolução, a eficácia ex tunc, ele readquiria a propriedade da coisa
e teria um direito de indemnização.

Em geral, essa cláusula articula-se com o pagamento em prestações, sendo que a lei acaba por
consagrar um regime particular protetor do adquirente (artigos 934º e 935º). É costume os comerciantes
darem uma prazo para que o comprador faça o pagamento. Chama-se a este prazo crédito comercial
que é extremamente comum. Depois essa é uma das razões pelas quais os comerciantes recorrem ao
crédito bancário.

A forma utilizada pelos vendedores para a tutela da sua posição foi recorrer à reserva da
propriedade. Em caso de incumprimento do comprador, como ele ainda não transmitiu a propriedade,
o bem é dele e, por isso, não se aplica o art. 886º e ele pode resolver o contrato por falta do pagamento
do preço, o que significa que estará protegido. Vendem, entreguem a coisa, porque o outro precisa de
utilizar a coisa e como ele é proprietário pode obter a coisa de volta e tem uma indemnização por
incumprimento da outra parte. O efeito prático que permite é re-obter a coisa, o que minimiza o
prejuízo que tenha com o incumprimento. Se for sem reserva, pode executar o sujeito, mas não obtém
a máquina de volta. Claro que o devedor tem sempre uma enorme pressão em cumprir porque precisa
da máquina. Claro que, isto, só depois de transformada a mora em incumprimento definitivo.

Como esta figura era muito utilizada no âmbito da venda mercantil, criou-se um regime
específico da venda a prestações com reserva de propriedade e esse regime tem a essência de tutela do
adquirente: art. 934.º CCivil.

Nota: Relembrar o art. 939.º do CCivil: basta que seja uma troca onerosa de bens, poder não
ser um preço, aplica-se o regime de compra e venda por expansão.

E o regime do mandato expande-se aos contratos de prestação de serviço não especificamente


regulamentados.

Proteção do adquirente a comerciante em caso de reserva de propriedade:

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A vende a B um computador com reserva de propriedade e concede prazo para pagar, o


vendedor coloca no seu estabelecimento o computador e C compra-o. B não era proprietário do bem,
vendeu uma coisa alheia, não transmitiu nada. Acontece que recebeu o preço. Se o B não pagar o preço
ao A, o A vai resolver o contrato. O C não faz a mínima ideia que comprou a coisa com reserva de
propriedade. Nessa circunstância arrisca-se a ser privado do bem, surgindo o direito a ser restituído do
preço do bem e a ser indemnizado por B (o comerciante) porque vendeu uma coisa alheia. O que
costuma acontecer, em concreto, quando B pratica um ato desses não vai pagar nada, porque está numa
situação económica complicada.

O mecanismo de proteção de terceiro foi consagrado no âmbito dos direitos reais, decorre do
1301.º CCivil:

❖ É preciso que esta revenda tenha sido realizada por um comerciante que negoceie em
coisas do mesmo género ou de um género próximo. Que essa venda tenha sido realizada
por um comerciante no âmbito dos seus negócios, da sua atividade central;
❖ O adquirente tem de estar de boa fé. O meio de defesa que dá ao adquirente é que ele
pode recusar-se, face ao proprietário do bem, a restituir a coisa enquanto não lhe for
pago aquilo que ele entregou ao revendedor. O C pode recusar-se a entregar ao A o
computador que o vai exigir na qualidade do proprietário enquanto o A não lhe entregar
os 1 000€. Ele não adquire, o mecanismo é diferente, ele pode recusar-se a restituir.
Pagando o A, tem direito a que o B lhe pague o valor acrescido de indemnização. Se o
C sabia, não tinha proteção. Tratando-se de bens sujeitos a registo é difícil que o terceiro
esteja em boa fé. O que ele pode fazer para evitar situação destas é que sejam
introduzidos no bem indicações que aquele bem foi vendido com reserva de
propriedade, é uma forma de afastar a boa fé dos compradores.

O outro sujeito não pode licitamente alienar o bem enquanto não tiver adquirido a propriedade
sob pena de não estar a vender uma coisa dele e se não foi pago o devido, pode resolver o contrato e
obter novamente a coisa.

A vende a B uma máquina e B coloca-a na sua fábrica, em dificuldades económicas, B revende


a máquina a C e C não sabe da reserva, o A resolve o contrato, sabe quem é o adquirente, reivindica a
coisa e exige a restituição. Aí C não tem a proteção porque B não se dedica à revenda de coisas deste
tipo, não é um comerciante.

Este regime da reserva da propriedade está tutelado na situação de insolvência. Art. 104.º CIRE:
se o comprador não pagar a totalidade da coisa, a coisa não integra a massa insolvente. Na reserva de

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propriedade, o bem pertence ao credor vendedor, não pertence ao comprador e, como tal, não integra
a massa insolvente

Nos termos do 34.ºdo CIRE mesmo que tenha sido declarada a insolvência do credor, este podia
a continuar a recorrer à reserva que é uma forma de tutelar a figura como instrumento de garantia.

Contratos bancários
O Direito bancário, em si, assenta na atividade desenvolvida pelas instituições de crédito. Há
diversas situações de crédito, mas as mais relevantes são de longe, os bancos: o conceito mais amplo
são instituições bancárias, mas vamos centrar-nos nos bancos. É uma disciplina autónoma.

No nosso sistema a banca é universal, não há bancos específicos, eles podem desenvolver um
conjunto muito amplo de atividades, mas o núcleo da atividade bancária que a torna importante para o
comércio, sendo que ela está no cerno do comércio (em termos jurídicos e económicos conforme
decorre do Regime específico geral das instituição de crédito e financeiras: REGIC) consiste em três
elementos que identificam a atividade bancária stricto sensu:

a. Recebem depósitos do público o que é uma posição de guarda;


b. Os bancos concebem crédito, os bancos fazem intermediação bancária, vão buscar fundos ao
mercado bancário. Em primeiro lugar, faz-se a integração financeira – banco recolhe fundos e
depois recorre a eles para conceder crédito quando pratica outros negócios. O banco vai buscar
os recursos aos depósitos, mas também ao mercado monetário e ao mercado interbancário (os
bancos emprestam fundos a eles próprios). Em segundo lugar, temos o crédito empresarial –
assenta num conjunto de contratos diferentes. Como é que colocam o dinheiro junto dos
clientes (particulares e empresas)? Eles concedem crédito. O conjunto de contratos a que
recorrem para fazê-lo é muito diferente e varia consoante seja particular ou pessoa coletiva. Os
2 contratos mais importantes são o contrato de cessão financeira ou factoring e a locação ou
leasing financeiro.
Há uma diferença em relação às taxas que o banco paga, são depois inferiores às que cobra na
concessão de crédito. Importa acrescentar que os bancos são as únicas entidades que podem
receber depósitos e ao mesmo tempo conceder créditos (art. 8º, nº 1 RGICSF).
c. Outra função essencial para o desenvolvimento da economia: são os elementos centrais do
sistema de pagamento.

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Hoje em dia, ninguém recorre a liquidez para fazer pagamentos, a partir de determinado valor é
mesmo proibido. Isso implica uma infraestrutura complexa que se tratam de processadores de
pagamento que não têm de ser, mas é comum, serem bancos. Para uma pessoa receber pagamentos,
por via de um pagamento com cartão numa loja, tem de recorrer a uma estabelecimento bancário.
Traçam a importância dos bancos. Eles desempenham esta função importante para a economia.

É a concessão de crédito que cria a moeda e que, portanto, gera os depósitos (loans make deposits),
ou seja, os novos créditos a eles correspondentes. A concessão de crédito é que conduz à criação de
moeda escritural. O banco cria moeda bancária através do multiplicador de crédito, sendo que a maior
parte da moeda em circulação é criada pelo banco e não pelo Banco Central Europeu (90% da moeda
é bancária, escritural), isso gera um conjunto de problemas.

Recorrendo a um exemplo: se um banco conceder crédito a uma empresa no valor de € 1000, cria
moeda, uma vez que gera, do nada, por um simples registo contabilístico, o correspondente crédito
sobre si, de que a empresa é titular. E o seu pagamento destrói essa moeda: assim, p. ex., sendo o
crédito criado (portanto: a moeda escritural), por exemplo, no empréstimo garantido por hipoteca, logo
que devedor pague, esse dinheiro escritural é destruído.

Nota:

 Moeda legal - são as notas e moedas emitidas pelo BC.


 Moeda escritural - resulta de uma pura escrituração, não tem existência física.

O desenvolvimento tecnológico, em especial da informática, ao permitir o tratamento de volumes


enormes de dados em massa, conduziu à criação de sistemas de pagamento, que passam pelo sistema
bancário, sem que se manuseie moeda legal. Hoje em dia, é absolutamente essencial as pessoas terem
uma conta bancária porque a maior parte da moeda é escritural e os pagamentos são feitos através
desta. Pelo que os bancos passaram também a assumir a função de intermediários dos pagamentos, que
fluem quase todos pelas veias do sistema bancário através de moeda escritural. As notas são utilizadas
apenas para pagamentos de valor inferior ou ilícitos, daí existir uma limitação.

Por isso há uma lei específica que obriga o banco a celebrar contratos – Lei dos Serviços Mínimos
Bancários (Decreto-Lei nº 27-C/2000, de 10 de março), no que constitui o reconhecimento pelos
poderes públicos do caráter vital em termos económico-sociais dessas operações.

O uso e abuso desta figura gerou a crise financeira Os bancos, nos EUA, começaram a conceder
créditos a pessoas que não tinham recursos financeiros porque achavam que o valor dos imóveis

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subiam sempre e um conjunto de utilizadores mundiais adquiriram essas num produto financeiro local
e a colocação no mercado de capitais acabou por maximizar uma crise.

Quando o mercado imobiliário caiu, se não fosse isso, a crise reduzia-se só aos EUA, mas como
havia ligação entre bancos e havia obrigações nos seus patrimónios, foi mundial.

Os sistemas de pagamentos seguem a diretiva europeia RSP sobre o regime dos serviços de
pagamentos, que é muito detalhada e técnica (Diretiva nº 2015/2366), transposta para o ordenamento
jurídico português através do Decreto-Lei nº 91/2018, de 12 de novembro.

O Direito bancário tem uma relação muito forte com o direito financeiro, ou seja, ao sistema do
direito financeiro. Temos: direito bancário, o direito dos valores imobiliários e direito dos seguros.
Depois estão interligados, isto porque os principais intermediários financeiros são também eles
instituições do crédito. Não são só especificamente bancários, são produtos financeiros. Os grupos
bancários têm quase sempre empresas de seguros e a banca desempenha um papel não só de banca
comercial, mas também de banca de investimento, atua igualmente no âmbito dos valores imobiliários.
Há uma interpenetração entre estes três sistemas.

Um outro aspeto prende-se com o facto de a atividade bancária é uma atividade regulada, o que
significa que está sujeita à regra de regulação e supervisão. Todos estes setores (bancário, valores
imobiliários, seguros) é regulado no âmbito do direito bancário (BP e BCE). O BCE tem competência
para a supervisão bancária dos bancos acima de uma determinada franquia económica. Depois temos
o BP que é responsável pela supervisão dos bancos mais pequenos. Continua a ter competências de
regulamentação. O sistema em si é extremamente complexo, temos o BCE, o BP, mas o supervisor
também é regulador o que quer dizer que tem competência para criar regras específicas para um
conjunto de bancos.

O contrato bancário geral


Um indivíduo seja pessoa singular, seja coletiva entra numa relação contratual com o banco a
partir do momento em que abre uma conta. Há aqui um contrato inicial entre o banco e o cliente que
se chama contrato de abertura de conta.

Do conteúdo do negócio constam elementos de identificação do cliente, elementos de


mobilização a crédito e a débito da conta, condições de outros contratos que o banco pode vir a celebrar
com os clientes.

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Esse contrato inicial reveste as características de um contrato-quadro. Ou seja, para além da


abertura de conta, a criação de uma conta, ele engoba igualmente, em regra, quase sempre os serviços
de pagamento (que são a utilização de cartões de débito, transferências bancárias, débitos diretos) e
prevê também um conjunto de negócios que as partes possam vir a celebrar no futuro, ainda que não
o celebrem logo, mas que já estão previstos inicialmente, por exemplo um contrato de cheque e, com
grande frequência também, a conta dos valores mobiliários (resulta a possibilidade de serem
celebrados outros contratos). Alguns destes contratos podem, e muitas vezes, são de imediato
concluídos entre o cliente e o banco. O que significa que se alarga ab initio a amplitude do
relacionamento entre as partes. É nesse seio que se irão celebrar um conjunto de negócios jurídicos
que elas possam depois vir a concluir, como por exemplo uma eventual concessão de crédito. Temos
este contrato que desencadeia a chamada relação bancária geral que há de manter-se sempre até que o
sujeito encerre a conta. Este contrato é um contrato-quadro, do qual decorre a relação obrigacional
complexa, duradoura, que une o banco ao cliente

Desse contrato inicial nascem deveres decorrentes da boa fé. No âmbito das relações
obrigacionais duradouras, o conjunto decorrente dos deveres de boa fé é especialmente intenso, quanto
maior for a confiança entre as partes, mais intensos são os deveres. A relação bancária assenta numa
relação de confiança entre as partes, assim, este conjunto de deveres tem uma especial intensidade, é
possível afirmar deveres de lealdade, proteção de património, de aconselhamento e informação por
parte do banco e vice-versa. Há muita jurisprudência neste sentido, relacionada até com a
comercialização de produtos pelo banco, discutia-se se tinha sido cumprida a obrigação de informação.
Por vezes, os deveres de informação e mesmo os deveres de aconselhamento decorrerão de fontes
específicas que dizem respeito aos contratos que vão sendo celebrados entre o cliente e o banco. Em
princípio, o banco não tem um dever de informar em termos genéricos, mas pode ter quando o desnível
for bastante grande e for reconhecido ao banco quanto a contraparte. Assentam numa relação de
confiança quanto ao banco, depende dos próprios conhecimentos do outro sujeito e do produto que
esteja a ser negociado e que é marcante dessa relação.

Aquilo que se discute muito é: qual a extensão do dever de informação do banco? Aí o quadro
geral reside no seguinte: em primeiro lugar, o risco de um determinado negócio é sempre corrido pelo
cliente, não é o banco que tem que correr. Outra coisa é o dever de o banco informar do risco que as
pessoas correm. A extensão desses deveres mede-se também pela contraparte do banco. É diferente
ser um consumidor (a pessoa não requer do conhecimento informado, aí o dever de informação do
banco será mais extenso e terá que partir dele a iniciativa de prestar essa informação) ou um
profissional.

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Não emergem deste contrato somente deveres para o banco. O cliente, tendo por base essa
relação de confiança, vê recair sobre ele um conjunto de deveres de lealdade, de informação. Mais
intensos, também, do que se tratasse de uma relação de negócios.

Depois da relação bancária geral, celebrado o contrato com o banco, temos dois grandes grupos
de contratos que podem ser celebrados entre o banco e o cliente: de um lado, temos um conjunto de
operações chamadas operações passivas em que o banco está na posição de devedor; temos depois as
operações ativas em que o banco está na posição de credor.

Contrato de depósito
O depósito é um contrato real quod constitutionem, consensual, bilateral imperfeito (ou
sinalagmático , se for oneroso), de prestação de serviços, pelo qual uma das partes, o depositário, se
obriga a guardar uma coisa móvel ou imóvel que lhe é entregue para esse efeito pela outra parte, o
depositante. O contrato pode ser gratuito ou oneroso, presumindo-se gratuito a não ser que tenha por
objeto atos que o depositário pratique por profissão, hipótese em que se presume oneroso (artigos
1186º e 1158º CCivil). O depósito comercial é oneroso, salvo convenção expressa em contrário (artigo
404º Ccomercial).

A guarda da coisa constitui, no depósito, a prestação principal. Entende-se por guarda a


conservação material da coisa, ou seja, mantê-la no estado em que foi recebida, defendendo-a dos
perigos de subtração, destruição ou dano.

O depósito bancário nasceu com base no contrato de depósito propriamente dito mediante a
entrega de quantias pecuniárias: o banco guarda e restitui se o sujeito quiser levantar as garantias. Hoje
em dia, o contrato de depósito não tem isso. As reservas dos bancos são muito limitadas, o que existe
é que aquilo que temos face ao banco é um crédito pecuniário que as pessoas mobilizam através de
transferências, débitos diretos, pagamento de crédito, e raramente se levanta, só para quantias mais
pequenas.

Quando o depósito é realizado junto de um banco, estamos perante um depósito bancário. O


depósito pode ser pecuniário se incidir sobre dinheiro, que passa a ser propriedade do banco. Na maior
parte das vezes, o depósito terá por objeto moeda escritural e, portanto, não há transmissão da
propriedade de coisas corpóreas, como as notas. Consiste, simplesmente, numa variação de saldos, ou,
de forma mais precisa, dos créditos pecuniários face ao banco. Os créditos pecuniários face aos bancos
não são criados pelo Estado, o que o Estado faz é emitir notas e moedas físicas, mas a criação de moeda

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escritural é pelos bancos e a criação dela está limitada pela reserva que têm no Banco central (por 30
moedas escriturais- 2 moedas no Banco central, por exemplo).

No contrato inicial de abertura de conta incluem-se os contratos de conta corrente, de depósito


e alguns serviços de pagamento. “Efetivamente, torna-se necessário, para ter acesso à conta, regular
imediatamente os meios da sua “alimentação”, em regra por via de depósitos.” Em regra, não se faz
através da entrega de notas e moedas. O dinheiro é entregue ao banco e depois levantado por via de
transferências. Há 2 grandes grupos de contratos de depósito: há os chamados depósitos à ordem que
estão ligados a uma conta que será uma conta de pagamento ou conta de giro e depois os depósitos a
prazo que são contas específicas.

a. Depósito à ordem – contrato pelo qual o cliente entrega uma quantia pecuniária (moeda legal
ou escritural) a um banco que a inscreve a crédito numa conta, obrigando-se a receber outras
entregas e a inscrever a crédito. O banco deve restituir ao cliente, no todo ou em parte, a
qualquer momento, o saldo dessa conta, ou mobilizá-lo de outra forma acordada com ele (ex:
cheque ou transferência bancária). Os depósitos que lá se fazem são à ordem, o que significa
que a pessoa pode dispor dessa quantia a qualquer momento.
b. Depósito a prazo - As pessoas recorrem ao banco não só para poderem gerir o seu dinheiro,
mas também para aplicar as suas poupanças, fazem-no através da figura dos depósitos a prazo,
que dão lugar depois a contas específicas, mas isto é tudo feito no âmbito da conta geral. Existe
para as pessoas singulares colocarem a sua poupança junto do banco de forma a rentabilizar o
dinheiro.
Os montantes são inscritos a crédito em conta própria, denominada de conta de depósito a
prazo. Em regra, para a sua constituição é necessária a constituição prévia de uma conta de
depósito à ordem, donde se transfere depois a quantia depositada.
Os depósitos a prazo são remunerados mediante o pagamento de juros e só são exigíveis no
fim do prazo por que foram constituídos. Contudo, as instituições de crédito podem conceder
aos seus depositantes a mobilização antecipada (artigo 1º nº 4 DL nº 430/91 de 2 de novembro),
sofrendo penalizações que consistem, em regra, na perda total ou parcial dos juros devidos. O
capital está sempre garantido.
Claro que hoje em dia isso tem um aspeto relativamente problemático que se prende com o
seguinte: tradicionalmente, as contas de depósito a prazo venciam juros, agora o que se passa
é que o bancos conseguem ir buscar financiamento ao mercado interbancário a taxas de juro
negativas e portanto basicamente deixaram, a não ser em casos muito excecionais, de
remunerar os depósitos a prazo. Aquilo que eles não podem fazer é introduzir taxas negativas

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no depósito a prazo, em Portugal não podem porque há um aviso do BP nesse sentido. Mas em
termos de investimento de capital, as poupanças das pessoas basicamente não são remuneradas.
Não obstante, as taxas de juro são mais estáveis do que eram nos anos 1980, porque assentam
numa moeda mais forte e não deslizante como o era o escudo. O poder de compra das pessoas
mantém-se, assim, estável e isso é muito importante.
c. Depósito com pré-aviso – o depósito com pré-aviso apenas é exigível depois de prevenido o
depositário por escrito, com a antecipação fixada na cláusula de pré-aviso, livremente
negociada entre as partes (artigo 1º nº 3 do DL nº 430/91). A este depósito corresponde uma
conta própria, além de ser, em regra, remunerado. O capital está sempre garantido. Os seus
montantes são inscritos a crédito em conta própria, denominada de depósito com pré-aviso.

Contratos de crédito (mútuo, abertura de crédito, locação e cessão financeira)

Depois temos um conjunto de operações ativas por parte dos bancos, em que estes são credores.
Essas operações ativas são, em regra, contratos de crédito.

Ao abrigo da liberdade contratual nada obsta que celebrem contratos atípicos, como contratos
mútuos consensuais por exemplo, mas se celebram um simples contrato de mútuo seguimos o Código
Civil.

O negócio nuclear do banco é justamente o empréstimo de dinheiro que tem por objeto moeda
escritural. O banco concede crédito através de um conjunto muito diferente de contratos de crédito.
Assim, em primeiro lugar, o contrato de crédito nuclear é o mútuo pecuniário bancário.

Depois também recorre à abertura de crédito, a antecipações bancárias, ao desconto, ao


factoring ou cessão financeira, à locação financeira ou leasing e, no âmbito de comércio internacional,
pode recorrer também ao forfaiting. Pode recorrer a outros contratos de crédito, mas na essência são
estes a que o banco recorre.

Podemos estar a falar de um crédito ao consumo ou um crédito ao profissional que, em regra, será
uma empresa (no sentido subjetivo do termo). A distinção é muito importante, porque o crédito ao
consumo está regulado especificamente através do regime do crédito ao consumo. Depois também há
o regime recente do crédito à aquisição de imóveis. Estes regimes têm fonte comunitária, a proteção
do consumidor é essencialmente comunitária, opera por diretivas que depois têm de ser transpostas.

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O mútuo bancário
O mútuo é um dos negócios centrais da atividade bancária, constituindo um ato comercial
autónomo (362º Ccomercial). É composto pelas disposições do regime geral do mútuo civil oneroso.
O mútuo bancário está previsto no CComercial, mas tem um relevo prático em termos de regime muito
restrito. Daí que o mútuo mais relevante é o mútuo celebrado pelos bancos, o mútuo bancário que é
real quanto à constituição. O mútuo que temos aqui é um mútuo específico. A base deste contrato é o
mútuo civil previsto no CC, mas com características especiais. O mútuo que estamos aqui a falar é só
mútuo pecuniário e tem por objeto moeda escritural.

Tal como está regulado no CC, é um contrato real quanto à constituição, o que significa que é
necessária a entrega da coisa para se constituir o contrato.

Aquilo que foi feito no DO alemão é transformar este contrato unilateral em bilateral na
obrigação de entrega do capital. Não há uma alteração cá. O sujeito pede um crédito a um banco, mas
o contrato só se conclui quando o banco creditar. Atendendo à natureza da moeda envolvida que é a
moeda escritural, aquilo que é relevante é o crédito em conta, é a forma de entregar moeda escritural
e, nessa medida, a partir do momento em que é creditado esse valor temos concluído o contrato de
mútuo bancário.

É necessariamente um mútuo oneroso, o banco não celebra um mútuo gratuito. A contrapartida


é o pagamento de juros.

O contrato de mútuo bancário é celebrado através do depósito da quantia na conta do sujeito e,


sendo um mútuo oneroso, é sempre pelo pagamento de juros. Nos termos do art.1147º CC, o mútuo
celebrado a prazo, o banco não pode pedir a quantia antes de decorrido esse período de tempo. Todavia,
o benefício do prazo é estabelecido a favor de ambas as partes o que significa que o sujeito também
não pode cumprir antecipadamente, a não ser que pague os juros por inteiro.

Vamos agora centrar-nos na matéria dos juros. Os juros, em si, são obrigações duradouras
periódicas e isso é relevante porque, na sua constituição, dependem do tempo. Os juros são o
correspetivo da disponibilização do capital então é relativo ao tempo. Os juros são calculados em
função do capital, do tempo e há um elemento essencial que é a utilização de uma taxa de juro para
aquela específica operação. Temos a entrega de capital e celebração de um contrato e temos a
obrigação de restituição - isto depende do acordo das partes. Pode fazer-se em bloco, decorrido o prazo
do empréstimo. Não é possível integrar o capital, chama-se pagamento dos juros à cabeça. Podem ser

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pagos semestralmente ou pagos anualmente ou só pagos no fim da linha. Nascem decorrido aquele
período de tempo, mas há regras específicas quanto aos limites das taxas de juro.

O nosso Código Civil prevê limites para as taxas de juros em termos genéricos. Esses limites
estão previstos no âmbito do artigo 1146º.

Assim, para os juros remuneratórios não podem ser superior a 3% ou 5% sobre a taxa de juro
geral, consoante exista ou não garantia real.

Os juros moratórios não podem ser superiores a 7% ou 9% sobre a taxa de juro legal, consoante
exista ou não garantia real. Existindo garantia real a taxa de juro máximo é sempre mais baixa.

No âmbito bancário, temos regras específicas. O regime de 2013 não tem uma regra
relativamente às taxas de juro remuneratórias, apenas para os juros moratórios. Aquilo que se discute
é se os bancos estão sujeitos a estes limites do artigo 1146º ou se não estão sujeitos a nenhum limite,
funcionando o regime das taxas livres. A opinião que era dominante na doutrina e é dominante na
jurisprudência é que as taxas de juro bancárias são livres, no sentido em que não estão sujeitas ao limite
do artigo 1146º. Este entendimento radica no aviso do BP de 1993, os bancos podiam estabelecer as
suas taxas.

O professor Pestana de Vasconcelos defende uma posição diferente adotada já em sede do


Tribunal da Relação do Porto: esse aviso do BP tem um caráter regulamentar, nunca pode derrogar lei
geral prevista no CC. Em segundo lugar, é preciso ver efetivamente a que é o que aviso se refere, é
que desde 1975, ao abrigo da lei orgânica do BP vigente à data, ele podia fixar taxas bancárias. Em
1990, alterou-se a lei orgânica e o BP perdeu toda a competência nesse aspeto, pois tínhamos entrado
na UE. E, portanto, aquilo que se vem dizer é que as taxas são livres, porque o BP deixa de as fixar,
mas isso não significa que não estejam sujeitas ao limite do artigo 1146º. Se excluirmos deste artigo
os bancos, onde é que fica o campo de aplicação da norma? Um particular emprestar a outro? Uma
empresa que não bancária prestar a um particular? Coisa que nem pode fazer. O âmbito de aplicação
da norma ficaria reduzidíssimo, não foi essa a intenção do legislador. Por último, em termos valorativos
não se pode entender como é que a lei estabeleceu limites em termos genéricos para as taxas de juros
e depois afasta-os onde eles são mais necessários, a lei efetivamente não afasta.

Regimes específicos de mútuos bancários

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Relativamente ao mútuo temos regimes específicos de mútuos bancários – ex: crédito ao


consumo é um mútuo; crédito de aquisição de imóveis. Temos o regime geral do mútuo bancário, mas
na verdade ele é consumido em grande parte pelos regimes específicos sempre que estivermos a tratar
do crédito ao consumo.

O título bancário mais relevante do ponto de vista de frequência prática é o mútuo com
hipoteca, em regra para a habitação. Consiste no mútuo para a aquisição de um bem imóvel em que o
banco fica com o imóvel como garantia, levando à sua hipoteca e acordando o escalonamento da
restituição do capital e do pagamento dos juros. Ao mesmo tempo do mútuo, celebra-se uma hipoteca.
O sujeito adquire o bem, o banco empresta o capital para comprar o bem e é celebrada uma hipoteca
sobre o bem para garantir a restituição do seu crédito, são celebrados 3 contratos: contrato de compra
e venda, contrato de mútuo e contrato de hipoteca.

É feito através da prestação compósita, ou seja, paga-se uma determinada prestação mensal. É
compósita porque parte dela é restituição do capital, parte dela é pagamento de juros. Juros calculados
do capital ainda em dívida. Há uma parte componente inicial que é o capital e há uma segunda parte
que são os juros e é calculado do seguinte modo: um valor fixo e um variável que é uma indexação da
taxa de juro que é a Euribor. A base é o valor pelo qual determinados bancos emprestariam dinheiro
uns aos outros. O BCE cobra taxas penalizadoras para os bancos pagarem um valor sobre os seus
excedentários assim os bancos procuram juntar uns aos outros, ou seja, eles pagam uns aos outros para
as pessoas terem lá dinheiro.

Regime dos contratos de crédito sobre imóveis

O capital tem de ser imediatamente restituído, mas não há efeitos retroativos da resolução
relativamente ao pagamento de juros e a resolução do contrato relativamente aos juros não tem efeitos
retroativos relativamente à restituição do capital. Assim, se o banco tiver recebido parcialmente o
capital há um regime específico dos efeitos do contrato sobre o capital e por outro lado a resolução do
contrato não afeta os juros já pagos. O comum é que sejam fixadas clausulas penais para o
incumprimento do contrato e há um regime específico quanto aos juros remuneratórios bancários.

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Contrato de conta
A conta bancária, segundo Conceição Nunes, é um “registo, organizado numa base pessoal,
cronológico e sintético das operações de entrega e reembolso de fundos, constitutivas, modificativas
ou extintivas do crédito unitário ao reembolso”.

Este contrato celebrado entre o banco e o cliente recorre a cláusulas contratuais gerais, deve
conter toda a informação necessária e ser redigido de forma clara e precisa.

Do conteúdo do negócio, decorre um conjunto de direitos e obrigações e prevêem-se formas de


movimentação a crédito e débito dessa conta. O banco obriga-se a registar de forma precisa, ordenada
e rigorosa as diversas operações realizadas entre ele e o cliente, mas também a informar periodicamente
a outra parte dos diversos movimentos de conta e respetivo saldo. Em contrapartida, o banco tem
direito a uma comissão, normalmente denominada de comissão de manutenção da conta.

As empresas, em regra, carecem, em termos económicos, das linhas de crédito: aberturas de crédito
bancário.

O contrato de abertura de crédito é um contrato nominado, está previsto nas operações do banco
(art. 362.º CCom). O contrato é legalmente atípico e socialmente típico: há um determinado
enquadramento económico e as partes vão gizando contratualmente. Gera-se um movimento de
uniformização de conteúdo contratual. A doutrina acaba por analisar contratos e por os qualificar e
depois a jurisprudência é confrontada com esses contratos o que quer dizer que embora não haja um
regime legal, socialmente esta conjugação de uniformidade das cláusulas, gera aquilo a que se chama
uma tipicidade social. Os contratos de franquia, franchising são socialmente típicos.

É socialmente típico porque até pode ter uma estrutura diversa, mas no cerne consiste no negócio
pelo qual o baco disponibiliza ao seu cliente, seja uma empresa seja um consumidor, um determinado
valor que este pode utilizar no todo ou em parte durante o tempo que foi celebrado o contrato ou, sendo
um contrato celebrado por tempo indeterminado, até que ele seja denunciado. Em regra, é de conta
corrente, o que significa que o sujeito pode ir fazendo levantamentos e pagamentos ao mesmo tempo.
Tem interesse em fazer os pagamentos porque só paga juros pela quantia que vier a utilizar ao contrário
do mútuo, em que tem de pagar sempre pela quantia disponibilizada ab initio. Obriga-se a um
determinado período de tempo a disponibilizar para o sujeito uma determinada garantia que terá de
restituir.

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São celebrados por prazos relativamente reduzidos, mas de renovação automática. A abertura de
crédito pode ser celebrada a prazo (em geral, prazos curtos) com renovação automática ou pode ser
celebrada por tempo indeterminado. Neste caso, está sujeita a denúncia com pré-aviso adequado.

Agora, por força da moratória legal, os bancos não podem fazer cessar os contratos de abertura de
crédito que foi alargada durante um ano.

Quanto aos descobertos permitidos em conta, permite que se utilize mesmo não tendo saldo e a
conta fica a descoberto nesse limite – é uma verdadeira abertura de crédito. O banco vai permitir que
um sujeito particular utilize um saldo que não tem na conta até determinado valor, permite que retire
da conta um saldo que não tem durante determinado período de tempo, é uma modalidade de crédito
ao consumo. No crédito ao consumo, este regime tem regras específicas de proteção do consumidor e
é muito comum.

A forma de utilização da quantia depende do que for acordado pelas partes. A abertura de crédito
pode ser movimentada de forma diferente: pode ser movimentada através de um simples débito em
conta (o cliente exige determinada quantia que é transferida para a sua conta) ou então pode ser
movimentada recorrendo-se para o efeito a um conjunto de diferentes negócios jurídicos, como por
exemplo o desconto (o sujeito pode descontar letras até determinado montante, é uma abertura de
crédito que só pode movimentar através do desconto de letras, se não as tiver não pode movimentar a
abertura de crédito).

Desconto bancário
O contrato de desconto bancário corresponde a um contrato legalmente atípico, embora
socialmente típico, utilizado como forma de financiamento dos comerciantes. Tem sempre por base
um título de crédito, i.e., uma letra de câmbio ou livrança. Através deste contrato, um sujeito, titular
de uma letra ou livrança face a um comerciante, desconta-a ao banco, através do endosso. Deste modo,
o banco passa a ser titular da quantia e adianta-a ao sujeito deduzida de um determinado valor,
responsabilizando-se pela cobrança (opera um desconto inicial, à cabeça, de uma comissão e de juros).
Se o devedor cambiário pagar, o banco fará sua a quantia. Se o devedor cambiário não pagar, o banco
reendossa o título e exige ao sujeito que lhe pague o montante que lhe adiantou. Existe um contrato
base – o contrato de desconto – e uma relação cambiária. Trata-se de um negócio misto, com elementos
de mútuo e de mandato para cobrança.

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O sujeito tomador de uma letra ou o beneficiário de uma livrança, sendo este um crédito a
prazo, o sujeito embolsava a letra ao banco no âmbito de um contrato de desconto. O banco entrega a
quantia inscrita na letra, mas retira à cabeça o valor dos juros mais as comissões. As características
deste contrato são as seguintes: o banco entrega a quantia inscrita (valor nominal) na letra, mas retira
à cabeça o valor dos juros mais as comissões.

Suponhamos o seguinte, a letra tem o valor de 1.000€ pagos a 6 meses, o sujeito celebra o
contrato de desconto com uma taxa de juro de 3%. Vamos supor que essa taxa de juro é de 10€. O
banco entregará ao sujeito 990€. Ao contrário dos outros contratos de crédito que os juros são pagos
no fim ou decorrido determinado período de tempo, aqui a lei permite a dedução de juros à cabeça.
Quem irá cobrar a letra vai ser o banco, passa a ser o seu titular, a letra foi endossada e das duas uma,
ou a letra é paga pelo aceitante e com isso extingue a obrigação ou não é paga e o banco vai reendossar
a letra e vai exigir ao cliente a quem concedeu o crédito que lhe pague os 1.000€. Por isso é que o
desconto é qualificado como um contrato misto de mútuo com dação em função do pagamento. O
endosso da letra será uma dação em função do pagamento. Ele leva a extinção da obrigação se o
devedor pagar. Mas se não pagar a obrigação não se extingue e o cliente do banco terá de restituir a
quantia decorrente do mútuo, capital e juros.

