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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

AMANDA PATRYCIA COUTINHO DE CERQUEIRA

PARADOXOS DA ATIVIDADE ARTÍSTICA NA NARRATIVA DE MÚSICOS


DENOMINADOS INDEPENDENTES

CAMPINAS

2017
AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior


(CAPES), pelo apoio financeiro no desenvolvimento desta pesquisa. Aos colegas e
amigos anfitriões em São Paulo, pela acolhida, em especial Rafael Toitio, Fellipe
Melo e Ludmila Santos. Aos que me auxiliaram nas entrevistas e aos entrevistados.

Aos professores da UNICAMP que se dedicam de maneira séria e


comprometida à sua atividade, o agradecimento pelo exemplo e respeito. Aos
membros da banca de qualificação, pelas críticas e incentivos. À orientadora, Liliana
Segnini, minha admiração e agradecimento especial pela receptividade e
contribuições no amadurecimento deste trabalho. Aos colegas da UNICAMP, pela
convivência e estímulo no decorrer desta pesquisa.

A todos os amigos que colaboraram de alguma forma na tarefa dos


últimos anos, agradeço e dedico o resultado, do qual são, é claro, inocentes. Meus
sinceros agradecimentos pelo carinho durante esse período. Aos afetos de perto,
pela permanência e continuidade. À Amanda Campos, pela partilha de apreensões
e alívios. À Hanna Brito, pela amizade constante. À Amanda, Marcus, Luanna, Gabi
e Martinha pelo interesse e apoio.

À Katarina Negromonte, pelo incondicional companheirismo e


compreensão.

À Jane, quem me ensina todos os dias a começar de novo.

Aos meus familiares, pelo alento, pela torcida e pela paciência.


Especialmente, a Paulinho, pela sua espontaneidade. À Lúcia Helena, pelo bem-
estar desprendido. À André, pela empatia permanente. À Wilminha, pela
amabilidade do cotidiano. À minha avó, por sua fé e ternura. Aos meus pais, pelo
respeito e atenção aos meus interesses, pelo companheirismo, pelas coisas simples
e pelo amor sem juízo de todos os tempos.
RESUMO

Esta pesquisa pretende investigar as relações de trabalho na indústria cultural, mais


precisamente no campo da música, por meio da análise das atividades de músicos
independentes. As configurações da condição independente na produção cultural
têm sido definidas principalmente pelo financiamento alternativo ao Estado. Neste
estudo, contudo, a proposta é entender o independente enquanto aquele que
desenvolve o seu trabalho de criação, produção, promoção e distribuição de forma
autônoma às gravadoras e conglomerados do entretenimento. Olhar para a
categoria profissional dos músicos pela ótica da sociologia do trabalho colabora para
descortinar a realidade de uma categoria até então pouco estudada no Brasil: a do
artista trabalhador empresário de si mesmo. Trata-se de não somente considerar a
atividade artística como profissão, mas também enquanto expressão paradigmática
das transformações do mercado de trabalho atual. A reestruturação da cadeia da
música estimula a atuação dos artistas independentes. A pesquisa dedica-se, então,
a entender, por meio do mercado e do Estado, mas não somente, as condições de
trabalho dos músicos. Analisar as especificações que permitem desenhar as
morfologias do músico independente colabora para o debate teórico do trabalho
artístico e das políticas públicas setoriais, em suas articulações fundamentais.

Palavras-Chave: Indústria cultural. Trabalho na arte. Política cultural. Músicos –


aspectos sociais.
ABSTRACT

This research aims at investigating working relations in the cultural industry, more
specifically in the field of music, through analysis of independent musicians’ activities.
The configurations of independent conditions in cultural productions have been
defined, mainly, by alternative financing to the State financing. In this study, however,
the proposal is to understand the independent musician as one who develops his/her
creative work, production, promotion and distribution in an autonomously from
recording companies and entertainment conglomerates. Considering musicians
professional category by the perspective of Sociology of Work collaborates with
clarifying a not so much investigated category in Brazil, which is working artist as
his/her own entrepreneur. Therefore, this research not only regards the artistic
activity as a profession, but also as a paradigmatic expression of the present labor
market changes. Rebuilding the music chain stimulates the production of
independent artists. This investigation, thus, focus on understanding musicians work
conditions through both the market, and the State perspectives, besides other
means. Analyzing the specifications that conveys a morphological design of
independent musicians is the basis for theoretical debate on the artistic work, as well
as the sectorial public policies, under their fundamental articulations.

