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GRUPO I
Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases
simples de Caeiro, na referência natural ao que resulta do pequeno tamanho da sua aldeia. Dali, diz ele,
porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a
cidade…
5 «Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura.»
Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a
metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua
estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me
10 estre-mece no corpo todo.
«Sou do tamanho do que vejo!» Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos,
ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. «Sou do tamanho do que vejo!»
Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se refletem
nele, e, assim, em certo modo, ali estão.
15 E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objetiva dos céus todos com uma segurança
que me dá vontade de morrer cantando. «Sou do tamanho do que vejo!» E o vago luar, inteiramente meu,
começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.
Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria ignorada, de dizer palavras aos
mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade vasta aos grandes espaços da matéria vazia.
20 Mas recolho-me e abrando. «Sou do tamanho do que vejo!» E a frase fica-me sendo a alma inteira,
encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz
indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer.
Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em Turim, que é quase tão frio
como S. Petersburgo — entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira
cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o
quintal.
5 Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de estio, viajo até à minha janela para ver uma nesguita de
Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infân-
cia nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões: pois
tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois
hei de dar-lho. Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar
10 e sentir se há de fazer crónica.
[…]
São 17 deste mês de julho, ano de graça de 1843, uma segunda-feira, dia sem nota e de boa estreia.
Seis horas da manhã a dar em S. Paulo, e eu a caminhar para o Terreiro do Paço. […]
Também são chegados os outros companheiros: o sino dá o último rebate. Partimos.
15 Numa regata de vapores o nosso barco não ganhava decerto o prémio. […]
Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e pitoresco anfiteatro de Lisboa
oriental, que é, vista de fora, a mais bela e grandiosa parte da cidade, a mais característica, e onde, aqui e ali,
algumas raras feições se percebem, ou mais exatamente se adivinham, da nossa velha e boa Lisboa das
crónicas. Da Fundição para baixo tudo é prosaico e burguês, chato, vulgar e sensabor como um período da
20 Dedução cronológica, aqui e ali assoprado numa tentativa ao grandioso do mau gosto, como alguma oitava
menos rasteira do Oriente.
Assim o povo, que tem sempre melhor gosto e mais puro do que essa escuma descorada que anda ao
de cima das populações, e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade, os seus passeios favoritos
são a Madre de Deus e o Beato e Xabregas e Marvila e as hortas de Chelas. A um lado a imensa majestade
25 do Tejo em sua maior extensão e poder, que ali mais parece um pequeno mar mediterrâneo; do outro a
frescura das hortas e a sombra das árvores, palácios, mosteiros, sítios consagrados todos a recordações
grandes ou queridas. Que outra saída tem Lisboa que se compare em beleza com esta? Tirado Belém,
nenhuma. E ainda assim, Belém é mais árido.
Já saudámos Alhandra, a toireira; Vila Franca, a que foi de Xira, e depois da Restauração, e depois outra
30 vez de Xira, quando a tal restauração caiu, como a todas as restaurações sempre sucede e há de suceder,
em ódio e execração tal que nem uma pobre vila a quis para sobrenome.
— A questão não era de restaurar nem de não restaurar, mas de se livrar a gente de um governo de
patuscos, que é o mais odioso e engulhoso dos governos possíveis.
É a reflexão com que um dos nossos companheiros de viagem acudiu ao princípio de ponderação que
35 eu ia involuntariamente fazendo a respeito de Vila Franca.
Mas eu não tenho ódio nenhum a Vila Franca, nem a esse famoso círio que lá foi fazer a velha monar-
quia. Era uma coisa que estava na ordem das coisas, e que por força havia de suceder. Este necessário e
inevitável reviramento por que vai passando o mundo, há de levar muito tempo, há de ser contrastado por
muita reação antes de completar-se…
Xavier de Maistre (linha 3) — alusão ao popular opúsculo Viagem à volta do meu quarto, redigido enquanto este autor francês se
encontrava em prisão domiciliária, em Turim.
5. Faça um levantamento dos aspetos do excerto que apontam para o carácter deambulatório e para a
dimensão reflexiva e crítica da obra a que pertence.
Leia o texto.
Ficou conhecido como o «boom latino-americano»: no fim da década de 1960, o mundo da cultura
ocidental apaixonou-se pela cena literária da América Latina. A faísca desse fulgurante entusiasmo foi a
publicação do livro Cem anos de solidão, obra-prima indiscutível do escritor colombiano Gabriel García
Márquez. No entanto, García Márquez foi apenas a face mais visível de um movimento literário pleno de
5 vitalidade, que atravessou a segunda metade do século XX.