Uma das principais razões pelas quais são usadas letras e livranças é como forma de garantia
de crédito. Há necessidade, por parte do banco, de responsabilizar a sociedade. Caso contrário, não
abre crédito à sociedade, porque não está devidamente tutelado o seu património. As livranças em
branco são muito utilizadas na prática e são utilizadas para os sócios gerentes avalizarem livranças
emitidas na sociedade. Um banco não empresta dinheiro a uma sociedade sem que haja algum tipo de
garantia assumida pelos sócios ou sócios gerentes porque o capital da sociedade é muito reduzido. O
banco tem máquinas, automóveis, computadores, mas disto, o que pertence verdadeiramente à
sociedade? Pode ser leasing, venda com reserva de propriedade ou locação financeira. No caso de
equipamentos isso já pertence, mas as sociedades, em geral, têm um ativo muito reduzido. Assim, um
banco, em última hipótese, indo executar a sociedade, arrisca-se a não ser satisfeito ou só parcialmente,
a garantia n.º 1 a que recorre, quase sempre vai dizer aos sócios gerentes da sociedade que subscreve
uma livrança e vão avalizá-las, eles e os cônjuges. Fica em branco, não há montante, só se sabe o valor
em dívida no fim do contrato. Se a sociedade pagar, ótimo, não se coloca nada na livrança que é
instrumento da garantia. Se não paga, como associado à livrança está um pacto, vai executar todos os
associados. No limite significa que o banco pode, na data devida, demandar o avalista. Pode
responsabilizar os sócios gerentes ou os outros. Esta letra é o que se chama uma letra em branco porque
a quantia em si não consta, será o banco que a tem de preencher. O valor a inserir aí é o valor em dívida

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decorrido o prazo contratual se a sociedade não pagar. Essa garantia é socialmente típica das
sociedades comerciais: é uma livrança em branco com pacto de preenchimento.

A sociedade avaliza uma livrança em branco. E se vende a sua quota? Tudo depende do pacto
de preenchimento- é um caso muito comum e não costuma ficar desvinculado.

Locação financeira
Consiste numa tradução para português da expressão “leasing financeiro” que significar arrendar
(to lease). O legislador português denominou-o de locação financeira. O leasing tem uma importância
enorme em termos nacionais, europeus e mundiais, não só como instrumento de financiamento de
aquisição de bens de equipamento, mas também de bens de consumo.

O diploma que rege a locação financeira é o DL n.º 149/95 de 24 de junho, que foi repetidamente
alterado. A noção de locação financeira vem plasmada no n.º 1: contrato pelo qual “uma das partes se
obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de um coisa, móvel ou imóvel,
adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período
acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios
nele fixado”. Como deveres principais do locador financeiro temos o dever de concluir o contrato de
compra e venda ou de empreitada que tenha por objeto a coisa escolhida pelo locatário financeiro, o
dever de lhe conceder o gozo dessa mesma coisa para os fins a que se destina e de, se este ultimo o
quiser, lha vender, decorrido o prazo contratual (artigo 9º nº 1 DL). O locatário financeiro deverá pagar
as rendas acordadas.

A locação pode ter por objeto coisas móveis, como automóveis ou aviões, bem como coisas
imóveis, chamada a locação financeira imobiliária (nessa medida é uma alternativa ao crédito
hipotecário). O negócio de financiamento pode ser extremamente sólido sempre que o negócio tem
por objeto um bem imóvel. O banco fica numa posição muito mais sólida, fica com o imóvel na sua
esfera e transaciona-o. Os bens móveis têm maior desvalorização.

Na locação financeira visa-se, essencialmente, financiar a aquisição de um determinado bem, bem


esse que é imediatamente entregue ao locatário financeiro. O contrato de leasing é celebrado entre o
locatário financeiro e o locador financeiro. Nos termos deste contrato, o locador financeiro obriga-se
a adquirir um bem escolhido pelo locatário financeiro a um comprador também escolhido por este.
Para esse efeito, é celebrado um contrato de compra e venda com o terceiro, mas também pode ser um
contrato de empreitada, se for para construir um bem. Não há nenhuma relação direta entre o locatário

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financeiro e o terceiro, mas este vai entregar o bem ao primeiro que o passa a utilizar. O locador adquire
um direito de adquirir o bem e o locatário vai ter de pagar as rendas, normalmente mensais. Cada uma
destas rendas comporta dois elementos: amortização do capital e pagamento de juros, é o que se chama
de rendas financeiras, importa não confundir com as rendas da locação para o arrendamento.

A locação financeira não é só um contrato de financiamento, é um contrato de financiamento e


garantia. Ele é um contrato bifronte, tem ambas as vertentes. Não tem capital e o bem é adquirido por
um banco e é-lhe entregue e restitui o capital, o financiamento é um pouco diferente porque é o
financiamento através da aquisição de um bem. Do ponto de vista do banco, é um negócio de garantia
porque se o sujeito não pagar pode exigir a restituição do bem ao banco. Há regimes excecionais nesta
matéria relativamente aos procedimentos cautelares. A razão de ser da locação financeira está aqui.

Inicialmente o valor dos juros é mais elevado e a amortização mais reduzida, mas isso vai-se
alterando ao longo da execução do contrato. Decorrido o prazo contratual, o locatário financeiro tem
o direito de adquirir o bem por um valor pré-fixado chamado valor residual e o locador financeiro está
obrigado a vendê-lo. O direito de adquirir o bem é um direito do locatário financeiro, mas não está
obrigado a exercê-lo, pode fazê-lo ou não. Na essência, o sujeito celebra um contrato de locação
financeira, no âmbito dessa locação financeira, o bem é diretamente entregue ao sujeito que o utiliza
para desenvolver a sua atividade económica e vai pagar ao banco prestações mensais composta em
parte do capital e em parte de juros ele tem o direito de adquirir o bem pelo valor pré-fixado, esse valor
está fixado de modo inferior ao valor venal do bem. Valor venal é o valor expectável decorrido esse
tempo. É um incentivo económico.

Ao banco não interessa ter o móvel ou o imóvel. Ele vai procurar, através de um leilão, ser
ressarcido do valor. No caso de não ser ressarcido, ou aliena o bem (há outro contrato) ou estende o
prazo contratual.

O locador está obrigado a ceder à outra parte o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel,
adquirida ou construída por indicação desta que passa, essencialmente, por lhe entregar o bem.

Há muita confusão nominalista entre locação e locação financeira. Inicialmente havia muita
proximidade entre a locação e a locação financeira, mas agora não acontece.

O bem mantém-se sempre na esfera jurídica (não em termos físicos) do locador financeiro (compra
o bem ou celebra o contrato para mandar construir o bem), o mecanismo de proteção do locador
financeiro é a propriedade do bem. O bem não sai da sua esfera enquanto o locatário não o adquirir.
Se for resolvido este contrato entre locatário e locador financeiro, este fica sempre proprietário do bem

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e recorrerá a ele para reobter o valor do financiamento. Mas em termos funcionais, aquilo que temos é
um financiamento garantido pela titularidade do bem. Uma coisa é o contrato de locação financeira
entre locador e locatário financeiro, outra coisa é a operação económica em si que assenta no contrato
de locação financeira, na execução do qual será celebrado um contrato de compra e venda ou de
empreitada, sendo certo que, decorrido o prazo de locação, poderá ser celebrado um outro contrato de
compra e venda, agora entre locador e locatário. Temos aqui 3 intervenientes, há uma relação trilateral.
Esta figura típica da locação financeira é chamada a locação financeira trilateral. Estão envolvidos aqui
3 intervenientes: locador financeiro, locatário financeiro e o vendedor ou empreiteiro.

Exemplo:

Contrato de locação financeira entre A e B (banco), o banco adquire um determinado bem a um


comprador, o C. Quem tem a relação contratual com o vendedor é o banco, por isso, só ele pode exigir
o cumprimento do contrato. O locatário (A), não tem nenhuma relação contratual com C. Contudo, o
artigo 13.º do DL n.º 149/95 vem-nos dizer que, apesar de A não ter nenhuma relação com C, a lei
permiti-lhe exercer face ao C todos os direitos que o banco poderia exercer face ao mesmo. Assim,
supondo que o automóvel precisa de ser reparado, embora não tenha uma relação contrautal com o
devedor, decorre da lei. por via do art. 13.º, que o A pode exercer todos os direitos que o B tinha face
a C. Há 3 intervenientes: o locatário financeiro pode exercer face ao vendedor/empreiteiro, aquilo que
o banco pode exercer contra ele. O banco pretende ter o bem na esfera dele por questões de garantia.

Em suma, temos uma relação trilateral embora o contrato seja bilateral. A locação financeira é um
contrato bifronte, tem um efeito garantístico e um efeito de financiamento que é feito de modo muito
específico. É um negócio de financiamento em que o bem é adquirido e colocado à disposição da
empresa (locação dirigida a empresas, como destinatários estamos a focar-nos nas empresas) e com o
produto do desenvolvimento da atividade, a empresa obtém os meios necessários para amortizar o
capital.

As partes do contrato da locação financeira:


O locador financeiro: A título profissional (com caráter de habitualidade e, em princípio,
visando o lucro), o locador financeiro tem de ser uma instituição de crédito (um banco), uma Instituição

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Financeira de Crédito (IFIC), ou uma sociedade de locação financeira. Tem de ser um ente integrado
no sistema financeiro porque concede crédito ao público. Profissionalmente só estes entes é que o
podem exercer, a título profissional, com caráter reiterado com vista ao lucro. Uma empresa pode, mas
não é a título profissional. Importa aqui o art. 8.º/2 do REGIC- regime geral das instituições de crédito
e sociedades financeira.

O locatário financeiro: não há propriamente limitações, pode ser uma empresa (por exemplo
a aquisição de uma máquina, de uma carinha, etc), mas pode ser também um profissional liberal (a
aquisição de uma cadeira de dentista em locação financeira) ou então simplesmente um consumidor (a
aquisição de um automóvel em aquisição financeira, ou de um imóvel). O locador precisa de usar o
bem no âmbito da atividade para pagar as rendas da locação financeira. Pode ser uma empresa ou um
particular, há muitos automóveis adquiridos em locação financeira.

Inicialmente, em 1979, quando foi criada a locação financeira, apenas as empresas podiam ser
locatárias financeiras e só relativamente a bens de capital- visava o financiamento empresarial. Em
1995, o regime foi fortemente alterado incluindo-se, aqui, também, no regime da locação financeira,
não só bens de consumo, que passaram a poder ser objeto de locação financeira e foi alargada a
negócios de consumidor. Só podia ter por objeto bens móveis, mas agora também pode ter por objeto
bens imóveis.

As empresas, muitas vezes, não são proprietárias dos bens que as compõem, têm um direito de
disponibilidade e uma dessas fontes é a locação financeira, podem vir a adquiri-las, por isso é que é
uma figura tão relevante. A maioria dos aviões são adquiridos em locação financeira.

Modalidades de locação financeira:

❖ A principal modalidade é a locação financeira que assenta nesta relação trilateral. É a chamada
locação financeira trilateral e foi a que tivemos a observar até agora.
❖ Locação financeira restitutiva/ “sale and lease-back” - O locatário financeiro vende ao
locador financeiro um bem dele e o locador financeiro dá-lhe de imediato o bem em locação
financeira. O vendedor passa a ser locatário financeiro, não há intervenção de um terceiro. Foi

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a modalidade original do leasing. São dois contratos coligados, celebram-se ao mesmo tempo:
o contrato de compra e venda e o contrato de locação financeira.
Nasceu assim nos EUA: Um sujeito tinha uma cadeia de supermercados e precisava de
financiamento, vendeu os edifícios todos dos supermercados a um locador financeiro que lhos
deu imediatamente em locação financeira. O sujeito continuou a usar os edifícios, vai amortizar
o bem por via das vendas, só passou a pagar as rendas e teve o direito a readquirir os bens. A
locação financeira restitutiva é muito importante como forma de financiamento empresarial.
A definição de locação financeira é chamada definição de máximos, que dita a relação trilateral,
mas pode ser simplificada. Aqui há apenas dois sujeitos, mas ainda cabe no âmbito do art. 1.º
do DL. A locação financeira restitutiva está ainda incluída no regime da locação financeira, ou
seja, aquilo que é contemplado no regime da locação financeira é o regime mais complexo em
que há 3 intervenientes. O regime da locação financeira restitutiva é mais simples, na medida
em que não há uma intervenção de terceiro. Neste caso, aplica-se parte do regime,
evidentemente que não se aplica a parte que contempla o terceiro.
Forma de um sujeito utilizar um bem da sua esfera para obter financiamento. Embora do ponto
de vista funcional se aproxime da alienação em garantia, não se confunde com ela. Não é muito
comum esta modalidade de locação financeira de móveis, mas é comum em respeito a imóveis.

Figuras próximas:

❖ Leasing operacional - temos efetivamente uma locação com elementos de prestação de


serviços. Exemplos: Uma empresa precisa de computadores e celebra um contrato de leasing
operacional- a empresa com quem a primeira contratou disponibiliza os computadores e um
conjunto de serviços de manutenção (como instalação de atualizações). Para além de permitir
o gozo dos bens, presta serviços adicionais que são realizados por parte do sujeito que
disponibiliza o bem. Não há possibilidade de adquirir posteriormente os bens. Também
acontece nos casos de aluguer de veículo, em que um sujeito concede o bem durante
determinado período de tempo e obriga-se a prestar um conjunto de serviços associados, por
exemplo, quanto à manutenção do veículo (mudar os travões, o óleo- cabe ao locador), a
realização de upgrades do veículo, que integram na locação elementos da prestação de serviços.
Na verdade, está longe de ser uma locação financeira, não é um leasing, é um contrato misto
de locação com prestação de serviços.
❖ Venda a prestações com reserva de propriedade - Em princípio, é celebrada por
comerciantes, a venda com reserva de propriedade não é feita por uma sociedade financeira,

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por isso é que se diz que a venda com reserva de propriedade é a garantia do comerciante. O
regime também é diferente: na venda com reserva de propriedade, quando se paga a última
prestação, há uma aquisição automática, transmite-se imediatamente a propriedade.
❖ Alienação em garantia: tem muita importância. Um sujeito transmite para outro a propriedade
do bem e é uma transmissão de uma esfera para a outra, que visa garantir um empréstimo. Das
duas uma:
 O sujeito paga o valor em dívida (o empréstimo e os juros) e o banco retransmite a
titularidade do bem.
 Não satisfazer o valor em dívida: o concedente do crédito pode alienar o bem.

Por exemplo: A carece de um financiamento e, para obter um empréstimo, transmite em


garantia ações de que é titular a um banco. Decorrido o prazo de empréstimo, supondo que
são 6 meses, das duas uma: ou paga o empréstimo e os juros e o banco retransmite a
titularidade das ações, ou então não paga e o banco vai vender as ações no mercado e com
o montante obtido vai obter o pagamento por via indireta do capital e dos juros.

É diferente da locação financeira, implica só duas partes, mas é muito próxima da alienação
restitutiva. Mesmo assim, é diferente porque, na restitutiva, há o pagamento das rendas ao
longo do tempo e o direito de aquisição.

❖ ADL (aluguer de longa duração) - contrato atípico, embora comercialmente típico, que está
estruturado como um contrato de locação, embora profundamente alterado, para o aproximar
do contrato de locação financeira. Assim, por exemplo, quanto ao risco, à obrigação de
conceder o gozo, ao carácter das rendas, também elas financeiras. Esse elemento de locação
transformada é articulado com a obrigação, muitas vezes bilateral, da compra e venda do bem
decorrido o prazo da locação. Este contrato surgiu porque inicialmente a locação financeira só
podia abranger bens de equipamento e não bens de consumo. Estes contratos podem hoje ser
considerados como verdadeiros contratos de locação financeira, ou então como contratos muito
próximos de locação financeira, nomeadamente quando houver uma obrigação de venda ou
compra e venda.
A locação financeira pode ter por objeto vários equipamentos pode ter por objeto bens de
consumo, o que significa que têm uma amplitude muito grande.
❖ Locação propriamente dita: eram figuras próximas com o regime de 1979, mas no regime de
1995, deixou de ser.

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A locação é a retribuição que tem como contrapartida a obrigação da parte prestar alguma coisa,
em termos económicos, há uma ligação entre a obrigação de proporcionar o gozo, isto é, de
não impedir que o sujeito goze da coisa, mas tem um conteúdo positivo que tem a ver com a
necessidade de fazer reparações nas coisas, ou pagar as despesas de condomínio, há aqui essa
ligação. Na locação financeira, aquilo que se visa é retribuir determinado capital que se faz de
forma indireta. O legislador na locação financeira, ao legislar, afastou um conjunto de normas
caraterísticas da locação-teve esse cuidado.
Diferem nos seguintes aspetos: Quanto ao risco de perecimento (na locação propriamente dita
corre por conta do locador; na financeira corre por conta do locatário); quanto às despesas de
manutenção e reparação (na locação cabem ao locador, na financeira cabem ao locatário); a
obrigação de pagar o condomínio (na locação corre por conta do locador, na financeira corre
por conta do locatário financeiro). O locatário financeiro é obrigado e vai ter de celebrar um
conjunto de seguros que permitam cobrir o risco do perecimento da coisa e que cubram os
danos provocados pela própria coisa. Por exemplo: cai uma antena de um imóvel e lesa alguém-
a responsabilidade, na locação financeira, é do locatário financeiro que é obrigado a celebrar
um seguro.
Não há, na locação financeira, a intenção de explorar o bem por parte do locador financeiro.
Na locação propriamente dita, no arrendamento, o sujeito adquire o imóvel para retirar um
valor do mesmo, através do arrendamento- explora o bem em si. Mas na financeira não, o
locador não quer explorar economicamente o bem, ele só quer que o bem desempenhe a função
de garantia e o que o locador financeiro faz é afastar a totalidade dos riscos da sua esfera,
fazendo com que eles incidam sobre o locatário, por isso é que se diz, em linguagem económica
(e não jurídica!) que o proprietário económico do bem é o locatário financeiro e que o locador
tem uma propriedade formal.

Quanto ao objeto da locação financeira:

Quanto ao objeto da locação financeira, ele tanto pode incidir sobre bens móveis como sobre
bens imóveis. Neste último caso é a chamada locação financeira imobiliária, que funciona como
alternativa ao crédito hipotecário. Pode incidir sobre bens de consumo ou bens de equipamento, mas
também, pode ter por objeto outro tipo de bens como um estabelecimento comercial.

A questão que se coloca é se bens de propriedade industrial, como marcas e patentes, podem
ser dados em locação financeira. Isto é especialmente relevante nos casos de sale and lease back.

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Supondo que uma empresa tem uma patente de elevado valor, precisa de capital, a questão é
saber se ela pode, para o efeito, recorrer ao sale and lease back. A questão é discutida, mas o professor
Pestana de Vasconcelos entende que pode. Pode ter por objeto bens de propriedade industrial- as
patentes, as marcas. Nos outros países não fazem isso, mas nada obsta a que uma empresa com uma
patente importante vende a patente ao abrigo de uma locação restitutiva. A licença de utilização, quer
de uma patente, quer de uma marca, pode ser qualificada como um contrato de locação, ou pelo menos
como um contrato próximo de locação. Assim sendo, o que teríamos de articular era o regime da
locação financeira com o regime da licença de patente, podendo, dessa forma, a patente ser dada em
locação financeira. Permite que outro sujeito explore a patente.

Posições de cada uma das partes (direitos e deveres decorrentes do contrato):

A relação inicia-se com a fase pré-contratual entre aquele sujeito que pretende o contrato de
locação financeira e o banco.

Pode já ter havido (e em regra há) contactos sociais entre o tal sujeito e o sujeito que irá vender
ou construir o bem-quem escolhe o bem é o locatário financeiro e o banco irá adquiri-las (no caso da
compra e venda). A questão é que qualquer elemento da relação pré-contratual entre o sujeito que
pretende celebrar o contrato da locação financeira e o vendedor ou empreiteiro, não vincula o banco e,
quanto muito, pode levar à responsabilidade pré-contratual mas daquele que se tornou locatário face
ao vendedor ou empreiteiro.

Celebrado o contrato, estão são as posições de cada uma das partes:

Posição jurídica do locador financeiro (art. 9.º do DL 149/95)

Deveres:

a. Adquirir ou mandar construir o bem a locar. Tratando-se de uma locação financeira restitutiva,
tudo é celebrado num único contrato. Por vezes o locador reserva-se o direito de adquirir bens
standard, mais facilmente transacionáveis porque, em caso de incumprimento, o locador
financeiro quer transformar o bem em liquidez imediata, por isso, quanto mais fácil colocar o
bem no mercado, melhor.
b. Está obrigado a conceder o gozo do bem para os fins a que a coisa se destina, que se traduz no
dever de entrega do bem por parte do vendedor ao locatário financeiro (entrega direta). Essa
entrega não é realizada por parte do locador financeiro, o bem é entregue por parte do vendedor

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ao adquirente ou locatário financeiro. Este cumprimento da obrigação do banco, faz-se por via
de terceiro. Ela é realizada pelo próprio vendedor que ao cumprir cumpre uma obrigação sua.
O banco face ao locatário financeiro tem de realizar a entrega do bem.
c. Vender o bem ao locatário, caso este queira, findo o contrato, pelo valor residual definido no
contrato.

A lei remete em termos genéricos do art. 9.º/2 para os direitos e deveres do regime da locação que
não se mostrem incompatíveis com o regime da locação financeira- na prática, resume-se a muito
pouco, é um caráter residual, o que faz é afastar as regras do regime de locação.

Direitos:

a. Defender a integridade do bem, nos termos gerais de direito;


b. Examinar o bem, sem prejuízo da atividade normal do locatário- ele tem direito de examinar o
bem para verificar o estado de conservação do bem;
c. Fazer suas, sem compensações, as peças ou outros elementos acessórios incorporados no bem
pelo locatário. Se o bem objeto do contrato de locação é um carro e o motor gripa, quem
substitui o motor é o locatário financeiro e não o locador.

O locatário tem de realizar um conjunto de seguros a favor do locador financeiro. Se o automóvel


é destruído, tem de haver um seguro celebrado pelo locatário financeiro já que o único modo de
adquirir financiamento é bem. Toda a estrutura da locação assenta no valor económico do bem, se o
bem perde o seu valor, o bem tem de estar tutelado e o locatário fá-lo por via de um contrato de seguro.
Um dos seus deveres é efetuar o seguro do bem locado, contra o risco da sua perda ou deterioração e
dos danos por ela provocados. O bem é um instrumento de garantia, o locador desinteressa-se do bem.

Posição jurídica do locatário financeiro (art. 10.º do DL 149/95):

No n.º 2 há uma norma paralela ao art. 9.º: também remete para o regime da locação não
incompatível com o regime da locação financeira. Grande parte das normas são afastadas por via das
normas especificas da locação financeira. É um regime muito limitado.

Deveres:

a. Pagar as rendas;

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b. Pagar as despesas correntes necessárias à fruição das partes comuns de edifício e aos
serviços de interesse comum;
c. Facultar ao locador o exame do bem locado;
d. Realizar as reparações, urgentes ou necessárias;
e. Efetuar um seguro;
f. Restituir o bem locado caso não o queira adquirir.

Direitos:

a. Usar e fruir o bem locado;


b. Defender a integridade do bem e o seu gozo, nos termos do seu direito, que vai ao ponto de lhe
atribuir ações possessórias, mesmo contra o locador. A posição do locatário financeira está
tutelada em termos do regime geral por ações possessórias. Ele é um possuidor em nome de
outrem, mas há este alargamento.

Vamos centrar-nos num aspeto que tem a ver com a relação entre locatário financeiro e
fornecedor do bem: vamos supor que é um contrato de compra e venda e deixar de lado o contrato
poder ser um contrato de empreitada.

O comprador é o banco e tem um conjunto de direitos face ao vendedor, pode em caso de


incumprimento do contrato, se se verificar um incumprimento definitivo, resolver o contrato. A relação
é só entre eles. Na situação de coisa defeituosa ou da coisa ser vendida onerada (imóvel hipotecado):
há um extenso regime que se aplica às chamadas perturbações do contrato de compra e venda. Não há
qualquer relação entre o locatário financeiro e este sujeito (empreiteiro ou vendedor), embora
efetivamente o bem seja entregue pelo vendedor diretamente ao locatário financeiro que tem de assinar
o chamado auto de receção do bem. A verdade é que, assim sendo, quaisquer meios de defesa
decorrentes deste contrato só podem ser exercidos pelo locador financeiro, embora seja o locatário
financeiro que recebe o bem e o passa a utilizar. Todavia, o artigo 13º do Regime da Locação
Financeira (de ora em diante RLF) atribui ao locatário financeiro o direito de exercer face ao vendedor
ou empreiteiro os direitos decorrentes deste contrato de compra e venda ou empreitada. Importa notar
que não há uma transmissão da posição contratual do locador financeiro para o locatário- não há
qualquer cessão da posição contratual, não há uma transmissão contratual do banco para o locatário
financeiro! A posição contratual mantém-se no locador financeiro, simplesmente aquilo que sucede é

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que a lei atribui legitimidade ao locatário financeiro para ele exercer os direitos inerentes a essa posição
jurídica.

Assim, o locatário financeiro poderá recorrer à interpelação cominatória para colocar o outro
em incumprimento definitivo (por exemplo, se não entregar o bem) e pode, ele próprio resolver o
contrato nos termos do art. 801.º, n.º 2 do CC. Se for entregue com atraso, havendo uma situação de
incumprimento faltoso, de mora e danos decorrentes do atraso, pode exigir uma indemnização. O dano
mede-se pelo prejuízo do locatário financeiro.

Se o bem for onerado ou estamos face a uma coisa defeituosa: a lei permite que, tratando-se de
um bem onerado, que o adquirente possa ou reduzir o preço ou anular o contrato e se a coisa for
defeituosa é ele que tem de comunicar no prazo e pode pedir ou a reparação ou a substituição da coisa.
Estes direitos têm impacto no contrato de locação financeira. Se for anulado- tem um efeito de cascata.
Desde logo, o dever de entrega cessa também. Esses direitos são efetivamente do locador, mas a lei
permite que o locatário os exerça. Um direito que ele não pode exercer que decorre da posição
contratual é o da exceção de não cumprimento do contrato, pois não é ele que realiza a contraprestação,
não é ele que paga o preço, esse direito só pode ser exercido pelo locador, embora o locatário financeiro
tenha de o comunicar.

O que acontece se o locatário financeiro for um consumidor e não uma empresa?

Há um regime tutelar do consumidor na venda de bens de consumo que conferem direitos


diferentes dos que decorrem da compra e venda normal. O locatário financeiro pode valer-se desses
direitos, sendo consumidor?

Sempre que celebrarmos um contrato de compra e venda ou uma pequena empreitada, temos
direito a um conjunto de direitos por sermos consumidores, que são mais extensos do que os do regime
geral. Mas o contrato é celebrado entre uma instituição de crédito e um vendedor que será uma
empresa, assim, ele não poderia recorrer a esse regime mais favorável. Aparentemente o locatário
financeiro ficaria numa pior posição do que aquela que teria se lhe tivessem emprestado o dinheiro e
pudesse comprar o bem, aí poderia fazer-se valer do regime de bens de consumo.

O entendimento do professor é diverso: o regime, o que visa, é permitir a aquisição de uma


forma indireta de um determinado bem financiado pelo banco mantendo-se ele na posição do titular.
Funcionalmente a locação financeira, através de uma estrutura diferente que implica uma relação
trilateral, visa permitir a aquisição do bem- é esta a teleologia do regime. Não foi intenção do legislador

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diminuir a proteção daquele que adquire o bem através da locação financeira relativamente à aquisição
por outro instrumento qualquer de crédito ao consume.

O que se discute é se se aplica o regime da venda de bens do consumo: DL n.º 63/94. Sendo
essa a teologia da lei, deve ser interpretado o art. 13.º do RLF no sentido de que sempre que o locatário
financeiro for um consumidor, o seu estatuto não pode ser desconsiderado para esse fim, ele também
terá o conjunto de direitos do contrato de compra e venda que tomem em conta a sua posição de
consumidor.

O locatário financeiro, decorrido o prazo contratual tem, em regra, uma tripla escolha: (i) ele
pode exercer o seu direito de compra do bem, (ii) ele pode não exercer o direito de compra do bem, ou
(iii) ele pode procurar, mas aí depende do locador, estender o prazo contratual, isto é, prorrogar o prazo
contratual. Por sua vez, o locador financeiro, caso a outra parte não queira comprar o bem, pode colocá-
lo no mercado de venda, pode dá-lo outra vez em locação financeira a outro sujeito, ou pode também
renegociar e estender o prazo da locação financeira.

Resolução do contrato - art. 17.º e art. 18.º do RLF

Pode ser resolvido, nos termos gerais da resolução do contrato, por qualquer uma das partes,
mas há dois fundamentos específicos previstos no art. 18.º de resolução por parte do locador:

▪ Dissolução ou liquidação da sociedade locatária;


▪ Verificação de qualquer dos fundamentos de declaração de falência do locatário - no caso de
falência da sociedade locatária.

Temos aqui um direito por parte do locador financeiro a, se o outro sujeito estiver no regime da
insolvência, resolver o contrato. É preciso fazer uma interpretação atualista, porque o regime inicial
da locação financeira é de 1979 e ainda consagra a distinção entre falência e insolvência, o que sucedia
ao abrigo do CPEREF e só veio ser alterado com o regime do Código da Insolvência mais tarde em
2005. Falência, em rigor, hoje significa insolvência, o conceito materialmente é o mesmo.

A questão que se coloca é: este direito existe somente quando estejamos perante uma insolvência
de facto, não judicialmente declarada, ou ele estende-se mesmo àqueles casos em que a insolvência
tenha sido judicialmente declarada?

A partir do momento em que é declarada a insolvência, o destino dos contratos em curso fica nas
mãos do administrador da insolvência (art. 104.º do CIRE). Não é possível que a contraparte do

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insolvente resolva um contrato porque cabe ao administrador fazer a cessação, já que é ele que garante
a maximização para o interesse dos credores. Portanto aquilo que a lei quis foi, declarada a insolvência,
colocar o destino do contrato de locação financeira unicamente nas mãos do administrador e não já do
locador financeiro.

O que parece que resulta da norma é que o locador financeiro podia resolver o contrato após ter
sido declarada a insolvência. O professor faz uma interpretação restritiva da norma: enquanto não tiver
sido declarada a insolvência, se o locatário financeiro já estiver numa situação de insolvência de facto,
nesse caso, antes de ser declarada a insolvência aplica-se esta norma e ele pode resolver o contrato de
acordo com o que aqui vem plasmado. Depois já não pode: nos termos do art. 104.º do CIRE é o
administrador da insolvência que pode escolher dissolver o contrato ou continuar e que o vai dissolver
em benefício da massa insolvente. A locação financeira, às vezes, é importante para recuperar a
empresa e esse juízo cabe ao insolvente. O locador podia inviabilizar, depois de declarada a
insolvência, que ela fosse transmitida como toda e isso fazia com que se desvalorizassem os bens.

Limita a posição do locador financeiro? Não porque a posição do locador financeiro é extramente
forte, não há razão para aumentar ou incrementar a posição do locador financeiro que, em todo o caso,
não podia ser aceite quer relativo aos regimes que enformam a insolvência quer ao regime da locação
financeira.

Qual é o regime específico que se aplica à resolução do contrato?

Temos a aplicação do regime geral do incumprimento dos contratos que se aplica à locação
financeira. O dever principal que o locatário financeiro pode incumprir é não pagar a renda.

Se ele não pagar uma renda, a contraparte não adquire imediatamente o direito de resolver o
contrato- o locador financeiro tem de transformar a mora em incumprimento definitivo através da
interpelação admonitória, só depois é que pode resolver o contrato. Tem direito a juros de mora
bancários (3 pontos percentuais à taxa de juro da locação). Será que pode, atendendo ao art. 780.º do
CC, provocar a perda de benefício do prazo?

As rendas são: em parte, prestações fracionadas, relativamente à restituição do capital e, em


parte, duradouras, quanto aos juros. Quanto ao capital, nessa parte, pode provocar o vencimento
antecipado. Relativamente aos juros, não, porque os juros ainda não se constituíram. É possível
provocar o vencimento antecipado das obrigações de restituir o capital, mas não das obrigações de
juros.

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Mas basta o incumprimento de uma única prestação para se transformar a mora em


incumprimento definitivo? Antes de 2001, havia uma norma que estabelecia uma limitação- exigia o
incumprimento de mais do que 1 renda para depois poder converter a mora em incumprimento
definitivo e eventualmente resolver o contrato. Só que essa norma foi revogada. Aparentemente, o
significado dessa revogação seria permitir a revogação com apenas o incumprimento de uma prestação.

Só que o professor não concorda: De acordo com o artigo 802.º, n.º2, sendo o incumprimento
parcial, o credor não pode resolver o contrato se esse incumprimento corresponder a um valor
manifestamente diminuto, isto é, se aquela renda tiver um valor manifestamente diminuto.

Na compra e venda a prestações com reserva de propriedade, o artigo 934.º do CC estabelece


limites: não basta o incumprimento de 1 prestação, é preciso pelo menos 2 prestações ou 1 que fosse
superior a 1/8 do preço para depois se poder resolver o contrato.

Este é um regime especial por ter uma força expansiva como o da compra e venda ou do
mandato, por força do artigo 936.º do CC. Aplica-se a todos os contratos pelos quais se pretenda obter
resultado equivalente ao da venda a prestações. Ele aplica-se por força da lei a um conjunto de
situações diferentes. Os artigos 934.º e 935.º aplicam-se a todos os contratos em que se queira obter
um resultado económico equivalente. A locação financeira tem em vista permitir a aquisição do bem
recorrendo a uma estrutura jurídica semelhante à da venda a prestações com reserva da propriedade.
Têm finalidades muito semelhante: sempre que se pode afirmar que visa permitir a aquisição do bem.
Por causa do art. 936.º, n.º 1, vamos aplicar o art. 934.º, ambos do CC. E o mesmo sucede relativamente
à perda do benefício do prazo. Para provocar a perda do benefício do prazo não basta o incumprimento
de uma única prestação.

Provocando-se a perda do benefício do prazo, ou aquelas prestações são pagas imediatamente


e há indemnização pelos juros que não se obtiveram, ou então recorre-se à interpelação admonitória e
resolve-se o contrato. Resolvido o contrato, há direito a indemnização pelo interesse contratual
positivo.

Quanto aos efeitos da resolução do contrato:

Têm um regime que decorre da própria tipicidade do contrato. Independentemente da existência


de cláusulas penais, é importante perceber os efeitos nas rendas prestadas da locação financeira.

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A resolução do contrato tem, em princípio, efeitos retroativos, salvo no que diz respeito aos
contratos duradouros, isto é, aqueles que têm por objeto obrigações duradouras. A questão aqui é a
seguinte: cada uma das rendas é composta por dois elementos – um que tem por objeto uma prestação
fracionada e uma duradoura. Os efeitos da resolução têm de atingir necessariamente a parte da
amortização paga, mas não relativamente aos juros, quanto a estes não há obrigação de restituição
porque são obrigações duradouras, isto por força do artigo 434º nº 2 CC.

São prestações compósitas: contratos mistos, mas limitados às prestações, cada uma delas tem
um regime diferente, a uma parte aplica-se o regime das prestações duradouras e à outra parte o regime
das prestações fracionadas. Este é um caso de uma prestação compósita em que não há absorção de
um regime de uma das prestações pela outra prestação, mas aplica-se a cada um deles o seu regime
específico. Na parte relativa à amortização de capital podemos aplicar o regime das prestações
fracionadas e quanto ao pagamento de juros, aplicamos o regime das prestações duradouras.

