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Acaricia meu sonho

Conselho Editorial:

Marcelo Barbão
Stella Maris Baygorria
Vanderley Mendonça
Acaricia meu sonho

Barbão

Amauta Editorial Amauta Brasileira


São Paulo - 2007
1ª Edição

Amauta AcadÍm ica Amauta PoÈtica


Copyright © Barbão, 2007

Revisão: Stella Maris Baygorria, Henrique Polak, José Mateus


Capa: Mario Amaya
Foto da Capa: Ximena Duhalde

Agradecimentos: Vanderley Mendonça, Roberto Guimarães e Martín Kohan

O autor agradece qualquer opinião sobre o livro e pode ser contatado através do
e-mail: barbao@gmail.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
______________________________________________________
Barbão
Acaricia meu sonho / Barbão. -- São Paulo :
Amauta Editorial, 2007


1. Romance brasileiro I. Título.

07-7822 CDD-869.93
______________________________________________________
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances : Literatura brasileira 869.93

Endereço para Correspondência:

Amauta Editorial
Rua Augusta, 1378 - cj. 72
01304-001 - São Paulo - SP
www. amautaeditorial.com
contato@amautaeditorial.com

Amauta Brasileira
Dedicado a Salvador Elizondo (1932-2006),
que me reensinou a escrever.
Volver

Ainda fazia bastante frio, apesar de ser quase meio-dia.


É verdade que já estávamos no outono, mas a gente sempre
pensa que vai esquentar quando chega o meio-dia. Não ia.
Eu havia acabado de chegar, desci do remis que me trazia
do aeroporto em plena Plaza de Mayo. Há anos não vinha
para cá. E eu nunca percebi verdadeiramente o quanto sentia
falta deste lugar. Sua gente sempre linda e mal-humorada, os
parques com leitores ávidos em busca de velhas novidades,
a sensação de riqueza mesmo nas casas mais pobres. Sim,
mas ela tinha mudado. Eram anos de tristezas e desilusões
que ficavam marcadas nas suas paredes mal pintadas e seus
edifícios sem conservação. Engraçado como conseguimos
recontar as história de povos há muito desaparecidos através
de sua arquitetura e somos incapazes de olhar com o mesmo
interesse para os lugares ainda habitados.
É possível, sim, conhecer a situação atual deste lugar
olhando para as fachadas de seus prédios. Talvez até seu
passado, quiçá seu futuro.
Eu conseguia fazer isso somente respirando o ar gelado
que machucava minhas narinas. La sensación térmica es de 5
grados y puede llegar a cero grados a la noche, dizia o “homem
do tempo” do Canal 13. Aqui é o único lugar onde se ouve
a expressão “sensação térmica”, que é muito engraçada.
Depois acabei exportando-a e acho engraçado que ninguém

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mais ache engraçado quando ouve. É estranho quando as
coisas que são diferentes passam a ser normais.
A TV está no bar que entrei. O frio me cortava as
entranhas, não tive o bom senso de ver com antecedência o
clima por aqui. Fui pega desprevenida. Peço um café e me
dirijo ao banheiro. Ainda bem que não sou tão tola assim e
trouxe alguns agasalhos na mala.
Quando saio, o velho garçom me dá um sorriso de
cumplicidade e, trazendo meu café, comenta: ¿Hace mucho
frío, no? Sim, está demais. ¿Recién llegás? Sim, me esqueci de
checar o clima antes. Mas parece que o inverno será terrível
este ano. Claro, ya se ve como van a ser las cosas. Yo si pudiera me
iría de acá pero ¿con qué plata? Nadie tiene plata en estos días.
Eu costumava vir a este café quando vivia aqui, estava sempre
cheio. Instintivamente, olhamos ao redor. Além de mim,
somente o dono no caixa olhando com tristeza para o nada e
dois jovens que discutiam animadamente (apostaria que era
sobre política, mas não me interessei em prestar atenção). Sí,
por supuesto, ¡acá trabajábamos 8 mozos! Ahora, somos tres. Yo,
todo el día sólo (y, mirá que tengo tiempo para charlar con vos)
y los otros dos a la noche cuando hay más gente. Situação triste.
¿Entonces, estás de vuelta? Sim. ¿Y te vas a quedar acá? Não sei.
Esto es otra cosa triste de la crisis, la gente se va del país. Pero si
no fuera por la edad también me iría y no volvería.
Essa palavra ficou me perseguindo por um bom tempo
já na rua. Será que posso considerar isso um retorno, estarei
eu voltando? Diz-se por aí que volta-se sempre ao primeiro
amor, volta-se ao lugar onde nasce, volta-se ao lugar onde
suas melhores lembranças estão guardadas.
Quase que como um cofre onde se guardam todos os
melhores momentos da sua vida. E este lugar significa tudo

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disso para mim. Mas de uma forma nova. Não passei os
melhores momentos da minha vida aqui. Mas acho que se
eu estivesse aqui teria passado os melhores momentos da
minha vida. Uma sensação estranhíssima de saudades do
futuro. Ou do futuro do pretérito. Algo assim.
Só sei que foi aqui que fiquei depois que ele me deixou.
É certo que, entre aquele momento em que ele foi embora
e hoje, passaram-se quarenta anos. E eu me recusei a voltar
nesse tempo todo. Talvez por isso a sensação de retorno, de
volver. De retorno para um lugar que não deveria ser meu,
não deveria me dar saudades, mas dá.
Ao sair do café, com o início da noite, fiquei pensando no
velho garçom que conversara comigo quase toda a tarde. Eu só
decidi ir embora porque o turno dele já estava acabando. Uma
dor profunda me atacou quando atravessei a rua. As luzes que
começaram a se acender me deixaram absolutamente tonta.
Era como se falassem, ¿Que hacés acá? Este no es tu hogar,
no vuelvas más, ¡andate de acá! Mas se aqui não é meu lugar
como é que vocês reconhecem que isto é um retorno? Pero,
¿no ves que nadie te quiere acá? ¿Que nadie te espera? Mas, se é
assim, porque vocês continuam iluminando meu caminho, o
meu retorno? E as luzes se calavam e continuavam com seu
trabalho de iluminar.
Caminhei por esta larga avenida chamada Corrientes
arrastando minhas próprias correntes como um fantasma que,
tendo morrido em hora errada, ainda volta para cumprir seu
destino. Quando me animava a olhar para o céu, via olhos
sarcásticos que continuavam a perguntar ¿Qué hacés acá?
Tentei responder nas primeiras vezes, depois simplesmente
olhei e, no fim, só caminhava de cabeça baixa. Depois de um
tempo o olhar das estrelas me esqueceu.

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Mas a cidade continuava a me tratar de forma diferente,
como se fosse eu a única que estivesse faltando. Por todos os
lados podia sentir o calor dos becos, dos cafés, das livrarias,
das prostitutas e até dos mendigos. As pessoas tinham
saído às ruas e por onde eu passava, amigos e namorados
brindavam. Eu sabia que brindavam pela minha volta.
Mesmo que não soubessem. Afinal, nesta terra sofrida e
esmagada, somente a volta dos que a amam pode levar aos
brindes, às festas e trazer alegria. Era por mim que a cidade
festejava. Mas eu permanecia nas sombras, caminhando
com passos cansados. Acho que tinha vergonha, vergonha
da alegria e do olhar quente que a cidade me lançava.
Vergonha por tê-la abandonado por tanto tempo, como se
a culpa fosse minha. E, ao chegar aqui, era tratada como
uma filha mal criada, mas adorada. Isso me dava vergonha,
como nunca senti na vida.
Passava pela esquina de Corrientes e Callao com algumas
doces recordações. Eram tantas que escapavam pelos meus
bolsos, caíam pelo chão da avenida gelada e formavam um
pequeno rastro. Era impossível me esconder com aquelas
lembranças contagiando o ambiente, daquele jeito.
Entrei no primeiro hotel que encontrei. Por favor, um
quarto. Por supuesto, señora, ¿cuánto tiempo piensa quedarse?
Não sei ainda, alguns dias. Bueno. Habitación 113. Obrigada.
De nada.
Quando fechei a porta do quarto, o medo esquentou
todo meu corpo. Eu suava como se tivesse corrido por
toda a cidade. Enchi a banheira de recordações e mergulhei
fundo no sofrimento que havia deixado preso por essas
quatro décadas dentro do peito. Gritei, apavorada com o
esquecimento, apavorada por ter sido esquecida. Adormeci

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dentro da banheira e acordei semi-congelada pelas ilusões.
Finalmente, parei pela primeira vez desde que essa idéia
insana passou pela minha mente e me perguntei: O que é
que estou fazendo aqui? Señora, señora, ¿está todo bien? Sim,
sim. Oímos un grito. Não foi nada, estou bem.
Silêncio na noite. Vim para cá porque me cansei de fugir,
porque me cansei de viver somente com uma lembrança e
preferi me iludir com uma realidade. Assim, fico olhando
para a noite através da janela.
Olho a cidade e as estrelas que me trataram tão bem e tão
mal. Penso em tudo que já passei nesse lugar mesmo tendo
chegado há pouco mais de uma tarde.
Abri minha pobre mala onde trago o que consegui juntar
nos últimos quarenta anos e lentamente vou colocando no
armário de um hotel perdido no micro-centro as esperanças
humildes que trouxe para encontrá-lo. Durmo com os
primeiros raios do sol batendo na janela.

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Siléncio

A quinta-feira estava fria e molhada. Chovia, mas era uma


chuva fina e embaçava meus óculos. Eu estava sentada num
banco da Plaza de Mayo nesta tarde de quinta. Ao voltar
para cá retomei velhos hábitos que me davam uma sensação
de conforto. Parecia que retomava uma velha rotina, apesar
de que minha única rotina aqui ter sido você. Vivia através
das lembranças e recordações de outros. Através dos contos
e historietas de passados que me davam ciúmes e que, muitas
vezes, teria preferido não ouvir. Pois agora tenho estas
estranhas saudades.
Na minha frente, estava uma procissão de senhoras que,
num grande círculo, marchavam pela vida. Senti um choque
muito grande quando vim aqui pela primeira vez, uma
terrível sensação de amor e ódio concentrados. Mesclados
com muita esperança e resignação. Elas caminhavam na
tarde gelada de quinta-feira em frente à Casa Rosada. Eu
vinha aqui vê-las desde a primeira vez. Mesmo não vivendo
aqui quando elas começaram. Nessa cidade, o tempo passa
de um jeito diferente.
Cheguei mesmo a quase desmaiar de cansaço nas noites de
vigília mas resisti quase que bravamente. Mais por vergonha,
é claro, que por outro sentimento. Afinal, se elas, que eram
velhinhas, conseguiam, como eu, que era mais jovem, iria
desistir? Claro que dormia como uma desesperada no dia

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seguinte e tinha que cuidar com muito cuidado de minhas
bolhas, mas cumpria meu dever.
Hoje, era diferente. Eu simplesmente olhava. Apesar
de toda a simpatia, participar da marcha seria como fazer
parte de algo que não me pertencia, como forçar minha
intrusão. Além disso, eu ficava na minha posição mais do
que preferida, a de observadora meio desatenta do mundo
que me cercava. Preferia isso a tomar parte ativa. Para ser
parte de algo, era necessário uma boa dose de fé mas eu
havia perdido todo tipo de crença em algum momento do
passado.
A chuva fina começou a congelar meus ossos. Uma dor
passou a me incomodar e pensei se não seria este um bom
momento para retomar o hábito de beber mate. Será que me
reacostumaria com o gosto amargo? Lembro-me que passei
anos até me entrosar com esse velho costume da cidade.
– ¿Cansada, hija?
Imersa nestes estúpidos pensamentos, não havia percebido
a mulher que tinha se sentado ao meu lado no banco. Era
uma das senhoras da marcha, talvez a mais velhinha de
todas. Eu já havia notado seu andar difícil, sua necessidade
de um braço amigo e seu olhar entristecido. Acho que ela
só conseguiu dar umas três voltas. As colegas a deixaram no
banco porque sua fraqueza atrapalhava a marcha, mas ela
parecia não ligar.
– Não, eu não estou. E a senhora?
Mas ela não respondeu. Entre a sua pergunta e minha
demorada resposta, seu espírito já estava distante. Acho que
havia adormecido. Não tenho certeza. Olhei para o lado
e ela estava sentada como antes, mas seus olhos estavam
fechados. Sua cabeça embranquecida estava envolta num

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pañuelo branco. Bordado nele o conhecido símbolo das
mães que buscam seus filhos, filhas e netos. Que buscam sua
dignidade, que buscam sua justiça. Sentada naquele banco,
com uma senhora que mal conseguia ficar em pé por quinze
minutos e que, de tão cansada, dormia sentada na chuva,
senti muita raiva das injustiças do mundo. Mas também
senti uma tremenda incapacidade dentro de mim. Essa
velhinha passou seus últimos vinte e cinco anos em busca
de pessoas desaparecidas. Não há nenhuma esperança de
estarem vivas e são mínimas as chances de seus corpos serem
encontrados. Mas ela não desiste. Ela nem está atrás do
dinheiro que querem pagar para que tudo seja esquecido.
Eu passei estes anos todos adiando um encontro muito
mais simples. Com alguém que acho que sei onde mora,
que acho que nunca se escondeu e que acho que está me
esperando. Qual das duas esteve “perdendo tempo”?
Suas mãos enrugadas trazem um pequeno saquinho de
plástico onde é possível ver velhas e amareladas fotografias.
Alguns jovens de terno ao redor da mesma senhora, vários
anos mais nova. Nos rostos dos jovens a alegria gerada pelos
encontros familiares regados a carne, cerveja e vinho; nos
olhos da mulher, uma certa melancolia vinda da intuição.
Será a última foto guardada de filhos perdidos para sempre?
Uma pequena corrente escapa das mãos crispadas ao redor
desse plástico. É um rosário, a fé que anima essas mulheres.
Fé que eu mesma deixei para trás há muito tempo.
Olho para as mulheres que continuam sua vigília circular
ao redor dos assassinos e ditadores que sumiram com seus
amados, que sumiram com seu passado e sumiram com seus
sorrisos. Tudo secou menos as lágrimas da lembrança e as
lágrimas da esperança.

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A “minha” senhora ainda segue sua vigília sonolenta. Em
momentos penso que seus lábios se mexem, como naquelas
preces semi-silenciosas que os velhos fazem nas tardes
ecoantes das igrejas. Mas deve ser pura ilusão de ótica.
Meus óculos já estão encharcados com a chuva e a distorção
embaça minhas pupilas. Talvez seja por isso que olho para a
Casa Rosada e a veja vermelha como se coberta de sangue.
Olho para seu rosto. Não sei se são lágrimas ou se é a
chuva que escorre pela sua face. Mas entendo que, mais do
que chorar pela sua miséria, pela sua perda e pela certeza
de que vai morrer sem nunca descobrir o que aconteceu
com os seus, esta velhinha chora por mim, pelo que fiz
da minha vida, pelos erros que cometi, pela desesperança
que me conquistou, pela incerteza que alimento dentro de
mim, pelos anos jogados fora, pela falta de sonhos e pelas
certezas às quais me agarrei tão intensamente que consegui
matar o que poderia haver de interessante em minha alma.
Ela sentia tão intensamente o fracasso da minha vida que
acordou repentinamente dos meus sonhos e percebendo a
força do meu olhar sobre seu rosto enrugado e belo, disse:
– Todavía hay tiempo, hija. Todavía hay tiempo.
Nesse momento, a chuva ficou mais forte e duas
outras senhoras aproximaram-se do banco. As três foram
caminhando até um táxi que as levou embora. A marcha,
aos poucos, foi se esvaziando. Saí caminhando por Defensa,
um pouco sem rumo. Passando por um prédio, apesar da
chuva, consegui ver um senhor olhando através da janela,
com um rosto triste para o infinito. Eu conseguia ver o que
ele via. Na Plaza Dorrego, sentei numa mesa perto da janela
e, enquanto assistia a noite cair, me calenté com muito tango
e pouco vinho.