É a geometria pessoal deste movimento que o livro de António Mega Ferreira, Viagens à ficção hispano-
-americana (Arranha-Céus, 2015), procura dar a conhecer — a intenção foi abordar o fenómeno mais numa
perspetiva pessoal do que com qualquer pretensão académica. A obra teve a sua génese num conjunto de
palestras proferidas por Mega Ferreira em Lisboa, integradas na programação de âmbito cultural do El Corte
10 Inglés.
Vamos à viagem: a deambulação literária divide-se em dez capítulos. Cada um deles visita um escritor,
examinando a sua vida e obra de forma integrada e abrangente. Na primeira parte, «Vistas dos trópicos ao
amanhecer», observamos alguns escritores dos trópicos, facetas diferentes do chamado «realismo mágico».
Começa-se por Juan Rulfo, pedra angular de todo o movimento — com uma interessante análise do estilo
15 inovador e vanguardista do autor. Volta-se, depois, o olhar para outros vultos, como o já citado García Már-
quez, Mario Vargas Llosa ou Alejo Carpentier.
Sendo o «realismo mágico» apenas uma das faces deste movimento, a segunda parte do livro — «As
margens do rio de la Plata» — desloca os holofotes para a Argentina e o Uruguai, onde os protagonistas são
o genial Jorge Luis Borges, o seu grande amigo Bioy Casares e também Julio Cortázar e Juan Carlos Onetti.
20 Representam, cada um à sua maneira, uma outra vertente literária: são escritores urbanos, eruditos e deli-
beradamente não realistas, construtores de universos intelectualmente fascinantes e complexos.
A terceira e última parte, «O último selvagem», dedica-se a escalpelizar um escritor enigmático e inclas-
sificável: Roberto Bolaño, autor de uma série de perturbantes ficções no virar do século, com livros como
Os detetives selvagens e 2666.
25 A prosa de António Mega Ferreira revela uma genuína paixão pelo tema, com atenção ao pormenor.
Escreve de uma forma acessível, erudita mas não hermética, e descobre aspetos estimulantes para quem
gosta de livros — a obra abre o apetite para a descoberta de muitos dos escritores em questão.
A biografia, o estilo, os efeitos de linguagem e as características pessoais dos autores são matéria para
um aturado mapa literário, onde não falta a relação de muitos deles com os seus precursores: todos tinham
30 lido William Faulkner, James Joyce, Kafka e Proust, aonde iam buscar as «feitiçarias da forma na ficção,
a sinfonia dos pontos de vista, ambiguidades, matizes, tonalidades e perspetivas», como admite Vargas
Llosa.
É também analisada a relação do movimento literário com a revolução cubana de Fidel Castro. A uto-
pia comunista começou por ser uma fonte de esperança para a primeira geração do boom, mas daria len-
35 tamente lugar ao desencanto e à dor de muitos escritores, por terem feito fé numa revolução traída pelos
próprios mentores.
Viagens à ficção hispano-americana é um compêndio indispensável para se perceber a importância
deste movimento no panorama literário mundial. Menção especial para o grafismo apelativo da capa, um
padrão de malaguetas, espelho de um estilo literário de imaginação tórrida e policromática.
(A) da exposição.
(B) do artigo de opinião.
(C) da apreciação crítica.
(D) do artigo de divulgação científica.
(A) dá a sua opinião pessoal sobre a obra-prima de Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão,
contextualizando-a no panorama da literatura latino-americana da segunda metade do século XX.
(B) apresenta relatos de viagens de um importante movimento literário latino-americano que atravessou a
segunda metade do século XX.
(C) faz uma antologia de textos dos principais autores da literatura latino-americana da segunda metade do
século XX.
(D) apresenta a vida e a obra dos principais autores da literatura latino-americana da segunda metade do
século XX.
7. O último período do primeiro parágrafo (linhas 4 e 5), relativamente à frase anterior, introduz uma
8. Identifique o tipo de coesão que assegura o conector «No entanto» (linha 4).
9. Classifique a oração introduzida por «onde não falta a relação de muitos deles com os seus
precursores» (linha 29).
10. Identifique a função sintática desempenhada pelo constituinte «um padrão de malaguetas» (linhas 37
e 38).
«Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo,
ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre
diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que
deslocar para sentir.»
Livro do desassossego. FERNANDO PESSOA,
edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Tinta-da-China, 2014.
Elabore um texto de opinião bem estruturado, com um mínimo de duzentas e um máximo de trezentas palavras,
em que defenda um ponto de vista pessoal sobre a ideia exposta no excerto transcrito.
Fundamente o seu ponto de vista recorrendo, no mínimo, a dois argumentos e ilustre cada um deles com, pelo
menos, um exemplo significativo.
Observações:
1. Para efeitos de contagem, considera-se uma palavra qualquer sequência delimitada por espaços em branco, mesmo
quando esta integre elementos ligados por hífen (ex.: /opôs-se-lhe/). Qualquer número conta como uma única palavra,
independentemente dos algarismos que o constituam (ex.: /2016/).
2. Relativamente ao desvio dos limites de extensão indicados — entre duzentas e trezentas palavras —, há que atender ao
seguinte:
— um desvio dos limites de extensão indicados implica uma desvalorização parcial (até 5 pontos) do texto produzido;
— um texto com extensão inferior a oitenta palavras é classificado com zero pontos.