Resolvido o contrato, haverá direito a indemnização calculada pelo interesse contratual


positivo, isto é, aquilo que o locador teria obtido se o contrato tivesse sido integralmente cumprido.
Neste cálculo, haverá que abater o valor de mercado do bem aquando do momento da resolução de
contrato. Isto porque o locatário terá de restituir o bem, que pertence ao locador financeiro, o qual será
novamente colocado no mercado. Se o locador teria ganho 100 com o cumprimento do contrato, mas
o valor de mercado à data do bem for de 60, esses 60 têm de se abater ao valor da indemnização, que
será só de 40. Logo, quanto menor o valor da perda de valor do bem, maior será a proteção do locador
financeiro. Isto é especialmente relevante se se tratar de imóveis, porque a desvalorização do imóvel,
quando haja, é muito mais reduzida do que se tratar de um móvel. Em certos casos, pode mesmo gerar-
se um enriquecimento sem causa do locador financeiro à custa do locatário financeiro com a resolução
do contrato, porque fica numa melhor posição se o bem tiver valorizado. O professor entende que ele
tem de devolver o valor.

Não se coloca o problema do 801.º/2 que é das prestações instantâneas, este é um contrato
duradouro!

A questão das cláusulas penais:

Não estão previstas no regime específico, mas as partes incluem nos tipos contratuais, nas
cláusulas contratuais gerais (o que gera, associada a tipicidade legal, a tipicidade social), cláusulas

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penais muito pesadas para o caso de o locatário financeiro não cumprir e a outra parte resolver o
contrato.

A jurisprudência tem vindo, ao longo do tempo, a limitar esse valor das cláusulas penais que
eram manifestamente abusivas: o locador obtia a restituição dos bens e os pagamentos das rendas até
ao fim do contrato. Os tribunais não aceitaram isto porque, no fundo, era resolver o contrato e exigir o
bem e o cumprimento, pela outra parte, do contrato. Depois, exigiam as rendas e 50% das rendas a
dever e mais uma vez os tribunais puseram cobro. A jurisprudência aceita as cláusulas penais
correspondentes a 20% do valor das rendas vincendas, se o locador ficar com o bem locado. Em
princípio, se o locador fica em definitivo com o locado, não seria possível exigir o pagamento das
rendas vincendas, mas é admissível a fixação dessa cláusula penal.

O professor tem uma posição diferente. Sendo cláusulas contratuais gerais, tem de se aplicar o
regime das cláusulas contratuais gerais. Face aquele bem e àquele período tem de se avaliar se é uma
cláusula desproporcionada dentro deste regime.

Para além disso, temos de determinar se este valor se adequa ou não ao valor da cláusula penal
com reserva da propriedade. O art. 935.º do CC contém uma norma de proteção do adquirente face a
cláusulas penais excessivas pelo não cumprimento do comprador. Esta norma aplica-se à locação
financeira por via do art. 936.º/1. Estes limites têm de atender ao bem; ao valor do bem; as rendas já
pagas aquando da cessação do bem. São estes os dois regimes essenciais: o do art. 935.º que se aplica
por força do art. 936.º, n.º 2, ambos do CC e o Regime das cláusulas contratuais gerais.

Se a cláusula for desproporcional, é reduzida ou é considerada nula.

Regime da insolvência na locação financeira

O contrato de locação financeira tem um regime específico previsto na Lei da insolvência. A


lei distingue a situação de insolvência do locador financeiro (que será menos comum, mas pode
ocorrer) da situação de insolvência do locatário financeiro (muito mais comum).

Se o locatário financeiro for declarado insolvente, o que acontece ao contrato de locação


financeira? A lei determina um regime que protege fortemente o locador financeiro, no art. 104.º do
CIRE. No caso de insolvência do locatário financeiro, o administrador pode escolher entre a
manutenção do contrato e a cessação do contrato. Se optar pela sua manutenção, transforma as

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obrigações de pagamento das rendas em dívidas da massa, o que significa que elas devem ser pagas
em primeiro lugar. Isto garante que o locador financeiro será pago integralmente.

Pode optar também pela recusa do cumprimento do contrato, para não integrarem a massa e
esta recusa leva à cessação ex nunc e não ex tunc, sem efeitos retroativos. Assim, o locador financeiro
pode manter o bem sem ter de integrar a massa insolvente e vender o bem e tem, ainda, direito ao que
já foi pago e a uma indemnização calculada nos termos do art. 104.º, n.º 3 CIRE. Se o bem sofrer uma
desvalorização muito forte e as rendas pagas são num valor pequeno- só aí não é ressarcido, mas isso
não é o normal, nomeadamente tendo a locação por objeto um imóvel.

Aquilo que a lei fez foi criar um regime especialmente robusto no que diz respeito à posição de
locatário financeiro. Estas figuras constituem uma garantia atípica particularmente relevante na
insolvência. A posição do locador financeiro é muito forte.

Se o locador financeiro é um banco, tem de ser declarado insolvente. Neste caso, o


administrador de insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato se o locatário financeiro
exigir a sua manutenção para adquirir o bem e para não ficar privado dele.

Um sujeito estará em insolvência quando se encontra impossibilitado de cumprir as suas


obrigações vencidas e vincendas. Através do processo de insolvência, o sujeito perde a disposição
sobre os seus bens, através do ato de penhora, que procura satisfazer todos os seus credores. Sempre
que o devedor insolvente for titular de uma empresa comercial, na massa de bens incluir-se-á a própria
empresa. O processo insolvencial pode ter finalidade liquidativa (objetivo de liquidar os bens do
devedor para satisfazer os credores) ou desempenhar uma finalidade de recuperação do insolvente ou
da própria empresa. Mesmo nos casos em que se vise apenas a liquidação dos bens do insolvente para
satisfazer os seus credores, sempre que esteja incluída na massa de bens uma empresa, o administrador
de insolvência deve procurar alienar a empresa como um bem dotado de valor próprio; caso contrário,
deve alienar os bens que integram a empresa à peça. Para tal, o administrador de insolvência deve
manter a empresa em funcionamento, de forma a que esta conserve o seu valor.

Muitos dos bens que integram o ativo das empresas, i.e. que estão na disponibilidade das
empresas enquanto fatores produtivos, são detidos em locação financeira. No caso da insolvência do
locatário financeiro, o bem locado não fará parte da massa insolvente, pelo que o administrador de
insolvência poderá optar:

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a. Pelo cumprimento do contrato de locação (o bem continua a ser usado pela empresa,
devendo esta cumprir as rendas futuras); ou
b. Por fazer cessar o contrato (quando a massa não tenha bens suficientes para cumprir as
obrigações). O administrador de insolvência deverá, portanto, verificar se a empresa tem
viabilidade para ser transmitida como um todo, bem como se a massa tem bens que lhe
permitam a satisfação das obrigações decorrentes do contrato de locação financeira como
obrigações da massa (neste ponto, o administrador de insolvência não pode contrair dívidas
da massa se esta não estiver em condições de o fazer, sob pena de ele próprio se tonar
responsável). A possibilidade ou não de se manterem os contratos de locação financeira
terá efeito decisivo na possibilidade de se recuperar a empresa. A posição do locador está
protegida na insolvência, pois o seu bem não faz parte da massa. Como tal, se o
administrador optar por fazer cessar os contratos, o locador continua a ter direito ao seu
bem, por ser sua propriedade. Se, por outro lado, o administrador optar pelo cumprimento,
o locador terá direito a receber prestações numa posição privilegiada em relação aos
restantes credores (a menos que o bem tenha sofrido uma forte desvalorização).

Contrato de Cessão Financeira


Na compra e venda ou na prestação de serviços, é concedido ao devedor um prazo para pagar,
i.e., um crédito comercial (o vendedor ou prestador de serviços, ao não exigir pagamento imediato,
está a conceder crédito à contraparte). Como o vendedor ou prestador de serviços realiza as suas
obrigações e ao devedor é concedido um crédito comercial, é necessário que a empresa disponha de
tesouraria, i.e., de bens líquidos para ir cumprindo as suas obrigações enquanto não lhe é
disponibilizado o pagamento pelo devedor. A diferença entre a prestação e data de pagamento do preço
gera tensão na tesouraria (falta de liquidez neste período de tempo). O contrato de factoring surge para
conceder às empresas um financiamento de curto prazo (designadamente, de 190 dias). O factoring
consiste num contrato pelo qual um sujeito (o facturizado ou cedente) transmite a outro (o factor ou
cessionário) um conjunto de créditos comerciais de curto prazo, através da cessão de créditos, para que
este os cobre e/ou lhe conceda um adiantamento sobre o valor nominal dos direitos e/ou garanta o
cumprimento por parte do devedor cedido.

Na sua acessão mais comum, o contrato de factoring desempenha uma função financeira ou
creditícia – uma empresa (o facturizado) cede um crédito pecuniário a prazo a uma instituição de
factoring (ao factor) e esta, por sua vez, procede a uma antecipação de uma percentagem do valor

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nominal do crédito cedido. Através da cessão, o factor torna-se titular do crédito e irá cobrá-lo ao
devedor. O factoring pode, ainda, desempenhar quatro tipos de funções em termos económicos, que
podem ser realizadas isoladamente ou de forma articulada:

• Função de cobrança de créditos – no núcleo existe sempre uma transmissão do crédito ao


factor, que se transforma num verdadeiro titular do crédito, ao abrigo do regime dos arts.
577.º e ss., CC.
• Função de concessão de crédito de curto prazo – através do factoring, o factor concede ao
facturizado um adiantamento sobre o valor nominal do crédito cedido, recebendo, como
contrapartida, juros pela concessão de crédito.
• Função de garantia de créditos – o factor vai, a pedido do facturizado, garantir o pagamento.
Na eventualidade de o devedor não cumprir as suas obrigações ou se tornar insolvente, o
factor irá entregar o valor nominal do crédito cedido ao facturizado, deduzindo uma
comissão de garantia desse crédito.
• Função de consultadoria comercial – é possível a uma empresa recorrer a um factor para
obter uma análise quanto a um potencial devedor. Os entes que integram o sistema
financeiro, habilitados a celebrar contratos de factoring, devem deter um conhecimento
detalhado

Características: corresponde a um contrato atípico, embora socialmente típico, verificando-se


uma certa uniformidade dos contratos que vão sendo celebrados. Existem limites mínimos aos quais
um contrato, para ser qualificado como contrato de factoring, tem de obedecer, previstos no DL n.º
171/95, de 18/07. Para que haja um contrato de factoring, o contrato deve ter por objeto a aquisição de
créditos de curto prazo decorrentes da venda ou da prestação de serviços no mercado interno ou
externo. Deve sempre haver uma transmissão de créditos (art. 2.º), esses créditos devem ser sempre
créditos de curto prazo e devem decorrer da venda ou da prestação de serviços. Quanto aos aspetos
gerais, seguirá o regime da cessão de créditos previsto no CC. Quanto à forma, deve ser celebrado por
escrito. Quanto às partes, na medida em que corresponde a um negócio financeiro, apenas pode ser
celebrado por entes pertencentes ao sistema financeiro (instituições de crédito, bancos ou instituições
financeiras de crédito) ou por sociedades de cessão financeira.

O contrato de factoring assenta sempre num contrato celebrado entre o factor e um facturizado,
tendo por objeto a transmissão de créditos de curto prazo sobre determinados devedores do facturizado,
com vista à obtenção de crédito comercial ou de garantia do crédito. Como contrapartidas, o factor
receberá juros pela concessão de crédito, uma comissão pelo serviço de cobrança e uma comissão de

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garantia pelas garantias, todas acordadas pelas partes. Do ponto de vista jurídico, pode obedecer a duas
estruturas – nada obsta à adoção de um ou de outro modelo

• Estrutura dual – as partes celebram um contrato-quadro inicial, que regula as suas relações futuras,
as suas condições gerais de contratação, deste contrato decorrendo obrigações para ambas. É no
contrato-quadro que se estabelecem quais os devedores sobre quais os créditos serão cedidos, bem
como o valor até ao qual o factor se dispõe ou se obriga a conceder como crédito à contraparte.
Neste contrato, definem-se, também, quais as funções desempenhadas pelo factoring em causa,
seja de cobrança, de concessão de crédito e/ou de garantia. À celebração deste contrato-quadro
segue-se a celebração sucessiva de negócios de segundo grau, que operam a transmissão de créditos
de forma sucessiva. Nesta estrutura, o facturizado, assim que constituir um crédito com um dos
devedores cedidos, deverá transmiti-lo ao factor, de forma a que a cessão opere. Do contrato-
quadro, nasce uma obrigação futura de transmissão de créditos. Parte do seu conteúdo está definido
pelo regime do CC, enquanto a outra parte depende dos contratos que as partes venham a celebrar.
• Estrutura unitária – as partes celebram um negócio único de transmissão de créditos presentes ou
futuros. Assim, sempre que o facturizado celebrar um contrato com um devedor previsto no
contrato, esse crédito transmite-se imediatamente ao factor, sem necessidade de um negócio
subsequente de transmissão de créditos. O legislador não se opõe à transmissão de créditos futuros;
contudo, o requisito do art. 380.º, CC, de determinabilidade do objeto, deve ser observado.
No núcleo do contrato de factoring existe sempre uma cessão de créditos, através da qual um
sujeito, o cedente, transmite um crédito a outro, o cessionário, que adquire esse direito, não sendo
necessário o consentimento do devedor cedido. Por vezes, os contratos preveem cláusulas de
incessibilidade do crédito; porém, estas cláusulas de incessibilidade não serão oponíveis ao
cessionário, salvo se este as conhecesse. Estas apenas podem ser opostas ao cessionário se se
demonstrar que este tinha conhecimento delas; caso contrário, demonstrando-se que o cessionário não
tinha conhecimento das cláusulas de incessibilidade, o crédito transmitir-se-á automaticamente,
podendo, contudo, surgir pretensões indemnizatórias do devedor cedido face ao cedente nos casos de
incumprimento contratual pelo segundo. Com a cessão, não se tramite um crédito isoladamente
considerado. Os créditos, muitas vezes, estão tutelados por garantias – transmitindo-se o crédito,
transitem-se automaticamente as garantias do crédito, sem necessidade de um qualquer ato posterior
(o mesmo sucede com a transmissão do crédito ao capital e do direito aos juros – art. 581.º, CC).

Um elemento fundamental da cessão de créditos é a notificação do devedor cedido. O devedor


cedido, se não for notificado, poderá cumprir face ao devedor originário. Para que a cessão lhe seja
oponível, o devedor deve ser notificado da mesma. Tal não significa que a cessão não seja eficaz – a

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transmissão opera por mero efeito do contrato, apenas vigora uma A transmissão do crédito deve ser
notificada ao devedor cedido, uma vez que só o pagamento ao factor será liberatório. Não se
procedendo à notificação, a cessão não produzirá efeitos face ao devedor cedido – neste caso, este
poderá cumprir relativamente ao cedente ou praticar com ele um negócio jurídico relativo ao crédito e
esse extinguirá o crédito, deixando o cessionário de ser o seu titular. O devedor cedido pode opor ao
cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que podia invocar contra o cedente,
exceto aqueles que se constituam depois do conhecimento da cessão, que, em regra, coincide com a
notificação (art. 585.º, CC). Vigora um princípio do não prejuízo do devedor cedido (apesar da cessão,
o devedor não pode ficar numa posição mais desvantajosa do que a que tinha face ao cedente). Na
eventualidade de o crédito ser cedido uma segunda vez, apesar de o titular ser já o primeiro cessionário,
opera-se uma transmissão do crédito a non domino, prevalecendo a segunda cessão sobre a cessão
anterior (art. 584.º, CC).

Uma cessão de créditos insere-se sempre no âmbito de um contrato (seja de compra-venda, de


mútuo, de prestação de serviços), sendo necessário distinguir a posição contratual em si, que não se
transmite, do núcleo, correspondente ao crédito, que será transmitido. Os direitos decorrentes da
posição contratual de credor não podem ser transmitidos (i.e., não podem ser exercidos pelo
cessionário, mas apenas pela cedente). Isso significa que, perante uma situação de incumprimento
contratual, quem deve transformar a mora em incumprimento definitivo no intuito de resolver o
contrato será o cessionário, uma vez que esse é um direito decorrente do crédito; porém, apenas ao
cedente é reconhecido o direito de resolver o contrato, uma vez que esse integra a própria posição
contratual. Aquando da transmissão do crédito, o cedente deve prestar determinadas garantias ao
cessionário nos termos do negócio-base pelo qual a transmissão é operada, nomeadamente uma
garantia legal da existência do crédito (art. 587.º, CC). O cedente não garante, face ao cessionário, que
o devedor cedido irá cumprir ou que seja solvente, salvo se algo tiver sido expressamente acordado no
contrato.

É possível distinguir diferentes modalidades de cessão de crédito de acordo com as funções


desempenhadas pelo contrato de factoring:

• Cessão do crédito com recurso e com adiantamento (factoring financeiro): nesta modalidade, o
factor não presta serviço de garantia, mas presta adiantamento do valor nominal do crédito cedido.
Assim, o cedente terá de pagar uma comissão pelo serviço de cobrança e juros relativos ao tempo
de antecipação do crédito. Na eventualidade de o factor não conseguir cobrar o crédito ao devedor,
haverá uma retrocessão do crédito, podendo exigir a restituição do adiantamento prestado, o

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pagamento de juros e a comissão de cobrança. Tem na base um contrato de misto de mútuo com
mandato fiduciário para cobrança (o factor concede crédito e passa a atuar com mandato fiduciário
face ao devedor cedido).
• Cessão de créditos com recurso e sem adiantamento: o crédito é transmitido sem que o factor
preste serviços de garantia, e sem adiantamento do valor nominal do crédito. Nesta modalidade, o
factor limita-se a cobrar o crédito em nome do cedente. Corresponde a uma espécie de mandato
fiduciário – o cessionário passa a ser titular do crédito, devendo o cedente pagar uma comissão
pela cobrança. Na eventualidade de o devedor cedido não pagar, o factor retransmitirá o crédito ao
facturizado.
• Cessão sem recurso e com adiantamento (full factoring): nesta modalidade, efetivam-se as três
principais funções do factoring – o factor garante o cumprimento pelo devedor cedido, presta
adiantamento do valor nominal do crédito e responsabiliza-se pela cobrança desse crédito.
Corresponde a um contrato misto que integra elementos de mútuo, mandato fiduciário e de
prestação de garantia sob a forma de fiança. O factor garante o cumprimento (atua como fiador do
devedor cedido – se este não cumprir, o factor cumprirá). Se o devedor cumprir, o factor abate as
suas prestações e entrega o montante ao cedente. Prestando serviços de garantia, o factor não
poderá transmitir o crédito – deve entregar o valor nominal do crédito abatido da comissão de
garantia, de cobrança e dos juros.
• Cessão sem recurso e sem adiantamento: nesta modalidade, só é prestada a função de garantia
do crédito e de administração dos créditos. Na impossibilidade de cobrar o crédito devidamente
confirmado pelo devedor, o factor não o poderá exigir ao facturizado. O factor obriga-se, quer o
devedor cumpra ou não num determinado período de mora após o vencimento do crédito, a entregar
ao facturizado um montante pecuniário correspondente ao valor nominal desse direito. O
facturizado está vinculado a pagar comissões de cobrança e de garantia.

III. Insolvência e Recuperação de Empresas


O nosso regime da insolvência decorre do CIRE.

Evolução histórica do Direito da insolvência


Inicialmente, antes de 1992, tínhamos um distinção central entre a insolvência que se destinava aos
não comerciantes (e aí bastava a superioridade do passivo em relação ao ativo) e a falência que é um
instituto muito antigo e significava a impossibilidade por parte de um comerciante de cumprir
pontualmente as suas obrigações.

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A noção de insolvência, no Código de 1992, o CPEREF (Código de Processos Especiais de


Recuperação de Empresas e de Falência), acabou por ser substituída por uma noção mais abrangente
que incorporou aquela noção de falência.

O CPEREF foi revogado em 2005 quando foi aprovado o CIRE que é completamente diferente do
anterior e de toda aquela que tinha sido a legislação anterior ou mesmo a tradição do Direito português
no que diz respeito à insolvência e à falência. Inspirou-se fortemente no Direito alemão, havendo
normas e regimes praticamente iguais daí que haja dificuldade em interpretar normas deste Código já
que elas não se compreendem se não compreendermos o regime e as figuras do Direito alemão.

Considerações gerais
Vamos começar por ver que o CIRE, em rigor, é um código da insolvência que tem um carácter
liquidativo dos bens do devedor (o devedor pode ou não ser uma empresa) e que visa a distribuição
dessa liquidez pelos credores do mesmo.

Nos termos do artigo 1º do CIRE, diz-se que o Código visa primordialmente a recuperação ou do
titular da empresa, ou da empresa ela própria incluída na massa e só quando não se mostre viável se
poderá recorrer à via liquidativa. A verdade, no entanto, é que esta escolha está na mão dos credores:
são os credores que, em assembleia, aprovam a manutenção da empresa, ou a liquidação. Isto é, são os
credores que decidem pela recuperação da empresa ou pela liquidação. Na maioria dos casos os
credores não decidem recorrem a uma via de recuperação da empresa, mas mais da sua liquidação. Por
este processo quase nunca ser utilizado para este efeito, em 2012 houve necessidade de consagrar um
regime específico.

O CIRE pode permitir uma simples liquidação dos bens da empresa, ou então uma recuperação do
devedor, que tem de ser feita através da aprovação de plano, chamado plano de insolvência que,
sempre que visar a recuperação do devedor, chama-se plano de recuperação, o qual tem depois de ser
aprovado pela assembleia de credores.

Em termos muito genéricos, o que é a insolvência (como instrumento que permite liquidar os bens
do património do devedor, que passam a integrar a massa, e depois levam à satisfação das diferentes
classes de credores previstas no CIRE)?

Na essência, a insolvência tem como aspeto central ser um processo de carácter executivo em
termos universais, porque abrange todos os bens integrados na massa, exceto os empenhoráveis. É um

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processo complexo porque este processo, apesar de ter essencialmente uma natureza executiva, tem
diferentes excertos declarativos, desde logo quanto à declaração de insolvência (se o devedor se opuser
tem de haver uma sentença que declare a insolvência) e depois também no que diz respeito à
verificação e graduação dos créditos (tem de haver sempre, no âmbito do processo, uma sentença do
tribunal que aceite esses créditos no âmbito do processo e que depois faça a graduação dos mesmos,
sendo este um excerto processual de carácter declarativo).

Pontos específicos do regime da insolvência


Quem pode ser declarado insolvente? quem são os sujeitos passivos desta declaração de
insolvência?
Temos de atender ao art. 2.º do CIRE. Hoje em dia, há uma abrangência muito grande:

▪ As pessoas singulares, sejam ou não comerciantes e sejam ou não titulares de uma empresa.
A insolvência dos consumidores faz-se através da aplicação do regime do CIRE e são muito
comuns.
▪ As pessoas coletivas: associações, fundações, sociedades comerciais, sociedades civis de tipo
comercial, sociedades civis simples personalizadas, cooperativas, agrupamentos
complementares de empresas (ACE), agrupamentos de interesse económico (AEIE).
▪ Entidades ou sujeitos de natureza coletiva, mas não personalizados, por exemplo,
associações sem personalidade jurídica e comissões especiais (art. 2.º/1/c)), as sociedades civis
(simples)- art. 2.º/1/d), sociedades comerciais e sociedades civis de tipo comercial antes do
registo definitivo do ato pelo qual são constituídas (art. 2.º/1/e)), cooperativas antes do registo
da constituição (art. 2.º/1/f)). Fica claro que também sujeitos sem personalidade jurídica podem
ser declarados judicialmente insolventes.
▪ A herança jacente (art. 2.º/1/b)) do CIRE, o estabelecimento individual de responsabilidade
limitada (al. g)) e quaisquer outros patrimónios autónomos (al. h)).

Como se retira deste artigo 2.º, os sujeitos passivos da declaração de insolvência não têm de ser
comerciantes. Mantém-se o corte com o longo passado em que a falência era instituto privativo dos
comerciantes.

Quem está excluído da insolvência?


Nos termos do artigo 2º, nº2, alínea a), estão excluídas da qualidade de sujeitos passivos apenas as
pessoas coletivas públicas e as entidades públicas empresariais, as EPEs. Estas instituições não podem
ser declaradas insolventes. Há uma exclusão total do regime de insolvência.

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Mas se o Estado recorrer a sociedades de capitais públicos, que são essencialmente sociedades
comerciais, elas não estão excluídas da declaração de insolvência, mas para o efeito é necessário que
sejam EPE´s.

Por fim, estão afastadas também do CIRE no que diz respeito ao regime e declaração da
insolvência: as seguradoras, as sociedades/instituições de crédito e as sociedades financeiras. Contudo,
esta é uma exclusão parcial porque lhes pode ser aplicado o regime do CIRE, desde que ele não seja
incompatível com os regimes próprios que a lei cria para estes entes. Há um regime próprio para a
insolvência das instituições de crédito e sociedades financeiras e depois há regimes muito detalhados
para a recuperação das sociedades financeiras e das instituições de crédito, que passam, em regra, pela
aplicação de uma medida de resolução. Há um regime específico de 2006 para iniciação de processo
de liquidação de instituições de crédito que consiste numa revogação de licença e tem efeitos idênticos
aos da declaração de insolvência. Por exemplo: foi o que aconteceu no caso do BES – foi aplicada uma
medida de resolução que levou à criação de uma sociedade, o NOVO Banco, para a qual foi transferida
parte da atividade do BES que, passado dois anos, veio a ser declarado insolvente ao abrigo de um
regime próprio de 2016 relativo à insolvência destes entes. Um credor não pode vir pedir a declaração
de insolvência ao Tribunal do Comércio, por exemplo, de uma instituição de crédito. Só o banco de
Portugal é que pode retirar a autorização da instituição de crédito. Se o Banco de Portugal retirar a
autorização à instituição de crédito, e só nesse caso, é que ela fica sujeita ao regime da insolvência, e
aplica-se depois, com as necessárias adaptações, o regime do CIRE, sendo que o regime destes entes
é ainda mais complexo. Daí termos aqui uma exceção parcial.

Ao analisarmos quem pode ser um sujeito passivo do processo de insolvência conseguimos


rapidamente perceber o enorme relevo prático deste regime. Não são só pessoas coletivas, sociedades
comerciais ou comerciantes em nome individual que podem ser sujeitos passivos do processo de
insolvência. Podem também ser simples consumidores. Por exemplo: um sujeito que contrai um
empréstimo para habitação não consegue pagar por alguma circunstância e é declarado insolvente,
sendo executados os seus bens. Simplesmente, para estas pessoas singulares a lei prevê um regime
específico (igual ao regime alemão), que se chama “exoneração do passivo restante” e que permite,
em certos termos, que, decorrido um 5 anos desde que o devedor foi declarado insolvente, não
conseguindo este pagar todas as suas dívidas, elas extinguem-se (exceto as dívidas fiscais). O regime
foi pensado, na sua maior complexidade e extensão, para sociedades comerciais e comerciantes. Mas

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depois foi adaptado e estendido a não comerciantes, apesar de ser na sua essência um regime comercial.
O professor considera este período excessivo.

Quem é que está em situação da insolvência?


O CIRE prevê 2 situações diferentes de insolvência:

1. Uma situação clássica que corresponde na essência à anterior noção de falência e que na
literatura anglo-saxónica se chama o “critério do fluxo de cash”, ou “cash flow”;
2. E um outro critério, adotado apenas pelo CIRE, que é o critério da situação patrimonial.

O critério do cash flow


O mais relevante é o primeiro e significa nos termos do artigo 3º, nº1 do CIRE, “a
impossibilidade de o devedor cumprir pontualmente as obrigações vencidas”, corresponde à antiga
posição de falência.

É o mais relevante porque o comércio é uma cadeia A deve a B, B deve a C, C deve a D, D


compra a E, E deve a A, etc. O ponto é que há uma ligação recíproca. Se um elemento da cadeia cai,
ou deixa de poder cumprir as obrigações, isso vai levar a que sejam atingidos outros elementos da
cadeia das vendas, o que pode levar a um fenómeno de “insolvências por arrastamento”. O
fundamental para um sujeito inserido na atividade comercial é que ele possa pagar as dívidas vencidas.
Se ele não o pode fazer, ele tem de ser retirado do comércio. Por este motivo nasceu o instituto da
falência na idade média e por isso também a consagração aqui deste critério (que entretendo foi
alargado, como já vimos, aos consumidores).

O mais importante no que respeita a este critério não é, de todo, a existência de um ativo
superior a um passivo, porque o comércio vive do crédito. Portanto, é totalmente plausível que uma
empresa tenha um passivo superior ao ativo e que se mantenha em atividade recorrendo ao crédito,
eventualmente até recorrendo ao crédito dos seus sócios através da celebração dos contratos dos
suprimentos, que são um instrumento de financiamento dos sócios às sociedades comerciais. E o
relevante é que o sujeito possa continuar a pagar, que tenha acesso ao crédito ainda. Aliás, um sujeito
pode ter até um ativo superior ao passivo que não consiga cumprir as suas obrigações: se esse ativo
for constituído maioritariamente de bens ilíquidos (que são muito difíceis de liquidar no mercado,
demoram muito tempo a ser negociados e colocados no mercado- quinta do vinho do Porto vs. moedas
de ouro que se trocam facilmente), o sujeito pode realmente não conseguir cumprir as suas obrigações.

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A impossibilidade de cumprimento há-de assentar essencialmente na falta de meios de


pagamento ou bens de liquidez (ex: dinheiro em caixa e depósitos bancários, créditos bancários
vencidos, produtos e títulos de crédito fácil e oportunamente convertíveis em dinheiro).

A lei faz equiparar a insolvência à insolvência iminente (ou seja, quando se preveja que um
sujeito irá estar a prazo em incumprimento das suas obrigações / situação que se antevê como provável
que o devedor não terá meios para cumprir a generalidade das suas obrigações no momento em que se
vençam)- art. 3.º/4 CIRE. Mas, temos de fazer a seguinte distinção: enquanto que um devedor que
esteja insolvente tem de se apresentar à insolvência, um sujeito que esteja numa situação de insolvência
iminente não é obrigado a apresentar-se à insolvência, mas pode fazê-lo. Qual é o interesse em recorrer
a um processo de insolvência se ele ainda não é insolvente? Se o sujeito pretender obter uma
recuperação e a aprovação de um plano de recuperação, convém que se apresente ao processo com a
situação patrimonial (económica e financeira) não totalmente esgotada (artigo 3º, nº4). Contudo, a
insolvência iminente permite também o recurso ao PERE e normalmente as empresas recorrerão ao
PERE e não à insolvência.

A equiparação consagrada legitima antes o devedor para apresentar o pedido de declaração de


insolvência. Outros sujeitos não têm possibilidade de requerer o pedido com base no mero risco sério
de insolvência. Contudo, importa sublinhar que o Código atribui legitimidade aos credores e outras
entidades para requererem a declaração de insolvência nalguns casos em que não há ainda situação de
insolvência.

O critério do balanço ou da situação patrimonial (art. 3.º/2)


Consistiu numa adaptação do segundo critério da lei alemã que prevê este défice patrimonial.

Qual é o critério em si? As pessoas coletivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas não
respondam de forma pessoal e ilimitada (têm de responder por todas), de forma direita ou indireta a
uma pessoa singular, são consideradas insolventes se o seu passivo for manifestamente superior ao
ativo de acordo com as regras contabilísticas aplicadas. Ou seja, para definir o ativo e o passivo para
este efeito temos de recorrer às regras contabilísticas aplicadas, que têm uma importância muito grande
no âmbito das sociedades e também da insolvência.

Não basta que o passivo seja superior ao ativo, este era o critério da lei alemã que queríamos
consagrar, mas houve uma reação tão forte da comunidade jurídica e comercial que o legislador
colocou o “manifestamente”- é necessário que essa superioridade seja manifesta.

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A lei veio permitir, nos termos do artigo 3º, nº3, que quer o ativo, quer o passivo, determinados
de acordo com as regras contabilísticas aplicadas, possam ser reavaliados para este efeito. A lei vai
permitir ao devedor que recorra a um conjunto de critérios (que prevê) de reavaliação de bens quer do
seu ativo, quer do seu passivo, que estão previstos nas alíneas a), b) e c) do nº3 do artigo 3º do CIRE.
Se da aplicação destes critérios o ativo passar a ser superior ao passivo, não se verifica a situação de
insolvência. Os critérios:

 Alínea a): Em primeiro lugar, são consideráveis não só os elementos identificados no balanço,
mas também os identificáveis, designadamente intangíveis como o direito de arrendamento,
marca, patente, alvará, que por qualquer razão não foram atendidos no balanço.
Em segundo lugar, certos bens que estão incluídos no balanço por um certo valor podem ser
reavaliados com base no “justo valor”/”valor atual de mercado” (ao preço que resultaria da sua
negociação em comércio livre). Isto é principalmente relevante no que toca aos imóveis, que,
de acordo com as regras contabilísticas, são contabilizados com grande frequência abaixo do
seu valor de mercado. Portanto, é possível, para este efeito, proceder-se a uma reavaliação
desses bens para este efeito pelo seu justo valor. É prática frequente (ainda que ilegal)
subvalorizar bens do ativo e/ou sobrevalorizar elementos do passivo para originar reservar
ocultas.

 Alínea b): Quando o devedor for titular numa empresa, o valor a ter em conta é aquele da
organização em si, o valor da empresa como tal, e não o valor dos diversos elementos que
integram a empresa isoladamente considerados se se poder concluir que a empresa se manterá
em funcionamento.
Se um sujeito tem uma empresa, o valor de negociação da empresa (em regra através de
trespasse) é superior aos bens que integram a empresa. Por exemplo, se essa empresa for uma
pastelaria, a pastelaria no seu conjunto tem mais valor do que as mesas, as cadeiras, as
máquinas, o logótipo, o valor próprio do local, etc. que a compõe. Há uma diferença entre uma
coisa e outra que pode ser muito relevante. Há empresas que têm poucos bens materiais, mas
que valem como organização isoladamente consideradas, como um bem em si. Nestes casos,
se for de perspetivar que a empresa se mantenha, deve ser contabilizado o próprio valor da
empresa. Quando seja razoável fazer esta prognose de continuidade da empresa (qual ela
mostre viabilidade económica), o justo valor, porque integrados numa organização ou sistema
de funcionamento, será normalmente superior através da alienações dos singulares elementos
patrimoniais.

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 Alínea c): Quanto à possibilidade de restituição do passivo: não podem ser aqui consideradas
as dívidas que só devam ser pagas depois de terem sido satisfeitos os outros credores.
Há classes de credores na insolvência: em primeiro lugar, temos credores da massa, os credores
garantidos e privilegiados, os credores comuns e, por último, os credores subordinados (que
poucas vezes são pagos).
Visa-se aqui tirar os créditos subordinados do passivo. Os créditos subordinados mais
relevantes são os créditos dos sócios por suprimentos (artigo 48º, alínea g) do CIRE). Os sócios
podem financiar a sociedade emprestando-lhe dinheiro através destes contratos de suprimentos,
que, no âmbito da insolvência, são créditos subordinados. Como é muito comum os sócios
financiarem a sociedade com dinheiro que lhe emprestam, esses valores são dívidas da
sociedade. Vamos supor que 50% do passivo de uma empresa são suprimentos. O que diz este
critério é que se pode recalcular o ativo sem os suprimentos e assim estes 50% deixam de ser
dívida. Se fim destas operações tivermos um ativo superior ao passivo, o sujeito não está
insolvente e, como tal, não pode ser declarada a sua insolvência.
Em suma: estão em causa as dívidas correspondentes a prestações suplementares dos sócios
(art. 213.º, n.ºs 1 e 2 CSC) a suprimentos e a outros créditos subordinados (arts. 245.º/3/a) CSC
e 48.º CIRE).