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Cuesta abajo

Naquelas tardes eu me sentava nos fundos da Biblioteca


Nacional, naquele pequeno jardim com um nome engraçado.
Ficava horas esperando que você fizesse suas pesquisas
na biblioteca. Eu nunca entrava, os ambientes fechados,
claustrofóbicos e solenes das bibliotecas me deprimiam.
Preferia ficar sentada no banco, ao ar livre, com um café
pequeno que durava a tarde toda porque o dinheiro só dava
para um.
Várias vezes, os seguranças me lançavam olhares gulosos,
olhares com convites implícitos e explícitos, mas eu nunca
contei para você. E nunca correspondi aos olhares.
Outros olhares se me cruzavam pela praça. Eram
olhares tristes, olhares pensativos, olhares alegres, todos
os tipos de olhares. Como aquela era a parte mais rica da
cidade, transbordavam os olhares satisfeitos. Eram muito
impressionantes os olhares intelectuais ávidos pela leitura
de algum livro raro, algo que esses olhares olhariam pela
primeira vez.
Mas não só era a parte mais rica, também era uma
das mais belas e românticas da cidade. Então, os olhares
apaixonados eram freqüentes e inspiradores, mesmo porque
deviam ser um espelho do meu olhar quando estava com
você. O melhor era que os olhares apaixonados vinham em
dois pares, o que aumentava a alegria de olhá-los.

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Mas os olhares apaixonados eram também burros e isso
me apavorava. Quantos olhares apaixonados caminhavam
abraçados a outros olhares, mas estes, ao invés de responder
com paixão nos olhos, respondiam com raiva, desprezo ou
com um olhar vazio? Será que seus olhos respondiam assim
ao meu olhar apaixonado?
Pior mesmo eram os olhares apaixonados solitários. Esses
eram os mais belos porque misturavam paixão, tristeza e
esperança (ou desespero, em alguns casos).
Esses me assustavam de verdade, pensava se algum dia
iria me sentar nesse banco olhando para a sua Biblioteca
Nacional, esse monumento futurista e um tanto feio cravado
na parte norte e nobre da cidade, com um olhar de paixão
triste, indecisa entre a esperança e o desespero e, no meu
caso, marcado pelo medo.
E cá estou eu, sentada no mesmo banco em que
costumava sentar. Algumas coisas mudaram, sem dúvida.
Do lado esquerdo há, agora, uma pequena galeria de arte,
do lado direito, o café continua, mas todo modernizado. Ao
contrário dos velhos mozos, jovens senhoritas que não têm
a mínima noção das regras de atendimento dos mozos. Eu
também quebro as regras, café já me faz mal, peço chá.
Os prédios ao redor da praça bibliotecal continuam
exatamente iguais. Lembro dos nossos olhares de inveja que
gritavam: eu quero morar aqui. E depois, contávamos as
moedas para voltar para casa de ônibus. Hoje em dia, ainda
poderíamos tentar roubar, enganando as maquininhas
automáticas, mas naquele tempo era o motorista que
pegava o dinheiro, dava o troco, cantava, conversava com os
passageiros, mandava umas cantadas de muito baixo nível e
dirigia. Tudo ao mesmo tempo.

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São inesquecíveis os seus olhares de desespero ao entrar
no ônibus. Não era à toa que você sempre ia para o fundo
diretamente e me deixava pagando. Aliás, era por essa sua
mania que eu era obrigada a ouvir essas cantadas horríveis.
Quantas vezes, por raiva, pensei em dar trela a esses
motoristas indelicados. Mas sempre desistia.
Sentada num banco bem de frente para a nacionalística
biblioteca, tomando meu segundo chá (hoje, que tenho
dinheiro para tomar dezenas de cafés, prefiro os chás – aliás,
vou embora de táxi – será que os motoristas continuam
galanteadores – mas, também hoje só receberia cantada
de velhos), só vejo olhares vazios. Os olhares dos guardas
me olham de forma vazia, os namorados que passam nem
se olham, os solitários passam com os olhos voltados para
o chão como se seus olhares fossem pesados, tão pesados
que exigem um esforço para não levar toda a cabeça para
baixo. Até mesmo os leitores que ainda povoam o pequeno
parque, agora, carregam livretos vazios e os lêem com olhos
sem prazer. O vazio tomou conta da praça.
Do mesmo banco, com a mesma visão da biblioteca,
lembrei-me da sua janela. Aquela em que você sempre
vinha me espiar. Na minha opinião era só ciúmes, mas
você afirmava que era para ver se estava tudo bem. Você
nunca explicou por quê, na única vez em que um jovem
parou para conversar comigo, decidiu ir embora mais cedo,
justamente quando o rapaz decidiu se sentar ao meu lado.
Durante toda a volta para casa eu não conseguia segurar o
riso (aliás, se você soubesse ler os olhares, teria visto meus
olhos gargalhando), enquanto você estava com os olhos
mais bravos que já tinha visto num homem apaixonado.
Olhei para sua janela e vi esses seus olhos bruxos que me

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espiavam rigorosamente a cada trinta minutos. Não tenho
a mínima idéia de como conseguia fazer isso. Não andava
de relógio, mas a cada trinta minutos cronometrados,
levantava-se da sua cadeira, da sua mesa, deixava seu livro
marcado, caminhava até a janela do banheiro e dava uma
espiada para me ver. Eu era mais esperta e menos sensorial,
portanto, marcava no relógio. E nossos olhos se cruzavam e
mandavam mensagens de amor.
Alguém deveria criar uma coleção “Olhares do escritor
apaixonado” em sua homenagem. Que deveria ser organizada
a partir daquela janela, daquele banheiro. A pequena janela
que servia para que você me espionasse. Uma espionagem
consentida, claro. Eu poderia me sentar em outra mesa.
Aliás, lembro-me do dia em que, ao chegarmos na praça,
vimos a “minha” mesa ocupada. Isso era raro, porque era a
pior mesa, perto da rua movimentada e barulhenta. Naquele
dia, no entanto, o café estava estranhamente cheio. E um
grupo de jovens havia se sentado naquela mesa. Esperamos
por meia hora até que desistimos. Você nunca poderia ficar
na biblioteca sem seu ritual de vigilância.
E nesse momento a janela se mexeu e seus olhos
apaixonados vieram até mim. Engasguei com o chá e me
levantei. Corri, como a idade permite, para a entrada da
biblioteca. Na porta, o guarda me avisou:
– La biblioteca está cerrada por remodelación, señora.
Vuelve a abrir recién el mes que viene.
Voltei para pagar os dois chás e fui embora sem olhar para
trás, mas sentindo seus olhos bruxos queimando minhas
costas até eu virar a esquina.

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El día que me quieras

De todos os amores, só o seu não consigo esquecer.


Ando pela beira do rio apesar de que isso pode não ser bom
para a minha saúde. De alguma forma, não parece ser tão
importante. Sonho com os dias que não passamos juntos
perto do rio da Prata. E sinto como se o vento frio e cortante
que vem da água fosse o seu suspirar. Este suspirar que já me
esqueci. Você já me esqueceu há tanto tempo!
De todos os lados, encontro com olhos negros que me
evitam, silenciosos pesares de minha busca inútil. Mas
também escuto uma risada triste que o murmúrio do rio
silencioso traz de terras distantes e que me dão tanta agonia.
A busca pelas suas risadas é o que me faz sentar na beira do
grande rio que marca esta cidade.
Escuto seu canto que penetra em minhas feridas como
um vírus, partindo em mil pedaços toda a tentativa de evitar
as lágrimas nos olhos. Ninguém está preparado, mesmo na
velhice, para o momento em que escuta, pela primeira vez, a
voz do ser amado. Mesmo nunca tendo escutado uma voz que
tivesse me encantado desde a primeira vez. O princípio de
um amor que nunca conheci. Olho ao longe e encontro um
esquecimento dentro da água, como se estivesse afundando.
Perdido e triste, como devem ser todos os esquecimentos.
Uma pena que não seja meu, pior que pode ser seu.
Fecho os olhos e imagino o momento em que nós, por

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fim, nos encontraremos. A felicidade poderia ser tamanha
que ficaria sem palavras, como agora fico sem ar. Descrever
uma cena assim poderia ser um erro. Olho ao longe e as flores
do Barrio Norte parecem dançar para mim, convidando-me
a bailar pelas ruas da cidade, como se você estivesse aqui,
dançando comigo. Quem sabe, se eu começasse a dançar,
meus passos não me levariam até o lugar onde você se
esconde? A cidade não é tão grande assim, eu haveria de
encontrá-lo.
O problema é que não sei nem se você já esteve aqui
algum dia. Caminho pela borda do rio imaginando o
Uruguai, imaginando que poderia morrer nadando até o
outro lado e, então, sinto a água fria entrando pela minha
boca. Agarrada por braços fortes, sinto que estou sendo
trazida de volta para a terra. Perguntas e mais perguntas.
Estou na cama com um policial ao meu lado. Não, não
tentei me suicidar, só me joguei no rio. Sei que isso não é
normal mas nem o rio… e o chamado do meu amor…
Cuidado com o que diz, o pior seria terminar essa busca
pelo amor em um hospital psiquiátrico. Ninguém poderá
entender que você está buscando um amor que nunca mais
viu, que nunca reviu. Buscando algo que bem poderia ser
um fantasma e que talvez nem viva mais aqui. Nem viva.
Mas se vivesse e vocês se encontrassem, seria uma linda
história de amor. Daquelas que deixariam felizes até as
flores, o vento e as fontes de água. Fui me afastando do
rio enquanto os postes da cidade começavam a se acender
e os raios de luz começavam a me seguir, iluminando meu
cabelo já descolorido.
Havia uma melodia no ar, como se a música viesse
preencher este meu momento de loucura, tão forte que até

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senti a água fria molhando meus ossos, enquanto afundava
pensando se o encontraria no fundo. Quantas pessoas já
não pularam por amor nas profundas águas deste rio? Ainda
bem que não tem nenhuma ponte.
Era necessário me afastar dessa assustadora imagem –
eu já começava a odiar esse rio. Por isso decidi seguir um
rumor de melodia até chegar a uma pequena esquina,
perto do famoso cemitério, onde um senhor triste, sentado
em um pequeno banco, chorava tocando seu bandoneón.
Ao seu lado, um jovem vestido de terno e um chapéu
antiquado, murmurava algumas palavras, olhando para o
alto. Intensamente.
Segui seu olhar até a torre de uma igreja, era como se
ele esperasse um momento. Quando bateu a hora cheia e
os sinos da igreja marcavam algo que eu não sei dizer o que
seria, ele começou a soltar sua voz límpida.
Essa mistura de sinos com voz, me deu um aperto no
estômago tão forte que precisei me encostar na parede. Aos
poucos fui escorregando até quase cair no chão. Felizmente,
um casal de turistas percebeu meu futuro desmaio e fui
socorrida. Sentaram-me na mesa de um café ao lado e
um copo d´água ajudou muito na recuperação. Por sorte,
enquanto tudo isso acontecia, o jovem e o velho – cantor
e bandoneonista – não pararam de cantar/tocar. Talvez
já estivessem acostumados com as conseqüências de seus
talentos. ¿También qué hace esta vieja acá si no puede con la
música?, devem ter pensado. E eu fiquei feliz com isso, não
foi a água, não foi a cadeira, não foi o socorro dos turistas
que me recuperou, foram os sinos, foi a voz.
Foi só quando a igreja silenciou que comecei a melhorar.
Já não sentia mais nenhuma dor. Nenhuma mesmo.

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Só um pouco de tontura, por isso resolvi aproveitar
aquela mesa, aquele garçom, até mesmo aquele casal de
turistas e lanchar.
Pedimos todos sanduíches de miga e descobri que o casal
vinha pela primeira vez àquela cidade, que estava num hotel
chique, que estavam amando, que estavam se amando, que
não tinham filhos mas que pretendiam ter, que os preços
estavam baratíssimos e tinham comprado tudo que viam.
Ao fundo, continuava a música do bandoneón mas o
jovem cantor já tinha ido embora. O velho tocava como se
nem percebesse que agora estava só, que as pessoas passavam
pela rua e quase nem percebiam que ele estava ali. Também
ele tocava muito baixo, como se nem quisesse tocar. Acho
que só eu o percebia ali.
Não sei o que aconteceu com o jovem cantor, ele
simplesmente desapareceu. Pensei em perguntar ao casal de
turistas se eles tinham visto o cantor ou se havia sido uma
ilusão minha. Mas eles estavam tão animados, descrevendo
lugares da cidade, coisas óbvias que eu conhecia há anos,
para que acabar com a alegria deles perguntando sobre
fantasmas?
Tomar la leche é uma das melhores coisas dessa cidade, foi
por isso que agüentei aquela conversa extenuante. Até que
eles me perguntaram o que eu estava fazendo ali? Não ali,
sentada na mesa do café com eles – isso eles sabiam – mas
o que estava fazendo ali, naquela cidade, tão longe de onde
morei os últimos anos de minha vida, tão só e solitária.
– Estou procurando uma pessoa.
Eles se entreolharam, por um momento pensaram que
eu era mesmo doida.
– Uma pessoa? – falaram quase simultaneamente.

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– Sim, vim atrás de um grande amor.
Nesse momento, eles tiveram certeza de que eu estava
doida.
– Alguém que conheci há muito tempo mas só agora tive
coragem de procurar, de declarar meu amor.
Achei que a mulher ia chorar. Não a culpo, realmente a
minha história é muito bonita, muito romântica.
– E quem é essa pessoa? – perguntou o homem,
verdadeiramente interessado.
– É um escritor. Seus escritos me deixaram apaixonada.
Desde que li a primeira linha de seu primeiro livro.
– Um escritor? – disse a mulher interessada. – Talvez ele
(apontou para o marido) conheça, é professor de literatura.
– Sim, qual é o nome dele?
Falei.
– Mas, mas...
Sabia que precisava ir embora naquele momento. Fiz o
gesto de pedir a conta, mas o casal se recusou a aceitar meu
dinheiro. Era por conta deles.
Agradeci e me despedi, antes que eles pudessem
questionar. Ao me levantar, olhei para a rua. O velho
bandoneonista ainda tocava no mesmo lugar, na mesma
posição e com a mesma expressão.
Ao passar por ele, deixei umas moedas na caixa que
guardava o bandoneón. Percebi que eram as únicas moedas
que ele havia recebido.
Nada como la leche como forma de preparar o espírito
para as noites nessa cidade.