Temos, depois, um critério central: o passivo ser manifestamente superior ao ativo. Conceito
indeterminado que tem de ser concretizado. O que professor entende que o critério “manifestamente
superior” tem de ser visto à luz da empresa conseguir cumprir com as suas obrigações. Não é possível
que seja aplicado de forma automática, tem de se ter em conta os próprios choques financeiros. Isto é
importante, hoje, porque em virtude da pandemia há empresas que estão numa situação financeira
muito debilitada: não tiveram receitas, mas continuaram a ter despesas, se aplicarmos este critério sem
mais, sem interpretação, levamos à declaração de insolvência de empresas economicamente viáveis.
Não têm acesso à PER as empresas insolventes por via deste critério, não pode recorrer ao PER para
restituição do passivo por isso é que a correta interpretação destes critérios é muito importante.

Quem é que pode apresentar pedido de declaração de insolvência?


Em primeiro lugar, pode apresentar um pedido de insolvência o devedor, ainda que seja uma
pessoa singular, seja ele:

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❖ Uma pessoa singular não titular de uma empresa: esse, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, não tem
de se apresentar à insolvência, não tem esse dever, mas pode fazê-lo se assim o entender;
❖ Uma pessoa singular ou coletiva titular de uma empresa: para estes há uma obrigação de
apresentação à insolvência no caso de estarmos face ao primeiro critério de insolvência (mas
já não face ao segundo). Esta obrigação de apresentação à insolvência tem de ser cumprida
dentro dos 30 dias seguintes à data em que o devedor teve ou deveria ter tido conhecimento da
sua situação de insolvência tal como ela está prevista no artigo 3.º, n.º 1, ou seja, através do
critério de cash flow (de caixa).

Se o devedor for titular de uma empresa, presume-se (presunção inilidível) que ele teve
conhecimento da situação da insolvência decorridos 3 meses, pelo menos, sobre o incumprimento
generalizado das dívidas previstas no artigo 20º, nº1, alínea g) do CIRE. Essas dívidas são consideradas
as dívidas mais relevantes para a empresa (dívidas decorrentes de contratos de trabalho, dívidas
decorrentes da locação financeira e dívidas da segurança social). Havendo incumprimento
generalizado desse conjunto de dívidas, há aqui uma presunção de que houve conhecimento pelo
menos decorrido o prazo de 3 meses e a partir desse momento corre o prazo de 30 dias.

Sendo uma pessoa coletiva, pode-se apresentar à insolvência a gerência, o órgão social
incumbido da administração ou qualquer um dos seus administradores, sejam administradores de
direitos (que integram os órgãos), ou administradores de facto (que administram a empresa de fora,
mas que não integram os órgãos).

Qual é o relevo prático do incumprimento do dever de apresentação à insolvência? Qual é o risco


do dever deste incumprimento? No âmbito do processo, o juiz terá de classificar a insolvência como
insolvência furtuita ou insolvência culposa. Se qualificar a insolvência como culposa, há um
conjunto de consequências duras que incidem sobre o devedor (pessoa singular titular de uma empresa)
ou sobre os seus administradores (no caso de pessoa coletiva). Para que a insolvência seja classificada
como culposa, é necessário que o devedor ou os seus administradores tenham agido com culpa grave
ou dolo. Ora, se eles não apresentarem a empresa à insolvência, presume-se, desde logo, que atuaram
com culpa e arriscam-se a que a insolvência seja classificada como culposa, recaindo depois, em
consequência, um conjunto de efeitos muito negativos sobre eles, incluindo consequências de carácter
penal. É um aspeto que preocupa muitos administradores, se têm de apresentar ou não a empresa à
insolvência.

Nesta época de pandemia retirou a exigência de o fazer, se não era muito complicado.

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Agora, se o devedor estiver numa situação de insolvência iminente, ele pode, mas não tem de se
apresentar à insolvência. Hoje em dia, o devedor pode apresentar-se ao PERE se estiver em insolvência
iminente ou em situação económica difícil, mas não se estiver insolvente.

Nota: foi aprovado na AR um novo processo, o PEVE (processo extraordinário de viabilização de


empresas), que só ficará em vigor até 31 de Dezembro. É essencialmente uma adaptação do regime do
PERE, só que, neste caso, o legislador permite o acesso a empresas que estejam numa situação já de
insolvência efetiva.

Nota 2: Na sentença de declaração da insolvência ou em momento posterior, pode o juiz declarar


aberto o incidente de qualificação da insolvência (arts. 36.º/4; 36.º/1/i) e 188.º/1), a fim de se apurar se
ela é culposa ou furtuita (arts. 185.º e 189.º/1 CIRE). Na sentença que qualifique a insolvência como
culposa, deve o juiz fazer aquilo que está previsto no art. 189.º/2. A inibição de comerciar que cai
sobre a pessoa singular é uma incompatibilidade absoluta – impossibilidade legal do exercício de
comércio por pessoa afetada pela qualificação da insolvência como culposa. Se a pessoa violar a
proibição, os atos de comércio não são inválidos, mas pessoa não pode ostentar o título de comerciante
e ter o correspondente estatuto a que está legalmente impedido, por razões de tutela do crédito do
comércio, de comerciar.

Outros legitimados previstos no art. 20.º que podem deduzir um pedido de insolvência. Desde logo,
quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, quem for credor do devedor, e o Ministério
Público em representação dos interesses que lhe sejam confiados (dos interesses das entidades
públicas).

Em qualquer caso, para a insolvência ser declarada, estas pessoas têm de demonstrar factos índice
que indicam que o devedor está numa situação de insolvência. É difícil que eles consigam provar que
o devedor é insolvente, logo, a lei apenas lhes pede que demonstrem um destes factos. Depois, terá de
ser o devedor a provar que 1) ou esses factos não se verificam, ou 2) que, apesar de esses factos se
verificarem, ele não está em situação de insolvência. Que factos são esses? São aqueles previstos nas
alíneas do artigo 20º do CIRE (estão previstos em alternativa). Nomeadamente:

1. Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;


2. Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas
circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer
pontualmente a generalidade das suas obrigações, ou seja, revele a insolvência;

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3. Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a


empresa tem a sede ou exerce a sua principal atividade, relacionados com a falta de
solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;
4. Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de
créditos;
5. Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em
processo executivo movido contra o devedor;
6. Incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos,
nas condições previstas na alínea a) do nº1 e no nº2 do artigo 218º;
7. Incumprimento generalizado (de um conjunto de obrigações vencidas), nos últimos seis meses
(período mínimo), de dívidas de algum dos seguintes tipos: Dívidas tributárias; Dívidas de
contribuições e quotizações para a segurança social; Dívidas emergentes de contrato de
trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato; Rendas de qualquer tipo de locação,
incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respetiva
hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua atividade ou tenha a sua sede ou
residência.
8. Temos, depois, o facto índice relativo ao segundo fundamento de declaração de insolvência
que é o manifesto excesso do passivo relativo ao ativo. Sendo o devedor uma das entidades
referidas no nº2 do artigo 3º, manifesta superioridade do passivo sobre o ativo segundo o
último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas,
se a tanto estiver legalmente obrigado – os credores terão de demonstrar que de acordo com o
último balanço aprovado existe uma manifesta superioridade do passivo relativamente ao ativo,
ou então que que há um atraso superior a 9 meses na apresentação, aprovação e depósito das
coisas (é uma alternativa).
O termo “manifesta superioridade do passivo” é um conceito indeterminado que exige uma
interpretação diferente de acordo com a concreta empresa em causa e de acordo com o próprio
condicionalismo económico no qual as empresas estão a atuar. Isto evidentemente também
atendendo à sua possibilidade de satisfazer o passivo. Se uma empresa vier sistematicamente a
acumular passivo que seja, no entanto, expectável, face à rentabilidade esperada, ultrapassar,
ela não está insolvente.

Qual é a vantagem do credor em deduzir um pedido de declaração de insolvência?

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Há uma vantagem desde logo na possibilidade de realização ou satisfação do seu crédito. Mas,
para além disso, a lei criou um incentivo para o credor requerente da insolvência, atribuindo-lhe um
privilégio mobiliário geral, graduado em último lugar (é satisfeito no fim dos outros créditos
privilegiados) por ¼ do seu montante até 500 UC (unidades de conta), o que hoje em dia corresponde
a certa de 50mil euros, nos termos do artigo 98.º do CIRE. Um credor comum, por exemplo, encontrará
particular vantagem neste mecanismo. Além disso, um credor comum pode também requerer a
insolvência do devedor com o objetivo de impedir um agravamento da situação patrimonial de um seu
devedor insolvente, tornando, nesse caso, a probabilidade de satisfação do seu crédito mais reduzida.

Coisa diferente é a ameaça da declaração de insolvência como modo de cobrar dívidas. A


dedução de um pedido infundado de insolvência, se provocar danos (e provoca sempre, no mínimo,
danos reputacionais) pode dar lugar a uma responsabilização, limitando a lei a responsabilização nestes
casos a dolo (não é englobada aqui a culpa grave).

O devedor pode depois opor-se à declaração de insolvência e inicia-se aqui um excerto


declarativo no processo, demonstrando ou que se não se verifica ou facto alegado (que não está em
incumprimento), ou que, apesar desse facto, não se verifica a insolvência. Por exemplo (da última
situação): o devedor pode alegar que não cumpriu aquela obrigação ao abrigo da exceção de não
cumprimento, porque o outro não cumpriu a sua prestação. Nesse caso, ele demonstra que está numa
situação de insolvência.

Agora, se nós estivermos face à segunda situação de insolvência, é o devedor que tem de
demonstrar que 1) o passivo não é superior ao ativo ou, 2) se não conseguir demonstrar isso, ele pode
recorrer aos critérios de reavaliação do ativo e de recomposição do passivo para demonstrar que, apesar
de ter contabilisticamente um passivo manifestamente superior ao ativo, ainda assim, utilizando estes
critérios, ele fica com um ativo superior ao passivo, nomeadamente ao eliminar elementos do passivo.

Hoje em dia, não é dada publicidade ao pedido de declaração de insolvência através da citação
de outros credores. Portanto, tudo se passa entre o credor que deduz o pedido de declaração de
insolvência e o devedor que se opõe ao pedido de declaração de insolvência, os outros credores não
são citados (ao contrário do que acontecia no CPEREF).

Depois há duas vias de impugnação da sentença: por embargos ou por recurso.

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Principais efeitos patrimoniais, relativamente ao devedor, decorrentes da declaração da


insolvência
Em primeiro lugar, priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos
poderes e administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a
competir ao administrador da insolvência (art. 81.º/1 do CIRE).

A massa insolvente é constituída, em regra, por todo o património do devedor à data da


declaração da insolvência e pelos bens que ele adquira na pendência do processo.

No entanto, os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor,


voluntariamente, os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta: art. 46.º, n.ºs 1 e 2.

Porém, o devedor não será um incapaz ou um inabilitado. Simplesmente, ele não tem
legitimidade para dispor dos bens integrantes na massa e, nesse sentido, verifica-se uma ineficácia dos
negócios que ele venha a celebrar relativamente a esses bens integrados na massa. O devedor pode
celebrar um negócio de compra e venda em relação a um bem integrado na massa, mas esse negócio é
ineficaz relativamente à massa e não leva, sequer, à transmissão do direito. Ele pode celebrar negócios,
simplesmente há uma ineficácia relativamente à massa, ou seja, visa-se impedir que aquele negócio
produza efeitos relativamente aos bens em relação aos quais ele não pode dispor. Se o insolvente
dispuser de um objeto da massa, o ato é ineficaz, não produz efeitos (art. 81.º/6). A ineficácia é
absoluta. Dado que o ato de disposição efetuado não vincula a massa, esta responderá pela restituição
do que lhe houver sido prestado pela contraparte do insolvente, apenas segundo as regras do
enriquecimento sem causa (art. 81.º/6 do CIRE e 473.º e ss CC). Contudo, é possível que o ato do
insolvente se revele benéfico para a massa (para os credores), será lícito, então, o administrador da
insolvência ratificar o ato (integrando-se os respetivos direitos e obrigações na massa insolvente).

A declaração de insolvência produz também um conjunto de efeitos relativamente aos


administradores do devedor. A administração não cessa, ela mantém-se em funcionamento apesar da
declaração da insolvência, simplesmente deixa, nos termos do artigo 82º, nº1, de ser remunerada,
podendo os titulares dos órgãos sociais renunciar ao cargo, desde que procedam ao depósito das contas
anuais.

A sentença de declaração de insolvência


A sentença de declaração de insolvência (artigo 36º do CIRE) tem depois um outro conjunto
mais genérico de efeitos a si associados. Na declaração de insolvência, o juiz da sentença terá de

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nomear o administrador da sentença, o próprio órgão da insolvência, que irá administrar e depois
liquidar os bens que integram na massa, ou, na hipótese de recuperação, manter em funcionamento a
empresa.

Todavia, a lei permite, em certos casos, a autoadministração. A autoadministração consiste no


seguinte: o juiz pode determinar na sentença de declaração de insolvência que a administração da
massa será realizada pelo próprio devedor, desde que se verifiquem um conjunto de requisitos. São
eles:

o É necessário que na massa esteja compreendida uma empresa;


o É necessário que o próprio devedor tenha requerido a autoadministração, ou a administração
por ele próprio;
o É necessário que o devedor apresente logo, ou se comprometa a fazê-lo num prazo de 30 dias
após a sentença, um plano de insolvência que preveja a continuidade da exploração da
insolvência por ele próprio;
o É necessário que se verifiquem ainda um requisito negativo: que não haja razões para recear
que se trate de uma simples forma de atrasar a marcha do processo;
o Por fim, é necessário que o requerente da insolvência, nos casos em que a insolvência seja
requerida por outro que não o devedor, dê o seu consentimento.

A administração por parte do devedor, ao que se chama “debtor in possession”, é a regra no


capítulo 11 do Bankruptcy Code. A ideia subjacente é que, para um devedor que queira ou que pretenda
a recuperação da empresa, o caminho obvio será apresentar-se à insolvência de preferência enquanto
a insolvência ainda for iminente e pedir para manter a administração da empresa integrada na massa
por ele próprio e apresentar logo um plano de recuperação. É difícil que uma empresa depois continue
a subsistir da mesma forma se passar a ser administrada por um terceiro que não a conhece. Se se
pretender a recuperação da empresa, há um conjunto de passos que podem ser dados e vias que o
legislador permite a que o devedor recorra para otimizar a sua possibilidade de sucesso. O professor
crê que este é um sistema que está bem desenhado na “law in the books”, mas que não funciona na
“law in action”, porque os próprios efeitos da declaração de insolvência tornam muito difícil a
recuperação da empresa.

Por exemplo: a declaração da insolvência gera o vencimento imediato de todas as dívidas do


insolvente. Ora, é muito difícil uma empresa que já não conseguia pagar as dívidas vencidas, conseguir
pagar ainda e simultaneamente as vencidas e aquelas que tinha a prazo, mas que, com a declaração da

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insolvência, se vencem. A situação fica ainda mais complicada do que estava anteriormente. O
processo de recuperação é muito gabado, mas não funciona. O PERE funciona, mas esse não.

O juiz também decreta a apreensão para entrega ao administrador dos bens do devedor, ainda que
arrestados ou que tenham sido já apenhorados, por exemplo, no âmbito de uma ação executiva. Estes
bens devem ser apreendidos uma vez que eles entregam a massa insolvente e estão sujeitos à
administração do administrador da insolvência.

Se houver indícios da prática de um crime insolvencial, o juiz deve comunicá-lo ao MP e depois


designar um prazo para a reclamação de créditos – os outros credores têm um prazo para reclamarem
os seus créditos pelo que, se não o fizerem neste prazo, depois não já não os podem exercer no seio do
processo insolvencial.

O juiz decreta ainda o dia e hora para a realização da assembleia de credores de aprovação ou
apreciação do relatório. Nos casos em que se pretenda a recuperação da empresa, esta será a data
decisiva, esta assembleia. O administrador da insolvência tem de apresentar este relatório sobre a
situação da empresa e pronunciar-se sobre possibilidade de a empresa vir efetivamente a ser recuperada
com sucesso. Daí que, se nesta data não se decidir encarregar o administrador de insolvência a fazer
um plano de recuperação (caso o devedor não o tiver feito), raramente isso acontecerá no futuro, até
porque, se tal não tiver acontecido aqui, depois desta assembleia de aprovação do relatório, o
administrador deve começar de imediato a alienar os bens da massa e, evidentemente, a empresa
dificilmente poderá vir a ser recuperada.

Há casos em que o processo de insolvência nem sequer avança. São os casos previstos no artigo
39º do CIRE. Nas hipóteses em que o juiz conclua que o património do devedor não é sequer suficiente
para satisfazer as custas do processo, nem as dívidas previsíveis da massa (que têm de ser sempre
satisfeitas em primeiro lugar), ele simplesmente faz menção desse facto (que o património não é
suficiente para que possa prosseguir o processo de insolvência) na declaração de insolvência e nomeia
o administrador da insolvência. Não faz mais nada, salvo se existirem indícios da prática de um crime
insolvencial (aí indica esses factos ao Ministério Público). Feita essa ressalva, neste caso, não há
sentença de verificação nem de graduação de créditos, não apreensão de bens para a massa, os credores
não vão reclama os créditos, e o devedor, em princípio, não fica sequer privado dos poderes de
disposição e administração do seu património. O processo finda logo que a declaração de insolvência
transite em julgado, ficando o sujeito insolvente e, sendo uma sociedade comercial, a declaração da
insolvência produz a dissolução da sociedade comercial.

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A massa insolvente (art. 46.º do CIRE)


A massa insolvente é integrada por todos os bens integrantes no património do devedor à data da
declaração de insolvência, bem como outros bens que ele adquira durante o processo (esses bens
automaticamente integram a massa). A massa tem como finalidade ser liquidada para, com esse
produto, se satisfazer os credores da insolvência, sendo certo que antes de estes serem satisfeitos, têm
de ser satisfeitas em primeiro lugar a obrigações da massa. A massa forma ela própria forma um
património autónomo que visa este resultado.

Note-se que, mesmo que se opte se proceda a uma recuperação da empresa, os credores têm de ser
satisfeitos. A opção pela recuperação da empresa não significa, pois, a não satisfação dos credores. A
sua satisfação, todavia, será feita por uma via diferente da pura e simples liquidação ou da empresa ou
dos outros bens integrados neste património autónomo. Há depois um conjunto de outras vias de
satisfação dos credores, nomeadamente a constituição de sociedades comerciais que passem a
administrar a empresa, isto é, para as quais a empresa seja transmitida, havendo depois uma atribuição
aos credores de participações sociais nessa nova sociedade comercial em troca dos seus créditos.
Chama-se a isto uma prática de “debt equity swap” (troca de dívida por participações sociais).

Reclamação e verificação dos créditos


Os credores têm de reclamar os seus créditos nos termos do artigo 128º do CIRE para poderem
obter a satisfação desses mesmos créditos de acordo com as regras da insolvência. No CIRE, e ao
contrário do que sucedia com o regime anterior, permite-se que o administrador da insolvência, se
detetar a existência de créditos na contabilidade do devedor, mesmo que não reclamados, possa
reconhecer os mesmos. Ou seja, mesmo que os credores não reclamem os seus créditos, o
administrador da insolvência pode incluir esses mesmos da na lista dos credores reconhecidos.

Seguida à reclamação dos créditos, o administrador faz uma lista dos credores reconhecidos e uma
lista paralela, que é a lista dos credores não reconhecidos, na qual tem de fundamentar o não
reconhecimento. O reconhecimento dos créditos diz respeito não só ao crédito em si, mas também às
qualidades do próprio crédito, desde logo no que diz respeito ao valor nominal do crédito, mas também
no que toca à existência de eventuais garantias do crédito (reconhecer o crédito como crédito garantido,
como crédito privilegiado, etc.).

Qualquer credor pode impugnar a lista dos credores reconhecidos por meio de requerimento que,
neste caso, dirigido ao juiz com fundamento na indevida inclusão (se é incluído um crédito que ele
entende que não deveria ter sido reconhecido e isto traz-lhe prejuízos, pois quanto mais créditos forem

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reconhecidos, pior para ele, principalmente se forem reconhecidos créditos garantidos) ou exclusão do
crédito. Temos aqui um excerto declarativo no âmbito do processo insolvencial que decorrerá até que
o juiz profira uma sentença de verificação e de graduação dos créditos. Nessa sentença são definidos
quais os créditos que são reconhecidos, e em que termos, e quais não são reconhecidos. depois é feita
a graduação dos créditos: é feita uma lista com esses créditos e com a sua respetiva graduação.

Na graduação dos créditos há um conjunto de garantias que não se mantém:

1. A hipoteca judicial (e não a voluntária decorrente do acordo das partes, essa mantém-se), que
cessa com a declaração de insolvência e, portanto, o crédito que era um crédito garantido passa
a ser um crédito comum;
2. Outra é a preferência decorrente da penhora, decorrente do regime da penhora, que também
não opera na insolvência (artigo 140.º, n.º 3 do CIRE).

Categorias dos créditos na insolvência


Há categorias de créditos da insolvência em função da sua tutela: créditos garantidos; créditos
e privilegiados; créditos comuns; e créditos subordinados.

Os primeiros créditos a ser satisfeitos são sempre aqueles decorrentes das obrigações da
massa (há uma pequena exceção em relação aos créditos garantidos).

Há três grandes categorias de créditos na insolvência:

a. Créditos garantidos e privilegiados;

b. Créditos comuns (não beneficiam nem de garantia, nem de privilégios);

c. Créditos subordinados (entre os próprios créditos subordinados há uma garantia, uns


são satisfeitos antes dos outros).

Créditos garantidos e privilegiados


Quando nos referimos aqui aos “créditos garantidos”, estamo-nos a referir aos créditos com
garantia real (penhor, hipoteca, direito de retenção ou um privilégio imobiliário especial).

Temos depois os créditos com privilégio geral, e não especial, que não são créditos garantidos,
são créditos simplesmente privilegiados, o que significa que, em princípio, estes são satisfeitos apenas
depois de satisfeitos os credores que beneficiem de garantias reais.

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Os créditos do Estado, das autarquias locais e das instituições da segurança social, e


principalmente os créditos tributários, em regra, beneficiam de privilégios mobiliários gerais e, em
alguns casos, de privilégios imobiliários gerais e em alguns casos até mesmo e créditos imobiliários
especiais. Estes privilégios cessam na declaração de insolvência em determinadas circunstâncias. Ou
seja, o Estado tem créditos que beneficiam de privilégios gerais que seriam satisfeitos antes dos
credores comuns ou privilégios mesmo especiais, que seriam satisfeitos de acordo com as regras desses
mesmos privilégios, mas, em princípio, numa situação de paridade com as garantias reais (sendo eles
especiais), mas que, em determinadas circunstâncias cessam com a declaração de insolvência.

Qual é o regime aqui? É o seguinte:

▪ Sendo privilégios creditórios gerais, eles cessam se constituídos mais de 12 meses antes do
início do processo de insolvência (e não com a própria declaração de insolvência em si), que
tem início com a apresentação do devedor, ou com a dedução do pedido de insolvência por
parte de um credor. Portanto, esses créditos tributários devem ser reclamados, mas, constituídos
depois desse período de tempo, perdem os privilégios e são satisfeitos como créditos comuns;
▪ Sendo privilégios creditórios especiais (que são os mais fortes), eles cessam se vencidos (e
não constituídos – o direito pode-se constituir, por exemplo, em janeiro, mas só se vencer/só
ter de ser pago em Julho) há mais de 12 meses.
O professor é muito critico deste regime.

A garantia real, neste caso, não abrange só o crédito em si, mas também os juros do crédito.
Isso é relevante porque os juros não se deixam de contar depois da declaração da insolvência, eles
continuam a vencer-se. Não só não deixam de se contar, como nos termos do artigo 48.º, alínea c) do
CIRE estão abrangidos pela garantia real. Por exemplo, num crédito hipotecário, os próprios juros que
se venham a vencer depois da declaração da insolvência, enquanto não houver pagamento integral do
valor devido, também estarão incluídos na hipoteca.

O CIRE tutela mais os credores com garantia real, particularmente os credores financiadores,
do que acontecia com o regime anterior. Por exemplo: são aqueles que beneficiam de alienação em
garantia ou de rendas de locação financeira. A sua tutela é constantemente alargada.

Créditos Comuns
Temos depois os créditos comuns, que são aqueles que não gozam de qualquer garantia.

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Exemplo 1: face a uma explosão de uma botija de gás, a empresa causa um dano a uma pessoa
que estava a passar na rua. Essa pessoa tem um crédito indemnizatório, mas não tem garantia nenhuma.
Os trabalhadores sim, esses têm privilégios.

Exemplo 2: A vende a B uma máquina. B não paga. A não tem garantia nenhuma.

Créditos Subordinados
Por fim, temos os credores subordinados, que só são satisfeitos depois de terem sido
satisfeitos todos os credores comuns, mas não são satisfeitos de forma rateada como os credores
comuns. Eles são satisfeitos de acordo com uma ordem interna que está prevista de acordo com ao
artigo 48.º do CIRE:

1. Em primeiro lugar, são satisfeitos os créditos de que são titulares pessoas especialmente
conectadas com o devedor (como os cônjuges ou os descendentes);
2. Depois os juros dos créditos não subordinados que não beneficiem de qualquer garantia
real, mantém-se, mas são satisfeitos em segundo lugar;
3. Os créditos cuja subordinação tenha sido convencionada (acontece muitas vezes no
âmbito das relações financeiras mais complexas);
4. E, por fim, os créditos de suprimentos, que quase nunca são satisfeitos.

Créditos sobre a massa insolvente


Além destes, temos os créditos sobre a massa insolvente, previstos no artigo 51.º do CIRE e
que são sempre satisfeitos em primeiro lugar. Exemplos:

▪ As custas decorrentes do processo de insolvência; a remuneração do administrador de


insolvência;
▪ As dívidas decorrentes dos atos de administração e partilha de bens;
▪ As dívidas decorrentes de contratos que o administrador opte por cumprir por achar
conveniente para a liquidação dos bens da massa, ou então para depois conseguir uma
recuperação da empresa (falamos disto a propósito das opções da insolvência na locação
financeira). Ponto é que pode haver realmente interesse da massa na manutenção do contrato e
interesse na recuperação da empresa, mas pode acontecer que a massa não tenha bens. Se a
massa não tiver bens, o administrador de insolvência não pode optar por estes contratos sob

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pena de ficar responsável por isso. Ele só pode contrair dívidas da massa voluntariamente se a
massa tiver capacidade para cumprir.
Decorrido o prazo para a reclamação de créditos pelos credores, cabe ao administrador alienar
os bens do devedor de acordo com um conjunto de regras específicas, que são diferentes para
os credores que beneficiem de garantia real, uma vez que eles podem, nos termos da lei (artigo
264º), propor-se a adquirir o bem por um determinado valor. Ressalvando esse conjunto de
regras, o administrador deverá proceder à satisfação dos créditos.

Efeitos da sentença de declaração de insolvência quanto aos créditos


Decorre da sentença de declaração de insolvência que os negócios do devedor relativamente
aos bens integrados na massa são ineficazes. Note-se que há casos em que da massa podem fazer parte
créditos. Por exemplo: se um insolvente tiver um crédito ao preço de um produto que ele vendeu e
empregou, o crédito em si é um bem integrante da massa, mas o pagamento só é liberatório se for feito
ao administrador da insolvência, porque este é que gere os bens próprios da massa.

Há depois efeitos processuais, que não vamos abordar, e depois há efeitos quanto aos créditos
(os créditos dos credores que os tenham reclamado e todos os créditos sobre a insolvência não
integrados na massa, falamos agora dos créditos dos credores). A declaração de insolvência provoca o
vencimento imediato destes créditos, perdendo o devedor o benefício do prazo (mesmo os créditos a
prazo têm de ser cumprimentos imediatamente no seio empresarial), nos termos do artigo 91.º, n.º 1.
Pode haver créditos, contudo, que não sejam pecuniários. Esses, nos termos do artigo 96.º, convertem-
se imediatamente no seu valor em euros. Por exemplo: o crédito à entrega de mercadorias, que tem por
objeto bens móveis, para efeitos de exercício do direito no âmbito da insolvência, converte-se
imediatamente no seu valor em euros, que consistirá no valor das mercadorias.

O Código anterior não permitia a compensação e há muitos Códigos que não o permitem.
Nesses casos, um credor, que seja também devedor do insolvente, não pode proceder à compensação
dos seus créditos porque a compensação é um dos principais instrumentos de garantia. Se um sujeito
puder extinguir o seu crédito com um crédito do devedor face a ele, ele consegue obter a satisfação
integral do seu crédito. Esta figura, apesar de não ser qualificada como garantia, tem uma função muito
importante de garantia. Nos ordenamentos e nos contratos internacionais, esta função é denominada
como “netting”, que consiste precisamente na extinção de dívidas por compensação. Não era admitida
entre nós, mas agora é-o nos termos do artigo 99.º do CIRE, embora em termos não totais.

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Os negócios em curso na insolvência: arts. 102.º e ss do CIRE


Temos aqui determinados contratos (na sua maioria) que estão em curso aquando da declaração
da insolvência. Note-se que a classificação de “negócios em curso” não é uma classificação genérica,
depende de cada um dos tipos previstos no âmbito do CIRE: há um regime específico para a locação
financeira, há um regime específico para a venda a prestações com reserva a propriedade, há um para
a locação, outro para o mandato, um para a conta corrente e ainda um regime para a associação e
participação.

Aquilo que o legislador qualifica no artigo 102.º como “princípio geral”, na verdade, não é um
princípio geral, apesar de ter uma pretensão muito grande. Aqui o que se visa são aqueles contratos de
compra e venda em que não tenha havido cumprimento integral das prestações por ambas as partes:
nem o preço foi pago ou integralmente pago, nem a coisa foi entregue ou integralmente entregue.
Nestes casos, o administrador da insolvência tem de optar pelo cumprimento do contrato ou pelo não
cumprimento.

Vamos supor que se trata de um contrato de compra em que as coisas não foram entregues,
mas o valor até é um valor útil para a massa, ou os bens são muito necessários para a manutenção da
empresa. O administrador da insolvência pode recusar o cumprimento, valendo-se o outro sujeito da
exceptio (que funciona na insolvência), não entregando as mercadorias; ou o administrador pode optar
pelo cumprimento do contrato e, nessa medida, transforma este crédito, que seria um crédito comum
sobre a insolvência, num crédito sobre a massa, tendo de pagar efetivamente o preço (se não pagar o
outro pode continuar a valer-se da exceção de não cumprimento do contrato)- a obrigação de pagar o
preço passa a ser dívida da massa: art. 51.º/f) CIRE.

Insolvência do comprador: Esta hipótese está regulada nos artigos 102.º e 105.º/1/b) do CIRE.
A disciplina aplicável é essencialmente a do art. 102.º, com uma particularidade decorrente do art.
104.º/5 CIRE, na eventualidade de recusa por parte do administrador. Se for declarada a insolvência
do comprador, não tendo sido cumprida a obrigação de entrega do vendedor, se a propriedade já se
tiver transmitido e o insolvente também não tiver pago o preço, o cumprimento fica suspenso até que
o administrador decida optar pela execução do contrato ou recuse o cumprimento. O vendedor pode
fixar ao administrador um prazo razoável pelo exercício da opção.

Se optar pela recusa, então, por força do disposto no art. 105.º/1/b) aplica-se o disposto no art.
104.º/5 CIRE, que por sua vez remete para o art. 102.º/3 com a especialidade de o cálculo do crédito
da al. c) se fazer nos termos definidos no art. 104.º/5 CIRE. A recusa de cumprimento configura uma
verdadeira resolução, com efeitos retroativos.

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Os contratos de compra e venda no âmbito da vida comercial são daqueles mais relevantes, o
que significa que, se um sujeito vende a outro, que é declarado insolvente, e entrega a mercadoria, não
se aplica o regime do artigo 102.º, porque não temos aqui um negócio em curso: temos um crédito
comum sobre a insolvência. Isto significa que o vendedor terá de reclamar esse crédito, que vai ser
satisfeito nessa qualidade comum da insolvência (claro que se ele tiver obtido uma garantia, aí temos
um crédito garantido; e se ele tiver vendido com reserva de propriedade, então aplica-se o regime
benéfico do artigo 104.º). Só se ele não entregar a coisa é que fica protegido pela exceptio.

Esta regra é fundamental para a tutela dos credores do insolvente. São negócios em curso
aqueles que preenchem os requisitos do artigo 102º, ou do 103º, ou do 104º, etc. até ao artigo 119º. Os
créditos decorrentes destes negócios estão, em princípio, numa melhor posição do que estariam noutras
circunstâncias.

A insolvência do vendedor: O aspeto central nesta hipótese é a da transmissão anterior à


declaração de insolvência da propriedade da coisa ao comprador. Esta não integra a massa, uma vez
que se trata de um bem de terceiro. A lei, ao contrário do regime geral aplicável aos contratos bilaterais
sinalagmáticos não integralmente cumpridos nem pelo insolvente nem pela outra parte do art. 102.º
CIRE, retira ao administrador o poder de escolha entre o cumprimento e o não cumprimento. Por
conseguinte, este tem sempre de cumprir, entregando a coisa. A dívida passa a ser dívida da massa
insolvente (art. 51.º/1/e) CIRE) e o preço, por sua vez, constitui um crédito da massa.

O administrador da insolvência
O administrador da insolvência é nomeado pelo Tribunal e é um órgão no âmbito do próprio
processo. Ele tem direito a ser satisfeito como credor da massa (nas custas).

 Assembleia de credores
Há um conjunto de assembleias de credores, sendo que há duas que são particularmente
importantes:

i. A assembleia de aprovação do relatório: é aquela onde se decide se se dá início a um processo


que levará à recuperação do devedor. Tem mesmo de se realizar.
ii. Caso se pretenda a aprovação de um plano de insolvência que vise a recuperação da empresa,
terá de se realizar uma segunda assembleia de credores que tem por objeto a análise desse plano

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que depois poderá ser aprovado ou não se se verificar um conjunto de maiorias previstas no
regime do Código da Insolvência.

 Plano da insolvência
Nós não temos hoje um plano de insolvência tipificado, como existia no CPEREF, mas temos
várias modalidades socialmente típicas: cabe às partes dar o conteúdo que entenderem ao plano de
insolvência. O plano pode nem sequer ser um plano que vise a recuperação do devedor, pode ser
somente um plano que vise a liquidação. Ou seja, as partes podem, através de um plano de liquidação,
estabelecer regras diferentes das do CIRE para a liquidação da massa, por exemplo, para o pagamento
dos credores e para a repartição dos créditos.

Podem também as partes optar por um plano de recuperação stricto sensu, ou seja, um plano que
passe efetivamente pela recuperação do devedor, nomeadamente pela diminuição do passivo (caso seja
uma empresa comercial) e pelo debt equity swap.

Recuperação de empresas
O processo especial de revitalização
A recuperação de empresas está muito ligada à insolvência porque, com a criação do CIRE, a
recuperação de empresas tinha de passar necessariamente por uma declaração de insolvência.

Em 2012 consagrou-se o PER (processo especial de revitalização), que é um processo de


recuperação de empresas, foi integrado no CIRE (artigo 17º-A ao artigo 17º-J)- é este o regime que
vamos analisar. Portanto, o PER está muito conexionado com a insolvência, desde logo porque está
inserido no quadro da insolvência, mas porque também há um conjunto de regras do PER que remetem
para regimes da insolvência. Embora as finalidades sejam muito diferentes, há uma ligação próxima
entre o PER e o regime da insolvência propriamente dito, há uma paralelo nas finalidades, mas o
professor crê que se devem dividir os processos, até porque há regimes específicos que cabem num
processo e não no outro e os princípios também são diferentes.