27
La cumparsita

Não me lembro se comprei aquele jornal ou se o


encontrei em algum lugar. Talvez no banco de uma praça
ou no metrô. Tampouco posso entender porque fui direto
para aquela página. A de classificados. Como antes.
Meus olhos encontraram aquele pequenino anúncio, ao
pé da página.
Se alquila departamento. Dizia ele para mim. Eu bem
conhecia aquele apartamento. Nem precisava olhar o
número de telefone, nem o locatário. Já os conhecia muito
bem. Descobri que ainda sabia usar um telefone público
aqui, apesar da privatização. Liguei e marquei um horário
para visitá-lo. Eu não tinha nenhuma intenção de alugar,
só de rever as paisagens que ele via enquanto se dedicava a
escrever.
Fui caminhando até o local, por sorte perto. Minha
estadia nessa cidade já estava começando a ficar cansativa.
Tinha tantas coisas para ver, tantas coisas para lembrar,
tantas buscas a fazer.
E nem havia chegado perto dele ainda, não conseguia
sentir sua presença. A praça continuava a mesma e os cafés
também. Era um dia da semana qualquer e estava tudo vazio,
ainda pela manhã. Sentei-me no banco convidativo, de frente
para o prédio. Havia vários bares mas eu já estava cansada
deles. Conhecia todos, até os nomes dos mozos, de cor.

29
Era aqui que passava as tardes enquanto você escrevia. Não
queria atrapalhar e você ficava meio estranho à frente da velha
máquina de escrever. Como se estivesse possuído. Cheguei a
ficar com medo algumas vezes, então sempre saía. Como não
tinha nada para fazer, comprava o Clarín e passava três, quatro
horas sentada lendo. Foi o momento em que mais me inteirei
da história dessa cidade. Lia o jornal de cabo a rabo, até os
anúncios, até os classificados. Descobria que uma família
vendia tudo por motivos de viagem, que a empresa X estava
precisando de um ajudante-geral (pagava-se bem) e que uma
menina morria de desgosto pela perda de um cachorrinho
(não havia recompensa). Todas as coisas que eu nunca iria
comprar, me candidatar ou procurar. Mas eu lia. A cada linha
lida, subia meus olhos até o balcón do apartamento, em busca
de sinais. E assim passava minha tarde até o momento em
que você aparecia, esgotado, deixando claro que a sessão de
literatura daquela tarde havia acabado. Você abria a porta de
supetão, olhava para a praça que começava a ganhar vida,
espreguiçava-se como se estivesse acordando para a vida nesse
momento e olhava para mim, sentada no café. Às vezes, eu
não o percebia prontamente, então você acendia um cigarro
e ficava esperando que eu terminasse aquele artigo sobre o
aumento da criminalidade em algum bairro afastado. Bairro
que eu nunca iria conhecer porque odiava cruzar a General
Paz.
Por coincidência, sempre que você terminava seu cigarro,
eu terminava o artigo e nossos olhos se cruzavam. Eu pagava
a conta (sempre um único café para combinar com minhas
parcas moedas) e subia. Juntos, arrumávamos a bagunça que
você fazia – folhas de papel rasgadas e amassadas, dezenas de
bitucas de cigarro no cinzeiro e algumas marcas de tinta perto

30
dos cantos (aquela porcaria de máquina de escrever e sua fita
maldita). Já era hora, então, de sair para comer.
Para economizar, pulávamos o almoço – ou melhor,
tomávamos o desayuno na hora do almoço e comíamos a
principal refeição no final da tarde. O que nos preparava para
as noites animadas pulando de bar em bar, atrás de amigos
e conhecidos (até alguns admiradores) que nos pagassem
o vinho, a cerveja, os cigarros. E sempre encontrávamos
alguém. Você era uma pessoa muito querida. Eu apenas o
acompanhava. E nunca abria a boca quando a discussão
era sobre literatura. Para mim, tudo que você escrevia era
perfeito, o melhor do mundo. Pouco ou quase nada lia de
outros autores, não me interessavam. Mas sabia de cor todos
os seus contos, todas as suas novelas e poderia recitar durante
horas, todas as suas poesias. Mas quando falavam de Borges,
de Poe ou Machado de Assis, eu me limitava a escutar.
Claro que, freqüentemente, a conversa se fixava em outros
assuntos. Se fosse algo sobre a cidade, eu me transformava em
especialista – para isso valiam as horas diárias escarafunchando
o jornal. E você sempre se admirava com tudo que eu sabia
sobre essa cidade.
Deu a hora. Eu já podia ver um homem parado na porta
do prédio. Aproximei-me, ele me cumprimentou:
– ¿Entonces, subimos?
– Vamos, quero rever o apartamento.
O homem olhou para mim com espanto, mas não
comentou nada. Era no oitavo andar. Ele abriu a porta e eu
podia ver, naquele apartamento vazio, nossos móveis, nossos
livros (que eram todos seus, na verdade) e minhas roupas
(você só tinha algumas poucas, que eu havia comprado).
Caminhei com lágrimas nos olhos, apontando para os

31
lugares onde estava sua mesa de escrever – de frente para a
janela, sempre –, onde estava sua poltrona para ler – embaixo
da única lâmpada forte da casa –, onde estava minha vitrola
junto com meus discos de tango. Entrei no único quarto e
apontei para a cama onde havíamos feito amor tantas vezes.
Como não havia mesa nem cadeira no apartamento, a cama
também era o lugar das refeições, o que nos obrigava a dormir
em meio a migalhas de pão e outros resquícios, mas não nos
importávamos. Era no balcón, no entanto, que passávamos os
momentos mais divertidos. Olhando o movimento da praça
ali embaixo. Vendo esta cidade e o mundo de cima, como
algo que não nos tocava.
Imaginando que todas as pessoas que passavam embaixo
eram personagens de um road-movie a pé, ou um street-
movie e que nós, aqui em cima, éramos a platéia. Por isso,
muitas vezes, assustávamos com aplausos, assobios e gritos
de “Bravo!”. Era daqui desse balcón que víamos a vida passar.
Mas também fazíamos com que ela nos visse.
– O senhor conhece alguns dos inquilinos mais antigos?
– perguntei ao homem constrangido com minhas lágrimas,
meus sorrisos e meus rodopios pelo apartamento vazio.
– No, señora, perdóneme, pero es la primera vez que me toca
vender departamentos en este edificio – me respondeu.
– Uma pena, porque nessas paredes há mais história do
que em toda a sua miserável e aburrida vida – foi o que disse e
saí do apartamento antes que ele pudesse responder qualquer
coisa.
Enquanto caminhava pela rua, me afastando do edifício,
lutei contra a tentação de olhar para trás, para o balcón. Tive
medo que o corretor estivesse lá. Ele não podia, aquele balcón
era seu, sempre será seu.

32
Caminito

Quando abandonei aquela praça, andei por várias


avenidas, só avenidas. Por sorte, a cidade tem várias delas,
espalhadas de forma geométrica – paralelas, perpendiculares,
transversais. Em todas, um rastro quase invisível – para as
outras pessoas, claro – seu.
Para quem estivesse me olhando – será que alguém me
olhava? – poderia parecer um caminhar sem sentido. Nada
mais longe da verdade. Eu seguia um caminho deixado há
anos por um escritor iniciante, sem dinheiro, em busca de
inspiração para um livro sobre esta mágica cidade.
Qualquer um pode rir à vontade, como se os rastros de
uma pessoa sumissem só porque se passam os anos. Pode ser
verdade. Ou talvez eles sumam, exceto para mim. Os seus.
Apesar de cansada, caminhei por muito tempo. Talvez
dias. Lembro-me que parei algumas vezes em cafés para
descansar e que uma noite entrei em um hotel para dormir.
Estava exausta.
Depois de caminhar por um bom tempo, comprei um
mapa e comecei a desenhar seu/nosso caminho por entre as
avenidas da cidade. Depois das avenidas começaram as ruas,
as vielas, as peatonales sem me esquecer das praças e parques.
Toda uma continuidade. Por fim, os poucos viadutos e
pontes. Durante todo esse trajeto que me deixou com os pés
dormentes e cheios de bolhas, com os dedos sujos da tinta que

33
teimava em fugir do mapa de plástico (o único que poderia
agüentar tamanha viagem), com a roupa colada ao meu corpo
de velha como uma mendiga, durante todo esse trajeto, não
percebi o que de mais importante me contava o seu rastro:
que você nunca havia tomado o caminho de volta.
Seus passos sempre seguiam em frente, sem voltar por
onde já haviam passado. Como? É algo que nunca poderei
explicar. A não ser que você tivesse feito todo o caminho de
uma vez só, como eu, durante dias, sem parar.
Mas me lembro que você saía para caminhar todos os
dias, aos poucos. Algumas horas, poucas. Como não podia
encontrar seu rastro de volta para casa?
Terminei meu caminho labiríntico em alguma rua
esquecida de algum bairro distante, entrei em um desses
cafés empoeirados, calurosos e com apenas um mozo velho
e cansado.
– Eu queria um cigarro! – disse, depois de pensar um
bom tempo com o cardápio aberto.
– ¡Un cigarillo! – disse o homem espantado.
– Sim, não tem?
Por um momento ele se confundiu. Afinal, eu tinha
falado com tanta convicção, depois de consultar o cardápio
que era como se eu tivesse visto, depois das milanesas
con fritas e antes do café cortado, uma linha que dissesse
cigarrillos.
Não havia e eu sabia que não havia. Há anos não fumava,
desde que paramos de sair para beber e conversar... Hum,
quer dizer, na verdade você parou primeiro. Dizia que o
cigarro atrapalhava suas caminhadas, sua concentração,
seu subir de escadas.
– En realidad, no – disse o garçom depois de uma rápida

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olhada no cardápio. – Pero hay un kiosco acá enfrente, si
quiere le voy a comprar.
– Sim, por favor.
Ele ainda me perguntou qual marca eu queria. Nunca
tinha me preocupado com isso, sempre era você quem
comprava. Eu só os acendia e inspirava a fumaça que,
naquele momento, me ajudava a pensar mais claramente.
Diria até a entender suas conversas com outros candidatos
a escritor. Todas charlas ininteligíveis, recheadas de ataques
perversos contra terceiros. Em geral pés-rapados como vocês
mas que já tinham conseguido publicar.
Hoje posso falar que os cigarros me ajudavam a ficar
acordada a noite inteira. É que, como poderia dizer, vocês
eram um pouco hincha pelotas com essa pseudo-rebeldia.
Ao final, todos foram publicados e o ciclo se refez com os
novos escritores jovens falando mal de você e seu grupo.
– Señora, acá están los cigarrillos. Pero la nueva ley...
– Lei?
– Sí, no se puede fumar adentro de los cafés. ¡Perdóneme!
Eu tampouco tinha isqueiro ou fósforo. Fiquei segurando
o maço de cigarros tentando lembrar há quanto tempo não
fumava.
Abri o mapa sobre a mesa do bar vazio e comecei a
esquecer todos os caminhos que percorri seguindo seus
passos.
Não me lembrava mais quando você publicou seu
primeiro livro. Tampouco o nome e se o havia dedicado a
mim. Era como um caminho-fantasma que se apagava de
trás para frente.
– Señora, ¿no quiere algo para acordarse?
– Senhor, não me lembro das coisas que me esqueci.

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– ¿Perdón?
Na verdade, o garçom trazia um café que não me lembrava
de ter perdido/pedido.
Com um gesto torpe, derramei todo o conteúdo da xícara
sobre o mapa que tomava o espaço da mesa. A mancha que
se formou, ajudou a apagar o caminho que havia percorrido
durante os últimos dias (ao apagá-lo, fiquei perdida). Todos,
menos os rabiscos deixados em uma pequena viela nos
limites da cidade.
Foi aí que me lembrei como você gostava de ir para este
lugar tão freqüentado por turistas sempre que terminava
uma história sua. Ia como se fosse o seu cemitério de histórias
mortas. Sim, lembro-me agora como você chamava seus
contos e novelas prontos: historias muertas. Como se elas só
fossem vivas enquanto estivessem sendo escritas.
Você ia aí, nessa pequena viela, também para falar outros
idiomas. Talvez até se apresentasse como guia turístico.
A maioria dos turistas não entendia as visões poéticas e
antropológicas que você apresentava sobre a cidade, seus
habitantes e sua cultura.
Ainda mais porque, apesar de só falar a língua daqui e
francês, você se aventurava pelo português, o inglês, o alemão
e até o russo, como me contava excitado ao voltar para casa
depois das sessões funerárias como você as chamava.
Eu já não sabia como chegar lá. De qualquer forma,
tinha o mapa. Por isso saí caminhando até que tive um
quase desmaio depois de uns poucos passos.
Peguei um táxi com a firme convicção de que poderia
recobrar as forças com um cigarro. Mas também era proibido
fumar nos táxis.
– Vamos a Caminito, por favor.

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– ¡Cómo no! Muy bien.
– Essa lei antitabaco deve ter sido muito ruim para os
cafés, não?
Fiz essa pergunta tarde demais, quando já havíamos
chegado ao velho porto. Mudei minha questão:
– O senhor sabe onde ficava o velho cemitério de historias
muertas?
– ¿Historias muertas? ¿Está segura de que estaba por
Caminito?
– Sim, certeza.
– Se lo digo en serio nunca lo escuché nombrar. ¿Cómo me
dijo?
– Histórias mortas.
– Perdón, pero no me suena. Para nada.
– Está bem. Obrigada.
Saí do táxi e caminhei por Caminito, pelas casas coloridas
e em meio a palavras desconhecidas.
Pensei durante um bom tempo se deveria perguntar pelo
cemitério, o seu cemitério, mas não me animei. Todos os
nativos tinham cara de malandro e todos os estrangeiros, de
estúpidos.
Ao pisar no chão, saindo do táxi, me agarrou uma
tristeza como se estivesse realmente caminhando por um
campo santificado para receber os restos mortais de pessoas
esquecidas. E assim era.
Como se milhares de lágrimas tivessem sido derramadas,
escorrendo por entre os paralelepípedos desta pequena rua.
E assim tinha passado.
Caminhei como se passeasse entre túmulos, buscando
algum que me trouxesse o passado de volta. E assim foi.
Andei tanto que saí do caminho, do bairro, da zona. E

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pela primeira vez, desde que desci do avião nessa cidade
onde o sol e as pessoas dormem tarde, fui assaltada.