No âmbito europeu, aliás, já se está a verificar uma clara separação entre o regime de insolvência
e o processo de recuperação de empresas. Em julho de 2019 foi aprovada inclusivamente uma Diretiva
que cria em termos comunitários um processo específico de recuperação das empresas que vai muito
em linha do PER (mas que muitos países não têm). Isto significa que nós passamos a ter no âmbito da
União Europeia um regime específico no que diz respeito à recuperação de empresas e não temos nem
vamos ter um regime harmonizado relativamente à insolvência (porque isso é muito mais difícil).
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NOTA: o PER não é o único instrumento de recuperação das empresas, há ainda o RERE, que é
um processo extrajudicial. Na prática, contudo, aquele a que as empresas recorrem mais é o PER e é a
esse que as empresas estão mais habituadas.

Regime do PER
O PER visa a recuperação da empresa e está previsto entre os artigos 17º-A ao 17º-J do CIRE.
Hoje em dia, o regime do PER está limitado a devedores titulares de empresas.

Jurisprudência do STJ interpreta de forma restritiva o regime do PER a aplicar só a empresas, mas
cria um regime paralelo quase idêntico no 222.º e ss. (por letras) para que um devedor não titular de
empresa possa valer-se deste mecanismo. Isso não obsta a que o PER esteja limitado a empresas- a
devedores titulares de empresas.

O PER aplica-se a duas situações específicas: ele não se pode aplicar a empresas que estejam
numa situação de insolvência atual, para recorrer ao PER é preciso que esteja numa situação
insolvência iminente (que a lei não carateriza), ou numa situação económica difícil (que a lei
caracteriza para este efeito: significa que um sujeito tem dificuldades graves de aceder ao crédito e
satisfazer as suas obrigações). Só pode recorrer nestes dois casos.

Nós efetivamente temos dois regimes de PER:

a. Primeira modalidade de PER: É o mais comum e detalhado. É regime de PER em que a


negociação entre o devedor e os credores se faz no âmbito do processo dentro de um sistema
de “escudos protetores”, podendo num prazo de 2 meses ser aprovado um plano de insolvência
que terá de ser aprovado pelos credores e em última instância homologado pelo juiz. Nesse
caso, a negociação entre o devedor e os credores, num processo que é encabeçado pelo
administrador de insolvência, faz-se no âmbito já no seio do processo, de forma protegida. A
negociação entre devedores e credores faz-se no ceio do processo e de modo protegido.
b. Segunda modalidade do PER: É um instrumento de homologação de acordo extrajudiciais e
esta figura está prevista no art. 17.º-I do CIRE e que tem um regime constituído por remissões
sucessivas. O que se pretende é que o devedor e conjunto de credores cheguem a acordo
extrajudicial (sem recorrerem ao processo) e depois apresentem um plano/acordo já
previamente aprovado que seja submetido à aprovação dos outros credores e à homologação
pelo tribunal. Mas, note-se as negociações não se fazem no âmbito de um processo judicial,
nem no âmbito de uma forma protegida (sistema de “escudos protetores”).

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Visa ser um instrumento, num caso pode ser extrajudicial, no início, num outro caso é judicial, mas
com uma intervenção muito limitada por parte do juiz. O juiz abre o processo e decide reclamações e,
mais à frente homologa ou não o programa de recuperação, mas o processo desenvolve-se entre o
devedor e um conjunto de credores que queiram participar com os devedores com vista a aprovar-se
um plano de recuperação. Sendo aprovado, ele depois tem de ser homologado pelo juiz.

A vantagem especifica da homologação do juiz é permitir vincular os credores dissidentes: permite


que aquele acordo abarque outros credores, ainda que eles não tenham manifestado o seu acordo, ou
nem sequer tenham participado nesse acordo ou nas negociações.

Em qualquer circunstância, o facto é que a empresa não pode estar já numa situação de insolvência.
O professor crê que aquilo que o legislador deveria fazer é abrir o PER, num período de 3 meses, a
empresas que estejam numa situação de insolvência para lhes permitir estruturar o passivo, mas ainda
não foi feito.

PER na primeira modalidade


Na primeira modalidade do PER procura-se alcançar um acordo no âmbito do processo, o
acordo vai decorrer de negociações que o devedor enceta com os credores que tenham reclamado os
seus créditos e querem participar. Estas negociações podem levar ou não a um acordo. Mas, apesar de
estas negociações decorrerem num processo, a intervenção do juiz é muito limitada: o juiz não
intervém nas negociações, ele limita-se através de despacho a iniciar o processo e a nomear o
administrador. No fim, terá participação no que diz respeito à homologação. A intervenção do juiz, o
carácter judicial do processo, no entanto, é muito mais limitado do que aquela que se verifica nos
outros processos judiciais.

Portanto, uma empresa que esteja em situação de insolvência iminente ou numa situação
económica difícil pode requerer ao tribunal que tenha início um processo de revitalização, um PER.
Mas ela não pode fazer isso sozinha: ela tem de ter o acordo e isso faz parte da instrução do processo,
para esse efeito, de credores que representem pelo menos 10% do seu passivo (em certos casos pode-
se diminuir isto para 5%). Também é necessária uma declaração por parte de um ente oficial (de contas)
de que a empresa não está numa situação de insolvência e que tem possibilidade de ser viabilizada.

O PER não foi invenção do legislador português, o que se passa é que, noutros OJ,
nomeadamente no italiano que foi precoce nesta matéria aquilo que fez é que percebeu que o regime
do falimento não dava possibilidade de recuperação de empresa então previu outros regimes que
permitia uma recuperação extrajudicial de recuperação das empresas.
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A partir do momento em que o processo, com esses elementos de instrução, chega ao juiz, este
profere um despacho que será publicado no portal Citius, onde nomeia o administrador judicial
provisório, que tem um efeito determinante neste regime. A sua nomeação por via deste despacho tem
um efeito de desencadear os “escudos de proteção” das negociações. Os escudos de proteção
consistem no seguinte:

o Durante o período de tempo das negociações o devedor não poder ser executado, o devedor
está salvaguardado de ações executivas com vista à cobrança de dívidas;
o Os processos de insolvência deduzidos contra o devedor suspendem-se;
o Não se pode fazer cessar certos serviços essenciais para o devedor durante esse período de
tempo (água, luz, eletricidade, comunicações etc.).
Portanto, digamos que o devedor pode negociar com os credores durante esse período de tempo
sem estar sujeito a um conjunto de efeitos aos quais, não fosse este sistema de proteção, ele
estaria sujeito. O período de tempo de negociações é de 2 meses, podendo ser prorrogado mais
um mês (art. 17.º-D, n.º 5 CIRE) Neste período de tempo o PERE visa-se permitir que uma
empresa, num período de 2 meses, prorrogáveis por 1 mês, possa desenvolver essas
negociações com o credor, mas numa posição protegida para a empresa.
o Por outro lado, um outro aspeto específico aqui é a criação de um conjunto de regras que
permitam ao devedor obter financiamento (que ele quase sempre precisa, seja para continuar a
funcionar, seja para depois poder recuperar e voltar a atividade). A lei prevê um conjunto de
instrumentos previstos no artigo 17º-H com vista a tutelar as garantias concedidas no âmbito
do PER e ainda o “dinheiro novo” ou o “fresh money”, que é o capital adicional que os credores
concedam ao devedor para que este desenvolva a sua atividade. A lei concede a este crédito
adicional um privilégio mobiliário geral, mas que é satisfeito acima de todos os outros
privilégios mobiliários. É uma forma de tutela e de incentivo para que os credores concedam
crédito ao devedor para ele poder desenvolver depois a sua atividade. É possível conceder à
empresa dinheiro novo sob forma de atribuição de um privilégio especial.

Estes são os aspetos básicos e é um processo cuja tramitação visa ser rápida. Há um período curto
de reclamação de créditos.

Aspetos mais relevantes do regime:


O PER aplica-se a empresas e não a devedores singulares não titulares de empresa. Inicialmente
isso sucedia, mas a lei foi alterada em 2017 visando limitar o PER a empresas, empresas em sentido

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subjetivo, o que importa é o titular da empresa. Criou um regime completamente copiado do PER nos
artigos 222.º-A e ss do CIRE para devedores não titulares de empresa: o que significa que os devedores
não titulares de empresa não se podem valer do PER, mas do processo especial para acordo de
pagamento. Concentrando-nos no PERE:

Aplica-se a empresas em que situação?

A empresa tem de estar em situação económica difícil ou de insolvência iminente; o


legislador definiu situação económica difícil no art. 17.º-B CIRE, mas não a segunda.

Situação económica difícil: quando o devedor enfrentar dificuldade séria para cumprir
pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter
crédito.

Insolvência iminente: o sujeito ainda não está impossibilitado a cumprir as suas obrigações,
mas, prevê-se que a curto prazo venha a estar nessa situação e aí pode recorrer ao PER. Se já está numa
situação de insolvência não faz sentido recorrer ao PER porque depois o fim visado não é alcançável.
Para isso a empresa não pode estar numa situação de insolvência.

A lei, a partir de 2017, passou a exigir uma declaração subscrita por contabilista certificado
ou por revisor oficial de contas (art. 17.º-A/2) que ateste que a empresa não se encontra em
situação de insolvência atual, à luz dos critérios previstos no artigo 3.º CIRE.

Para além disso, é necessária uma manifestação de vontade assente num requerimento do
devedor e num conjunto de credores (não estando especialmente relacionados com a empresa, sejam
titulares, pelo menos, de 10% de créditos não subordinados- art. 17.º-C/1).

Inicialmente, antes de 2017, bastava um credor, hoje em dia, nos termos do art. 17-C/1 é
necessário que credores que sejam titulares pelo menos de 10% de créditos não subordinados se juntem
à empresa. Se não houver este n.º mínimo com direito de voto e com créditos não subordinados, não é
possível recorrer a um PER. Depois há um procedimento que permite, em certos casos, reduzir esta
percentagem. Tem de comunicar que pretende desenvolver negociação com vista a um PER.

O devedor dirige-se ao tribunal competente (em princípio, o tribunal do comércio) e este


processo tem um caráter urgente. No que não esteja especialmente regulado na lei, ou seja, nos artigos
17º-A e seguintes, aplicam-se as regras de processo de insolvência na medida do aplicável com as
necessárias adaptações. Há uma remissão genérica para as normas do processo de insolvência na
medida em que sejam aplicáveis. A declaração de insolvência, a massa, a liquidação dos bens

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integrantes da massa, essas normas não se aplicam. Mas há um conjunto de outras regras que se
aplicam de forma subsidiária, mas há que verificar a compatibilidade dessas normas.

O juiz, por despacho, nomeia um administrador judicial provisório e esta nomeação e


publicação no portal Citius deste despacho, desencadeia um conjunto de efeitos com particular relevo:

i. O devedor, logo que seja notificado do despacho deve, ele próprio, enviar uma
comunicação aos credores que não tenham com ele apresentado o PER, convidando a
participar nessa negociação. A partir dessa publicação do despacho, qualquer credor dispõe
de um prazo de 20 dias para reclamar dos seus créditos, essa reclamação de créditos deve
ser dirigida ao administrador judicial provisório que passa a ter 5 dias para elaborar a lista
provisória de credores. Esta lista é apresentada no tribunal e é publicada no Citius. Os
credores têm direito a impugnar essa lista com base, nomeadamente, na indevida exclusão
ou na indevida inclusão de um outro credor também num prazo de 5 dias úteis. Nesse caso,
o processo passa ao juiz que tem um prazo de 5 dias para decidir dessas reclamações e, a
partir desse momento, a lista de credores estabiliza o que é importante quer para intervir
nas negociações, quer para votarem, mas tarde, no plano.

ii. A partir deste momento (do fim do prazo para as impugnações) há um prazo de 2 meses
para os credores iniciarem negociações com o devedor. Essas negociações desenvolvem-
se sob os hospícios do administrador judicial provisório e o prazo de 2 meses pode ser
prorrogado excecionalmente por um período de mais 1 mês havendo autorização nesse
sentido do tribunal. O administrador tem um papel de orientação das negociações nas quais
participa e fiscaliza o modo como decorrem as negociações, nomeadamente ele deve afastar
o recurso a qualquer expediente dilatório ou inútil que prejudique a boa marcha das
negociações. Estas obedecem às regras que sejam fixadas entre o devedor e os seus
credores, mas só os credores que decidam participar nas negociações. Se pretenderem
participar, têm de comunicar esse facto por carta registada dirigida ao devedor. Depois
disso ou se chega a acordo ou não se chega a acordo.

iii. A publicação obsta à instauração de ações de cobrança de dívida face aquele devedor
durante todo o período de tempo em que durarem as negociações e suspende as ações de
cobrança de dívida que estiverem a correr também durante o tempo das negociações.

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Há aqui uma divergência doutrina e jurisprudencial em saber se as ações declarativas de


cobrança de dívidas são só as ações declarativas ou também as executivas. O professor
defende que são só as ações executivas, que tem sido a corrente minoritária. As ações
executivas são as únicas que podem verdadeiramente prejudicar a empresa, o que se visa
aqui é impedir o caráter paralisante que uma execução tem sobre o património do devedor
por força da penhora, e não há nenhum sistema jurídico (Direito comparado) paralelo que
alargue esta paralisação e suspensão para além das ações executivas. Há uma diretiva de
2016 relativamente à recuperação de devedores e vai ter de ser transposta, ainda não o foi.
Nessa diretiva só se considera a paralisação das ações executivas, o que não quer dizer que
o legislador não possa paralisar o que quer, mas o que se pretendeu foi só a das ações
executivas.
A doutrina tem ido noutro sentido- também se suspendem as ações declarativas de
condenação ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos.
É relevante esta questão das ações executivas porque tem a ver essencialmente com a
penhora, os efeitos da penhora- o que acontece com a penhora de bens do estabelecimento
do devedor, ou a penhora das contas bancárias, deixa de poder mexer nas contas bancárias,
deixa de poder funcionar- cria um mecanismo de proteção que permite a negociação e o
funcionamento da empresa neste período de tempo. Está previsto no art. 17.º-E/1.

iv. Os processos de insolvência anteriormente interpostos contra este devedor suspendem-se.


Se prosseguisse não conseguia negociar. E não podem ser interpostos outros neste período
de tempo (art. 17.º-E/6).

v. Decorre das alterações de 2017 (e o legislador o que quis fazer foi transpor parcialmente a
Diretiva) e tem a ver com a impossibilidade, por parte dos credores, de cessarem
determinados contratos relativos a serviços públicos essenciais: água, luz, gás,
comunicações eletrónicas: 17.º-E/8. Se um sujeito fica sem luz ou comunicação eletrónicas,
a empresa não consegue funcionar, embora, se o devedor vier a ser declarado insolvente as
dívidas são da massa (n.º9).
O devedor não pode praticar atos de relevo sem autorização do administrador, a sua gestão
é limitada. Ele precisa da autorização do administrador, noutras circunstâncias não lhe é
conferido o direito e não pode praticar este conjunto de atos.

vi. Para além disso é possível ser concedido financiamento: art. 17.º-H por duas vias:
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o A constituição de garantias, neste período de tempo, que visem tutelar um


financiamento concedível ao devedor e, vindo mais tarde, a ser aprovado e homologado
o programa de recuperação, essas garantias não podem vir a ser atingidas num processo
de insolvência posterior, estão protegidas, não podem ser atingidas. Por outras palavras:
as garantias que sejam acordadas entre o devedor e os credores durante o PER que
tenham em vista conceder ao devedor os meios financeiros necessários para ele
desenvolver a sua atividade mantêm-se mesmo que no prazo subsequente de 2 anos
venha a ser declarada a insolvência do devedor (artigo 17º-H nº 1).
Há um conjunto de atos praticados por um insolvente, quando ele não era insolvente que
podem ser, verificado o conjunto de requisitos dos artigos 120.º e 121.º do CIRE, podem
vir a ser resolvidos pelo administrador. O credor que conceda garantias num período de
tempo antes do processo de insolvência, facto que ele não controla, corre o risco de ficar
sem garantia por resolução por parte do administrador, quer nos termos gerais do 120.º,
quer nos termos específicos do 121.º, o pode fazer. Daí o interesse do art. 17-H/1, desta
norma de proteção- as garantias conseguidas para o funcionamento da empresa no âmbito
do PER não podem ser atingidas mesmo que o devedor venha, mais tarde, a ser declarado
insolvente.
o A concessão de uma garantia especial ao chamado dinheiro novo: este é um dos aspetos
mais relevantes: o “fresh money”. Quando falamos da recuperação de empresas e
mecanismos e instrumentos de recuperação, quase sempre, o modelo que o legislador
tem em vista é o modelo de empresas americano “chapter 11” que visa a criação de uma
recuperação de empresas e um dos elementos essenciais e que aqui também se procura
obter é o chamado financiamento do devedor que mantém a administração dos seus
bens e há um financiamento concedido no fim desse tempo com vista a recuperação e
que é protegido.
A lei, aos credores que, no decurso do processo, financiem a atividade do devedor,
disponibilizando-lhes capital para a sua revitalização, concede-lhes um privilégio
mobiliário geral que se gradua antes do privilégio mobiliário geral dos trabalhadores
(artigo 17º-H, n.º 2).
O legislador quis criar este privilégio e tornou-o especialmente robusto acima de vários
privilégios. Isto significa que numa eventual insolvência, estes credores privilegiados
são satisfeitos à frente de outros credores, nomeadamente os trabalhadores, é
especialmente relevante sob pena de, neste período de tempo ninguém ir conceder
capital à empresa. Se um credor não tem um elemento adicional para garantir o seu
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crédito não concede o crédito, não concede este fresh money e impede-se ab initio esta
recuperação. Estes dois últimos pontos, têm, por isso, especial relevo. Contudo há aqui
uma falha: aquilo que está previsto é o chamado financiamento para depois da
aprovação do plano de recuperação. Todavia, o devedor tem necessidade do
financiamento ponte, ou seja, para o período das negociações. Pode-lhe ser financiado
para este período de tempo e pode beneficiar o privilégio mobiliário geral, mas o credor
corre o risco de não ser aprovado e homologado o plano e se não o for fica como credor
comum.
Uma questão muito colocada na doutrina é saber o seguinte: os credores concedem
fresh money e têm este privilégio. O financiamento de uma sociedade comercial pode
ser externo, por via de um empréstimo bancário, ou por via de financiamento interno-
a forma de financiamento interno, em grande parte, consiste na conceção de crédito por
parte dos próprios sócios, concedendo-lhes empréstimos.
A questão que se coloca é se os sócios, nas sociedades por quotas e anónimas (sendo
aplicado por analogia), estão protegidos também aqui? O financiamento por
suprimento está aqui protegido também- eles são credores-sócios?
O professor defende que os suprimentos não estão aqui protegidos e não estão
protegidos porque os suprimentos, em caso de insolvência passam a ser créditos
insubordinados. Em caso de insolvência, os próprios créditos perdem as garantias que
tinham antes, para além de um conjunto de outros efeitos ligados aos suprimentos. Se
isso se permitisse, estes credores passariam de credores subordinados a credores
garantidos numa posição particularmente forte na insolvência o que acabaria por
desvirtuar o regime do suprimento.
Grande parte não quer fazê-lo e nos suprimentos fazem-no na posição de credores. Em
caso de insolvência passam a ser credores subordinados. No PER fazia-se uma inversão
de 180 graus, passavam de subordinados para protegidos, até porque se podia adiar o
financiamento desta situação económica difícil por via do PER. Foi criada uma norma
excecional na pandemia que o permite, o que torna claro este regime, que é o geral.
iv. Caso o plano de revitalização seja aprovado: ou é aprovado por unanimidade por parte dos
credores que tenham reclamados os seus créditos ou então não é e é necessário que seja
aprovado por uma de dias maiorias de credores, que são formas de cálculo um pouco difíceis.
O professor não vai desenvolver.
v. Depois disso, o plano vem ou não a ser homologado por parte do juiz. O plano só produz efeitos
quando homologado pelo juiz (art. 17.º-F) que verifica se existem as condições. A lei remete,
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em parte, para o regime de recusa de homologação do plano de insolvência. Qualquer credor


pode pedir recusa de formulação por parte do juiz desde logo através do best interest: se ele
fica numa pior posição do que aquela em que ficaria se o sujeito fosse declarado insolvente.

PER na segunda modalidade


Para além disso, temos uma outra modalidade de PER, menos utilizada, mas que visa consagrar
uma figura prevista na generalidade dos sistemas comparados que vem prevista no art. 17.º-I do CIRE
e que consiste nos chamados acordos extrajudiciais homologados: a negociação não se faz no âmbito
do PER, nem de forma protegida. Aqui não temos escudos de proteção antes dos credores e devedores
chegarem a acordo. A fase do acordo é prévia

Chegando a acordo é possível recorrer a este regime previsto no 17.º-I e que, em grande parte, é
composto por remissões sucessivas para o regime PER regular, mais amplo, em que as negociações
são feitas no âmbito do próprio processo. É um regime composto por remissão e que leva a que haja
uma aprovação do plano pelos credores e o juiz irá homologar ou não o plano. Faz-se fora do processo
judicial, os credores chegam ou não com o devedor a um acordo e tem de ser apresentado a tribunal
para depois ser aprovado, as maiorias têm de ser as mesmas previstas para o PER na primeira
modalidade, e os fundamentos de recusa de homologação do plano, por parte do juiz, são os mesmos
e os fundamentos também, os fundamentos da primeira modalidade e os fundamentos de pedido por
parte de credores de recusa do processo de revitalização são os mesmos que existem para a primeira
modalidade de PER. É um sistema que assenta numa intervenção limitada do tribunal que permite ao
devedor reequilibrar a sua situação.

Esse sistema é mais eficiente porque não há a exposição pública que o PER revela. O sujeito chega
a acordo com um conjunto de credores e já tem um plano. Pode mais rapidamente levar à aprovação
do plano.

Nós não entramos, nem podemos entrar no conjunto de medidas que compõe o PER, as medidas
podem ser muito diferentes e assentam essencialmente na concessão de financiamento durante aquele
tempo, mas, para além disso, e em grande parte, aquilo que temos e existe é a concessão de moratórias
para pagamento de créditos e a redução de passivos, do valor dos créditos face o devedor, tem de se
reduzir o montante nominal dos créditos e a conceção de uma dilação para o devedor pagar.

Notar que os créditos fiscais não podem ser reduzidos na insolvência, quer na insolvência quer no
PER. Em Portugal e Espanha, os créditos fiscais estão completamente blindados.

Há depois um conjunto de outras figuras que podem ser aprovadas:


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É possível, também chegarem-se a solução debt-for-equity swap, ou seja, a troca de dívida por
participações sociais: sempre que a empresa tiver um estabelecimento e esse for viável, por exemplo,
o titular de uma empresa com diversas unidades de restauração e um dos restaurantes é rentável, uma
forma de recuperação é a constituição de um nova sociedade- esse restaurante lucrativo é transferido
e as entradas dos sócios nessa sociedade são feitas pelos credores e essas entradas não são feitas em
dinheiro, mas são feitas com os próprios créditos, eles deixam de ser credores e passam a ser sócios
daquela sociedade que explora aquele negócio rentável. É um mecanismo clássico de recuperação ou,
quando não se pode recuperar o sujeito, de uma ou mais empresas do património do sujeito: a
constituição de sociedades nestes termos é um expediente utilizado no âmbito do PER.

O estatuto dos comerciantes

Os comerciantes gozam de um estatuto próprio. Desde logo, a qualificação de um ato como


comercial é influenciada pelo facto de um sujeito ser comerciante – sendo o sujeito comerciante, todos
os atos por ele praticados presumem-se subjetivamente comerciais (art. 2.º, 2.ª parte, C.Com.). Por
outro lado, também a aplicação dos juros comerciais a determinado negócio jurídico depende do
estatuto do credor – se o credor for comerciante, aplicam-se os juros comerciais, que são mais elevados.
A forma de alguns atos comerciais é simplificada para facilitar o comércio (como, por exemplo, no
caso do empréstimo mercantil – art. 339.º, C.Com.). Vigora uma prescrição presuntiva no âmbito dos
créditos dos comerciantes (art. 316.º, al. b), CC) – estes obedecem ao regime da prescrição presuntiva
de 2 anos. Por último, as dívidas comerciais dos comerciantes casados presumem-se contraídas no
exercício do seu comércio – como tal, são, em princípio, da responsabilidade comum do casal (art.
1691.º, n.º 1, al. d), CC).

Obrigações dos comerciantes

As obrigações dos comerciantes estão previstas no art. 18.º, C.Com., e consistem na adoção de
uma firma ou denominação, na adoção de escrituração mercantil, na sujeição ao registo comercial e na
prestação de contas.

1. Obrigação de adotar firma ou denominação

A firma está associada ao comerciante, e consiste no nome comercial dos comerciantes. Não
pode confundir-se com os conceitos de empresa, que consiste numa estrutura produtiva destinada a

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produzir bens ou serviços; ou de sociedade, que corresponde à estrutura jurídica que explora uma
empresa. A firma consiste, portanto, no nome comercial dos comerciantes – no fundo, trata-se da sua
identificação comercial, de um sinal distintivo do comércio subjetivo. Através desta obrigação, a lei
impõe que o comerciante tenha uma espécie de “assinatura própria” para a sua dimensão da vida
enquanto comerciante, especificamente dedicada para identificar os atos do seu comércio, ou seja, para
identificar que atua no exercício do seu comércio. A firma oferece segurança jurídica, permitindo à
contraparte e a terceiros saber quando determinado ato é praticado na realidade do comerciante, i.e.,
pelo comerciante enquanto comerciante.

Porém, importa referir que existem entidades não comerciantes que são obrigadas a adotar
firma, como as sociedades civis sob a forma comercial (art. 37.º, Regime do Registo Nacional de
Pessoas Coletivas) e os agrupamentos complementares de empresa com objeto civil. Também os
empresários individuais não comerciantes podem adotar uma fima (art. 39.º, RRNPC).

Tradicionalmente, enquanto a firma era constituída por nomes de pessoas, a denominação era
composta por expressões que indicavam o objeto social da atividade desenvolvida pelo comerciante.
Contudo, atualmente, o termo firma é usado tendencialmente para designar o signo individualizador
dos comerciantes. A denominação, por sua vez, é usada tendencialmente para designar entes não
comerciantes. Assim, há denominações que podem ser constituídas por nomes de pessoas (arts. 36.º,
42.º e 43.º, RRNCP). Contudo, esta distinção é meramente tendencial, uma vez que o RRNPC prevê a
possibilidade de não comerciantes adotarem firmas e o RSPE prevê denominações para entidades que
são comerciantes.

A propósito das firmas, é possível distinguir entre:

• Firmas-nome – compostas pelo nome do comerciante;


• Firmas-denominação – compostas pelo objeto social ou por outras expressões fantasiosas;
• Firmas mistas – compostas pelo nome do comerciante e outras designações.

1.1. Composição das firmas

Para os comerciantes individuais, i.e., pessoas singulares, a firma deve ser composta pelo
nome do comerciante, completo ou abreviado, conforme seja necessário para identificar a pessoa (art.
38.º, RRNPC). Em regra, a abreviação não pode reduzir-se a um só vocábulo. É possível a utilização
de pseudónimos de reconhecido destaque. O nome pode ser antecedido de expressões ou siglas que
correspondam a títulos académicos, profissionais ou nobiliárquicos a que o comerciante tenha direito.

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Pode, também, ser aditada uma alcunha ou uma expressão alusiva à atividade do comerciante. Assim,
a firma de um comerciante individual nunca pode ser uma firma-denominação, por ser obrigatória a
identificação do nome ou pseudónimo, embora possa ser mista. Se o comerciante explorar um
estabelecimento individual de responsabilidade limitada, a firma deverá conter o aditamento
“Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada” ou “EIRL” (art. 40.º, RRNPC).

As sociedades comerciais em nome coletivo, nas quais os sócios respondem solidariamente


pelas dívidas da sociedade, devem adotar uma firma composta pelo nome completo ou abreviado ou
fima de todos os sócios, ou pelo nome completo ou abreviado ou firma de um dos sócios com o
aditamento abreviado ou por extenso “& Companhia” (art. 177.º, n.º 1, CSC e art. 38.º, RRNPC).
Também pode conter expressões alusivas ao objeto social (art. 42.º, n.º 1, RRNPC).

Nas sociedades por quotas, a firma deve ser formada, com ou sem sigla, pelo nome completo
ou abreviado ou pela firma de todos, algum ou alguns dos sócios (neste caso, será uma firma-nome) –
art. 200.º, CSC. Pode, em alternativa, ser composta por denominação particular (caso em que será
firma-denominação), ou por reunião de ambos os elementos (firma mista). Deve, ainda, conter o
aditamento “Limitada” ou “Lda.”.

Nas sociedades anónimas, a firma deverá conter exatamente os mesmos elementos exigidos
para a firma das sociedades por quotas, com a diferença de que o aditamento obrigatório será “S.A.”
(art. 275.º, CSC).

Nas sociedades em comandita, a firma deve ser composta pelo nome completo ou abreviado
ou firma de um, alguns ou todos os sócios comanditados, devendo conter o aditamento “Em
Comandita” ou “& Comandita”, quando se trate de uma sociedade em comandita simples (art. 467.º,
CSC). No caso das sociedades em comandita por ações, o aditamento será “Em Comandita por Ações”
ou “& Comandita por Ações”. É possível que nestas firmas constem os nomes dos sócios
comanditários, desde que estes consintam – os sócios comanditários que consintam na inclusão do seu
nome na firma ficam sujeitos às consequências fixadas no art. 467.º, n.ºs 3 e 4, CSC.

Nos agrupamentos complementares de empresas, as firmas podem ser compostas por uma
denominação particular ou pelos nomes completos ou abreviados ou firmas de todos os seus membros,
ou de todos, alguns ou apenas um dos seus membros. Pode, ainda, conter a reunião de ambos os
elementos. Para além disso, devem conter o aditamento “Agrupamento Complementar de Empresas”
ou “A.C.E.”.

As entidades públicas empresariais devem conter na firma o aditamento “E.P.E.”. As


cooperativas, por outro lado, devem adotar o aditamento “Cooperativa”, “União de Cooperativas”,

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“Federação de Cooperativas” ou “Confederação de Cooperativas”, consoante a conformação do


fenómeno jurídico. Devem, ainda, conter a menção “Responsabilidade Limitada” ou
“Responsabilidade Ilimitada”, consoante o caso. Por fim, os agrupamentos europeus de interesse
económico devem conter o aditamento “Agrupamento Europeu de Interesse Económico” ou
“A.E.I.E.”.

1.2. Princípios subjacentes à composição da firma


a) Princípio da verdade

Nos termos do art. 32.º, n.º 1, RRNPC, os elementos que compõem as firmas e denominações
devem ser verdadeiros e não devem induzir em erro sobre a identificação, natureza ou atividade do
titular. Assim, quando se trate de firma-denominação que faça alusão ao objeto social, esta deve ser
verdadeira, i.e., deve referir-se especificamente ao objeto social da empresa em causa, à sua atividade
realizada. Por outro lado, numa firma-nome não pode ser usado o nome de um terceiro que não o do
comerciante, nem o nome de um terceiro que não seja sócio da sociedade.

Se, por algum motivo, uma pessoa deixar de ser sócio, a firma deverá ser alterada no prazo de
1 ano, exceto se o sócio que saiu ou os herdeiros consentirem por escrito na manutenção da mesma
firma. Esta possibilidade da manutenção inalterada da firma em caso de consentimento do sócio ou
dos herdeiros corresponde a uma restrição ao princípio da verdade (art. 32.º, n.º 5, RRNPC).

b) Princípios da novidade e da exclusividade

Os princípios da novidade e da exclusividade devem ser articulados (arts. 33.º e 35.º, RRNPC).
Nos termos destes princípios, as firmas e denominações devem ser distintas e não suscetíveis de
confusão ou erro com as licenciadas ou registadas no mesmo âmbito de exclusividade. Deste modo,
uma firma deve ser nova, exclusiva de um concreto comerciante, diferente de qualquer outra já
existente, mesmo quando a lei permita a inclusão de elementos por outras já registadas ou com
designações de instituições já conhecidas. Deve haver um elemento de distinção trazido pela firma, de
forma a que possa ser distinguida, uma vez que a firma é um sinal subjetivo distintivo do comércio. O
princípio da novidade deve ser aferido à luz do princípio da exclusividade, no sentido em que uma
firma de um comerciante deve ser distinta de qualquer outra já existente, deve ser exclusiva. Assim,
cada comerciante terá um direito de uso exclusivo da sua firma.

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O espaço geográfico do uso exclusivo da firma será distinto consoante se trate de um


comerciante em nome individual ou de um comerciante em nome coletivo. As sociedades comerciais
têm exclusividade em todo o território nacional (art. 37.º, n.º 2, RRNPC). As ACE, EPE e AEIE
também gozam da exclusividade em todo o território nacional, exceto quando o respetivo objeto
estatutário indicie a prática de atividades de caráter local ou regional – neste caso, o âmbito de
exclusividade restringe-se ao âmbito geográfico (arts. 43.º, n.º 2 e 36.º, n.º 3, RRNPC).

Os comerciantes individuais, por outro lado, quando detenham firma-nome, não gozam de
direito à exclusividade sobre a firma, apenas a podendo proteger pela proteção do direito ao nome (art.
72.º, CC) ou ao abrigo do regime da concorrência desleal (art. 311.º, Código da Propriedade
Intelectual). A exclusividade vigora no âmbito do concelho onde se encontra o estabelecimento
principal (art. 38.º, n.º 4, RRNPC).

O art. 10.º, n.º 2, CSC deve ser conjugado com o art. 33.º, RRNPC, através de uma interpretação
corretiva. Deste modo, as firmas novas podem conter elementos já utilizados por firmas anteriores,
uma vez que a inconfundibilidade é averiguada pelo conteúdo global da firma e não exclusivamente
por um elemento. Assim, as firmas podem conter elementos comuns, desde que o conteúdo global de
cada uma seja diferente e inconfundível.

O padrão para aferir a inconfundibilidade das firmas é o do público médio, isto é, a perceção
de um público médio, de normal capacidade, diligência e atenção. A jurisprudência tem dado especial
atenção à proximidade das siglas. Haverá violação do princípio da novidade quando haja
confundibilidade e quando das firmas pareça resultar alguma relação especial entre comerciantes que
são distintos. Segundo este entendimento, uma firma será nova se, atendendo à grafia das palavras, ao
efeito fonético das expressões, ao núcleo caracterizante e à forma oficiosa dos signos utilizados o
público médio a consiga distinguir, não a confundido com outra de outro comerciante. Também haverá
violação do princípio da novidade quando o público médio, embora não confundindo a firma com
outra, acredita erroneamente que se refira a comerciante distinto mas especialmente relacionado com
outro.

Na doutrina, certos autores consideram que o problema da confundibilidade só se coloca


quando estejam em causa comerciantes que exerçam atividades concorrentes. Contudo, a doutrina
maioritária considera que a concorrência de atividades é apenas um critério de ponderação e não de
exclusão. Assim, o princípio da novidade da firma deve valer inclusive para comerciantes não
concorrentes, de forma a garantir a inconfundibilidade. A não identidade ou afinidade das atividades

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exercidas ou a exercer pelos comerciantes não exclui a suscetibilidade de confusão ou erro, ao abrigo
do art. 33.º, n.º 2, RRNPC.