38
Madresselva

Em pleno verão, a cidade renasce. O calor sufocante


obriga todos os moradores a tomar as ruas, os bares, os
cafés.
Amargados em suas casas durante o inverno, são jogados
para fora durante o verão.
É verdade que se perde um pouco da discreta elegância,
mas ganha-se em alegria. Eu mesma, acostumada a uma
outra época, quando o calor era menos intenso, me assustei
no princípio.
Com o verão e a gente nas ruas, surgem outros personagens
que, por serem discretos e insignificantes, perturbam de
forma inacreditável minha tentativa de concentração para
encontrá-lo: as sombras.
Por estarem em todos os lugares, durante a maior parte
do tempo, elas conhecem tudo, todos os nossos segredos
mais escuros, todos os nossos pensamentos mais sombrios,
todos os atos menos brilhantes que já fizemos.
E, ao meio-dia, em uma das avenidas mais famosas e
movimentadas de toda a cidade, tive algumas certezas:
1. Que as sombras sabiam por que eu estava ali;
2. Que elas sabiam onde você se escondia;
3. Que eu havia visto sua sombra passar correndo por
uma esquina.
Não corri, já não tinha idade para isso. Mas lembrei-me

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de nossas corridas pelo parque geralmente nos domingos à
noite. Acho que fazíamos isso porque as noites eram nossas
manhãs.
Não eram corridas organizadas, como jogging ou cooper.
Eram mais disparos enlouquecidos que acabavam em
perseguições e atropelos. Eu só conseguia vencê-lo se fizesse
trampa, se você tropeçasse ou algo assim.
Minha principal estratégia era pisar na sua sombra,
esperando que você caísse. Talvez seja por isso que ela foge
de mim ao cruzar essa esquina da principal avenida.
Era o medo, algo que eu já não sentia. Percebi que
só poderia conversar com as sombras pois elas é que me
levariam até você. O problema é que elas insistiam em me
ignorar, como se eu falasse outra língua, como se estivesse
na posição equivocada em relação ao sol (ou outra fonte
de luz), como se – parada na esquina da avenida mais
movimentada, olhando para o chão, fazendo perguntas às
sombras que passavam – eu estivesse louca.
Quando e como as sombras começaram a me responder,
não sei. Mas elas falam de você. Do que havia acontecido
durante os anos que nos separam – apesar de doces, as
sombras sempre mentem, é de sua natureza nunca falar a
verdade. Algo genético, talvez.
– ¿Nena, qué decís? ¡Vos nunca lo conociste!
– ¿Pero, qué te pasa? Él no se acuerda de vos.
– Si, en realidad, no volvió a vivir acá después de viejo.
– Su sombra es de cuando era joven.
Eu sabia de tudo isso, é claro. Sabia que ele tinha ido
para Paris e nunca havia voltado. Mas também sabia que as
sombras mentem e que você deveria estar aqui, em algum
lugar, senão sua sombra não poderia estar viva e caminhando

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por entre as paredes das avenidas largas. Não assim, tão
placidamente.
Entre as mentiras das sombras e as mentiras das biografias,
preferia seguir com as minhas próprias.
Entrei em um café pouco iluminado para aproveitar ao
máximo os rincões ensombrecidos.

Quando saí, as flores tomavam as calçadas apertadas das


ruas que cruzam de norte a sul. É incrível como as flores,
quando caem no chão, podem mudar completamente o
humor de qualquer pessoa.
Também mudam a forma de se caminhar. Apesar de
tentar seguir em linha reta até a praça do general que nos
libertou de todo o mal, as flores me carregavam por todos os
lados, mudando meu caminho. Levando-me para trás, sem
se preocupar com minhas intenções.
Até que gritei, louca de frustração:
– O que vocês querem comigo?
– Vuelva, señora. Acá no encontrará nada.
– ¿Tiene una moneda?
Esse era um menino pobre que, deslizando junto comigo
por cima das flores, me pedia dinheiro.
Depois de dar uma moeda, fiquei observando como
ele se movia, usando as flores para chegar até o próximo
“surfante” para pedir mais uma moeda.
Não é que eu não conseguisse “navegar” como o menino,
é que eu simplesmente estava muito cansada para tentar. E
queria saber para onde me levariam as flores no chão. Uma
mistura de cansaço e curiosidade.
E um pouco de raiva, também. Não entendia o que as
flores e as sombras tinham contra mim. Por que estavam tão

41
interessadas em me enganar, em dizer que minha busca era
inútil? Esta cidade estava me deixando triste e com raiva. E
eu não queria ficar assim.
Quando as flores me deixaram na porta do meu hotel,
resolvi entrar.
– Señora, ¿pasó algo? – era o recepcionista
– Não, por quê?
– Hacía dos días que no volvía al hotel. Estábamos
repreocupados.
– Dois dias? Não sei onde estive nesses dois dias.
Subi para meu quarto e foi quando entrei sob a ducha
quente que percebi como extrañaba um banho. Devo ter
dormido durante horas.
Acordei com o incrível barulho que entrava pelo balcón,
pela porta meio aberta que me conectava com a cidade
a meus pés. Mas não me levantei, fiquei escutando os
barulhos de uma noite que recém-iniciava. Ao menos, era
isto que pensava. Não tinha relógios e somente a falta de luz
denunciava a noite do lado exterior.
Pensava que iria ouvir sons de buzinas e freadas, de risadas
e gritos orgânicos, mas apenas percebi um choro contido e
um murmúrio que só depois de muita concentração pude
entender.
Era o meu nome que era murmurado. Como se me
chamassem baixinho.
Não posso negar que me assustei. Será que alguém me
buscava? Será que, depois de décadas, ainda tinha algum
conhecido na cidade? Em que andar estava meu quarto
mesmo? Era alto, lembro que subi de elevador!
Finalmente, como o choro e o murmúrio não paravam e
meu sono não poderia ser retomado, levantei.

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Caminhei até a sacada e vi que as flores tinham tomado
toda a parede externa do hotel. Eram elas que murmuravam
meu nome. Poderia ter ficado com medo, mas não senti
nada. Só o perfume.
Elas falaram comigo:
– ¡Acá está quién buscaba!
Não entendi, a princípio, porque não conseguia ver
a sombra presa entre as flores trepadas na parede. Era de
noite, como já disse.
Mas senti o choro que vinha da sombra presa.
– Quem é este que chora?
– Esta es la sombra que persiguió con tantas ganas por toda
la ciudad.
– E por que chora?
– ¡Por qué no me gusta la altura! – gritou a sombra com
toda raiva.
Minha resposta foi: entre, então. Acendi a luz do quarto
e a sombra pôde se projetar com força na parede nua.
Sentei-me na cama desarrumada. Tinha muita fome, mas
este pobre hotel (o único que minhas economias podiam
pagar) não tinha serviço de quarto.
Pensara em quase tudo que faria ao chegar na cidade,
menos no momento em que me encontraria com você.
Talvez isso fosse pela certeza (nunca assumida) de que
nunca o encontraria. Só agora pensei no que dizer. Mas
também não sei se o encontrei de verdade. Encontrei a sua
sombra.
– Enfim, te encontrei – acabei dizendo.
– No, yo no soy él. Soy sólo su sombra – foi a resposta. –
Una sombra vieja, ya olvidada por estos lados. Hace mucho
tiempo.

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Mano a mano

Você sabe muito bem quem sou eu, quando vivíamos na


pobreza, mas felizes, juntos nessa cidade que tanto bem e
tanto mal nos fez.
Éramos jovens. Eu não tinha nenhum sonho específico,
mas compartilhava os seus. Como faziam as mulheres
naquele tempo.
Você, não. Foi direto estudar e partir para outro país,
outra língua, outra vida. Eu me lembro de quando vivíamos
naquela miserável pensão na rua C., não me lembro mais
o nome. Ou melhor, talvez me lembre, mas não possa
mais falar. Algumas palavras desse idioma, agora, fogem da
memória, não consigo mais falar..
Como você, que passou tanto tempo longe, a ponto de
falar sua língua materna com sotaque.
Sim, é verdade, não entramos juntos na pensão. Eu vim
depois. Você já estava instalado na pensão só para homens,
caballeros. Eu entrei uma noite, escondida, depois que você
conseguiu um quarto privativo.
E passei nove meses aí, em completo silêncio. A porta
trancada. Você ia para a escola e ficava lá o dia inteiro,
estudando seu francês querido, enquanto eu permanecia
lendo e ouvindo os rumores dessa enorme casa povoada de
sonhos e desejos masculinos.
Quando você chegava, no começo da noite, conver­

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sávamos aos sussurros. Mais era você quem falava, na
verdade, porque eu não tinha nada para contar. Apenas
ouvia. E você sempre me trazia algo para comer. Nunca
muita coisa, pois o dinheiro era escasso.
Algumas empanadas e uma pequena garrafa de vinho.
Pouca conversa, você tinha que continuar estudando.
Só de madrugada é que podíamos nos arriscar a sair para
o corredor e ir ao banheiro. Eu me lembro que entrávamos
juntos. Assim, se alguém aparecesse, você podia fingir que
estava cagando ou mijando.
Existe algo mais íntimo que dividir a mesma privada?
Acho, não tenho certeza, que me olhar cagar e mijar era um
ato de intimidade maior do que quando fazíamos amor.
Coisa, aliás, que fazíamos no início da manhã. Sim,
era mais fácil e simples quando a pensão estava cheia de
barulhos de pessoas se despertando.
Uma coisa me atormentava de verdade: só poder tomar
banho uma vez por semana. Isso era terrível!
Aproveitávamos as tardes dos domingos. A maioria dos
caballeros ia ao cinema ou a encontros furtivos em telos ou
diretamente a casas de má fama. A dona da pensão tirava
uma longa sesta.
Eu podia, então, me trancar no banheiro com você para
tomar um relaxante banho. Muitas vezes, você me esfregava
as costas e acabávamos abraçados sob a água quente que
tanto me fazia bem.
Eu não sabia nenhum outro idioma naquele momento.
Mas você, estudante aplicado de francês, insistia em
conversar comigo nessa língua.
No começo eram simples palavras, mas com o tempo
você foi se aprimorando. Ao final, só falava em francês, não

46
só comigo mas com todos. Eu podia ouvi-lo, através das
paredes finas, conversar com os outros moradores e até com
a pobre dona da pensão. Bonjour, dizia.
Por essas atitudes, acabou sendo visto como um estranho.
Poucas vezes, mas foram assustadoras, a dona da pensão
o obrigou a abrir a porta do quarto (que, é óbvio, ficava
trancada o tempo todo). Por sorte, sempre conseguia me
esconder a tempo. Normalmente, embaixo da cama (mas,
uma vez, a dona da pensão fingiu que uma moeda caíra
no chão, para poder bisbilhotar – mas você foi muito mais
rápido do que ela), outras dentro do armário e poucas atrás
da cortina (e se alguém estivesse olhando pela janela justo
naquele momento?).
Depois de algumas incursões, a dona da pensão assumiu
que você era apenas um estudante compulsivo e deixou de
joder. Suas economias permitiam pagar tudo em dia e ela
não tinha do que reclamar.
Minhas roupas (pouquíssimas) foram se desgastando. Em
poucos meses, não tinha mais blusa ou saia e ficava o tempo
todo de calcinha e sutiã. No inverno, não podia deixar a estufa
ligada, por isso me metia embaixo das cobertas, esperando
sua chegada. Nos verões calurosos, andava nua pelo quarto.
Nunca fiquei doente nesses nove meses. Acabei criando a
ilusão de que este era um útero e que eu iria nascer ao final.
Não sei se foi coincidência ou se minha ilusão fez com que
você terminasse esse curso de tradução em exatos nove meses.
Sendo que ele durava três anos.
Eu percebia que sua saúde estava sendo minada de forma
rápida. E quanto mais doente você ficava, mais conversava
comigo. À noite, quando chegava do curso, charlábamos
durante longas horas. Acho que em francês.

47
Não sei como aprendi. Talvez seu suor tenha me passado
todo o conhecimento que eu precisava ter. Já não nos
importávamos mais com os caballeros no quarto ao lado ou
com a dona da pensão.
Apesar de cada vez saber mais da nova língua, eu entendia
menos o que você dizia. Mas não me importava. Só queria
que você continuasse conversando comigo. Era tão solitário
aqui!
Um dia, você chegou, abriu a porta e disse só uma frase:
– J´ai fini!
Havia terminado o curso. Ficamos nos olhando por um
longo tempo. Você, de pé perto da porta. Eu, deitada na
cama. Não contei o tempo que passava. Poderiam ter sido
horas, dias ou semanas.
Ou apenas um momento, rápido e triste, e você desmaiou.
Era como se suas forças devem ter fugido. Não sabia o que
fazer, de verdade.
Quando você se levantou, perguntei o que iríamos fazer
agora.
– Je vais en France – foi sua resposta. Não sei se por acaso
ou por intenção, você nunca me incluiu nessa viagem.
Mas não percebi isso naquele momento. Nem mais tarde.
Talvez só tenha percebido hoje, décadas depois.
O que me lembro daquela noite foi que você acordou do
seu desmaio, tomou um banho e saiu. Enquanto se arrumava,
falava sozinho. Não, não conversava comigo. Parece que falava
com outra pessoa que estava naquele quarto ou que estava na
sua cabeça, não sei dizer.
Quanto tempo você ficou fora? O tempo suficiente para
quase me matar de fome e sede. Eu me arrisquei até a sair do
quarto para roubar comida da velha geladeira.

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Voltou uma tarde como se nada houvesse acontecido.
Trouxe empanadas e vinho, e me olhou comer com ansiedade.
Minha ansiedade. Fiquei com medo de perguntar por onde
tinha andado.
Nessa noite, fizemos amor mas não conversamos. Acordei
de madrugada e vi que você estava sentado em frente à
pequena mesa. Tinha acendido uma vela, talvez para não
atrapalhar o meu sono. Não sei de onde tinha tirado um
caderno Rivadavia de capa vermelha. Daqueles pequenos,
de cinqüenta páginas.
E começou a escrever. Durante dias. Só parava para ir
comprar comida. Ocupava seu tempo enquanto esperava
o resultado de seus exames finais e o diploma. Eu me
angustiava com esse lento passar do tempo.
Sabia que, com o diploma na mão, me abandonaria para
sempre.
Acho que era a depressão que me fazia ficar na cama
o tempo todo. Quanto mais você escrevia, mais eu me
enterrava na cama. Mais eu dormia. Mais eu me esquecia.
Até que tudo ficou nebuloso, tudo se apagou. Eu não me
lembro de mais nada.
– Você se lembra de tudo isso? – perguntei para a sombra
que havia escutado toda a minha história em silêncio.
– Sí, me acuerdo de todo. Pero no pasó nada de la forma
como me lo contaste.
Olhei pela janela e as flores tinham ido embora.

49
Amores de Estudiante

Voltei-me para a sombra que havia diminuído, como se


tivesse se encolhido com medo de mim.
– ¡Vos sos Circe! – me disse com pânico na voz.
Eu me deitei na cama e desmaiei.
Não sei por quanto tempo fiquei desacordada naquela
cama. Só me lembro que meu sono/desmaio foi povoado
por olhos claros, azuis, verdes ou castanhos-claro.
Olhos que sempre mentiam para mim. Esses olhos que
me traziam flores e que me enganavam.
Como se fossem declarações escondidas por falsas
intenções.
Levantei-me e, naquele quarto vazio, nada conseguia
mostrar as emoções que o haviam habitado nas últimas horas.
Nenhuma lembrança, nenhuma marca. Achei que a sombra
ainda estava lá, mas era apenas uma ilusão causada pela luz
do sol entrando pela janela que tinha ficado aberta.
Tomei um banho de banheira, uma das grandes atrações
dessa cidade. Em todos os banheiros, havia uma banheira e
um bidê. Renasci dentro das águas frias que ficavam salgadas
com a contaminação das minhas lágrimas.
Devia ter chorado muito. Como prêmio ou tortura, o
banheiro, apesar de pequeno, tinha um espelho de corpo
inteiro. Olhei para minha imagem com um misto de
curiosidade e medo.

51
Estava velha. Os cabelos já, há muito tempo, estavam
cinzentos. Eu pintava, não de roxo como as velhinhas do
meu bairro, mas de preto. Não fiz isso desde que cheguei
aqui. E as raízes já mostravam meus anos. Como os anéis de
uma árvore cortada, que servem para medir a idade (séculos,
até). Talvez eu tivesse centenas de anos.
Toda a minha pele estava manchada. Os seios, inchados,
ficavam com uma aparência horrível sem o sutiã. Eu não
me depilava mais, ali, não tinha por quê. Só olhava para
aquele tufo de pêlos no meio das minhas pernas. Lá, eles
não tinham ficado brancos.
Estava velha e olhando meu corpo cheio de pelancas e
estrias, comecei a me perguntar de que serviria toda essa
minha busca.
Por sorte, o espelho não era tão terrível sem os meus
óculos. Vesti uma roupa limpa e desci.
– ¡Buen día! – disse o mozo do restaurante. Percebi, então,
que era de manhã, mais cedo do que pensava.
– Bom dia. Media-lunas e café com leite, por favor.
– ¡Como no! – me respondeu solícito.
Há muito tempo, uma refeição não me parecia tão
saborosa como essa.
Fiquei sentada numa poltrona confortável, olhando os
jornais com letras enormes nas manchetes. Era uma mistura
de datas e eventos que se repetiam e se apagavam.
Parecia que, numa simples folha de jornal, eu via passar
anos de acontecimentos.
Resolvi, então, voltar onde tudo tinha começado.
– Por favor, – perguntei ao jovem que estava do outro
lado do balcão do hotel – como faço para chegar à Escuela
de Traductores?

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O rapaz se perdeu, não era uma pergunta comum para
uma turista e ele não estava preparado. Nem o taxista, nem o
guarda na esquina. A resposta veio do lugar menos esperado.
Tão inesperado que não sei como contar, pelo menos não
agora. O importante é que cheguei.
Mas cheguei justo na hora do almoço da secretária, então
resolvi caminhar pelos enormes corredores da escola.
Passei por uma biblioteca e um laboratório (era o que dizia
a plaquinha na porta). Ao invés de pipetas e microscópios,
havia computadores com enormes fones de ouvido. Entre
os dois, alunos.
O local estava lotado. Não sei porque achei que estaria
vazio. Não era mês de férias escolares, não era fim de
semana. Era pleno dia de aula e os estudantes corriam para
suas classes. Caminhando por um longo corredor, podia
escutar diversas línguas estrangeiras, até mesmo esta com a
qual escrevo e que não é estrangeira para mim ou para você,
mas é para eles.
No final do longo corredor, tomo um susto. Viro e dou de
cara com você. Quero dizer, com uma foto sua, num quadro
na parede. Ao lado de outras pessoas, a maioria homens,
algumas mulheres. A maioria velhos, alguns jovens.
Pergunto quem são a uma garota que passa apressada.
– Son los tipos famosos que estudiaron acá.
Uma galeria de personalidades, de tradutores famosos.
É engraçado como tradutores não ficam famosos fora das
escolas de tradutores. Às vezes, nem dentro delas.
Você é diferente, ficou famoso por ser escritor, não por
ser tradutor. Aposto que poucas pessoas saberiam dizer que
você pagou suas contas no fim do mês com o dinheiro ganho
com a transposição de palavras de um idioma para o outro.

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– Este primeiro aqui, você sabe quem foi? – perguntei
para a jovem que, apesar de apressada, mostrava um certo
orgulho de sua escola; a ponto de chegar atrasada a seu
compromisso (qualquer que fosse ele) para ajudar uma
senhora, interessada nos tradutores célebres formados neste
velho edifício.
– ¿Este? Sí, claro, este fue uno de los más celebres traductores
de la Unesco.
Fiquei esperando algum complemento, algo que
demonstrasse que ela conhecia sua obra, mas a garota já
tinha passado para o quadro seguinte. Apresentou as doze
celebridades do mundo da transcriação. Quando terminou,
insisti:
– E aquele primeiro, parece que foi um autor famoso,
também, não?
– ¿Autor? Puede que sea. ¿Sabés que yo me acostumbré tanto
a mirar sólo el nombre del traductor de las obras que conozco
a pocos escritores?
Não quis dizer que, ao escrever na mesma língua que
ela, seus livros não teriam tradutores. Talvez seja por isso,
tão viciada em traduções estava a garota, que não poderia
ler livros não-traduzidos.
Olhei com admiração: alguém que se recusava a ler obras
originais!
– Espero que um dia seu retrato esteja aqui, entre estes!
– me despedi.
– ¡Ah, gracias! – ficou me olhando. – ¡Señora! ¡La secretaría
es para allá!
Antes que pudesse perguntar como sabia que meu
objetivo final era a secretaria, ela desapareceu correndo atrás
de seu compromisso.

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Na frente de uma pequena janela, comecei pedindo o
seu histórico escolar. Ela (a secretária) reagiu como se isso
não fosse uma surpresa. Muitas pessoas já deveriam ter feito
esse pedido, muitas vezes.
– Mire, señora, si necesita material para un reportaje para
un periódico o si está escribiendo una biografía, lo mejor es
hablar con el director.
– Não, não sou jornalista, nem biógrafa. Só queria ver o
histórico, vocês têm fotos da época?
– Sí, las teníamos pero alguién se las robó hace mucho. Yo no
era la secretaria en aquella época – falou como se estivesse se
justificando. – ¿Pero, para qué quiere mirar sus documentos?
Hesitei, pensei em ser estúpida e responder que ela não
tinha nada a ver com isso. Pensei melhor.
– Posso falar com o diretor, então?
A mulher, mesmo descontente com a minha falta de
resposta, ligou para o ramal do diretor. Depois de algumas
trocas de palavras, ela desligou o telefone e perguntou meu
nome:
– Sou Circe – respondi.
Não sei por que fiz isso, não usava esse nome há muito
tempo. Quase uma outra vida de distância.
Ela me acompanhou até a sala do diretor, bateu levemente
na porta e enfiou uma cabeça dentro:
– Acá está la señora Circe.
Foi o que eu ouvi, antes de um baque surdo vindo de
dentro do escritório.

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Ausencia

Revelada, sua ausência me domina


Padecendo meu bem sem cessar
E seu nome, vem à minha memória
Pela sede insaciável de amar.

É vão chorar,
Nada acalma a dor
Que atormenta meu ser abatido
Destroçando meu trono de amor.

Volte logo, diminua o sofrimento,


Que sua ausência me mata, ai de mim!
Ninguém seca o choro afligido,
Que meus olhos derramam por ti.

Vago errante, sem fé,


Desafiando a dor,
Sem ter mais amparo que o céu
E esperando que volte meu amor.

Minha paixão era terna, muito terna


E você, por outro lado, não sabe amar,
Que motivo dei, alma minha
Para me fazer padecer tanto?

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É vão chorar
Nada acalma minha dor,
Que atormenta meu ser abatido,
Destroçando meu trono de amor.

O mozo me olhou com um misto de espanto e


compreensão. Os poucos freqüentadores do café na esquina
da avenida mais movimentada da cidade, bateram palmas.
Eu não sabia nem por que tinha começado a cantar
aquela música nem como podia me lembrar da letra.
Engraçado que minha voz até que não era de todo feia.
Nunca tinha cantado antes. Nem na escola, apesar de me
lembrar muito pouco da minha vida antes de você tê-la
monopolizado.
Era como uma ausência de vida (acho que foi por isso
que lembrei-me desse tango – ou será uma valsa?).
Talvez nunca tenhamos vivido naquele apartamento em
frente à praça. Talvez tenhamos vivido num apartamento
em frente a uma praça mas não tenha sido nesta cidade.
Mas também não me lembro de ter vivido em nenhuma
outra praça com você.
Lembro-me do quarto e da pensão. E dos seus estudos.
De francês. Lembro-me do meu ciúmes quando você,
numa noite em que estava dentro de mim, prestes a gozar,
chamou-me pela primeira vez de Circe.
Mas acho que não fiz nenhum escândalo. Nem o
bombardeei com perguntas. Não queria saber quem era ela.
Queria que ela fosse eu. E passei a adotar esse nome. Que
também já tinha se ausentado de mim. Até aquela tarde,
com o diretor, quando voltei a usá-lo.
Também me lembro que você começou a tomar pílulas

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para dormir (será mesmo verdade, parece tão irreal que já
existissem pílulas para dormir naquele tempo!) (parece tão
irreal que você, que quase não tinha dinheiro para comprar
comida pudesse se dar ao luxo de gastar o pouco dinheiro
que tinha em pílulas para dormir) e eu as roubava para
colocar no mate da dona da pensão. Assim podia trabalhar
na cozinha de madrugada. Fazia uns bombons que você
adorava tanto!
Engraçado que nunca mais fiz nada, depois disso. Lá
onde moro hoje, minha cozinha é um deserto. Vivo de
comidas prontas, entregues por um restaurante do outro
lado da rua.
Tento me lembrar como eram os bombons, mas não
consigo. Só lembro do chocolate, claro. Mas tampouco sei
como conseguia as barras. Talvez soubesse, talvez você as
comprasse.
Só me lembro que fazia bombons à noite e você os comia
durante o dia, enquanto estudava. Isso me lembro. Isso
preenche o gosto amargo dessa ausência.

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Melodia de Arrabal

Depois de perguntar para o guarda, que não sabia o


caminho até a Escuela de Traductores, fiquei parada na esquina
de uma rua com a calçada estreita, como é tão comum no
velho centro desta cidade.
Provavelmente devo ter ficado pensando sobre o mo­mento
em que estas calçadas e ruas foram construídas. Naquela
época, ninguém poderia imaginar que a cidade cresceria tanto
e que as pessoas ficariam apertadas tentando caminhar entre a
rua cheia de ônibus com motoristas impacientes e as paredes
de velhas casas e edifícios (mais edifícios do que casas).
Pior é quando alguém fica parado, tomando espaço,
indeciso para onde ir. Como eu!
Ninguém me xingou, mas eu sentia os olhares cansados.
Quem me olhava também, era o guarda. Pensei que pediria
para que eu saísse do caminho dos passantes. Ele também
pensou em me falar algo. Mas se conteve, talvez pensando em
qual artigo da lei eu poderia ser enquadrada.
Como não se lembrou de nenhum, perdeu interesse em
mim. Foi quando olhei para o muro. Era mais um tapume
em frente a um prédio abandonado. No meio de dezenas de
cartazes, alguns com datas de recitales, outros com fotos de
políticos, pude ler em letras grandes, prateadas: ¿A la Escuela
de Traductores?
Parei naquele momento. Já estava parada, claro, como

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contei. Mas parei de respirar, parei de bater o coração, parei
de pensar.
Fiquei feliz, já sabia como chegar a meu destino. Ao lado
da frase, havia uma seta apontando para a direita.
Comecei a caminhar, talvez aliviando a preocupação do
guarda. Andei por cinco quarteirões até chegar a um novo
muro. Dessa vez, era um muro de verdade.
Tomate el 82, era o que estava escrito. Eu estava bem na
frente do ponto de ônibus. Em cinco minutos, ele chegou.
Entrei e paguei. Aqui os idosos não tinham nenhuma
vantagem. Por sorte, sempre andava com umas moedas.
Sentei e fiquei preocupada. Não sabia para onde ia o ônibus.
Como todo morador daqui, já tive todos os itinerários na
cabeça. Mas tinha esquecido.
Depois de uns quinze minutos, percebi que havia uma
pichação no encosto do banco da frente. Ela teria estado aí
desde o começo? Ou aparecera naquele instante? Não saberia
dizer, não tinha percebido.
Estava escrito: Bajate en la próxima. Levantei-me, toquei
el timbre e desci.
Estava em um bairro diferente, não sei se longe dos que
estava acostumada. Mas me senti perdida. Engraçada essa
sensação. Numa cidade tão pequena dentro da sua grandeza,
era difícil ter um lugar que eu não conhecesse. Será que já
havia cruzado a divisa e entrado na província? Com apenas
quinze minutos de viagem, seria impossível.
Comecei a caminhar, estava em uma avenida (dessa vez as
calçadas eram larguíssimas porém estavam lotadas de pessoas)
e o sol já batia forte na minha cabeça. Não procurava mais
sinais, sabia que eles viriam. Foi quando vi o outdoor enorme,
em cima de um prédio que parecia um mercado. No, nena,

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estás equivocada. Para el otro lado. Me virei e caminhei para o
outro lado, feliz porque alguém ainda me chamava de nena.
Continuei para o lado em que a maioria das pessoas estava
indo.
Pude, então, descansar e permitir que a multidão me
levasse. E fui seguindo, assim, carregada, até a esquina de uma
praça. Nessa esquina, um cartaz dizia: Acá salí de la multitud y
seguí por la derecha.
Foi quando vi o prédio, enorme como todos os prédios
antigos. Ao chegar na porta da Escuela, fui tomada por uma
visão. Um nome que ainda estava lá depois desses quase
quarenta anos.
Sentei-me no chão. Todos os estudantes, entrando e
saindo dos vários cursos (ou melhor, todos iam para o mesmo
curso de tradução, mas em diferentes línguas) correram em
minha direção.
Acho que o problema foi o fato de ser velha. Uma
jovem que se sentasse no chão, em frente a uma escola, não
chamaria a atenção de ninguém. Mas uma velha...
– ¿Qué le pasa, señora?
– ¿Pasó algo?
– ¿Se siente mal?
Foram muitas mãos querendo ajudar. Preferi não falar
nada. Não teria como me explicar, melhor pensarem que eu
tinha passado mal.
Do meio das mãos solícitas, surgiu um copo de água.
Bebi.
– Vocês podem me explicar o que significa essa pichação
na porta da faculdade? – resolvi perguntar.
– Ah, ¿eso? – me respondeu um deles. – Es como una
tradición de la Escuela.