Exemplos para averiguar da confundibilidade das firmas:

• SPA – Sociedade Portuguesa de Autores, Cooperativa de Responsabilidade Limitada vs. Auctores


– Representação e Gestão de Direitos Intelectuais, S.A.: no entendimento do tribunal, estas firmas
foram consideradas confundíveis, violando o princípio da novidade. A segunda firma não foi
admitida.
• SPS – Sistemas de Proteção e Segurança, Lda. vs. SVS – Serviços de Vigilância e Segurança, Lda.:
também no entendimento do tribunal estas foram consideradas confundíveis, não sendo a segunda
admitida.
• GALP – Gabinete de Urbanismo, Arquitetura e Engenharia, Lda. vs. GALP – Energia, S.G.P.S.,
S.A.: não consideradas confundíveis.

c) Princípio da capacidade distintiva

A firma, enquanto sinal distintivo do comércio, deve ser apta a distinguir o sujeito concreto de
qualquer outro comerciante (art. 33.º, n.º 3, RRNPC). Assim, necessita de integrar elementos que
permitam, do conjunto, identificar quem é o comerciante (art. 10.º, n.º 4, CSC).

Este princípio coloca-se a propósito das firmas-denominação que não contenham elementos de
distinção. Nestes termos, na firma não podem ser utilizadas referências genéricas que não tenham
capacidade de identificação do comerciante, como, por exemplo, a referência a vocábulos de uso
corrente ou relativos a indicações geográficas. A firma deve ser capaz de distinguir o concreto
comerciante de todos os restantes.

d) Princípio da unidade

Certos autores, como Ferrer Correia, defendem que deve ser permitida aos comerciantes
individuais a adoção de várias firmas quando tenham várias empresas. Contudo, à luz dos arts. 38.º,
n.º 1, RRNPC e 9.º, n.º 1, al. c), CSC, vigora o princípio da unidade. Como tal, cada comerciante pode
ter apenas uma única firma. Se o comerciante adquirir uma outra firma, através, por exemplo, da
aquisição de uma empresa, deverá aditar a firma adquirida à sua – assim, a primeira firma extingue-se
e o comerciante passa a ter uma firma composta pelas duas (art. 44.º, nºs 1 e 3, RRNPC).
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Este princípio apresenta, contudo, uma exceção: um comerciante individual que explore uma
empresa no contexto de um EIRL e que explore uma outra empresa fora desse cotexto deve adotar
duas firmas (art 40.º, RRNPC).

e) Princípio da licitude

Este corresponde a um princípio residual, estabelecido no art. 32.º, n.º 4, RRNPC. Nos termos
do princípio da licitude, as firmas não podem conter expressões proibidas por lei, ofensivas da moral
e dos bons costumes, ou incompatíveis com a liberdade de opção política, religiosa e ideológica, que
desrespeitem símbolos nacionais, personalidades, épocas ou instituições cujo nome seja de
salvaguardar por razões culturais, etc.

1.3. Alterações das firmas ou denominações

Conforme o art. 56.º, RRNPC, vigora um princípio de livre alterabilidade das firmas, segundo
o qual um comerciante poderá, a qualquer altura, alterar a sua firma.

Em certos casos, a alteração será obrigatória, nomeadamente quando ocorra a mudança de


nome do comerciante individual (art. 38.º, n.º 1, RRNPC). Se deixar de ser associado ou sócio a pessoa
cujo nome figura na firma, se esta não consentir na manutenção do seu nome, a alteração será
obrigatória (art. 32.º, n.º 5, RRNPC). Também a aquisição de nova firma obriga à alteração da firma
originária (art. 44.º, n.ºs 1 e 4, RRNPC). Por outro lado, a alteração da firma será obrigatória quando
haja alteração do objeto estatutário de uma sociedade (art. 54.º, n.º 2, RRNPC e arts. 200.º, n.º 3 e
273.º, n.º 3, CSC), quando haja transformação de sociedades e quando uma sociedade comercial esteja
em liquidação, caso em que terá de acrescentar à firma a expressão “Sociedade em Liquidação” ou
“Em Liquidação”.

1.4. Transmissão da firma ou da denominação

A transmissão da firma ou denominação é possível ao abrigo do art. 44.º, RRNPC, mediante


verificação de determinados requisitos:

• A transmissão da firma só é permitida se for feita conjuntamente com a transmissão de um


estabelecimento comercial a que esteja ligada, seja através de transmissão definitiva (trespasse)
ou temporária (locação).

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• Necessidade de acordo das partes, sendo que o acordo do transmitente deve assumir a forma
escrita. Se a firma for de um ente coletivo e tiver nome de algum sócio ou associado, será
necessário o consentimento do titular desse nome integrado na firma
• O adquirente deve aditar à sua própria firma a menção de sucessão e a firma adquirida. No caso
de comerciante individual, é possível a transmissão mortis causa, devendo indicar a sucessão
através de “herdeiro de” (art. 44.º, n.º 3, RRNPC).

1.5. Extinção do direito à firma

O direito à firma extingue-se, em geral, em caso de morte do comerciante ou transmissão da


empresa, bem como pelo não uso.

Tratando-se de comerciante em nome individual que falece e não deixa estabelecimento


comercial, a firma extingue-se imediatamente. Tratando-se de comerciante em nome individual que
falece e deixa estabelecimento comercial, será necessário distinguir:

i. Se o estabelecimento comercial foi transmitido sem firma, esta extingue-se;


ii. Se o estabelecimento comercial for transmitido com a firma, esta extingue-se e passa a integrar
a firma do adquirente;
iii. Se o estabelecimento comercial for liquidado, a firma extingue-se.

Se o comerciante em nome individual deixar de exercer atividade comercial, será necessário


distinguir:

i. Se tiver transmitido o estabelecimento comercial junto com a firma, esta extingue-se e passa a
integrar a firma do adquirente;
ii. Se não tinha estabelecimento, se o liquidou ou se o transmitiu sem firma, o direito à firma
perdura, exceto se o RNPC declarar a sua perda, seja oficiosamente ou a requerimento de
qualquer interessado, mediante prova de que o titular não exerce atividade mercantil há pelo
menos 2 anos consecutivos ou que a firma não foi inscrita no Ficheiro Central de Pessoas
Coletivas nos prazos indicados no art. 61.º, n.º 1, RRNPC.

Tratando-se de sociedade comercial que cesse a sua atividade, extinguindo-se a sociedade


comercial extingue-se, também, a respetiva firma ou denominação. Se, por outro lado, não se extinguir
a sociedade comercial, volta a ser necessário distinguir:

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i. Se transmitir os estabelecimentos comercias juntamente com a firma, esta extingue-se e passa


a integrar a firma do adquirente;
ii. Se não houver transmissão da firma, esta subsiste nos mesmos moldes dos comerciantes
individuais que deixem de exercer atividade comercial.

1.6. Tutela do direito à firma

O direito à firma corresponde a um direito de propriedade sobre bens imateriais e traduz-se no


direito ao uso exclusivo da firma pelo comerciante. Este direito adquire-se com o registo definitivo da
firma (arts. 3.º e 35.º, n.º 1, RRNPC). Contudo, existe uma exceção, prevista na União Internacional
para a Proteção da Propriedade Intelectual, da qual Portugal faz parte – por força do princípio da
reciprocidade, os nacionais e equiparados dos países signatários da convenção que constituam
validamente no estrangeiro firmas ou denominações que também usem em Portugal ou que sejam aqui
notoriamente reconhecidas também gozam do direito à exclusividade mesmo não tendo firma registada
em Portugal.

A tutela do direito à firma é feita, por um lado, numa perspetiva preventiva, através da exigência
de um certificado de admissibilidade da firma, passado pelo RNPC aquando do seu registo (art. 35.º,
RRNPC). Por outro lado, apresenta uma perspetiva repressiva – o titular de uma firma registada poderá
recorrer ao tribunal, em caso de violação de algum dos princípios estruturantes da firma, de forma a
que este declare a nulidade ou proceda à verificação ou anulação do direito ao uso da firma por parte
de terceiros. Poderá, ainda, pedir uma indemnização por perdas e danos resultantes do uso ilegal de
uma firma por parte de terceiro.

2. Obrigação de adotar escrituração mercantil

A escrituração mercantil corresponde ao registo ordenado e sistemático, em livros e


documentos, de factos relativos à atividade mercantil dos comerciantes, tendo em vista a informação
deles e de outros sujeitos (ex: atas das reuniões dos órgãos, contabilidade, documentação da
correspondência expedida pelo comerciante). Permite das a conhecer a realidade económica e
patrimonial do comerciante.

O comerciante pode escolher o modo de organização da sua escrituração mercantil, bem como
o suporte físico (art. 30.º, C.Com.). Embora a legislação não imponha aos comerciantes o modo estrito
da forma como devem organizar a sua escrituração mercantil, especialmente no que toca à

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contabilidade, tal pode resultar das regras fiscais e contabilísticas. Apesar desta liberdade, as
sociedades comerciais continuam obrigadas a ter livros de atas, assim como as restantes entidades
coletivas.

Por regra, a escrituração mercantil apresenta um caráter secreto. Contudo, esta regra tem vindo
a ser derrogada por força das crescentes necessidades de informação características do mundo
societário. Os arts. 41.º a 43.º do C.Com. preveem determinadas situações em que terceiros podem
exigir fiscalizar a escrituração mercantil, seja no âmbito de ações judiciais, seja em virtude de atuações
por parte de entidades públicas para confirmar o respeito pela obrigação de adotar escrituração
mercantil, seja por comissões de trabalhadores no exercício do direito de participação no modo de
organização da empresa.

A escrituração mercantil desempenha um importante papel probatório. Nos termos do art. 44.º,
C.Com., em sede de processo judicial, vigora uma presunção ilidível de que os factos que constam da
escrituração do comerciante são verdadeiros. Como tal, se um comerciante tiver a sua escrituração
devidamente organizada, os factos que dela constam podem fazer prova contra ou a favor dele. Os
livros de escrituração mercantil irregularmente escriturados ou arrumados fazem prova contra o
comerciante, mas a parte que deles queira beneficiar deve também aceitar os assentos desses livros
que lhes forem prejudiciais., exceto se ele próprio tiver livros arrumados ou outras provas em contrário.
Os livros arrumados fazem prova contra e a favor do comerciante, mas se a outra parte também
apresentar livros arrumados com conteúdo oposto, o tribunal decide pelo merecimento de quaisquer
provas no processo. Não adotando escrituração mercantil, o sujeito comerciante não beneficiará da
presunção do art. 44.º, C.Com.

3. Obrigação de prestar contas

O art. 62.º, C.Com. prevê a obrigação para os comerciantes de prestarem contas periodicamente
– devem dar balanço anual ao ativo e passivo nos 3 primeiros meses do ano seguinte. O balanço é um
dos principais documentos da prestação anual de contas, destinado a comparar o ativo e o passivo para
se identificar a situação líquida da sociedade. A não apresentação atempada das contas é fundamento
de abertura de inquérito judicial, nos termos do art. 1048.º, n.º 3, CPC.

Os documentos de prestação de contas devem ser depositados na conservatória de registo


comercial e publicados. Existe um dever de guardar estes documentos por um prazo de 10 anos a contar
da data do último assento ou lançamento (art. 40.º, C.Com.). Contudo, tratando-se de uma sociedade
comercial que seja dissolvida ou liquidada, esta obrigação de guardar os documentos da escrituração

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e contabilidade será reduzida para o prazo de 5 anos a contar da data da deliberação que aprova o
relatório de contas finais. No entendimento da doutrina, esta obrigação transmite-se aos herdeiros.

4. Obrigação de inscrição no registo comercial

Os comerciantes estão sujeitos a registo comercial. Neste âmbito, vigora um princípio de


taxatividade, apenas sendo sujeitos a registo os atos que a lei determina que devam ser registados.
Existe, no entanto, um conjunto de atos sujeitos a registo obrigatório, previstos no art. 15.º do Código
do Registo Comercial. Para os comerciantes individuais, a maioria dos atos são de registo facultativo,
embora haja atos de registo obrigatório, relacionados com a insolvência (art. 38.º, n.º 2, al. b), CIRE).
O registo apresenta um caráter público, na medida em que qualquer interessado poderá pedir certidão
dos atos do registo e dos documentos arquivados.

Existem duas formas de registo comercial (art. 53.º-A, CRC): o registo por transcrição e o
registo por depósito. No registo comercial por transcrição, extraem-se dos documentos apresentados
os elementos que definem a situação jurídica das entidades sujeitas a registo. Nesta modalidade, existe
um controlo de legalidade do facto a registar pelo conservador do registo comercial, no ato do registo.
Esta característica releva no âmbito dos efeitos do registo, uma vez que vigora uma presunção da
veracidade do facto registado. No registo por depósito, procede-se a um mero arquivamento dos
documentos. O registo por depósito não gera qualquer presunção, uma vez que não existe qualquer
controlo de legalidade. A promoção do registo pode ser feita online.

Efeitos do registo e publicação: o registo constitui presunção de que existe a situação jurídica
registada nos exatos termos em que é definida (art. 11.º, CRC). O registo comercial apresenta uma
natureza declarativa, apenas gerando a presunção de que o facto registado é verdadeiro. Contudo, esta
é uma presunção ilidível, válida apenas para registo por transcrição definitivo.

O registo produz como efeito central a oponibilidade perante terceiros. Nas situações de registo
obrigatório, o ato de registo torna-se requisito de eficácia do facto em relação a terceiros. Não sendo
registado, o facto existe entre partes, tendo eficácia inter partes, mas não pode ser invocado contra
terceiros – contudo, em regra, os terceiros podem invocá-lo. Para este efeito, são considerados terceiros
aqueles que adquirem um direito incompatível com o direito registado. Nos casos, embora contados,
de registo constitutivo e não meramente declarativo, o ato não registado será ineficaz perante as partes
e perante terceiros.

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Responsabilidade por dívidas comerciais contraídas por cônjuge comerciante


Importam aqui os artigos 1691º nº 1 al. d) CCivil e 15º CComercial.

Este regime apenas aplica-se se os cônjuges forem casados em comunhão de adquiridos ou


comunhão geral de bens. Não se aplica em separação de bens. Por isso, muitos casais de comerciantes
casam-se em regime de separação de bens.

São da responsabilidade de ambos os cônjuges – quando casados sob o regime da comunhão


de adquiridos ou da comunhão geral de bens – as dívidas contraídas por qualquer deles no exercício
do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal (artigo 1691º
nº 1 al. d do CCiv.). Por tais dívidas “respondem os bens comuns do casal, e, na falta ou insuficiência
deles, os bens próprios de qualquer dos cônjuges” (art. 1695º nº 1). É um regime tutelador do comércio.

Existem duas presunções ilidíveis. Mas são difíceis de ilidir. Pais Vasconcelos diz que basta
elidir uma destas presunções para que não se aplique o regime da comunicabilidade.

O artigo 15º CComercial prevê que as dívidas comerciais do cônjuge comerciante presumem-
se contraídas no exercício do seu comércio. Para beneficiar desta presunção, os credores têm de provar
que o sujeito que contraiu as dívidas é comerciante e que as dívidas são comerciais (provando que
resultam da prática de atos objetivamente ou subjetivamente comerciais). Esta presunção é importante,
na medida em que só são responsabilizados ambos os cônjuges se o credor da dívida provar que as
dividas foram contraídas pelo cônjuge no exercício do seu comercio. Se afastarem a presunção do
artigo 15º CComercial, não se aplica a comunicabilidade da dívida do artigo 1691º CC.

Se o credor provar os factos atrás descritos, surgem mais duas presunções:

1. A dívida foi contraída no exercício do comércio do comerciante;


2. A dívida foi contraída em proveito comum do casal (1691º) – só estas são partilhadas,
comunicáveis. Normalmente, os rendimentos da atividade do comerciante servem para
ocorrer aos encargos normais da vida familiar, daí que seja difícil ilidir a presunção de que
a dívida é feita em proveito comum do casal – a doutrina tem entendido que não se refere
apenas a proveito económico, mas também proveito moral e intelectual.

Estas presunções atuam em cadeia. Pais de Vasconcelos diz que basta de ilidir uma destas
presunções para não se aplicar a comunicabilidade da divida. Contudo, são presunções difíceis de ilidir.

113
Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Nos termos do artigo 1691º, pelas dividas contraídas por qualquer um dos cônjuges no exercício
do seu comércio respondem, em primeiro lugar, os bens comuns do casal. Na insuficiência ou falta
destes, respondem solidariamente os bens próprios de qualquer dos cônjuges.

Empresas
O que é uma empresa?

Não existe uma noção única de empresa. Não é possível reconduzir as diferentes noções de
empresa a uma única englobante. Há vários sentidos com que a palavra empresa é usada em diplomas
normativos e em diferentes ramos do Direito. O CComercial não apresenta noção de empresa.

Noutros ramos de Direito, há noção de empresa:

a. Artigo 3º da Lei de Defesa da Concorrência 19/2012 de 8 de maio: é empresa qualquer


entidade que exerça uma atividade económica que consiste na oferta de bens e serviços
num determinando mercado independentemente do seu estatuto jurídico e do modo de
funcionamento.
Neste artigo, a noção de empresa é usada no sentido subjetivo. A empresa é entendida
como sujeito de direitos e obrigações próprias.
b. Artigo 5º CIRE: é empresa toda a organização de capital e trabalho destinada ao
exercício de qualquer atividade económica. É uma noção objetiva: empresa como
objeto de direitos.

Estes dois conceitos abrangem todas as empresas (e não apenas as comerciais).

Empresa e Estabelecimento Comercial


Antes, a empresa e o estabelecimento comercial eram equivalentes.

Atualmente, não. O estabelecimento comercial identifica a empresa como sentido objetivo. A


empresa é no sentido subjetivo e funcional.

Todavia, vários diplomas normativos utilizam os termos empresa e estabelecimento comercial


em ambos os sentidos. Enquanto isso acontecer, admite-se que estes dois termos sejam entendidos
como sinónimos.

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Sentidos da empresa
a. Sentido funcional – é comum aos outros dois (Pais de Vasconcelos) – não vamos considerar
este sentido
b. Sentido objetivo

Sentido subjetivo

Neste sentido, a empresa é um sujeito jurídico que exerce uma atividade económica. As
empresas aparecem como sujeitos de direitos e deveres.

Por força da expressão do artigo 3º (independentemente do seu estatuto jurídico), para efeitos
do Direito da Concorrência, podem ser pessoas singulares, pessoas coletivas ou até mesmo entidades
sem personalidade jurídica. Importa o comportamento das empresas no mercado. O que identifica a
atuação concorrencial não é o estatuto jurídico, mas o exercício da atividade económica pelo
interveniente. O que importa é uma entidade que desenvolve uma atividade económica no mercado,
independentemente do seu estatuto jurídico. O exercício de atividade económica traduz-se na troca de
bens e/ou serviços. Para efeitos de Direito da Concorrência, essa atividade no mercado não tem de ser
dirigida à obtenção de lucros e não tem de ser suportada por uma organização de trabalho ou fatores
produtivos.

Pode uma empresa em sentido subjetivo não ser uma empresa em sentido objetivo? Não. Por
exemplo, um artista que explora a sua arte, para efeitos do DConcorrencia, é empresa. Mas não o é
para DComercial.

O que fica excluído do âmbito de empresa no DConcorrência? Os consumidores privados, o


Estado e outros entes públicos quando adquirem bens para satisfação de necessidades próprias sem
intenção de os reintroduzir no mercado, Estado e outros entes públicos que atuem nas prerrogativas do
ius imperium, trabalhadores dependentes e entidades que exercem atividades exclusivamente sociais
baseadas no principio da solidariedade sem fins lucrativos e recebendo prestações gratuitas ou pagam
contraprestações não proporcionais aos custos das prestações.

A FDUP é uma empresa para efeitos de DConcorrência? Isto está relacionado com as propinas.
Não há equivalência entre o custo da prestação da faculdade e o custo da contraprestação. Por isso,
não é uma empresa.

115
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E uma Entidade Pública Empresarial? por exemplo, os hospitais. O hospital de S. João é uma
empresa para efeitos de DConcorrência? Não, porque pratica preços abaixo dos valores de custo.

As empresas em sentido subjetivo podem se situar no setor privado, publico e cooperativo. Não
é necessário que tenham personalidade jurídica. Podem também ser pessoas singulares (profissionais
liberais, por exemplo).

Nos termos do artigo 3º/2 da Lei de Defesa da Concorrência, considera-se uma única de
empresa o conjunto de empresas juridicamente distintas que constituam uma unidade económica ou
mantenham um laço de interdependência.

Sentido objetivo

É o principal instrumento para o exercício da atividade comercial. Nem todas as empresas são
comerciais, mas a grande maioria da atividade comercial é exercida em contexto de empresa. Há uma
crescente assimilação do Direito Comercial a empresas.

Noção da professora Mariana Fontes da Costa: Empresa em sentido objetivo é uma


organização intencional de meios (pessoas e bens) apta à promoção do exercício relativamente estável
e autónomo de uma atividade de produção de um resultado consubstanciador de valor económico
próprio, suscetível de troca no mercado, predominantemente com finalidade lucrativa.

Elementos essenciais de uma empresa apresentados por Filipe dos Santos:

▪ Estrutura organizatória complexa acompanhada de uma estratégia de intervenção no mercado;


▪ Natureza produtiva da atividade prosseguida com vista à criação de valor económico novo;
▪ Particular relevância do capital de entre os meios colocados ao serviço da atividade
empresarial;
▪ Autonomia funcional do processo produtivo não dependente em exclusivo de nenhum dos seus
elementos nem de fatores extrínsecos;
▪ Objetivo de autonomia financeira com predominância de finalidade lucrativa;
▪ Identidade própria da empresa como sujeito económico e verdadeiro ator do mercado.

Quais são as franjas de dissonância entre Direito Comercial e Direito Empresarial? A maioria dos
atos de comercio são exercidos em contexto de empresa. Mas não tem de ser sempre assim.

116
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Todos os comerciantes são empresários? Todos os empresários não são necessariamente


comerciantes (ex: profissionais liberais).

Coutinho de Abreu dá o exemplo dos vendedores ambulantes: estes não têm um grau de
organização suficiente para identificar um estabelecimento comercial. Por isso, são comerciantes, mas
não são empresários. Portanto, nem todos os comerciantes são empresários. Embora na maioria dos
casos, os comerciantes são empresários.

Em suma, podemos ter:

▪ Atos comerciais que não são praticados em sede de empresas;


▪ Empresários que não são comerciantes;
▪ Comerciantes que não são empresários.

Quando é que uma empresa é comercial? Quando o seu objeto se traduza na realização de atos
ou atividades objetivamente comerciais. Importa aqui o artigo 230º CComercial.

A empresa em sentido objetivo é um bem económico. Coutinho de abreu acrescenta e diz que
uma empresa em sentido objetivo é um bem económico transpessoal. Isto significa que é sindível da
pessoa que o criou ou da pessoa a quem pertence. É um bem duradouro (exercício relativamente
estável), reconhecível e irredutível à soma dos seus elementos. Trata-se de um bem complexo
composto por vários bens ou vários elementos.

Que elementos compõem um estabelecimento comercial?

Existem aqui duas conceções.

Conceção restrita adotada por Coutinho de Abreu: Os elementos são apenas fatores
produtivos (objetos e instrumentos de trabalho e outros bens que primordialmente individualizam ou
identificam a empresa). Cabem aqui coisas corpóreas: por exemplo, num café as coisas corpóreas são
as mesas, as cadeiras, a louça, etc. Mas também se incluem aqui coisas incorpóreas: marcas e logotipos,
desenhos ou modelos, invenções patenteadas, bens jurídicos não coisificáveis (prestações de trabalho
e serviços, algumas situações de facto com valor económico, como saber fazer não patenteado e/ou
não patenteável).

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Conceção ampla adotada por Orlando de Carvalho e de Ferrer Correia: Para alem dos
elementos apresentados pela conceção restrita, são elementos de um estabelecimento comercial:

i. As relações de facto com clientes, fornecedores e financiadores, bem como a


organização interna da empresa – dá-se o nome de aviamento ou, em inglês, de
goodwill: conjunto de situações e/ou relações de facto com valor económico ligadas à
empresa;
ii. Direitos de crédito, reais e outros direitos de carater absoluto ligados à empresa;
iii. Obrigações ligadas à exploração das empresas.

Porque é que Coutinho de Abreu rejeita a conceção ampla?

i. Quanto à organização da empresa – é um modo de estar dos elementos empresariais e


não um elemento da empresa em si.
ii. Quanto às relações com fornecedores, financiadores e clientes – os clientes são o círculo
ou quota de pessoas que contactam com a empresa.
Na Alemanha e França, a posição maioritária é a de que a clientela é um elemento da
empresa.
Barbosa de Magalhães, Ferrer Correia, Menezes Cordeiro consideram a clientela como
elemento do estabelecimento comercial.
Em sentido contrário, surge Coutinho de Abreu, Fernando Olavo, Pais de Vasconcelos.
Coutinho de Abreu diz que a clientela não é elemento do estabelecimento, porque é
externo a esse estabelecimento. A clientela é uma consequência do funcionamento da
empresa, uma consequência que é, desde logo, externa à organização produtiva que é a
empresa.
Há quem defenda que é uma qualidade. A professora Mariana Fontes da Costa
considera que a clientela é uma qualidade da empresa. Coutinho de abreu diz que não é
uma qualidade, porque é superior isso.
Mas Coutinho de Abreu também não define o que é a clientela. A empresa depende da
conquista de clientes, mas pode subsistir sem eles.
iii. Quanto aos créditos do empresário – estão ligados à exploração da empresa. Não é
elemento, não é fator produtivo nem meio primordialmente identificador da empresa.
Em sentido próximo, Coutinho de Abreu refere-se aos contratos conexionados com a
exploração do fornecimento – o elemento é a matéria prima estabelecida. Ele defende

118
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que estes contratos são exteriores ao estabelecimento. O que é parte do estabelecimento


é a matéria prima.
iv. Quanto aos débitos resultantes da exploração do estabelecimento – Coutinho de Abreu
diz que não são elementos do estabelecimento porque não estão integrados na
organização produtiva.
v. Quanto ao dinheiro – não é elemento, porque é exterior ao processo produtivo e
estrutura da empresa.

Sem prejuízo deste entendimento de Coutinho de Abreu, existem empresas cujos elementos
são o dinheiro, créditos e débitos, porque derivam do objeto da atividade empresarial. Por exemplo,
instituições bancárias.

E se as partes celebram um trespasse do qual consta que inclui todo o ativo e passivo do
estabelecimento comercial? O que é que isso traduz? Abrange os créditos e os débitos? E o dinheiro?
Não é fácil definir o que isto é. Este tipo de clausula é de evitar. É preferível que o negócio seja mais
concretizador.

O estabelecimento comercial é uma organização intencional de meios. Os fatores de produção


não são agregados ou somados de forma neutra. O modo como estão organizados constitui um
elemento próprio da empresa. O estabelecimento comercial é um sistema. É um sistema aberto, na
medida em que implica relações com o mundo. É um sistema tendencialmente autossuficiente e com
identidade própria.

Em que momento, no processo de constituição do estabelecimento comercial, surge


verdadeiramente esse estabelecimento? Esta questão coloca-se na fronteira entre a fase pré-contratual
e a fase contratual. O estabelecimento comercial não surge num só momento; há um processo que leva
à criação de um estabelecimento comercial. Interessa traçar fronteiras: perceber quando se deixa de
estar perante um projeto de estabelecimento comercial e quando se passa a estar verdadeiramente
perante um estabelecimento comercial.

A primeira questão que se coloca é quanto à organização produtiva que está totalmente apta a
funcionar, mas que ainda não entrou em funcionamento. Neste ponto, a doutrina diverge – para os
autores que defendem que a clientela é um elemento essencial do estabelecimento comercial, uma
organização produtiva que ainda não produza não tem clientela, pelo que não poderá ser um

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estabelecimento comercial. Assim, antes de entrar em funcionamento, não existe estabelecimento


comercial. O mesmo defendem aqueles que entendem que o aviamento é essencial à tutela do
estabelecimento comercial – não estando em funcionamento, não haverá aviamento; não havendo
aviamento, não haverá estabelecimento comercial. Esta é a posição maioritária nas jurisprudências
francesa e italiana. Esta questão é importante no que toca à transmissão de um estabelecimento
comercial antes da sua abertura, quer se entenda que se esteja perante uma unidade jurídica sujeita ao
regime do trespasse ou não.

Em Portugal, a posição maioritária defende que se o estabelecimento já se revelar minimamente


apto para realizar um fim económico-produtivo, e se esse fim económico-produtivo não for afastado
pela natureza do titular do estabelecimento nem por outras circunstâncias objetivamente reconhecíveis,
deve admitir-se já haver estabelecimento comercial. Ou seja, havendo uma unidade económico-
produtiva apta a desenvolver essa atividade e dotada de uma identidade própria, haverá
estabelecimento comercial. Existe, contudo, uma exceção: pode resultar da natureza do sujeito que
explora ou irá explorar o estabelecimento, conjugada com as circunstâncias objetivamente
reconhecíveis (conhecidas ou cognoscíveis pelo público colocado num padrão de bom pai de família),
que aquele aparente estabelecimento comercial não tem uma finalidade económico-produtiva.

Por exemplo, se estiver em causa uma associação ou fundação, não haverá qualquer objetivo
económico ou produtivo. Ainda que em abstrato toda a unidade produtiva tivesse condições de
funcionamento com finalidade produtiva, retira-se da qualidade do sujeito e das circunstâncias
envolventes que desempenha funções sociais. Por exemplo, a Associação de Jovens em Risco do
Bairro do Aldoar monta, numa sala das suas instalações, o que aparenta ser um bar, com uma cantina,
mesas e cadeiras. Desta realidade específica, não é possível retirar a existência de uma unidade
económico-produtiva, direcionada para a atividade de troca no mercado. Da natureza do sujeito (uma
associação de apoio a jovens em risco) conjugado com as circunstâncias específicas (i.e., com o tipo
de atividades que desenvolve, designadamente de apoio escolar e explicações aos jovens) resulta que
aquela cozinha se destinará, por exemplo, a uma cantina para os jovens da associação, sem qualquer
tipo de objetivo económico-produtivo, mas com uma finalidade meramente social. Neste caso, não
haverá estabelecimento comercial, ainda que, em abstrato, toda aquela unidade produtiva tivesse
condições de funcionar como bar ou restaurante.

A segunda questão que se coloca é quanto à organização produtiva que ainda não está sequer
apta a entrar em funcionamento, que carece de um ou mais elementos. Para os autores que respondem
negativamente à questão anterior, a questão nem sequer se coloca – a resposta será sempre negativa:
enquanto não estiver em funcionamento, não haverá estabelecimento comercial.

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Por outro lado, para os autores que admitem a natureza do estabelecimento comercial na
questão anterior, a resposta depende de quais são os elementos em falta para que o estabelecimento
comercial possa funcionar. Se os elementos em falta não forem essenciais à identificação pelo público
de uma nova unidade económico-produtiva, não haverá razões para negar a existência do
estabelecimento comercial. Deve analisar-se se os elementos em causa são ou não essenciais para que
aquele conjunto de meios produtivos represente uma nova unidade de fatores produtivos, com uma
identidade própria. O juiz deve analisar se, do conjunto organizado de bens já existente, resulta para o
público uma nova organização capaz de atuar autonomamente no mundo da produção para a troca.

Outra questão que se coloca corresponde à transmissão de um estabelecimento comercial, ou


um conjunto de bens de um estabelecimento comercial de forma unitária, embora excluindo alguns
dos seus elementos. Esta questão surge quando se negoceia a transmissão de um estabelecimento
comercial, mas nesse contrato se exclui alguns dos seus elementos. A própria lei admite, em muitos
casos, a exclusão de alguns elementos, nomeadamente logótipos e marcas. Releva o critério da
identificabilidade perante o público – é necessário averiguar se, apesar da transmissão, aquele
estabelecimento continua a gozar de identificabilidade como unidade económico-produtiva autónoma
aos olhos do público que estabelece com ele relações. Neste caso, será necessário avaliar se, apesar da
não transmissão de determinados elementos, o conjunto de elementos transmitidos mantém a
convicção no público de que se rata do mesmo estabelecimento comercial, numa lógica de
continuidade. Nesta matéria, há autores, nomeadamente Pinto Furtado, que defendem um critério
económico – atende ao valor dos elementos não transmitidos por comparação com o valor dos
elementos transmitidos.

E se forem destruídos os elementos materiais do estabelecimento, continuará a haver


estabelecimento comercial ou não? A doutrina entende que se permanecerem determinados elementos,
designadamente as coisas incorpóreas, o saber-fazer e os vínculos contratuais ao nível dos meios
produtivos (ex. logótipos, marcas e contratos de trabalho), apesar de a atividade ficar suspensa até à
reposição dos bens materiais destruídos, mantém-se a realidade do estabelecimento. A destruição dos
elementos materiais do estabelecimento, só por si, não afasta a própria permanência da organização
produtiva.

Secções e sucursais da empresa

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O estabelecimento comercial pode ter várias secções (ex: armazéns, lojas) e estas secções,
apesar de serem essenciais ao funcionamento do estabelecimento comercial, não gozam de autonomia,
não são estabelecimentos autónomos.

A sucursal, também designada como agência ou delegação, por sua vez, já tem autonomia de
funcionamento, embora esteja dependente do estabelecimento principal em alguns aspetos. Desde
logo, na sucursal só se realizam negócios que se integram no objeto da empresa. A sucursal está sujeita
à direção geral da empresa. Nalguns casos, a sucursal é espacialmente separada da empresa, gozando
de autonomia espacial, liberdade de gestão e competência para celebrar negócios. Assim, em alguns
casos, as sucursais podem adquirir identidade empresarial autónoma e, nessa medida, são
estabelecimentos comerciais autónomos, podendo ser alienados separadamente do estabelecimento
principal.

Natureza jurídica do estabelecimento comercial

Neste ponto, questiona-se se o estabelecimento comercial corresponde, ou não, a um instituto


jurídico unitário. Esta questão releva, desde logo, em relação à penhora – poderá um estabelecimento
comercial ser penhorado? Ou são penhorados os bens que pertencem ao estabelecimento? Poderá o
estabelecimento ser objeto de uma locação financeira, de um trespasse ou de posse?

O professor Pestana Vasconcelos defende que o estabelecimento comercial pode ser objeto de
penhor, embora se trate de um penhor sem desapossamento, na medida em que não se retira a posse
do estabelecimento comercial ao seu titular, ainda que ele esteja empenhado. Um estabelecimento
comercial pode ser objeto de uma ação de reivindicação, de uma locação, de um penhor. Pestana
Vasconcelos defende que pode inclusive ser objeto de locação financeira.

Não há dúvida de que o estabelecimento comercial é uma unidade jurídica que não se enquadra
na noção de universalidade de facto (não é integrado apenas por coisas corpóreas) nem na noção de
universalidade de direito, mas que não deixa de ser uma unidade jurídica atípica passível de um direito
de propriedade. Na doutrina, a posição maioritária considera que o estabelecimento comercial constitui
uma coisa imaterial, por ser um sistema, i.e. uma organização que possui individualidade própria para
além das coisas que o compõem.

Existe uma grande desvantagem no exercício do comércio a título individual, daí que tenha
surgido a necessidade de criar sociedades comerciais, como forma de limitar a responsabilidade de
cada sujeito envolvido. Estando em causa uma pessoa singular, pelas dívidas do estabelecimento
comercial responde todo o património do titular. Não há separação de patrimónios entre o
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estabelecimento comercial e o comerciante em nome individual. O risco da exploração a título


individual de estabelecimento comercial é a não separação de patrimónios, na medida em que pelas
dívidas do estabelecimento comercial responderá todo o património do devedor, e não apenas aquele
que ele tenha adstringido para o efeito. Pelas dívidas do titular respondem todos os bens do comerciante
individual, inclusive as do seu cônjuge. Por outro lado, os bens do estabelecimento comercial
respondem, também, pelas dívidas do estabelecimento e pelas dívidas do seu titular.

Face esta situação, em 1986, no DL n.º 248/86 de 25 de agosto, o legislador português criou o
instituto do EIRL, com o objetivo de criar um património separado em torno do estabelecimento
comercial. Este instituto foi pensado para pessoas singulares que exercem a exploração de um
estabelecimento comercial na qualidade de pessoas singulares, mas que pretendem acautelar a questão
da comunicabilidade das dívidas. O regime do EIRL prevê que os bens afetos aos EIRL só respondem
pelas dividas contraídas no exercício da atividade empresarial desenvolvida no contexto do EIRL. Por
essas dívidas, constituídas na atividade de exploração do EIRL, só respondem esses bens.

Este instituto fracassou, uma vez que a lei apenas permite um EIRL por comerciante. A doutrina
considera que deveriam ser admitidos tantos EIRLs quantos os estabelecimentos comerciais que o
comerciante explore. Por outro lado, os arts. 10.º, 11.º e 22.º deste DL n.º 248/86 estabelecem um
conjunto de exceções que misturam os patrimónios, atenuando o regime da separação de patrimónios
em aspetos considerados essenciais.

Natureza comercial ou civil das empresas

Por regra, são comerciais as empresas cujo objeto se traduza na realização de atos ou atividades
objetivamente mercantis. As restantes, serão empresas civis. Esta distinção apresenta algum
paralelismo com a distinção entre sociedades comerciais e sociedades civis sobre a forma comercial,
aferida tendo em conta o objeto social da empresa – a sociedade será comercial se o objeto social
consistir na prática de atos de comércio e será civil se o objeto social se traduzir na prática de atos não
comerciais.

O art. 230.º, C.Com. é essencial para distinguir se uma empresa é comercial ou civil. Releva,
também, o art. 464.º, C.Com., relativo à compra e venda comercial. Todos os atos praticados por
empresas no corpo do art. 230.º, C.Com. são objetivamente comerciais. Assim, todas as empresas
integradas no art. 230.º, embora com determinadas exceções, serão comerciais.

Exceções do art. 230.º, C.Com.:

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• Empresas da indústria extrativa: não se encontram previstas no art. 230.º, nem em qualquer outro
preceito normativo do C.Com. ou qualquer outra lei comercial. Também não podem ser
consideradas como comerciais com base na analogia iuris, por não preencher os princípios gerais
de direito comercial. Havendo esta lacuna, estas empresas devem entender-se como civis. No caso
das sociedades comerciais que exploram a indústria extrativa, estas serão sociedades civis sob a
forma comercial, e não empresas comerciais. Esta visão restritiva das empresas da indústria
extrativa adotado por Coutinho de Abreu tem vindo a ser criticada pela doutrina. Pais de
Vasconcelos apresenta uma solução por tipologias, defendendo que é necessário retirar do art. 230.º
tipos contratuais com base nas finalidades e na natureza. Através desta qualificação tipológica, o
autor encaixa as empresas da indústria extrativa no art. 230.º, C.Com..
• Empresas agrícolas: parecem, também, ser excluídas da aplicação do regime comercial, no
parágrafo 1.º do art. 230.º, C.Com.. Para Coutinho de Abreu, o critério determinante nestas
indústrias de transformação de produtos agrícolas é a acessoriedade da atividade de transformação
e manufatura face à exploração agrícola. Assim, as empresas agrícolas não serão comerciais se a
fabricação ou manufatura for acessória da exploração agrícola. Se a fabricação ou manufatura for
um elemento central da atividade da empresa, estar-se-á perante uma empresa comercial. Pais de
Vasconcelos e Cassiano dos Santos têm um entendimento mais abrangente – defendem que o 1.º
parágrafo pretende afastar as atividades agrícolas ou pecuárias que, pela sua natureza ou
simplicidade, nem sequer constituem empresas, por não possuírem as características de
organização dos fatores produtivos que constitui uma unidade produtiva económica. Assim, se
gozar das características da comercialidade, a empresa será comercial.
• Empresas exploradas por artesãos que exercem diretamente a atividade: um artesão é um produtor
qualificado, que, podendo embora servir-se de máquinas, utiliza prevalecentemente o seu trabalho
manual e como instrumentos ferramentas. Coutinho de Abreu entende que as empresas exploradas
nestes termos serão empresas civis não comerciais. Pais de Vasconcelos e Cassiano dos Santos,
por seu lado, consideram que, se existir estrutura empresarial, a empresa será comercial.
Consideram estes autores que o parágrafo 1.º do art. 230.º está pensado para quando não exista
complexidade produtiva que permita identificar a estrutura empresarial (i.e., para realidades não
empresariais). Assim, se o artesão exercer diretamente a atividade, seja a produzir ou a dirigir
tecnicamente o processo produtivo, aplica-se o parágrafo 1.º, que exclui estas empresas do regime
comercial. Contudo, sempre que estas atividades forem desenvolvidas em contexto empresarial,
estará em causa uma empresa comercial.

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• Profissionais liberais: as profissões liberais traduzem-se no exercício habitual e autónomo,


juridicamente não subordinado, de atividades primordialmente intelectuais suscetíveis de
regulamentação e controlo próprios. Ex. advogados, médicos, engenheiros, contabilistas, etc. Neste
ponto, a doutrina não é unanime. Menezes Cordeiro, por exemplo, refere-se aos consultórios
médicos como empresas. Nestes casos, questiona-se se haverá efetivamente empresa, uma vez que
uma empresa deve ter uma identidade própria, para além do empresário. Efetivamente, não haverá
empresa quando a atividade se centra numa única pessoa, na medida em que não é possível
identificar uma estrutura empresarial.

A doutrina de direito comercial encontra-se numa bifurcação na questão da relação entre o


comércio e a empresa. Verifica-se uma tendência de absorção do comércio pela empresa, no sentido
em que a maioria da atividade comercial é desenvolvida em contexto de empresa. A empresa tem vindo
a absorver as aspirações e especificidades que antes pertenciam tradicionalmente ao direito comercial.
A professora Mariana Fontes da Costa defende uma delimitação negativa da empresa comercial.
Segundo esta perspetiva, serão comerciais todas as empresas com exceção daquelas que a lei qualifique
expressamente como civis. Cassiano dos Santos, por sua vez, chega a defende a eliminação da distinção
entre empresa comercial e não comercial, excluindo do âmbito comercial apenas as atividades
capitalistas exercidas não empresarialmente.

No âmbito da natureza comercial ou civil das empresas, surge a questão de saber se a intenção
lucrativa faz parte da essência das empresas, i.e. se é um elemento essencial das empresas. A maioria
da doutrina entende que o escopo lucrativo não é um elemento essencial da empresa. É possível que
haja empresas desprovidas de escopo lucrativo (ex. empresas públicas, empresas exploradas por
associações, fundações ou cooperativas, etc.). Ainda que seja característico das empresas, o elemento
lucrativo não é essencial.

No entendimento da doutrina, uma empresa deve, contudo, ser autossuficiente – deve ter meios
para poder subsistir, embora esses meios possam resultar de subvenções estaduais. Não sobrevive sem
uma lógica de rendimentos que cubram os custos, independentemente da proveniência desses
rendimentos. Apesar de a empresa não ter de ter escopo lucrativo, deve gozar, abstratamente, de uma
autossuficiência económica, i.e., deve gozar de rendimentos que cumpram os custos, sob pena de não
poder desenvolver a atividade de modo estável.

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Tipos de empresas

Consoante os setores de propriedade dos meios de produção, é possível distinguir entre:

a. Empresas do setor privado: podem pertencer a pessoas singulares ou a pessoas coletivas. Nada
impede que o estabelecimento comercial seja um bem comum a mais do que uma pessoa – ex:
quando pertença a um casal. Quanto às pessoas coletivas, o principal ator a nível da exploração de
empresas é a sociedade comercial. Existem, também, agrupamentos complementares de empresa,
bem como associações e fundações.
b. Empresas do setor cooperativo: não têm escopo lucrativo. As cooperativas são pessoas coletivas
autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e
entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins
lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles
(art. 2.º, Código das Cooperativas).
c. Empresas do setor público: distinguem-se em empresas públicas estaduais (DL n.º 133/2013) e
empresas públicas locais (Lei n.º 50/2012).
Em relação às primeiras, existem dois tipos de empresas públicas – as empresas societárias
(constituídas sob a forma de responsabilidade limitada, designadamente por quotas ou anónima) e
entidades públicas empresariais (a sua criação é feita por decreto-lei). Coloca-se a questão do
escopo lucrativo das empresas públicas – pode ter escopo lucrativo quando seja composta por
capitais mistos, i.e. quando não seja composta por capitais exclusivamente públicos. No caso de a
empresa pública ser composta por capitais mistos, terá escopo lucrativo na parte relativa às
participações sociais dos privados.
Em relação às empresas públicas locais, podem desenvolver atividades empresariais locais os
municípios, associações de municípios e áreas metropolitanas. As empresas públicas locais
distinguem-se dos serviços municipalizados, que, não tendo personalidade jurídica, serão empresa
em sentido objetivo, mas não em sentido subjetivo.

Trespasse
O trespasse consiste numa transmissão inter vivos, com caráter definitivo, de um
estabelecimento que pode ou não ser comercial. O que caracteriza o trespasse é o seu objeto: a
transmissão da propriedade de um estabelecimento.

O negócio jurídico concreto por via do qual se transmite a propriedade do estabelecimento pode
ser variado; ou seja, subjacente a um trespasse podem estar diferentes realidades jurídicas,
nomeadamente a realização de entrada numa sociedade comercial (art. 25.º, CSC), um contrato de
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compra e venda, seja normal ou em ação executiva ou processo de insolvência, uma troca, uma dação
em cumprimento, etc. O que caracteriza o trespasse não é o negócio que lhe está subjacente, mas antes
o facto de desse negócio resultar a transmissão da propriedade de um estabelecimento.

A maior parte das normas do trespasse aplicam-se independentemente de o negócio jurídico


subjacente ser oneroso ou gratuito. Contudo, existem exceções:

• O art. 1112.º, n.º 4, CC estabelece que apenas haverá direito de preferência do senhorio por
trespasse de estabelecimento que funciona em prédio arrendado em caso de venda ou dação em
cumprimento.
• O art. 152.º, n.º 2, CSC, relativo ao trespasse em caso de liquidação da sociedade comercial, só se
aplica a negócios onerosos.

Forma do trespasse
O art. 1112.º, n.º 3, CC consagra que a transmissão da posição de arrendatário deve ser feita
por escrito. Contudo, esta norma parece estar direcionada para os casos de trespasse de estabelecimento
que funcione em prédio arrendado em que se dá a transferência dessa posição, pelo que se questiona
se poderá ser aplicada a todos os trespasses.

Coutinho de Abreu entende que se deve fazer uma interpretação extensiva do artigo 1112º/3,
no sentido em que todos os trespasses estão sujeitos a forma escrita. Uma vez que essa corresponde à
forma exigida para a transmissão dos vários elementos do estabelecimento comercial, por maioria de
razão, entende o autor, deverá entender-se que o trespasse deve observar forma escrita.

Cassiano dos Santos entende que o trespasse não está sujeito a forma especial.

E quando, no trespasse do estabelecimento, vai junta a transmissão da propriedade de um bem


imóvel explorado no contexto do estabelecimento ou pertencente aos bens do estabelecimento? Passa
a ser exigida a escritura publica ou documento particular autenticado? Ou mantém-se a forma simples?

Numa lógica de jurisprudência das cautelas, em caso de dúvida, usa-se a escritura publica.

Coutinho de Abreu entende que não é necessária escritura pública, a forma do trespasse
continua a ser a do documento particular.

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Cassiano dos Santos, por outro lado, defende a necessidade de observar a forma de escritura
pública nestes casos, uma vez que é essa a forma exigida para a transmissão de propriedade de bens
imóveis. A professora Mariana Costa segue este entendimento.

Âmbitos de entrega
O âmbito de entrega está relacionado com os elementos ou bens que se transmitem e devem
ser entregues pelo trespassante ao trespassário com a transmissão do estabelecimento comercial. Ao
transferir a propriedade do estabelecimento, importa saber quais os bens transmitidos.

Segundo Coutinho de Abreu, existem três âmbitos de entrega:

a. Âmbito mínimo: abrange os elementos cuja transmissão seja necessária ou essencial para
identificar ou exprimir a empresa que é objeto do negócio. Isto é, a não transmissão destes
elementos afasta a qualificação do negócio como trespasse. Em vez de um trespasse, passa a haver
apenas um contrato de compra e venda de conjuntos de bens determinados do estabelecimento
comercial, excluindo aplicação do art. 1112.º, CC.
Não é possível determinar a priori, abstratamente, quais são os elementos do estabelecimento
comercial que se integram no âmbito mínimo de transferência – em certos casos, a marca é
essencial; noutros casos, será o logótipo; noutros, a localização. A determinação do âmbito mínimo
é necessariamente casuística, depende do caso concreto e do estabelecimento comercial concreto.
De todos os elementos, é necessário procurar aqueles que conferem uma identidade específica à
empresa, i.e., aqueles elementos que identificam a empresa como uma unidade produtiva
autónoma, diferente das outras, sem os quais a empresa perde a sua identidade.

b. Âmbito natural: abrange os elementos que se transmitem na ausência de acordo das partes em
sentido contrário, quando nada resulte do contrato. Ou seja, é composto pelos elementos que se
transmitem no silêncio das partes, sem necessidade de qualquer menção expressa. Este âmbito é
mais simples de determinar abstratamente. Quanto a estes, será necessário distinguir:
• Meios empresariais cuja propriedade pertence ao trespassante:
o Logótipos e marcas: pertencem ao âmbito natural, exceto se neles figurar o nome, firma ou
denominação do titular, caso em que passam a pertencer ao âmbito convencional (arts.
295.º; 256.º, n.º 2 e 30.º, n.º 3, Código da Propriedade Industrial).
o Bens materiais que compõem o estabelecimento: em regra, pertencem ao âmbito natural
(máquinas, utensílios, mobiliário, matérias primas, mercadorias, etc.).

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o Prédios: questiona-se se, na ausência de determinação contratual, os prédios propriedade


do trespassante que pertencem ao estabelecimento comercial se transmitem. Coutinho de
Abreu defende que não há nada que justifique afastar o regime geral; assim, se tal resultar
da interpretação do contrato e da vontade das partes, por defeito, a propriedade do prédio
explorado no contexto do estabelecimento comercial também se transfere por via do
trespasse.
• Meios empresariais na disponibilidade do trespassante ao abrigo de um direito de crédito (ex.
aluguer ou locação financeira):
o Prestações laborais: conforme o art. 285.º, n.º 1, CT, estas transmitem-se para o adquirente
do estabelecimento comercial, exceto se o trabalhador a tal se opuser nos termos do art.
286.º-A, CT.
o Direito ao arrendamento do prédio onde se localiza o estabelecimento: nos termos do art.
1102.º, CC, quando não pertencer ao âmbito mínimo, deve entender-se que pertence ao
âmbito natural do trespasse. Este direito de arrendamento transmite-se para o trespassário
no silêncio do contrato.
o Posição de locatário financeiro: também se transmite com o trespasse. Resulta
indiretamente do art. 11.º do DL 149/95 a possibilidade de transmissão desta posição de
locatário. O n.º 3 do mesmo artiddgo, contudo, estabelece que o locador financeiro se pode
opor à transmissão sempre que o cessionário não oferecer garantias bastantes à execução
do contrato de locação financeira.
o Saber-fazer: quando não pertença ao âmbito mínimo, pertencerá ao âmbito natural.

Excluem-se do âmbito natural os direitos derivados de licenças de exploração (de patentes,


marcas, modelos de utilidade – art. 31.º, n.ºs 1 e 8, CPI), direitos estes que não podem ser
alienados sem o consentimento escrito do titular do direito protegido, exceto se o contrário
resultar da própria licença. O mesmo se aplica quanto a outros bens alugados ou emprestados
ao trespassante (art. 1059.º, n.º 2 CC e 424.º e ss., CC).

c. Âmbito convencional: abrange os elementos que apenas se transmitem se as partes assim o


determinarem no contrato.
• Firma;
• Logótipo ou marca, quando deles conste o nome, firma ou denominação do titular do
estabelecimento;

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• Créditos do trespassante ligados à exploração da empresa, mas cujos objetos não sejam meios
do estabelecimento (ex. valor a pagar pela entrega da mercadoria). Estes créditos não são
elementos do estabelecimento comercial, daí que apenas se transmitam se tal resultar
diretamente do contrato. Estão sujeitos ao regime da cessão de créditos (art. 577.º e ss., CC).
• Dívidas que resultam da normal exploração do estabelecimento comercial: para haver
transmissão de dividas, será necessário o consentimento do credor e da contraparte, embora
com uma exceção – os seguros associados ao estabelecimento comercial transmitem-se
automaticamente. Quanto às dívidas resultantes da concessão de crédito que assentou na
garantia patrimonial do estabelecimento comercial, não existindo um regime específico, deve
aplicar-se o regime da assunção de dívidas do CC. Em princípio, será de admitir que as dividas
pertencem ao âmbito convencional, não havendo transferência automática de dívidas para o
trespassário. Assim, o trespassante originário, titular da dívida, nunca pode ser exonerado sem
a ratificação dos credores. Será uma assunção cumulativa de divida, em que o trespassário
passa a responder solidariamente pela divida juntamente com o trespassante. Mota Pinto e Vaz
Serra vão neste sentido. Antunes Varela entende que, mesmo neste caso, é necessário o
consentimento dos credores. Existem, porém, casos de transmissão das dívidas por força da lei
(responsabilidade do trespassário por força da lei), nomeadamente os créditos anteriores
devidos aos trabalhadores (art. 286.º, CT) e as dívidas à Segurança Social.

Obrigação de não concorrência

A questão que se coloca corresponde a saber se o trespasse cria, na esfera do trespassante, uma
obrigação de não concorrência com o estabelecimento comercial. Legalmente, esta obrigação não está
prevista. Questiona-se, portanto, se se trata de uma obrigação implícita associada ao trespasse, ainda
que não prevista convencionalmente.

Nuno Aureliano e Pestana Vasconcelos entendem que não, por analogia ao contrato de agência
ou ao contrato de trabalho. Para haver obrigação de não concorrência na sequência da cessação de um
contrato de agência, tal deve estar expressamente previsto no contrato. Também no âmbito laboral
apenas existe a obrigação de não concorrência quando tal esteja expressamente previsto no contrato.
Estes autores consideram que a imposição desta obrigação de não concorrência implícita corresponde
a uma restrição ao princípio da liberdade de iniciativa económica (art. 61.º, n.º 1, CRP).

Coutinho de Abreu, por sua vez, entende que no trespasse não há analogia com o contrato de
agência ou com o contrato de trabalho, uma vez que, nestes casos, a obrigação nasce na sequência da

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cessação de uma relação contratual. No trespasse, a obrigação de não concorrência nasce por efeito do
início da relação, da celebração do contrato e não da sua extinção. O autor considera a obrigação de
não concorrência uma obrigação essencial para que o trespassante cumpra o dever do alienante entregar
a coisa alienada e assegurar o seu gozo pacífico. Uma concorrência pelo trespassante com o
estabelecimento comercial que trespassou é especialmente perigosa para a subsistência do
estabelecimento trespassado, uma vez que o trespassante possui especiais conhecimentos sobre o
estabelecimento em causa (fornecedores, clientes, etc.). Coutinho de Abreu entende que a obrigação
de não concorrência abrange, inclusive, os filhos e o cônjuge do titular do estabelecimento.

Admitindo a existência de uma obrigação de não concorrência, esta aplica-se a todos os


trespassantes. Esta obrigação apresenta, contudo, limites espaciais, na medida em que se circunscreve
ao âmbito de influência do estabelecimento comercial. O trespassante não poderá vir a abrir uma
empresa concorrente no espaço geográfico do estabelecimento comercial transmitido, mas nada
impede que o faça fora desse espaço. Tem, também, limites temporais – apesar de não estar
expressamente previsto, a doutrina e jurisprudência têm considerado que deve durar o tempo
necessário para permitir a consolidação, na esfera de um adquirente empresário razoavelmente
diligente, das qualidades da empresa. A jurisprudência tem-se inclinado para uma duração de entre 2
e 5 anos, conforme os contornos do trespasse. Apresenta, ainda, limites materiais, relacionados com a
atividade concretamente exercida pela empresa. Para que haja a obrigação de não concorrência, devem
estar em causa atividades substantivamente concorrentes do trespassante e do trespassário.

A violação desta obrigação desencadeia os procedimentos indemnizatórios do CC. O


trespassário poderá requerer uma indemnização ao abrigo do art 798.º, CC. O incumprimento desta
obrigação permite a resolução do contrato de trespasse (art. 801.º, n.º 2, CC), bem como a aplicação
de uma sanção pecuniária compulsória (art. 829.º-A, CC). Por último, confere, ainda, a possibilidade
de encerramento do estabelecimento comercial concorrente nos termos do art. 829.º, CC.

Trespasse de estabelecimento instalado em prédio arrendado

Esta situação convoca o regime do art. 1112.º, CC, que estabelece que, em caso de trespasse de
estabelecimento comercial ou industrial instalado em prédio arrendado, o trespassante pode ceder a
sua posição de arrendatário ao trespassário sem necessidade de autorização do senhorio. Este regime
não se aplica a todos os trespasses, mas apenas àqueles que se situem em prédio arrendado, não
pertencente ao trespassante. Normalmente, um titular de uma empresa não precisa de autorização para
transmitir o estabelecimento comercial; contudo, se o estabelecimento comercial se situar em prédio

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arrendado, poderá ser necessária a autorização do senhorio para transmitir a posição de arrendatário
para o trespassante juntamente com o estabelecimento comercial. O art. 1112.º, n.º 1 vem eliminar
precisamente essa necessidade, dispensando o consentimento do senhorio para a transmissão do direito
de arrendamento sobre o imóvel para o trespassário.

Contudo, o n.º 2 do art. 1112.º, CC afasta a aplicação deste regime excecional de dispensa da
autorização do senhorio em duas situações: quando a transmissão não seja acompanhada de
transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram
o estabelecimento (al. a)) e quando a transmissão vise o exercício, no prédio, de outro ramo de
comércio ou indústria ou, de um modo geral, a sua afetação a outro destino (al. b)). Nestas situações
não haverá trespasse, sendo necessário o consentimento do senhorio para que haja a transmissão da
posição de arrendatário. A al. a) deve ser interpretada restritivamente, no sentido em que o legislador
se pretendeu referir às situações em que não são transferidos os elementos que integram o âmbito
mínimo de cedência do estabelecimento comercial. A al. b), por sua vez, foi pensada para situações
nas quais, no momento do contrato de trespasse, o trespassário tinha o propósito de dar ao prédio outro
destino.

O n.º 5 do art. 1112.º, CC corresponde a uma concretização da al. b), estabelecendo que quando,
após a transmissão, seja dado outro destino ao prédio, ou o transmissário não continue o exercício da
mesma profissão liberal, o senhorio pode resolver o contrato. Porém, essa solução já resulta do art.
1083.º, CC. Coutinho de Abreu defende que este n.º 5 apresenta uma nova forma de resolução, não
prevista no art. 1083.º, CC. Assim, o n.º 2 aplica-se quando o trespassário, à data do trespasse, já tinha
essa intenção de dar ao estabelecimento comercial outro destino, e n.º 5 aplica-se quando o trespassário
só teve essa intenção em momento posterior ao trespasse. Desde que não seja proibido pelo contrato
de arrendamento, é permitido alterar o objeto do estabelecimento. Esta norma procura proteger os
estabelecimentos comerciais já existentes e limitar a posição do trespassário arrendatário.
Compreende-se que, pelo facto de ter sido colocado naquela situação sem autorização do senhorio por
foça do trespasse, o trespassário não seja livre de alterar o destino do prédio.

O n.º 3 do art. 1112.º determina que a transmissão da posição de arrendatário deve ser
comunicada ao senhorio no prazo de 15 dias (art. 1038.º, al. g), CC). É a comunicação da transmissão
da posição de arrendatário que deve ser comunicada ao senhorio, e não o trespasse. A não comunicação
atempada que, pela sua gravidade, torna inexigível a manutenção do arrendamento, confere ao
senhorio o direito de resolver o contrato com o trespassário nos termos gerais. Porém, nos termos do
art. 1049.º, CC, a não comunicação não dá direito à resolução do contrato se o senhorio tiver
reconhecido o beneficiário da cedência como tal ou se a comunicação lhe tiver sido feita por este.

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Por último, o n.º 4 do art. 1112.º, CC determina que, em caso de trespasse oneroso, seja por
venda ou por dação em cumprimento, o senhorio terá direito de preferência no trespasse. Este direito
de preferência está sujeito às regras gerais do art. 416.º, CC, nos termos do qual o trespassante deverá
comunicar ao senhorio as condições essenciais do negócio (designadamente, a pessoa do trespassado,
o preço e as condições de pagamento) no prazo de 15 dias para que este exerça o direito de preferência
no prazo de 8 dias. Se nada disser em relação à vontade de preferir, o seu silêncio equivale à renúncia
ao exercício da preferência. No caso de o senhorio não ser notificado para a preferência no trespasse,
poderá propor uma ação judicial de preferência no prazo de 6 meses a partir do momento em que tem
conhecimento do negócio ou dos seus elementos essenciais, conforme resulta do art. 1410.º, CC. A
violação desta comunicação não é fundamento de resolução do contrato.

Locação do estabelecimento comercial


A locação de empresa corresponde à transmissão temporária de empresa, a título oneroso,
mediante o pagamento de uma renda. Consiste no contrato pelo qual uma das partes se obriga a
proporcionar à outra o gozo temporário de um estabelecimento, comercial ou civil, mediante
retribuição (art. 1109.º, CC). A locação de empresa está sujeita ao art. 1110.º, CC quanto à duração,
ao art. 1112.º, n.ºs 2 e 3 quanto à exigência de forma escrita. Quanto aos âmbitos de entrega, aplica-se
paralelamente o regime do trespasse.

No âmbito da locação de empresa, a obrigação de não concorrência resulta do art. 1037.º, CC,
que proíbe o locador de praticar atos que diminuam o gozo da coisa locada. Tem os mesmos efeitos da
obrigação de não concorrência prevista no trespasse. Durante a vigência do contrato de locação, o
locatário também não poderá iniciar uma atividade concorrente, uma vez que estaria em causa uma
redução do valor do estabelecimento (art. 1043.º, CC). Depois de cessado o contrato de locação do
estabelecimento, por analogia com o regime do contrato de trabalho, não haverá obrigação de não
concorrência se ela não estiver expressamente consagrada.

No caso de locação do estabelecimento comercial situado em prédio arrendando (art. 1109.º,


n.º 2), o senhorio não tem de autorizar a cedência do gozo do prédio, mas esta tem de lhe ser
comunicada no prazo de 1 mês, sob pena de ineficácia. O regime da falta de comunicação é paralelo
ao do trespasse, sendo fundamento de resolução do contrato de arrendamento (art. 1083.º, n.º 2, al. e)
CC). Por foça da locação do estabelecimento comercial, o locatário não se substitui ao locador na
posição de arrendatário, nem ocupa uma posição de subarrendatário, exceto quando haja acordo em
sentido contrário. Assim, quando há locação de empresa, o locador cede apenas um direito de mera

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disponibilidade simples do prédio, ou seja, o locador cede apenas um direito obrigacional de o locatário
poder utilizar o imóvel para o fim a que se destina, isto é, para a exploração daquela empresa em
concreto que foi cedida. Em suma, o locador da empresa não cede a posição de arrendatário, mas
apenas o direito de mera disponibilidade de gozo do prédio.

O locatário da empresa tem o direito a explorar a empresa, pelo período convencionado. Mas
tem mais do que isso: tem um poder dever de explorar a empresa. Não pode apenas explorar, mas tem
um dever de explorar, tendo de assegurar a devolução da empresa com todas as suas qualidades e
valores.

Títulos de crédito
Os títulos de crédito são atos objetivamente comerciais, não necessariamente porque vinham
previstos no C.Comercial, mas porque têm uma natureza ostensivamente comercial. Trata-se de uma
criação espontânea do mercado, o como objetivo de ultrapassar as dificuldades associadas à circulação
da moeda. Antes de serem criados, a moeda era associada ao ouro, o que dificultava a sua circulação
e mobilidade. Por essa razão, substitui-se a circulação de dinheiro em moeda por documentos dos quais
constavam os créditos, de forma a tornar mais simples a mobilidade dos mesmos no comércio. Os
títulos de crédito são documentos que titulam e identificam créditos para facilitar a circulação desses
créditos face a uma dificuldade de circulação do dinheiro em moeda. Segundo Pais de Vasconcelos,
há uma coisificação de direitos através da sua incorporação em documentos. Todo o regime dos títulos
de crédito é marcado pela preocupação de segurança e celeridade circulação de créditos.

Noção de títulos de crédito - O título de crédito é um documento que incorpora um direito


literal e autónomo que legitima o seu titular a exercê-lo e serve de suporte à sua circulação e
mobilização. O título de crédito tem como função titular e incorporar direitos de modo a permitir e
facilitar a sua circulação e mobilização. Os títulos de crédito abrangem documentos tradicionais em
suporte papel e registos informáticos que representam valores mobiliários escriturais.
Os títulos de crédito caracterizam-se pela:

a. Literalidade
b. Autonomia
c. Incorporação
d. Legitimação
e. Circulabilidade

Passamos a analisar cada característica individualmente:

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Literalidade
O conteúdo e extensão do direito incorporado no título são aqueles que dele constam escritos.
O título vale precisamente com o conteúdo e extensão que dele constam. Caso contrário, não havia
confiança no título para que pudesse circular. O título tem de ser equivalente ao dinheiro.

Qual é o objetivo da literalidade? Quem examina o título tem um conhecimento completo e


preciso do direito que ele incorpora, contribuindo para a segurança na sua circulação.

As leis que regulam os diferentes títulos de crédito determinam o que tem de constar do título.
Por exemplo, o artigo 1.º, LUC (que regula os cheques) contém um conjunto de elementos essenciais
ao cheque. O artigo 2.º diz que a falta destes implica que o título não produza efeitos como cheque. Os
artigos 1.º e 2.º da LULL (que regula as letras e livranças) são semelhantes aos anteriormente vistos
na LUC (embora com algumas exceções). Quando falha um elemento essencial à qualificação do
documento como título, este é inexistente como título e vale apenas como quirógrafo (documento
probatório). Outras regras equivalentes aos artigos 1.º, LUC e 1.º, LULL: artigo 75.º, LULL; art. 370.º,
C.Comercial para a guia de transporte; art. 408.º, C.Comercial para o conhecimento de depósito de
mercadorias; art. 298.º, CSC para as ações; art. 348.º, CSC para as obrigações.

Qual a principal consequência jurídica da literalidade?

Resulta do princípio da literalidade que, em regra, os títulos de crédito não podem ser
contestados com o auxílio a elementos que sejam estranhos ao título (ou seja, com base em
fundamentos extracartulares, que não constam do título). Em princípio, os títulos só podem ser
contestados com base em elementos cartulares, de forma a garantir a segurança do título.

Para além disso, por força da titularidade, tem especial importância o elemento declarativo em
detrimento do elemento volitivo. Exemplo: se houver uma divergência entre um valor por extenso e
um valor expresso por número, prevalece o valor por extenso. Se houver divergência entre valores por
extenso, prevalece o valor mais reduzido (arts. 9.º, LUC + 6.º, LULL).

A literalidade não tem sempre a mesma intensidade: é mais intensa nos títulos de crédito
abstratos e menos intensa nos títulos de crédito causais.

Nos títulos abstratos (ex: letras, livranças e cheques), o obrigado ao cumprimento apenas pode
opor ao portador do título exceções que constem do título ou exceções extracartulares originadas em
convenções exteriores ao título que o liguem ao próprio portador. Portanto, o obrigado ao cumprimento
não pode opor ao portador exceções extracartulares originadas em convenções exteriores ao título que

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o ligue a outros titulares cambiários que não o portador. Por exemplo, ele não pode opor uma situação
de dolo, erro-vício ou falta de forma.

Diferentemente, nos títulos causais (ex: ações das sociedades anónimas) a literalidade é ténue,
na medida em que remetem para o que consta do contrato de sociedade.

A literalidade é essencial para assegurar a circulabilidade dos títulos. Isto manifesta-se ao nível
da não invocabilidade dos vícios de vontade (erro vicio ou erro obstáculo) para se escusarem ao
cumprimento da obrigação cartular.

Autonomia
Neste âmbito, temos de distinguir a autonomia do direito cartular face ao direito subjacente
da autonomia da posição do portador do título.

Quanto à autonomia do direito cartular face ao direito subjacente, o direito incorporado no


título é autónomo em relação ao direito não cambiário que lhe deu origem. Todos os títulos de crédito
têm subjacentes um negócio ou situação jurídica que gera o crédito que se pretende titular. Essa relação
jurídica é autónoma da relação de crédito.

Temos de distinguir o direito cartular (direito que está incorporado no título) do direito
subjacente (aquele que está na origem do direito cartular).

Há contextos onde eles são próximos. No caso do cheque, o direito cartular em que fica
investido o portador do cheque é diferente do direito de crédito que ele tem sobre o devedor com base
na relação que gerou o cheque. Mas o montante tende a ser o mesmo. No caso do cheque o devedor é
o banco sobre quem o cheque foi sacado. O prazo de prescrição no cheque passa a ser de 6 meses. Em
regra, salvo acordo em contrário, quando é entregue um título de crédito como forma de pagamento
há uma dação em função do cumprimento. Isso significa que a dívida do negócio subjacente só se
extingue se e na medida em que o direito cartular for satisfeito.

Sempre que o título circule mais do que uma vez, associado a cada direito cartular estará uma
relação jurídica subjacente. Por cada movimento de circulação do título existe uma relação jurídica
subjacente. Por exemplo, subjacente à subscrição da livrança à ordem do tomador está um crédito do
tomador sobre o subscritor da livrança, e subjacente a cada endosso posterior está o crédito do
endossatário e do endossante.

Mais uma vez, o grau de autonomia entre o direito cartular e o direito subjacente varia
consoante a natureza mais ou menos abstrata do título. Isto resulta claramente do artigo 17.º, LULL e

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do artigo 22.º, LUC (são artigos paralelos). O artigo 17.º, LULL diz que ao portador que surge a cobrar
o título podem ser opostas exceções emergentes da relação subjacente que liga o demandado ao
demandante. Contra o portador do título podem ser invocadas exceções extracartulares que nascem
das relações imediatas (relações entre o portador e o interveniente a quem esteja a ser exigido o
pagamento). O artigo 22º LUC prevê o mesmo para o cheque: ao portador do cheque podem ser apostas
as exceções que se fundem nas relações pessoais dele com aquele a quem é exigido o cumprimento.

Quanto à autonomia da posição do portador do título, referimo-nos à autonomia da


titularidade do título pelo portador em relação à de outros portadores anteriores. A titularidade do
portador do título tem autonomia face à titularidade de anteriores portadores que eventualmente
tenham sido desapossados do título. Nos termos do artigo 16.º, LULL, é portador legítimo de uma letra
o que justifique essa titularidade por uma série ininterrupta de endossos, ainda que o último seja em
branco. Se alguém na cadeia foi desapossado de uma letra, o portador atual, desde que justifique o seu
direito por uma série ininterrupta de endossos, não é obrigado a restituí-la (ele mantém a titularidade).
Exceto se a adquiriu de má fé ou se, ao adquiri-la, cometeu falta grave. Pais de Vasconcelos diz que
esta aquisição é originária, porque quem transmite não tem titularidade. Ou seja, cada titularidade da
letra é originaria.