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Fiquei esperando a continuidade da explicação. A pequena
multidão que havia se formado ao meu redor começou a se
dispersar.
– Hace mucho uno de los estudiantes, uno que después se
tornó un conocido escritor, escribió eso ahí. Año tras año, nosotros
pintamos de nuevo las mismas palabras, ¿para qué? – perguntou
para si mesmo. – Sólo para mantenerlas ahí.
– E o que significam?
– No sé, nadie lo sabe. Dicen que él estaba un poco loco
cuando las escribió.
– Um pouco louco?
– Sí, sus cuentos después son bastante raros, pero muy
buenos.
– Sim, eu conheço todos eles.
– ¿Ah, sí? Bueno, dicen que él caminaba por los pasillos
repitiendo este nombre, como si hablara con alguién, con esta
persona.
– Mas ela não estava aqui?
– No, por supuesto no. Entonces en su ultimo día, apareció
con tinta, escribió eso y se fue. El director de aquella epoca era
reconservador, pero no tapó la pintada y ahí sigue hasta hoy.
Agradeci e me afastei. Do outro lado da rua, fiquei
juntando forças para poder entrar. Então era aqui que você
passava os dias daquele fatídico ano. O ano em que vivemos
intensamente nossos últimos momentos.
Para mim, as letras pintadas naquele muro caminhavam.
Na verdade parecia que dançavam. O vermelho que as
formava, brilhava como se fosse o sangue que alimenta de
vida um corpo. Talvez o próprio prédio.
Pensei que se aquelas palavras fossem apagadas, todo o
prédio morreria. Sim! Aquela pichação era o que sustentava

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toda a escola. Me apavorei com a idéia da morte de todo
um edifício.
Os estudantes ainda estavam parados na porta da Escuela.
O que havia conversado comigo, apesar de estar numa roda de
colegas, volta e meia me olhava, num misto de preocupação
e curiosidade.
Tirei da bolsa um caderno, um caderno Rivadavia
vermelho. Aquele que você tinha me dado, com uma história.
Com a primeira versão daquela história. Apesar dos quase
quarenta anos que separavam os dois momentos (aquele, em
que você me deu o caderno e este, em que o seguro na frente
da Escuela), nunca o abri. Nunca li o que você tinha escrito.
Só sabia, de cor, o nome anotado na capa, que você tinha
manuscrito num adesivo grudado na capa vermelha. Escrito
com sua letra feia e corrida, letra que tinha piorado muito
depois do esforço para se formar em Francês, formatura que,
na verdade, era parte de um plano para fugir daquela sua vida
e, só depois percebi, fugir de mim.
Você só escreveu um nome, cinco pequenas letras que não
fizeram sentido para mais ninguém, apenas para mim. Não o
abri mas me espantei com a qualidade do caderno. Quarenta
anos e as folhas ainda estavam como novas.
Coloquei-o de volta na bolsa. Cruzei a rua e, ao passar
pelo estudante que há pouco me ajudara, agradeci mais uma
vez.
Ele se separou do grupo em que estava e perguntou se me
sentia melhor.
– Sim, – respondi – muito melhor. Escute, – falei, depois
de dar alguns passos e me voltar para ele – mantenham
essa tradição por muitos anos. Disso depende a existência
dessa escola.

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Segui caminhando antes que ele tivesse tempo de reagir.
Subi as escadas e entrei na Escuela passando pelas radiantes
palavras em vermelho ao lado da porta. Radiantes, como se
estivessem felizes.

Acá nació y murió Circe, que un día volverá.

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Milonga Sentimental

A nossa história começou quando os boatos sobre mim


tinham tomado todas as casas daquele bairro, daquela cidade,
ou seria uma simples vila? Você foi o único que continuou
me tratando bem. O único que não dava risadinhas quando
me encontrava. O único que não tinha medo da minha
fama, a de ser a “garota que matou seus dois noivos”.
Foi por isso que você acabou se afastando de sua
família, por me defender. Aos domingos, seus familiares o
abandonavam, saíam para passear e você corria para baixo
da minha janela, jogava uma pedrinha. Às vezes, eu abria, às
vezes, deixava você lá embaixo, sem esperanças.
Quando me mudei, minha fama diminuiu um pouco.
Mas continuei afastada do mundo, de todos menos de você.
Continuamos nos encontrando duas vezes por semana, no
final da tarde. Eu adorava quando você me levava para uma
confeitaria em Rivadavia ou a caminhar pela Plaza Once.
Nesta época, eu ainda estava de luto, pela morte de meu
último noivo. Ou seria pela morte de meus dois noivos?
Você não gostava disso, eu sei. E se espantava com o amor
que os animais demonstravam quando eu chegava perto.
Alguns deles, quero dizer. Eu sempre gostei de todo tipo
de bicho. Hector se suicidou um sábado, à noite, depois de
sair da minha casa. Rolo morreu de síncope, na porta, logo
depois de nos despedirmos. Rolo não significou muita coisa

67
para a vizinhança, mas o suicídio de Hector acordou velhas
suspeitas.
Eu sei que fiz você passar por maus bocados. Mantinha
meu luto (acho que era só por Hector mesmo, Rolo já tinha
se tornado uma lembrança tão distante) e só permitia que
sua mão segurasse a minha em poucos momentos. Muitas
vezes, em público, para que todos vissem.
Eu sabia, mesmo com você tentando me proteger, que
muita gente continuava a conectar os vários pontos obscuros
da minha vida. Obscuros para eles, claro. Os namorados,
meus bichos de estimação que sempre morriam, os gritos
e soluços que se ouviam na minha casa. Tudo era motivo
para fofocas.
Um bilhete de suicídio. Eu só o li uma vez. Não tinha
sido endereçado a mim. Nenhuma explicação, por isso eu
era a explicação (era o que todos pensavam). Como se os
choros e gritos abafados ouvidos pelos corredores da velha
casa tivessem sido o motivo oculto de todas as desgraças.
Nós nunca falávamos desse passado. Nunca. Acho que
você esperava que eu entrasse no assunto. Eu não teria
problemas em falar, mas não tinha o que dizer. Aos poucos,
fui me afeiçoando à sua presença. Fui me animando. Até
posso dizer que comecei a gostar de você. Mas ainda era
cedo para fazer algo, fazer meus bombons. Usar meus
licores. Não sei se você sabia da minha paixão por bombons
ou se foi pura coincidência quando trouxe uma caixa deles
para mim.
Achei que você não sabia, por isso contei. Fiquei horas
falando sobre como os bombons eram feitos ou como
eu os fazia. Acho que o deixei cansado. Você pensava em
outra coisa, tenho certeza, enquanto me ouvia e comia

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os bombons da caixa. Parece até que eu sabia o que você
pensava: pensava que queria ser meu noivo, meu terceiro
noivo. Mas vivo.
Você começou a me comprar licores, chocolates. De forma
sutil, me impelia a retomar minha vida, minha paixão.
Nunca falava de sua vida quando estava comigo. E aposto
que não falava de mim para as outras pessoas da sua vida.
Um dia, fiquei com vontade de fazer algo para você. Fiz
um licor de laranja, concentrado. Você se espanta com a
minha solidão. Era o único a me visitar. Eu sentia um certo
medo em você, quando levou o pequeno copo laranja à boca.
Mas seus elogios, talvez um pouco exagerados, quebraram
o gelo do temor.
Foi mesmo você que me fez retomar meus ensaios,
nem fotográficos nem literários, mas gastronômicos. Meus
bombons começaram a sair novamente. Sim, você era meu
provador oficial. Tampouco havia outra pessoa para esse
“emprego”. Tenho certeza que você adorava aquele ritual:
eu o obrigava a fechar os olhos e tentar adivinhar os sabores
que colocava nas minhas produções.
Fiquei feliz quando você se responsabilizou pelos materiais
necessários para minhas experimentações. Acho que foi a
primeira vez que o beijei, usando meu afeto para compensar
sua generosidade. Era a única forma de continuar, também,
já que eu não tinha nenhuma renda.
Foi nessa noite que decidi voltar ao piano, algo que havia
abandonado. Gostava de tocar na penumbra, só iluminada
pela luminosidade da rua. Quando alguém acendia a luz
da sala, eu me afastava rápido. Era verdade, parecia uma
centopéia ou outro inseto fugindo da presença humana que,
no meu caso, era simbolizada pela luz que vinha do teto.

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Naquela noite, acho que você conseguiu ter uma medida
da minha fragilidade. Por baixo desta paz que eu demonstrava
ao manipular minhas essências e as teclas do piano, havia uma
mulher que carregava duas mortes nos ombros. E que talvez
estivesse com medo de que você se tornasse a terceira.
Depois de tanto tempo sem fazer bombons, quando você
me trouxe as essências, comecei a achar que era isso que eu
devia fazer pelo resto da vida. Não como um meio de vida, mas
como um modo de vida. Podia fazê-los normais e comuns,
como todo mundo, mas preferia criar. Novos sabores e novos
formatos. E eu sabia que você era o único que os apreciava. Às
vezes, você demorava para reconhecer os sabores, eu sempre
ousava mais. Uma tarde, enquanto derretia o chocolate,
lembrei-me com tristeza profunda da noite em que Rolo
morreu quase na minha frente, na porta da casa. Sem querer,
uma lágrima caiu no chocolate. Foi uma simples gota mas
pude perceber, pelo seu rosto, que você sentiu aquele leve
gosto salgado. Não comentamos nada.
Além de você, minhas únicas companhias eram meu
gato e um peixe dourado. Mas o peixe ia morrer, estava
velho e doente. Ia morrer no dia seguinte, eu sabia. E
morreu mesmo.
Acho que foi esse anúncio que despertou algo em você.
Coragem ou pena. E foi naquela noite, na noite em que
anunciei a morte do peixe, que você me pediu em casamento.
Aceitei mas demorei para responder. Pensava em como você
tinha mudado. Como estava mais bonito depois do pedido.
Era amor? Mas o amor poderia mudar a nossa percepção sobre
alguém tão rapidamente? Aceitei e a partir daquele instante
você virou meu noivo. Meu terceiro noivo.
Você quis comemorar e abriu um vinho do Porto. Era

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visível que tínhamos muitas palavras para falar, mas não
dissemos nada. Passávamos de uma intimidade tranqüila de
amigos, para uma tensão de amantes.
Nas semanas seguintes, você apareceu à noite sempre
tenso. Nunca me disse nada, mas suspeito que a notícia de
nosso noivado deve ter caído como uma bomba por todos
os lados. Duvido que não tenha existido alguém que tentou
fazê-lo desistir da idéia. Que velhos recortes de jornais
falando sobre as mortes de meus dois noivos anteriores, não
tivessem aparecido sob a porta da sua casa, anonimamente.
Até senti que éramos seguidos nos nossos passeios de
domingo.
Acho que isso também já tinha acontecido antes, não sei.
Talvez fosse uma reação ao medo do casamento. Lembro-
me vagamente de sentir algo parecido com Rolo e Hector.
Não vou ficar louca, disso tenho certeza.
Você chegou depois de um passeio solitário pela cidade
(não me contou, eu sabia). Já era noite. Eu disse que o gato
também estava enfermo. Discutimos essa situação. Senti que
você não acreditava em mim. Para terminar com a conversa,
falei que ele, o gato, ia morrer. Você não abriu mais a boca.
Eu estava estranha, sabia disso. Preferi tocar piano a conversar.
Com um olhar, pedi que você apagasse a luz.
Você tentou me beijar mas eu pedi que esperasse.
Esperasse que a cidade adormecesse. Continuei tocando
piano, longas valsas para que o tempo passasse. Não sei no
que você pensava.
Entendi que falava que tinha sede. Antes que pudesse me
levantar, você foi até a cozinha. Não podia ter feito isso! Era
minha casa. Ainda era só minha. Apesar de nossa intimidade,
você ainda era convidado. Quando voltou, eu estava de pé

71
na frente da janela. Essa janela onde havia acompanhado
meus dois antigos noivos irem embora, por várias noites e
longos meses.
Sabia que você tinha visto o gato. E como eu tinha
enfiado dois gravetos em seus olhos, deixando-o para
morrer. Mas não comentou nada. Em cima da mesa, havia
deixado meus últimos bombons, minha última experiência.
Não precisei oferecer, você já conhecia o ritual. Mas desta
vez não fechou os olhos para experimentá-los. Não pedi.
Podia ser o luar entrando pela janela na sala escura, mas
vi seu rosto branco como mármore. Ao invés de colocar
o bombom direto na boca, você o abriu com os dedos,
separou-o em dois, mostrando o recheio. O recheio especial
que eu havia preparado. A casca e as asas e as perninhas que
ainda pareciam se mover foram iluminadas pela parca luz.
Tinha colocado a barata inteira dentro do bombom, não
tinha tirado nada.
Esperei, esperei muito que seus dedos ao redor da minha
garganta acabassem com meu sofrimento, com meu choro.
Queria que a mistura das minhas lágrimas e dos seus dedos
sufocassem essa minha obsessão. Mas você me deixou caída
no sofá e foi embora. Meu terceiro noivo.

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Adiós Muchachos

“Quando o ponto final foi desenhado nesse caderno, eu


sabia que minha vida neste lugar havia terminado”.
Não sei se escrevi ou pensei esta frase. Só sei que ela
existia, que havia existido.
Circe me perseguiu por meses, eu a encerrava no quarto
de pensão em que estava hospedado mas sua sombra
me acompanhava pela Escuela, pelas ruas, pelos meus
pensamentos.
Uma mulher belíssima, teriam dito meus companheiros,
meus muchachos se alguém, além de mim, pudesse vê-la.
Nos últimos tempos, quando a pressão por terminar meu
curso de francês tinha ficado insuportável, ela ficara ousada,
criara coragem. Poderia dizer que havia ganhado mais vida.
Antes limitada ao meu minúsculo quarto na pensão, ela
agora me acompanhava por todos os lados, pelos corredores
escuros e silenciosos.
Podia ouvir os ecos de seus sapatos. Ela sempre falava
comigo, sempre queria conversar. Eu tentava ignorá-la mas
sentia vontade de contar tudo o que me ocorria. Ela era a
única pessoa com quem me relacionava naqueles tempos.
Uma vez, no corredor das personalidades, ela me falou:
“Um dia, seu retrato estará aqui”. Falou que eu estaria entre
os onze pendurados na parede.
Ri, ela podia estar certa. É verdade que a tradução, para

73
mim, era só um meio de sair daquela situação, daquela
cidade, daquele país.
Tinha medo. Medo que ela descobrisse sobre a minha
preparação para a fuga. Apavorado de que ela quisesse ir
comigo. Eu precisava romper todo o passado para começar
de novo.
Queria convencê-la a me abandonar. Por isso, caminhava
pelos corredores, entre minhas aulas, conversando com ela.
Tantas coisas a falar! Até que se esgotaram.
Uma tarde, voltando para a pensão, vi um caderno
Rivadavia na vitrine de uma papelaria. Entrei e comprei.
Naquela noite, iluminado por uma vela, comecei a
escrever a história de um amor auto-destrutivo, como o
nosso.
Sentava na mesa, abria o caderno, enquanto você ficava
na cama. Era o silêncio que servia como comunicação entre
nós.
Nunca levava o caderno quando saía. Mesmo deixando-o
aberto em cima da mesa (tinha medo de borrar a tinta),
sabia que você nunca iria ler a história. Eu só escrevia duas
páginas por noite, para não precisar virar a página e borrar
tudo. Não deixar a história mais borrada do que ela já era.
Nunca acreditei antes em escritores que respondiam
“para não ficar louco” à pergunta “por que tinha se tornado
escritor”.
Agora acredito.
A história era algo que você tinha me contado. Quando
surgiu na minha vida. Não, não sei como ou quando isso
aconteceu.
Todos os casais têm essas histórias. E adoram compartilhá-
las com o mundo. Nós, não. Você simplesmente apareceu.