Este regime aplica-se às livranças pelo artigo 77.º, LULL e aplica-se analogamente ao cheque
nos termos do artigo 22.º. A titularidade de cada portador do título é autónoma relativamente à do
anterior portador e não é afetada pelos vícios de que eventualmente sofra o direito daquele que recebeu
o título. Exceto se a adquiriu de má fé ou se, ao adquiri-la, cometeu falta grave.

❖ Incorporação – em princípio, o título tem de existir fisicamente para que possam ser
exercidos os direitos cartulares. Ou seja, se o título se destruir ou desaparecer não pode ser
exercido. Tem de ser reconstituído através de um processo de reforma.

❖ Legitimação – está relacionada com a autonomia do portador.

Legitimação do lado ativo - posse do título de acordo com a lei de circulação, que legitima
o portador a exercer o direito cartular. A lei de circulação nas letras é a cadeia ininterrupta
de endossos. Consequências: (i) o portador não precisa de provar a titularidade; (ii) a
titularidade não pode ser contestada (em regra).

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Legitimação do lado passivo – o obrigado está legitimado a cumprir perante quem se


apresenta como portador de acordo com a lei de circulação do título. Cumprindo perante
esse portador, o obrigado fica desonerado e não lhe pode ser oposta a legitimidade da pessoa
a quem pagou (arts. 40.º, n.º 3, LULL + 35.º, LUC).

❖ Circulabilidade – os títulos de crédito circulam de acordo com o regime estabelecido por


lei, e a esse regime dá-se o nome de lei de circulação. Consoante o modo de circulação,
temos 3 tipos de títulos de crédito:
1. Nominativos (ex: ações e obrigações nominativas). Contêm no próprio título a
identificação do titular. Circulam por declaração do transmitente escrita no título e pelo
pertence lavrado no título e averbamento no livro de ações da sociedade.
2. À ordem (ex: letras, livranças e cheques) – circulam por endosso. O endosso é uma
declaração escrita e assinada no verso no titulo, em regra, expressa por expressões como
“pague-se” e “à ordem de” , ou uma simples assinatura do local. Podem ou não indicar
a identidade o endossatário. Se não identificar o endossatário, chama-se de endosso em
branco. O endosso implica a entrega do título ao endossatário (é um requisito de
validade).
3. Ao portador (ex: ações e obrigações ao portador – foram extintas pela Lei 15/2017 de
3 de maio) – circulam por entrega real.

Títulos Impróprios
A par dos títulos de crédito, surgem os títulos impróprios que não são títulos de crédito, porque
não se destinam tipicamente à circulação, mas podem circular. Exemplo: bilhetes de cinema, bilhete
de metro, etc.

Classificação de títulos de crédito


Os títulos de crédito podem ser:

Públicos vs. privados

Públicos - emitidos por entidade pública no exercício dos poderes públicos. Exemplo: títulos
da dívida pública ou obrigações do Estado.

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Privados – todos os que não são emitidos por uma entidade pública no exercício dos poderes
públicos.

Propriamente ditos vs. representativos vs. de participação

Propriamente ditos – incorporam os direitos de crédito pecuniários. Exemplo: Letras, livranças


e cheques.

Representativos – incorporam direitos reais sobre coisas. Exemplo: Guias de transporte.

Participação – incorporam o direito social dos sócios da sociedade. Exemplo: ações das
sociedades anónimas.

Causais vs. abstratos

A distinção entre estes títulos prende-se com a possibilidade de invocação ou não de exceções
extracartulares contra o portador que cobra o título. É uma classificação de espectro: há títulos mais
abstratos que outros. Os títulos mais abstratos são as letras, livranças e cheques.

Nominativos vs. à ordem vs. ao portador

Já fizemos esta distinção anteriormente.

Individuais vs. em série

Em série – emitidos em massa e destinam-se a ser tomados por diferentes pessoas. Em regra,
são fungíveis, porque têm uma relação subjacente comum. Exemplo: Ações e obrigações.

Individuais – tipicamente emitidos singularmente. São infungíveis, porque têm relações


subjacentes próprias.

Natureza distinta do direito cartular e do direito subjacente


Na letra, o direito cambiário é direito de crédito do portador. Subjacente a esse, há um conjunto
de relações jurídicas diferentes.

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▪ Saque – o saque da letra é o negócio jurídico pelo qual o sacador dá uma ordem ao
sacado para que pague uma determinada quantia ao tomador ou à ordem do tomador, e
simultaneamente promete ao tomador que o sacado vai aceitar e pagar a letra.
▪ Aceite – negócio jurídico pelo qual o sacado declara ao sacador que aceita pagar a letra
ao tomador ou à sua ordem e promete pagar a letra ao tomador ou à sua ordem.
▪ Endosso – negócio jurídico pelo qual o tomador ou outro qualquer portador da letra dá
uma nova ordem ao sacado (que será aceitante se já tiver ocorrido o aceite) para que
pague a letra ao endossatário, a quem entrega a letra ou à sua ordem.
▪ Aval – negócio jurídico pelo qual o avalista promete pagar a letra se aquele por quem
der o aval não a pagar.

Estes negócios são negócios jurídicos unilaterais que incorporam promessas abstratas. O
crédito cartular é só um, mas pode ter vários devedores. Subjacente ao crédito titular, existem vários
direitos. Subjacente a cada um destes atos há relações jurídicas que geraram os créditos e débitos.

A função que o negócio cambiário desempenha em relação ao negócio subjacente é definida


pela convenção executiva, que é a convenção entre os intervenientes do ato cambiário paralela a este
ato e que se pode integrar no próprio negócio subjacente ou num acordo posterior. Na convenção
executiva define-se a função a desempenhar pelo negócio cartular em função ao negócio subjacente
(seja uma garantia, doação, dação em cumprimento, dação em função do cumprimento, etc.) – isto é,
ela define o que representa aquele crédito titulado naquele negócio subjacente.

Nada sendo dito, nas letras livranças e cheques presume-se que o crédito constitui uma dação
pro solvendo (ou seja, em função do cumprimento) e não uma dação pro soluto. Isso significa que o
ato cambiário só opera o pagamento na medida em que a dação cambiária vier a ser cumprida. Caso
contrário, mantém-se a dívida.

Relações mediatas e relações imediatas


A relação é imediata quando entre dois intervenientes num título existe uma relação subjacente.

Quando os intervenientes não estão ligados por uma relação subjacente, a relação é mediata.

Esta distinção é essencial para o artigo 17º LULL, porque o obrigado ao cumprimento só pode
opor ao portador, para além das exceções cartulares, as exceções extracartulares que resultam de

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relações imediatas. As exceções extracartulares só podem ser opostas entre pessoas que sejam sujeitos
da mesma relação extracartular, ou seja, das relações imediatas.

Quid iuris se houver um desapossamento involuntário do título?

Na cadeia cambiária, existe um endosso que é uma assinatura falsa, por exemplo.

O artigo 16.º, LULL prevê que o desapossado involuntário não pode reivindicar a letra de
portador de boa fé legitimado por uma série ininterrupta de endossos. Pais de Vasconcelos entende
que, apesar de não poder reivindicar a letra, ele pode excecionar e provar o desapossamento
involuntário para não a pagar (artigo 7.º, LULL). No entanto, isto não afeta a validade das obrigações
dos demais signatários, nomeadamente dos posteriores.

Quid iuris se houver uma extinção dos títulos por destruição ou desaparecimento?

Segundo o princípio da incorporação, o direito incorporado não pode ser exercido sem o título.

É necessário reconstruir o título, através de um processo judicial de reforma. A reconstituição


opera por uma reforma judicial (artigo 377.º, C.Civil, conjugado com o artigo 484.º, C.Comercial).

O termo de reforma também é usado para identificar o pagamento em que na data de


vencimento de um título e cumpre esse pagamento através de um novo título. Mas não nos referimos
a este sentido.

A reforma tem de operar judicialmente (484.º, C.Com.). O processo judicial de reforma é


marcado pelo risco de o título voltar a aparecer na titularidade de outra pessoa, surgindo um conflito
entre portadores. O risco da reforma de títulos é ele estar na posse de um terceiro e depois haver dois
títulos sobre a mesma coisa. Assim, este processo tem especiais cuidados ao nível da notificação dos
interessados – devem ser citados todos os interessados conhecidos e desconhecidos que possam
eventualmente ter interesse no título. Por consequência: o beneficiário da reforma, ao exercer o direito
cartular reformado, tem de prestar uma caução, que é válida por 5 anos em garantia do direito de outro
titular que possa vir a surgir e que tenha melhor direito sobre o título.

Causas de extinção do título: o título pode extinguir-se por extinção do direito incorporado (por
pagamento) ou por ineficácia. Sendo ineficaz, depois do protesto por falta de pagamento ou de passar

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o prazo para a apresentação a protesto, a letra já não circula como título de crédito, mas de acordo com
o regime da cessão de créditos.

Regime da letra de câmbio

O regime do cheque e das livranças é paralelo ao regime das letras de câmbio. O regime da
letra e dos cheques foi unificado pelas convenções de Genebra, que vieram a ser integradas no direito
interno português pelo DL n.º 23/721 de 29 de março de 1934.

Desde logo, é necessário estabelecer a distinção entre letra e livrança: a letra, em princípio, é
emitida por um sacador, que ordena ao sacado que pague uma quantia ao tomador ou à sua ordem.
Assenta numa relação tripartida. Na prática, a letra é uma ordem de pagamento.

A livrança, por sua vez, é emitida por um subscritor que promete pagar uma quantia ao
beneficiário ou à sua ordem – tem uma dimensão bilateral. A livrança é uma promessa de pagamento
(arts. 75.º a 78.º, LULL). O art. 77.º, LULL faz uma remissão integral do regime da livrança para o
regime da letra.

A letra deve conter os elementos previstos no art. 1.º, LULL, designadamente o mandato puro
e simples de pagar uma quantia determinada, o nome do sacado e da pessoa a quem ou à ordem de
quem deve ser paga e a assinatura do sacador (aquele que passa a letra). Deve conter estes elementos
de forma a que produza efeito como letra. Podem ser supridos os elementos previstos no art. 2.º, LULL,
nomeadamente a indicação da época de pagamento, do lugar do pagamento e do lugar onde foi passada.
O modelo da letra vem previsto no Código de Imposto do Selo, mas esse modelo é uma formalidade
fiscal e não uma condição de validade do título cambiário.

A leitura do art. 1.º, n.º 2, LULL acrescido com os arts. 2.º, 12.º, 26.º e 31.º, LULL permite
retirar que o saque, o aceite, o endosso e o aval são incondicionáveis. Assim, não é possível estabelecer
uma condição no título cambiário associado ao cumprimento destes atos. O saque sob condição impede
a qualificação da letra como tal. O aceite sob condição considera-se recusa de aceite. O endosso
condicionado tem-se por não escrito. Em termos de aval, a única limitação que pode opor à relação
cartular é a limitação do seu quantitativo da. Na medida em que o centeúdo da obrigação do avalista
se define pelo conteúdo da obrigação do avalizado, o condicionamento do aval terá os mesmos efeitos
do condicionamento do ato avalizado.

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Letra em branco

A letra em branco é uma das figuras mais utilizadas no direito bancário. Serve para garantir
uma dívida da qual não se sabe qual o montante, na sequência no incumprimento do devedor. Se nunca
houver incumprimento, a letra nunca chega a ser preenchida. Corresponde a um ato objetivamente
comercial independentemente da relação subjacente.

A letra em branco é uma letra de câmbio criada e posta em circulação sem estar completamente
preenchida, com o propósito de vir a ser preenchida mais tarde. É propositadamente deixada em
branco, o não preenchimento é intencional. O preenchimento posterior é feito mediante acordo extra
cartular que se chama pacto de preenchimento, que corresponde ao acordo pelo qual se estipula o
modo como o título virá a ser preenchido mais tarde. Se não tiver sido intencional o não preenchimento
e se não houver pacto de preenchimento, a letra é incompleta e não vale como letra, tendo efeito
meramente de quirógrafo. A letra em branco deve estar completamente preenchida no momento de
cobrança e execução pelo portador. É uma figura muito comum em contratos de abertura de crédito
com conta corrente caucionada – nestes, o banco, regra geral, exige uma letra ou livrança em branco.
Assim, se o devedor entrar em incumprimento, o banco preenche a data e dá a letra à execução.

Surge na doutrina a questão de saber se a letra em branco, antes de ser preenchida, já tem
natureza cambiária ou se só adquire a natureza cambiária quando for preenchida. Pinto Coelho e
Oliveira Ascensão entendem que só se torna título cambiário quando é preenchida, mas isto tem efeitos
retroativos. Por outro lado, Carolina Cunha defende que, no caso das letras em branco, o saque, o aceite
e o endosso são atos preparatórios de uma letra em branco, pelo que, até ao momento de preenchimento
da letra, não vinculam os seus autores. Assim, as partes podem desvincular-se unilateralmente até ao
preenchimento da letra. Este entendimento anula toda a garantia associada a uma letra ou livrança em
branco.

Pais de Vasconcelos defende uma posição pragmática – considera que a letra em branco tem já
que ser uma letra com natureza cambiária, vinculando os seus titulares. Defende esta posição com base
no art. 10.º, LULL, nos termos do qual uma letra em branco pode ser transmitida através de endosso.
O art. 10.º permite que o primeiro portador da letra em branco a transmita em branco.

Neste âmbito, surge o problema do preenchimento abusivo da letra ou livrança em branco: se


o portador coloca um valor superior ao valor efetivamente em dívida, violando o pacto de
preenchimento, haverá preenchimento abusivo (art. 10.º, LUL). O preenchimento abusivo, por regra,
não é oponível ao terceiro portador. Se o portador que cobra a letra não for pate do pacto de
preenchimento, a exceção do preenchimento abusivo perante ele é improcedente. Assim, resta ao

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demandado, prejudicado pelo preenchimento abusivo, demandar aquele com quem tem relações
imediatas e que preencheu abusivamente a letra. Existe uma simples pretensão de indemnização ao
abrigo da responsabilidade contratual do prejudicado face àquele que violou o pacto de preenchimento.
O raciocínio é semelhante num pacto de aval, que apenas tem caráter obrigacional. Quem deduz a
exceção de preenchimento abusivo tem o ónus de alegação dos factos e sua prova. Ao preencher a letra
em branco, o portador não tem de informar o obrigado cambiário, nem tem de discutir com ele o
preenchimento, exceto se isso resultar do pacto de preenchimento.

Esta questão é paralela ao problema da desvinculação unilateral do avalista nos avales em


branco. Referimo-nos às pretensões mais frequentemente invocadas pelos avalistas nos avales em
branco para se desvincular. Uma parte significativa dos conflitos judiciais em matéria de letras e
livranças rende-se com a posição do avalista, i.e., com o acionamento do avalista. O avalista é um
garante. O aval é semelhante à fiança, na medida em que é uma garantia que abrange todo o património
pessoal do avalista. Quando é acionado o aval, é normal que o avalista se tente desvincular
unilateralmente do título cambiário que assinou. Em regra, esta desvinculação é feita com base em
dois tipos de argumentos:

a. Argumentos relacionados com o direito ou relação subjacente: esta é uma invocação muito
comum quando o avalista presta o aval por ser sócio, gerente ou cônjuge de um sócio ou gerente
de uma determinada sociedade comercial que está a ser financiada através da letra e, seja por ter
havido novas eleições e nomeação por parte da assembleia geral, seja porque cedeu ou alienou a
sua participação social nessa sociedade comercial, perde essa qualidade de sócio ou gerente ou
cônjuge de um sócio ou gerente da sociedade. Ao perder essa qualidade, perde a sua capacidade
de influenciar as decisões da sociedade comercial, nomeadamente no que diz respeito ao próprio
cumprimento do crédito bancário associado à letra que avalizou, ficando numa posição de
fragilidade imensa, na medida em que é garante numa relação que, de alguma forma, tinha algum
controlo, na qualidade de membro do órgão de administração, mas na qual deixa de ter qualquer
poder decisório.
Neste contexto, tem sido frequentemente invocada a alteração das circunstâncias, em que há um
pressuposto associado à prestação do aval que desaparece ou é alterado. Estas invocações não estão
diretamente relacionadas com a obrigação cartular, não resultando do título. De lembrar que o aval
é incondicional, pelo que não pode colocar-se num título cambiário um aval condicionado à
manutenção da qualidade de gerente, administrador ou sócio. Contudo, isso já será possível na
relação subjacente – as relações subjacentes podem ter condições associadas ao aval, seja as
celebradas entre avalista e avalizado, sendo as celebradas entre avalista, avalizado e sacador.

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Aplicam-se ao aval as regras conjugadas dos arts. 10.º e 17.º, LULL. Assim, se o avalista for parte
no pacto de preenchimento entre o avalizado e o credor subjacente, isso significa que o credor
subjacente também está vinculado à condição fixada no aval. Tratando-se de relações imediatas, o
avalista pode invocar a condição perante ele para não responder (art. 17.º, LULL). Se esta condição
da relação jurídica subjacente vincular o portador que exige o pagamento, ou seja, se o portador
que exige o pagamento for parte da relação jurídica subjacente, estar-se-á perante uma relação
imediata e o avalista pode invocar perante ele esta exceção.
Por outro lado, se o avalista não for parte do pacto de preenchimento e tiver antes celebrado um
pacto de aval em branco apenas com o avalizado, ele fica vinculado pelas condições do pacto de
preenchimento perante o credor, sendo que o pacto de aval em branco apenas vincula as partes (o
avalista e o avalizado, tendo efeitos meramente obrigacionais). Esta condição associada ao aval
que resulta da relação subjacente e não da relação cartular vincula o portador que exige o
cumprimento, uma vez que é parte da relação subjacente. Se o credor que exige o cumprimento
não é parte na relação subjacente da qual resulta o condicionamento, não pode ser invocado perante
o credor subjacente e o avalista tem de cumprir mesmo que se tenha verificado a condição
associada à relação subjacente.
O Acórdão de uniformização de Jurisprudência n.º 4/2013 veio pronunciar-se neste sentido,
estabelecendo que, tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a
sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado
em contrato em que a mesma é interessada, ainda que entretanto venha a ceder a sua posição
social na sociedade avalizada.

b. Argumentos relacionados com juízos de validade feitos a propósito da fiança omnibus: os


avalistas, para requerer a sua desvinculação, invocam um argumento a propósito da fiança,
resultante do Ac. n.º 4/2001, que estabelece que é nula por indeterminabilidade do objeto (art.
280.º, CC) a fiança de obrigações futuras quando o fiador se constitua garante de todas as
responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção
expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado
intervenha. Este acórdão foi proferido no âmbito de um processo relacionado com a fiança
omnibus. Assim, a fiança que não tenha qualquer limite quanto às responsabilidades a assumir será
nula por violação do princípio da determinabilidade do objeto. Exemplificando, ninguém pode
prestar uma fiança dizendo que garante todas as dívidas de outra pessoa, presentes e futuras. Os
avalistas têm invocado este acórdão para se desvincular, dizendo que um aval em branco equivale
a esta fiança, sendo nulo por indeterminabilidade do objeto (art. 280.º, CC). Invocam o art. 280.º,
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CC, a indeterminabilidade do objeto e a nulidade do aval em branco. Esta posição é defendida por
vários autores, nomeadamente Januário Costa Gomes.
Porém, apesar da proximidade entre a fiança e o aval, na medida em que ambos são garantias que
incidem sobre todo o património do garante, há uma diferença substancial: a fiança é causal, no
sentido em que a validade da fiança depende da validade da dívida principal, e o aval é abstrato,
pois a sua validade, em regra, não depende da validade da dívida que garante. Assim, no aval,
contrariamente ao que ocorre na fiança, as nulidades não podem ser invocadas perante terceiros
portadores de boa-fé. Em regra, havendo pacto de preenchimento entre avalizado e o credor
subjacente, não há indeterminabilidade do objeto, mas apenas indeterminação – está definido como
é que a prestação será determinada. Nos casos em que não há preenchimento ou em que este pacto
de preenchimento viola o art 280.º, CC, o avalista apenas podia invocar esta exceção perante as
partes no acordo de aval e nunca perante terceiros de boa-fé. A nulidade apenas atuará nas relações
subjacentes entre o avalista e, sendo um pacto de aval em branco, o avalizado ou, se participar no
pacto de preenchimento, o avalista e o credor subjacente que atua nesse pacto.

Regime do saque

O saque é o negócio jurídico unilateral abstrato que tem por conteúdo uma ordem dirigida ao
sacado para que pague uma determinada quantia ao tomador ou à ordem dele (aos endossantes).
Contém uma promessa dirigida ao tomador ou à sua ordem de que o sacado irá aceitar e pagar a letra
e que, se isso não suceder, o sacador pagará ele próprio.

Em regra, o saque é feito à ordem de terceiro. Isto é, em princípio, o tomador é um terceiro,


mas não tem de o ser. Normalmente, a letra é sacada sobre o sacado à ordem do tomador, mas é possível
que seja sacada à ordem do próprio sacador (nesse caso, designa-se por sacador-tomador). Em casos
raros, a letra pode, ainda, ser sacada sobre o próprio sacador, em vez de ser sacada sobre um terceiro
(nesse caso, designa-se por sacador-sacado).

Em princípio, o sacador responde pelo aceite e pelo pagamento da letra (art. 9.º, LULL). Assim,
o sacador responsabiliza-se que o sacado irá aceitar a letra e pagá-la. Contudo, pode exonerar-se da
responsabilidade do não aceite, mantendo apenas a responsabilidade pelo pagamento. Isso não
significa que deixa de haver aceite, mas apenas que o sacador não se responsabiliza por ele.

O sacador pode estipular juros e fazer constar isso da letra. Se a letra for sacada à vista ou a
termo de vista, os juros têm estipulação autónoma fixada na própria letra (art. 5.º, LULL). Se a letra

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tiver data certa ou for a termo de data, os juros são incluídos no montante do saque, não tendo
estipulação autónoma.

Os arts. 7.º e 8.º, LULL tratam de uma série de questões atinentes a assinaturas que se aplicam
a todos os atos cambiários e não apenas ao saque. O art. 7.º, LULL refere as assinaturas de pessoas
incapazes de se obrigarem por letra, assinaturas falsas, fictícias ou assinaturas que não poderiam
obrigar as pessoas a assinar a letra – neste caso, as obrigações dos restantes signatários continuam
válidas, sendo a assinatura inválida desconsiderada. O mesmo ocorre mesmo no caso da obrigação do
avalista (art. 32.º, LULL) – a obrigação do avalista do ato viciado permanece válida, exceto se o vício
se puder considerar de forma. O art. 8.º, LULL versa sobre os casos de representação sem poderes ou
com excesso de poderes, estabelecendo que se se apuser numa letra a assinatura na qualidade de
representante de alguém sem poderes de representação, essa pessoa fica vinculada a título pessoal nos
termos em que assinou a letra.

Regime do aceite

O aceite é um negócio jurídico cambiário, unilateral e abstrato, pelo qual o sacado aceita a
ordem de pagamento que lhe foi dirigida pelo sacador e promete pagar a letra no vencimento ao
tomador ou à sua ordem. É escrito na letra através da palavra aceite ou equivalente e assinatura do
sacado, ou apenas pela assinatura do sacado, como ocorre no endosso e no aval. Basta a assinatura do
sacado, uma vez que, constando o seu nome da letra, a sua assinatura faz presumir que aceitou a letra.

Quando o sacado aceita, deixa de ser sacado e passa a designar-se aceitante, ficando
responsabilizado pelo pagamento da letra no vencimento. Naturalmente, pelo simples facto de constar
como sacado de uma letra, antes da aceitação o sacado não tem qualquer obrigação cartular – isto
significa que não tem obrigação de aceitar nem de pagar a letra, uma vez que o ato de aceite é um ato
voluntário do sacado. Daí que o protesto por falta de aceite não seja feito contra o sacado, mas contra
o sacador, uma vez que o primeiro, até aceirar, não tem qualquer obrigação cartular. Aceitando, o
sacado fica automaticamente obrigado a pagar a letra na data do vencimento.

A apresentação da letra aceite é facultativa (art. 22.º, LULL). Em regra, o portador não é
obrigado a apresentar a letra aceite, exceto nos casos em que o próprio sacador determina a sua
obrigatoriedade ou quando a letra é pagável à vista ou a termo de vista (nestes casos, é a apresentação
que determina o vencimento da letra). É possível que o sacador determine que a letra não pode ser
apresentada a aceite antes de determinado prazo.

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O aceite não pode ser condicionado, mas pode ser parcial e, até, modificado. Nos termos do
art. 43.º, LULL, havendo aceite parcial, recusa de aceite ou sua modificação, a letra vence-se de
imediato. Se o sacado riscar o aceite antes de restituir a letra, considera-se que ele recusou o aceite,
exceto se tiver informado por escrito antes o sacador ou o terceiro que vai aceitar. O sacado pode
arrepender-se até ao momento de entregar a letra, pois a transferência da letra, neste caso, é ato
constitutivo.

O aceite só é obrigatoriamente datado nos casos do art. 25.º, LULL. Quando a letra é pagável
a certo termo de vista ou deva ser apresentada ao aceite dentro de prazo determinado, o aceite deve ser
datado no dia em que foi dado, exceto se o portador exigir que seja a data da apresentação. À falta de
data, o portador, para conservar os seus direitos de recurso face aos endossantes, deve fazer constar
esta omissão da data por um protesto feito em tempo útil. Ou seja, por regra, o aceite não tem de ser
datado, exceto nos casos referidos do art. 25.º, LULL.

Regime do endosso

O endosso é o negócio cambiário que circula o título. É um negócio unilateral e abstrato que
tem por conteúdo uma nova ordem dada pelo portador da letra ao sacado ou aceitante depois do aceite,
para que pague não a ele, endossante, mas ao endossatário ou à sua ordem. Contém, também, uma
promessa do endossante de que se o sacado não aceitar ou não pagar ele próprio pagará a letra ao
endossatário. Tem, portanto, duas obrigações associadas. O endosso é paralelo ao saque, mas numa
fase posterior de circulabilidade da letra.

O art. 16.º, LULL é importante, relativo à lei de circulação das letras. Determina que quando a
um endosso em branco se segue um outro endosso, presume-se que o signatário seguinte recebeu a
letra pelo endosso em branco, mesmo que assim não tenha sido (isto é, mesmo que tenha havido vários
endossos em branco, que nunca ficam registados). Por causa da lei de circulação, em que tem que
haver uma quantidade ininterrupta de endossos, presume-se que a seguir a um endosso em branco o
primeiro endosso que não seja em branco é o que lhe segue, de forma a respeitar a lei de circulação.

Qual é a mais-valia da letra face à cessão de créditos? Cada endossante responsabiliza-se


perante os endossatários posteriores ao pagamento da letra. Isto é, cada endossante responde pelo
aceite e pelo pagamento da letra perante os endossatários posteriores. Na prática, isto significa que
quanto mais endossos, maior a garantia e a força da letra. Ou seja, quanto maior a transmissibilidade,
mais segura será a letra, por estarem mais pessoas vinculadas ao seu pagamento. Se o portador exigir

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o pagamento ao aceitante e este não pagar, o portador pode dirigir-se a um endossado anterior a ele.
Trata-se de um circuito de dívidas – o endossado, para receber a letra e a endossar, tinha de ter um
crédito sobre o endossado anterior. Assim, se um endossante pagar, poderá exigir o pagamento de
qualquer endossado anterior a ele, uma vez que mantém o crédito que tinha e que lhe deu acesso à
letra. O primeiro aceitante ou sacado é o devedor originário da letra.

À semelhança do sacador, o endossante também se pode exonerar-se do aceite e do pagamento


da letra, bem como proibir endossos posteriores. Havendo um endosso em violação desta proibição,
ele não responde perante esse endossatário. Nos termos dos arts. 18.º e 19.º, LULL, o endossante pode,
ainda, incluir na letra cláusulas que façam equiparar o endosso a um mandato. Nestes casos, o
endossante atua como se o endosso se tratasse de um simples mandato – ou seja, o endossatário não se
torna verdadeiro proprietário da letra, antes ocupa o lugar do endossante por procuração.

O endosso feito posteriormente ao protesto por falta de pagamento ou ao fim do prazo para o
protesto equivale a uma cessão ordinária de créditos (art. 20.º, LULL).

Regime do aval

O aval é um negócio cambiário, unilateral e abstrato, que tem por conteúdo uma promessa de
pagar a letra e por função a garantia desse pagamento.

Pode ser prestado por um terceiro ou por um signatário da letra, mas tem de ser prestado a favor
de um dos obrigados (isto é, tem que ser conhecido o avalizado). Se na letra não estiver identificado
quem é o avalizado, presume-se que o aval foi prestado a favor do sacador. O aval pode ser parcial
(condicionamento quantitativo) e pode ser feito através da indicação na letra ou pela assinatura de um
terceiro. A simples assinatura que não seja do sacador ou do sacado, na fase inicial da letra, vale como
aval.

A responsabilidade cambiaria do avalista é coincidente com a do avalizado, i.e., é determinada


pela do avalizado, sendo acessória. O aval subsiste mesmo que seja nula a obrigação do avalizado,
exceto em caso de vício de forma (art. 33.º, LULL). Aplica-se ao aval, em matéria de prescrição e
perda do direito de ação, os prazos da obrigação avalizada. A posição jurídica do avalista é subsidiária,
acessória da do avalizado, quer em matéria de prazos de prescrição, quer em matéria de protesto.

O avalista chamado a pagar a letra fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a
pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados desta. Pais de Vasconcelos entende que,

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havendo uma pluralidade de avales associada à letra, é necessário distinguir se se está perante um co-
aval ou uma pluralidade de avales (autónomos e independentes). No primeiro caso, a responsabilidade
entre avalistas é subsidiária. No segundo caso, cada vínculo será autónomo e independente dos outros.

Modalidades de vencimento da letra

As modalidades de vencimento da letra prendem-se com a distinção entre letras à vista, a certo
termo de vista, a um certo termo de data ou em dia fixado.

Nos termos do art. 33.º, LULL, uma letra só pode ter uma data de vencimento, não pode ter
vencimentos diferentes ou sucessivos. A melhor maneira de ultrapassar esta proibição é a emissão de
várias letras, uma para cada data de vencimento.

Uma letra à vista é paga mediante a apresentação, i.e., deve ser paga no momento em que é
apresentada. Neste caso, deixa de fazer sentido o aceite, uma vez que se dá o pagamento imediato sem
necessidade de alguém assumir a responsabilidade de pagar a letra. A letra à vista deve ser apresentada
no prazo de 1 ano a contar da sua data. O sacador pode reduzir ou alargar o prazo, e os endossantes
podem encurtar o prazo.

Nos termos do art. 53.º, LULL, a falta de apresentação a pagamento da letra à vista ou a certo
termo de vista dentro do prazo importa, para o portador, a perda dos direitos emergentes da letra contra
sacador, endossantes e demais obrigados.

Na letra a certo termo de vista, o prazo de vencimento conta-se a partir da data do aceite ou,
se houver recusa de aceite, a partir da data do protesto.

As letras sacadas a termo de data ou em dia fixado vencem-se nos termos dos respetivos
prazos. Têm de ser apresentadas a pagamento no próprio dia do vencimento ou num dos 2 dias úteis
seguintes.

As letras vencem-se antecipadamente em três casos:

• Recusa total ou parcial de aceite;


• Insolvência do sacado ou suspensão de pagamentos do mesmo ou promoção sem resultado da
execução dos seus bens;
• Insolvência do sacador de uma letra que não seja aceitável.

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O portador não pode recusar o pagamento parcial, mas pode recusar o pagamento antecipado.

Protesto e prescrição

A recusa do aceite e do pagamento podem ser certificadas por protesto. O protesto é um ato
formal praticado perante um notário.

O protesto por falta de aceite deve ser feito no prazo para apresentação do aceite. Se a letra for
apresentada no último dia, o protesto pode ser feito no dia útil seguinte.

O protesto por falta de pagamento, se a letra for pagável em data certa ou a certo termo de data
deve ser feito nos 2 dias úteis seguintes à data em que o pagamento deveria ter sido feito. Se a letra for
pagável à vista, observa-se o regime do protesto por falta de aceite, devendo ser feito no prazo para
apresentação do aceite.

Em ambos os casos, o portador que protesta a letra tem 4 dias para avisar da falta de aceite ou
de pagamento aquele que lhe endossou a letra e o sacador. Cada um dos endossantes tem, por sua vez,
2 dias para avisar o que o antecede na cadeia cambiária. A falta de aviso gera responsabilidade civil e
obrigação de indemnizar pelos danos causados.

Em caso de falta de protesto, o portador passa a poder cobrar a letra só do aceitante e do avalista.
O protesto pode ser dispensado por cláusula aposta nesse sentido, caso em que os beneficiários não
perdem o direito de ação por falta ou atraso no protesto.

Os prazos de prescrição das letras de câmbio estão previstos no art. 70.º, LULL. Importa referir
que a prescrição da obrigação cambiária não implica a prescrição da obrigação subjacente.

SINAIS DISTINTIVOS DO COMÉRCIO

Os sinais distintivos da empresa e dos produtos situam-se no âmbito da propriedade industrial.


Atualmente, os principais sinais distintivos da empresa são os logótipos e as recompensas e os
principais sinais distintivos dos produtos são as marcas, as denominações de origem e indicações
geográficas.

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Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Sinais distintivos da empresa

• Logótipos: são signos suscetíveis de representação objetiva e autónoma para distinguir uma
entidade ou um sujeito e eventualmente um estabelecimento deste. Isto significa que dizer que o
logótipo é um sinal distintivo da empresa é imperfeito, uma vez que o logótipo é um sinal distintivo
dos sujeitos, podendo não estar associado a nenhuma empresa. Tem como objetivo identificar
sujeitos que prestam serviços ou que produzem bens destinados ao mercado. O sujeito titular do
logótipo não tem de ser empresário, não tem de ter uma empresa ou um estabelecimento. Cada
sujeito pode ter vários logótipos (normalmente, isso ocorre quando tem vários estabelecimentos).
Coutinho de Abreu entende que o logótipo é um símbolo bifuncional, pois distingue sujeitos e
estabelecimentos.
• Recompensas: prémios e títulos de distinção oficiais ou oficialmente reconhecidos que são
concedidos a empresários por virtude da bondade dos seus estabelecimentos ou produtos.

Sinais distintivos dos produtos

• Marcas: signos suscetíveis de representação objetiva, clara e autónoma destinados sobretudo a


distinguir certos produtos de outros produtos idênticos ou afins.
• Denominações de origem: nome de uma região, de um local determinado ou, excecionalmente,
de um país, que serve para designar um produto originário dessa zona cuja qualidade ou
características se devem essencialmente ao meio geográfico e que é produzido, transformado e
laborado na área geográfica delimitada. São também consideradas denominações de origem certas
denominações tradicionais, geográficas ou não, que designam produtos originários de uma região
ou local determinado. Exemplo: queijo da serra.
• Indicações geográficas: nome de uma região, local determinado ou de um país, que serve para
designar um produto originário dessa zona cuja reputação, determinada qualidade ou outra
característica podem ser atribuídas a essa zona geográfica delimitada. Distingue-se da
denominação de origem, na qual a qualidade do produto se deve ao meio geográfico. No caso da
indicação geográfica, designa produtos que podiam ser produzidos com a mesma qualidade noutras
zonas, mas cuja fama está associada a uma área territorial delimitada de que deriva a indicação
geográfica (exemplo: pastel de Tentúgal).

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