74
Simplesmente começou a me seguir. A ser uma presença.
Até tomar conta da minha vida, como faz agora. Antes de
virmos para essa pensão, você já estava ali.
Eu me lembro que antes de entrar na Escuela, você me
observava, sentada em um café na esquina, enquanto eu
escrevia em meu apartamento. Escrevia durante as tardes,
depois das aulas. Das aulas em que era professor, não
aluno.
Quando acabava de escrever, saía na sacada. Sempre.
Como se estivesse avisando que você já podia voltar. Quantas
vezes pensei em sair escondido, quantas vezes pensei em
fugir de você. Mas sempre aparecia na sacada, dando um
sinal inconsciente.
É verdade, você já incomodava naquela época. Mas hoje
sua presença é mais parecida com uma dor constante.
Sinto muito ser obrigado a dizer essas coisas. Estou
borrando as páginas desse caderno com essas palavras
amargas. Sei disso. Sei também que você não vai saber de
nada. Que não vai ler esse caderno. Porque vou pedir para
você nunca ler. E sei que você vai obedecer.
Este conto “Circe” que estou escrevendo, é uma
despedida. Não estou só me despedindo de você, mas deste
país, deste continente. Não sei se alguma vez poderei voltar.
Parece triste, mas não sei se é. De verdade.
Essa cidade é de uma estranheza vil. Suas ruas todas retas,
seus prédios baixos e a quantidade de sacadas nos prédios
antigos, funcionam como uma rede que me engole. Eu me
perco aqui com tanta facilidade!
E todas as sacadas parecem que olham para mim. Como
se eu estivesse num antigo teatro grego. Atuando numa peça
sem conhecer o roteiro.

75
¡Adiós, muchachos!, foi o que falei naquela noite. Na noite
que consegui sair sozinho.
Quando você se esgueirou para a cozinha, certamente
para fazer seus bombons, deixei a caneta sobre a página em
branco do caderno e saí. Também me esgueirando.
Depois de tanto tempo, meus velhos amigos falidos
continuavam passando as noites de bebedeira no mesmo
velho bar perto do mesmo velho porto.
Foi aí que falei de você. Quase monopolizei a conversa
a noite toda. Meus amigos, escritores e artistas frustrados,
alcoólatras ativos, presos em empregos inúteis, não tinham
muito a contar também! Talvez nem tenham ficado felizes
em me ver.
O mais impressionante, para mim, é que eles não sabiam
quem você era. Apesar das infindáveis noites em que você
me acompanhou nas rondas pelos bares de intelectuais deste
bairro ao sul do centro. Nesse bairro com o nome de santo.
Haverá existido um santo com esse nome?
Quando o silêncio baixou naquela mesa, comecei a me
lembrar do seu silêncio obsessivo quando não estávamos
sozinhos. Quando mais alguém tentava roubar minha
atenção. Deve ser por isso que você aceitou viver naquela
pensão só para caballeros. Porque sabia que ali, atrás daquelas
portas, eu seria só seu. Foi por isso que você me encorajou
a completar o curso tão rapidamente, porque sabia que eu
não teria tempo para mais nada. Até mesmo minha escrita a
incomodava. Tinha ciúmes até das minhas personagens.
Olho para essas pessoas, que eu chamava de amigos, e
vejo como minha vida poderia ser um horror se não tivesse
escutado seus conselhos.
Levantei-me da mesa e, apesar de ter a nítida impressão de

76
que ninguém percebeu, falei bem alto: ¡Adiós, muchachos!
E completei: ya me voy y me resigno.
Voltei para o quarto de pensão vazio. No dia seguinte,
iria para a Escuela pela última vez.
Sentei-me à mesa e escrevi as últimas páginas do conto.
Ao terminar, fiz uma cópia, já com as correções, escrevi uma
carta, coloquei-a num envelope.
Já era de manhã quando terminei tudo. Arrumei a minha
mala. Saí, passei por uma ferretería, comprei tinta. Era muito
cedo para que alguém me impedisse. Pintei uma frase na
porta da Escuela. Uma frase para você. Entrei, recebi meu
diploma, entreguei o envelope para o diretor com as mãos
ainda vermelhas de tinta.
Voltei à pensão, peguei minhas coisas, paguei o que devia
à dona e me despedi com uma frase de efeito:
– ¡Perdoná por los cadáveres en el ropero!
Fui direto ao velho porto onde, pela última vez, entrei
no velho bar e pedi um café.

77
Por una cabeza

A secretária abriu um pouco a porta, enfiou somente


sua cabeça e falou:
– Acá está la señora Circe.
Houve um ruído forte dentro do gabinete do diretor. A
secretária abriu toda a porta, assustada.
Não sabia se entrava atrás dela ou se esperava uma
ordem. Fiquei parada embaixo do umbral. Do outro
lado, do lado de dentro, a secretária ajudava o diretor a se
levantar. Aparentemente, sua cadeira tinha tombado para
trás. Ele estava no chão. Não podia vê-lo, pois a grande
mesa de diretor atrapalhava minha visão.
A pobre secretária, pequena e fraca, era incapaz de
levantar aquele homem gigantesco. Não me decidia a
entrar para ajudar ou ficar olhando ou rir descaradamente
da situação.
Finalmente entrei e fizemos um esforço tremendo
para levantá-lo do chão. Ele estava pálido e com cara de
assustado. Cada vez que olhava para mim, parecia ficar
mais branco e mais amedrontado.
Depois dos diálogos normais nesse tipo de situação,
depois do normalíssimo copo d’água e da mais normal
ainda pergunta sobre médicos e hospitais, pudemos nos
sentar e esperar a saída da secretária.
Ele falou, de forma surpreendente, na língua que eu

79
tinha escolhido como pátria depois de ter abandonado
aquela cidade.
– Então você existe mesmo!
Essa frase me surpreendeu mais do que o seu desmaio.
Por tudo. Pela língua, pelo evidente conhecimento de onde
eu vivera nessas décadas, por saber que eu existia.
– S-sim, eu existo. Acho – pensei esta última palavra.
– Desculpe-me, desculpe-me. Sou um bruto – a língua
materna ainda se mesclava com o novo idioma. – Nem me
apresentei. Esqueci todo o protocolo de diretor, – falava
como se tivesse um livro de etiquetas para diretores de
colégio – meu nome é Martín K., diretor-geral da Escuela
de Traductores.
Parou, não sabia se devia continuar, se devia se levantar,
me dar a mão ou um forte abraço.
– Sou Circe e vim pedir notícias sobre um aluno antigo
da Escuela.
– Sim, eu sei – claro, a secretária havia falado com ele.
– Desculpe todo o papelao – as contaminações da língua
continuavam. – É que todos achavam que a senhora era
uma lenda, um sonho.
– Lenda? Sonho?
Agora o diretor estava realmente embaraçado. Ficou com
o rosto vermelho.
– Ai, meu Deus. Estou cada vez me enrolando mais. Sou
um bruto, um bruto – tentando mudar de assunto. – A
senhora aceita um café, uma água?
– Água, por favor.
Ele pediu para a secretária, por telefone.
– Olhe, vamos começar tudo de novo. Há mais de
quarenta anos, a passagem Dele por essa escola foi uma

80
experiência, digamos, extraordinária, hummm, diferente,
talvez.
– Posso imaginar ou me lembrar.
– Sim, é claro que eu “não” estava aqui, ou melhor, nem
havia nascido. Mas as histórias ficaram vivas nas memórias,
nesses corredores. E muitas coisas foram passadas entre as
várias, como diria, “gerações” de diretores.
– Há quanto tempo o senhor é diretor aqui?
– Por favor, pode me chamar de você!
– Está bem, há quanto tempo você é diretor aqui?
– Este é o meu terceiro ano. Quando um diretor se
aposenta, o seguinte deve continuar com as “tradições” do
lugar. Principalmente, as criadas por Ele.
– Como repintar a frase na porta da entrada.
– Exatamente! Como repintar a pixassao na porta da
entrada! – depois de uma certa pausa. – Pixassao que, dizem,
foi feita por Ele no seu último dia aqui.
– Sim, com o meu nome!
– Com o seu nome. Por todo esse comportamento, hã,
bizarro, talvez seja essa a palavra, pensávamos que Circe
era uma “invenção” da cabeça Dele. Não imaginávamos
que pudesse ser uma pessoa real. Ainda mais por causa
do conteúdo da frase na porta: aqui nasceu e morreu –
enfatizando o “e morreu” – Circe.
– Imagino – foi o que pude falar.
– Veja, – ele parecia tentar justificar sua falta de fé –
nos últimos tempos de Sua permanência aqui, Ele falava
sozinho. Caminhava pelos corredores conversando com
pessoas imaginárias – fiz uma cara de espanto, como as
lendas podem se formar assim? – e, além do mais, alguns
anos depois, Ele publicou um livro com um conto chamado

81
Circe. O que se fala é que Ele exagerou nos estudos.
– Completou em nove meses um curso de três anos!
– Sim, isso mesmo. Aliás, foi depois deste fato que
acabamos com a possibilidade disso acontecer.
Como é que poderiam achar que Ele caminhava pelos
corredores falando sozinho se era eu quem o acompanhava?
Teria me tornado tão parte Dele que havia ficado invisível?
– Então, a segunda parte da pixação era um mistério
para vocês?
– Segunda parte?
– Sim, “e um dia voltará”.
– Bom, para dizer a verdade, nem pensávamos muito
nisso.
– Parecia mais uma loucura?
– Sim, – constrangido – era isso mesmo.
– Mesmo assim, vocês colocaram o retrato Dele na parede
das celebridades?
– Mas é claro. Além de ter-se tornado um escritor
famosíssimo, talvez um dos maiores deste país, Ele ainda
galgou grandes e importantes degraus na carreira de
tradutor.
– Não é qualquer um que chega a tradutor da Unesco.
– Exatamente!
Fiquei com medo que Martín se empolgasse em falar de
sua profissão. Todos sabem como os tradutores são pessoas
solitárias.
– Bom, mas o importante é que eu existo e, como dizia
a “profecia”, voltei.
Martín não sabia o que falar. Finalmente, levantou-se e
caminhou até um cofre que estava no fundo da sua grande
sala. Aparentemente, um cofre que não guardava grandes

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segredos ou valores, já que estava aberto. Pela idade e aspecto,
provavelmente não era mais possível fechá-lo.
De dentro, empoeirado e meio sujo, ele tirou um envelope.
Mesmo de longe, pude ver o nome Circe escrito. Na frente
do meu nome, a palavra Para.
– Ele, na verdade, deixou este envelope aqui, para o diretor
da época. Disse que era para quando ela/você voltasse. Estas
foram as Suas palavras.
Ele me trouxe o envelope. Por um instante ficou em dúvida.
Seria essa mulher, eu, parada na frente dele, realmente Circe?
Ou apenas uma louca que viu a frase na porta e inventou
toda esta história? Seria uma peça dos alunos? Não seria a
primeira vez!
Pensando que estava pensando tudo isso, tirei meu
envelope da bolsa. Os dois eram idênticos, comprados na
mesma papelaria, escritos no mesmo dia, pela mesma caneta
e pela mesma mão trêmula. Vi a cara de alívio do diretor.
– Não estou inventando essa história – disse.
– Eu sei, me desculpe – ele falou, entregando o envelope.
Abri, dentro havia um caderno Rivadavia vermelho. Fiquei
com medo de folheá-lo. Estava condicionada pelo bilhete que
você havia me deixado.
Martín sentiu minha hesitação mas eu não queria contar
minha história para ele. Abri o caderno e lá estava o original
do conto “Circe”.
Peguei o meu envelope, aquele que Ele havia me deixado,
tirei o caderno vermelho, idêntico ao do diretor e abri. Estava
vazio. Todas as páginas em branco.
Possivelmente pela primeira vez na minha vida, soltei um
palavrão. Tinha começado a odiar Você. Naquele momento.

83
Esta noche me emborracho

– Você não sabe quem eu sou. Mas eu sei quem você é!


Foi assim que começou esta relação. Era um cabaré.
Sentado à mesa, você lutava contra o sono que resulta do
excesso de vinho. Para dizer a verdade, eu não o procurava.
Tinha saído a perambular pela cidade. Porém, reconhecera
o seu futuro quando o vi.
Reconheci quando ouvi sua voz grave que lutava com
argumentos alcoólicos contra amigos que se escondiam
atrás da fumaça de cigarros sem filtro.
– Neste país, os intelectuais estão perdidos – tinha sido
uma das suas últimas frases.
Depois a conversa tinha acabado. Cada um dos presentes
havia entrado em uma espécie de torpor etílico. Ou poderia ser
o fim dos argumentos frente a uma afirmação tão definitiva.
Ou, então, a cantora que subiu ao palco, interpretando
velhos tangos com uma linda voz de contralto.
Não sei, mas os cinco pseudo-escritores sentados naquela
mesa tinham parado de discutir e adormeciam em cada uma
das cadeiras.
– E quem sou eu?
– Um futuro escritor.
Você sorriu. Sim, escrevia pequenos contos. Sim, queria
escrever grandes contos.
– Claro, quem não é um futuro escritor nessa cidade?

85
– Bom argumento.
Você olhou para seus companheiros de bebida. Olhou
para o palco onde a bela cantora interpretava tangos de
Gardel. Parecia querer se localizar, como se não soubesse
onde estava.
– E você, quem é?
– Não sei, qual é o nome que você quer me dar?
– Quer que eu crie um nome para você?
– Um nome, uma história, um futuro. Afinal, não é você
o escritor?
– Eu? Não! Você mesma disse que sou um futuro escritor.
– Futuro escritor famoso. Mas escrever é um ofício,
aprende-se do mesmo jeito que se aprende a cozinhar, a fazer
artesanías.
Ele ficou me olhando, durante um certo tempo. Não
falou nada mas eu sabia em que pensava. Primeiro, avaliava
meu rosto. Depois, meu corpo. Queria descobrir se eu o
agradava.
Eu sabia que sim, que ele se apaixonaria por mim. Pelo
que eu representaria em sua vida.
Depois, ele pensou em vários nomes que combinariam
comigo. O problema era que o álcool atrapalhava. Cada vez
que um nome surgia, ele se esquecia.
– Não faz mal, – falei – temos muito tempo para isso.
– Para quê?
– Para preencher o caderno.
– Caderno ¿Cuaderno de Escritura?
Não respondi. Pensei no futuro. Marquei esse nome. Um
dia, em outra cidade – maior e mais barulhenta que esta – um
outro jovem estaria sentado em frente a uma mesa, tendo esse
mesmo diálogo. E chegando à mesma conclusão.

86
A diferença é que este outro se lembraria.
– O que você quer de mim? – perguntou depois de desistir
da grande tarefa de pensar em um nome que fosse meu.
– Ser sua Musa – respondi.
Ele sorriu.
– Mas é um trabalho muito difícil ser Musa.
– Você acha que eu não estou apta para esse trabalho? –
respondi/perguntei com malícia na voz.
– Teria que fazer um teste – ele respondeu no mesmo
tom.
É tão fácil enganar os homens! Tão fácil conquistá-los! Só
é preciso um pouco de volúpia e sensualidade, que a maioria
se derrete completamente. Não foi diferente com você.
– Olha, eu preciso avisá-la: não tenho um centavo!
– Eu sei. Aliás, vocês escritores são todos iguais.
– Todos pobres.
– Sim, – disse rindo – todos pobres. Mesmo quando ficam
famosos e são adorados, continuam uns pobretões.
– Talvez talento com as letras não signifique talento com
os números.
– Tenho certeza que são excludentes.
Eu me levantei, fingi ir ao banheiro mas o objetivo real
era que você me olhasse, visse meu lindo corpo. Estava
maravilhosa aquela noite com um vestido vermelho que
mostrava minhas coxas grossas e brancas. Com um decote
que insinuava seios perfeitos e rosados.
Deu certo, quando saí do banheiro, percebi que você me
procurava com o olhar. Cheguei sorrindo perto da mesa e
você logo me convidou para sairmos dali.
– E seus amigos?
– Eles não vão se importar.

87
– Mas você deveria se despedir deles. Talvez nunca mais
os veja.
Você não entendeu essa minha frase naquele momento.
Talvez não tenha entendido nunca.
– Para onde vamos?
– Alguma sugestão? – você perguntou.
– Onde você mora?
Gostava de ver o sorriso em seu rosto. Os homens sempre
sorriem da mesma forma na iminência do sexo. Na imaginação
do sexo.
Homens são seres tão simples! Se soubessem disso, a vida
seria tão monótona! Talvez até a arte acabaria.
Quando você percebeu, eu já estava vivendo no seu
apartamento. Há tanto tempo que talvez você nem se
lembrasse mais do dia em que me instalei.
Claro, estava completamente bêbado! E eu cheguei justo
quando você começava a pensar ou repensar o que iria fazer
da vida.
Não existe momento mais vulnerável em uma pessoa. O
momento em que se descobre o que não se quer fazer mas
ainda não se sabe o que se quer fazer.
Vivíamos à beira da miséria. Você mal sobrevivia sozinho
com seu salário de professor, como faria para me sustentar?
Eu, porém, pouco gastava. Milagrosamente o dinheiro
chegava até o fim do mês para pagar o aluguel.
Você não tem a menor idéia mas fui eu que inspirei
suas histórias. As primeiras e todas as seguintes. Claro que
continuava repetindo a fábula de que era sua Musa, mas você
não acreditava. Pobre de ti!
Era um escravo de minhas vontades sem perceber. Devo
dizer, também, que não era culpa sua. Há tantos anos fazia

88
isso que desenvolvi uma técnica, uma sutileza que ninguém
conseguiria evitar.
Ia dominando, tomando conta de seus pensamentos,
me instalando em seus diálogos. E, de repente, você repetia
involuntariamente minhas palavras. Como se fossem suas.
Você foi aos poucos cortando seus laços com a cidade,
com os amigos e a família.
Para servir aos meus propósitos, era essencial que ficasse
egoísta. Que só pensasse em si. E em mim, claro.
Deixei que mantivesse alguns amigos, porque eles
pagavam o vinho que tanto fazia bem a seus sábados. Era
bom vê-lo levemente alcoolizado. Parecia um louco, como se
conversasse sozinho. E isso amedrontava seus companheiros.
Eles se afastavam e você era, cada vez mais, exclusivamente
meu.
Só fiquei preocupada quando você resolveu cursar a Escuela
de Traductores. Ainda era cedo para visualizar uma saída para
sua vida. Eu ainda não dominava seus pensamentos de forma
completa. Você ainda tinha momentos de independência.
Principalmente naquelas férias de verão. Nem sempre o
ócio é a oficina do diabo, como dizem. Pelo menos não
foi para você. Sem as aulas que o aburrian tanto, você se
dedicou a escrever.
Expulsava-me gentilmente do apartamento todas as
manhãs e vivia algumas horas apartado de minha presença.
Talvez tenha sido nesses momentos que pensou na
tradução.
Sempre havia adorado os franceses, a vanguarda
européia. Seria a influência de Fernandez e Borges? Mas
eu tinha um plano.
Você tentou me tirar da sua vida. Não deixei. Deveria ter

89
percebido que estava tentando fugir. Naquela época. Cometi
erros, agora percebo. Pode ter sido excesso de confiança ou
presunção.
O melhor é pensar que aprendi com esses erros. Nas
vezes seguintes, estava melhor preparada.
Meu plano, ou minha mudança de plano, foi inteligente,
isso ninguém pode negar. Fui eu quem coloquei esse sentido
de urgência em sua cabeça. Aumentar muito a necessidade
de mudar, de ir embora.
É claro que o objetivo final não era que você fosse embora
de verdade. O objetivo era que ficasse tão cansado, tão
estressado como se diz nos dias de hoje, que se entregasse
completamente a mim.
Que fosse meu de corpo, alma e mente. Não contava
com o poder curador da literatura. Pelo contrário, escrever
sempre foi, para mim (e para meus outros amores), uma
porta de acesso à loucura. Ser escritor, decidir ser escritor,
sempre foi estar a um passo do abismo.
Maldita hora em que você levou ao pé da letra minha
sugestão. Aquela que eu dei no nosso primeiros encontro: a
de contar a minha história.
Nunca ninguém havia tentado isso antes. Por essa razão,
quando mudamos para aquela pensão sólo para caballeros e
você conseguiu que eu ficasse trancada em um recôndito;
quando você comprou aquele caderno Rivadavia de capa
vermelha; quando passou noites em claro, escrevendo algo
“para mim”, como dizia; não me importei.
Achava sinceramente que você já era meu. Não via como
conseguia me isolar, pensava que eu o dominava. Que o
mundo já se limitava a nós dois. Como toda mulher, achei
que controlava todos os aspectos de sua vida. Que poderia

90
moldá-lo à minha imagem e semelhança. Fui enganada,
completamente. Você me fez de boba.
E o pior é que não fiquei brava com você. Nem mesmo
quando descobri que tinha sido abandonada sozinha naquele
quarto de pensão para morrer de fome e sede.
Fiquei tão fraca que nem mesmo a dona da pensão notou
meu corpo quando abriu o armário para limpar o que você
tinha deixado para trás.
Fui jogada na rua junto com seus restos. Minha única
solução era procurar outro. Alguém que pudesse me
alimentar, me agasalhar. Nunca pensei em procurá-lo de
novo. Seria inútil. Há muitas recaídas, eu sei. Mas também
sou uma jogadora leal. E não sou vingativa.
Acabei em outra cidade. Não vou falar aqui como
aconteceu. Seria necessário outro livro para contar isso.
Conheci outro como você. Mais fraco, mais susceptível. Que
se sentava em um café perto de uma grande avenida. Era de
outro país, de outra cidade, de outra língua. Mas tinha a
alma aqui. Até escrevia em cadernos Rivadavia mas de capas
amarelas. Foi até um dos mais fáceis que já encontrei.
Uma das coisas boas é que apesar de ter ficado famoso
e ter seu retrato pendurado em várias paredes, você nunca
revelou o que aconteceu nos últimos meses de sua vida pré-
fama. Sua biografia me esconde.
Se tivesse revelado tudo o que aconteceu, talvez meu
trabalho fosse bem mais difícil.
O fato de não ser vingativa e de não tê-lo procurado,
não quer dizer que o esqueci. Pelo contrário, não deixei
de pensar em você um segundo. E por todos esses anos,
você foi uma lembrança dolorosa. Só conseguia agüentar
essa coisa que me corroía internamente quando estava com

91
outro futuro escritor que me transformava em outra Musa.
Quando vivia e me alimentava de suas ilusões e desejos.
Só assim. Entre um e outro (sim, foram muitos em
minha vida, não posso nem quero negar), me escondia em
bares decadentes, desses onde se encontra fácil companhia
por uma noite.
Enchia a cara, algo que nunca fiz antes de conhecê-lo
e levava todo tipo de homem para minha cama. Mas não
era a mesma coisa. O prazer sexual não era seguido de uma
boa conversa pós-coito. Até tentei outros artistas. Mas só
os escritores possuem aquele senso de irrealidade que me
apetecia. Cineastas, atores, músicos, todos eles estão muito
ligados à mundanidade do mundo. São patrocínios, ensaios,
relacionamentos e instrumentos. Só o escritor é que precisa
que o mundo não exista para fazer sua arte.
Uma caneta e um caderno. Um lugar seco e quente. Uma
mesa. Para que mais?
O que mudou? Não sei, não sei por que fui procurá-lo
depois de quarenta anos.
Pode ter sido aquele livro rasgado que uma vez encontrei
no lixo perto de um ponto de ônibus. Não foi exatamente
no lixo, foi ao lado da lixeira. Lembro-me de ter pensado:
“Ah, se essa pessoa que jogou fora este livro soubesse como
seria o mundo sem escritores!”.
Era uma edição velha e mal feita. Páginas faltavam. Não
tinha nem capa nem o nome nem o autor. Na verdade, a
história começava na página 43. Mas eu sabia que era seu.
O livro.
E me lembrei. E decidi voltar. E larguei o livro no mesmo
lugar em que o encontrei.
Dali caminhei até meu apartamento. Fiz a mala e peguei

92
um táxi até o aeroporto. Não me lembrei de checar o clima
lá. Sempre fazia mais frio do que aqui.
Nunca cheguei a pesquisar se você tinha voltado. Se
estava vivo ou morto. Simplesmente voltei.
Quando sentei na minha poltrona no avião, desejei
ardentemente que ele se espatifasse assim que passasse por
cima do Uruguai.
Haverá morte mais bela do que nas águas do Río de la
Plata?

93
Mi Buenos Aires Querido

– Qual é o seu nome?


– Roberto, Roberto Guimaranes. ¿Y el tuyo?
– Não sei. Você ainda não criou um nome para mim.
– Sí, es verdad. Todavía no sé el nombre de esta historia, de
este cuento.
Eu tinha saído da sala do diretor, caminhado pelos
corredores escuros e entrado de volta na cidade.
Na rua, você ainda me esperava. O estudante da Escuela
de Traductores. Sabia que você tinha ficado um pouco
obcecado por mim. Quando me viu, abriu um largo e lindo
sorriso.
– Mira, – apontou para a parede – yo me quedé protegiendo
la pintada en la pared.
Não pude evitar o riso. Você tinha bom humor. Há muito
tempo ninguém me fazia rir. Talvez há muitos anos.
Aceitei seu convite para um café. Quando nos sentamos
e o mozo nos serviu, você me contou que era fascinado pela
obra Dele.
– Não quero falar mais Dele, passei muito tempo
pensando, procurando, falando sobre Ele. Agora quero só
ouvir. Me fale de você.
– ¿Yo? ¿Qué puedo decir?
Essa falsa modéstia logo ficou para trás. Você era daqueles
que adoravam falar de si mesmo. Como todo bom escritor.

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Como todo futuro bom escritor.
E você me contou que queria ser escritor. Que até já tinha
publicado uns continhos em uma revista literária. Dessas
publicadas por universitários. E que tinha ouvido elogios.
Mas que sabia que faltava um estilo próprio.
Você é muito novo, ainda. Acho que foi esse o meu
comentário. E percebi que você tinha ficado feliz.
– Sí, ya sé. Tengo mucho tiempo por delante, ¿no?
– Sim, você tem todo o tempo do mundo.
Você também me contou que ainda vivia mais ou menos
com seus pais. Mais ou menos porque seu quarto tinha uma
saída independente para a rua.
– ¡Es casi como tener un departamento propio! – disse com
orgulho. E me convidou para ir conhecer o seu quarto.
– Mais tarde vemos isso.
Perguntei como você escrevia. Qual era a sua rotina.
– ¿Rutina? Yo no tengo una rutina.
– Isso é um erro. Você precisa ter uma. Não existe escritor
sem rotina. Sem um modus operandi, como se diz agora –
você ouvia maravilhado. – Se não estabelecer um, nunca vai
escrever nada.
Abri minha bolsa e tirei o caderno Rivadavia em branco.
Aquele que guardei por quarenta anos crente que ali dentro,
naquelas páginas vazias, estava, talvez, o maior segredo da
minha vida.
Mas ele estava em branco. Não sei se foi maldade sua ou
simplesmente uma piada. De terrível gosto.
Agora, sua lembrança começava a desvanecer. Sua
personalidade ficava embaçada. Pelo que me lembro, você
não gostava de piadas. Estava sempre sério.
– Tenho aqui um caderno em branco. Há anos que o

96
carrego comigo. Como se fosse um caderno que contasse a
história da minha vida. Mas está vazio.
– ¿Como si tu vida estuviera todavía sin escritura?
Foi aí que entendi porque você me deixou o caderno em
branco. Para que eu escrevesse minha vida. Mas demorei
quarenta anos para entender essa sua mensagem.
– Sim, pode ser isso. Um caderno em branco pode
significar um vazio abandonado ou um vazio prestes a ser
preenchido.
Passei o caderno para você. Foi nesse momento que
lembrei de uma noite, há muitos anos, décadas atrás, quando
entreguei esse mesmo caderno para você (Ele) e fiz um
pedido absurdo, um pedido que pode ter sido o detonador
da sua (Dele) pseudo-loucura.
– Queria que você escrevesse a história da minha vida.
Já não sabia se estava falando com você (Ele) ou você
(Você). Parecia que minha vida era uma repetição infindável
de momentos atrasados.
Você pegou o caderno como se ganhasse o presente mais
importante de todos os tempos. Como se fosse o próprio
Necronomicon.
– ¡Pero acá ya hay un título!
Eu não tinha arrancado o adesivo que você (Ele) tinha
colado na capa do caderno.
– O título é a última coisa que se coloca na história –
falei, enquanto arrancava o adesivo do caderno.
Era como se tivesse arrancado você (Ele) da minha vida.
Perguntei mais sobre o quarto/apartamento em que você
(Você) morava. Perguntei se era possível ficar no seu quarto
sem que o resto da família percebesse. Escondida lá.
Pensei na minha casa, naquela outra cidade. Comecei a

97
me despedir daquela outra vida que tinha vivido nos últimos
quarenta anos.
Você pediu uma garrafa de vinho com duas taças, apesar
da estranheza na cara do mozo. Era como se ele não me visse
ali. Bebemos, enquanto a noite caía do lado de fora.
Você abriu o caderno e começou a escrever, não
imaginava que iria começar tão rapidamente. Mas ainda era
um iniciante. Escrevia e riscava, escrevia e riscava. Isso era
bom, não queria que terminasse logo. Não tinha pressa.
Fiquei olhando você escrever, como sempre fazia. Como
era a minha função.
Foi nesse momento que comecei a esquecer aquela outra
língua que tinha aprendido lá naquela outra cidade distante,
agora cada vez mais distante.
– ¿Amor? No podés escribir acá. Hay que esperar hasta la
noche plena. Nosotros dos, sólos en nuestra pieza. Ahí es que
podrás escribir en paz. Sólo podés escribir cuando estemos sólos,
sólo nosotros dos.
Você não falou nada mas fechou o caderno. Olhou
para mim como Ele me olhava. Eu sabia que já estávamos
apaixonados. Percebi, pela janela do bar, o momento em
que as luzes da rua se acendiam. Minha história recomeçava
naquele instante.
Lembrei-me da velhinha na Praça de Maio.
– Todavía hay tiempo, hija. Todavía hay tiempo.
Apesar das luzes fortes, as sombras começavam a
diminuir.
“Eu adoro Buenos Aires” – foi meu último pensamento.

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