Keywords: Cultural industry. Work in art. Cultural policy. Musicians – social aspects.
LISTA DE FIGURAS E TABELAS

Figura 1 Distribuição de cauda longa ............................................... 33

Tabela 1 Número de empresas, pessoal ocupado total e


assalariado, salários e outras remunerações no total das
atividades e nas atividades do setor cultural | Brasil 2007-
2010 .................................................................................... 84

Tabela 2 Comparação entre ocupados no Brasil, profissionais dos


espetáculos e das artes, por posição na ocupação | Brasil,
103
2011 ....................................................................................

Tabela 3 Força de trabalho do MinC | Brasil 2006-2009 ................... 180

Tabela 4 Evolução do investimento em Mecenato | Brasil 2008-


2011, R$ ............................................................................. 181
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ABMI Associação Brasileira da Música Independente


ABPD Associação Brasileira de Produtores de Discos
ABRAFIN Associação Brasileira de Festivais Independentes
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
BM Banco Mundial
CBO Classificação Brasileira de Ocupações
CC Creative Commons
CERTIFIC Certificação Profissional e Formação Inicial Continuada
CF Constituição Federal
CNAE Classificação Nacional de Atividades Econômicas
CNC Conselho Nacional de Cultura
CNIC Comissão Nacional de Incentivo à Cultura
CNPC Conselho Nacional de Política Cultural
CPCs Centros Populares de Cultura
DAC Departamento de Assuntos Culturais
DIP Departamento de Imprensa e Propaganda
DRM Digital Rights Management
ECAD Escritório Central de Arrecadação e Distribuição
ENECULT Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura
FBA Festivais Brasileiros Associados
FCB Fundação do Cinema Brasileiro
FDE Fora do Eixo
FGV Fundação Getúlio Vargas
FICART Fundo de Investimento Cultural e Artístico
FIRJAN Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro
FMI Fundo Monetário Internacional
FNC Fundo Nacional da Cultura
FNDC Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação
FUNARTE Fundação Nacional da Arte
FUNDACEN Fundação Nacional de Artes Cênicas
FUNDARPE Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco
GAP Grupo de Ação Parlamentar Pró- Música
GPOPAI Grupo de Pesquisa em Política Pública
IBECC Instituto Brasileiro de Educação, Ciências e Cultura
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IFPI International Federation of the Phonographic Industry
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IPETURIS Instituto de Pesquisa, Estudos Capacitação em Turismo
IPHAN Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
MEC Ministério da Educação e Cultura
MEI Microempreendedor Individual
MERCOSUL Mercado Comum do Sul
MES Ministério da Educação e Saúde
MINC Ministério da Cultura
MRE Ministério das Relações Exteriores
MTE Ministério do Trabalho e Emprego
NPI Nova Produção Independente
OEI Organização dos Estados Ibero-Americanos
OMB Organização dos Músicos do Brasil
OMC Organização Mundial do Comércio
ONU Organizações das Nações Unidas
OSESP Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo
OSM Orquestra Sinfônica Municipal
P2P Peer to peer
PAC Plano de Ação Cultural
PEC Proposta de Emenda à Constituição
PI Propriedade Intelectual
PIB Produto Interno Bruto
PNC Plano Nacional de Cultura
PNUD Plano das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PRODEC Programa de Desenvolvimento Econômico da Cultura
PRONAC Programa Nacional de Apoio à Cultura
RBF Rede Brasil de Festivais
SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
SNC Sistema Nacional de Cultura
SNIIC Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais
SIGLA Sistema Globo de Gravações Audiovisuais
SIM Semana Internacional da Música
SPFW São Paulo Fashion Week
SPHAN Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
TIC Tecnologia de Informação e de Comunicação
UBC União Brasileira de Compositores
UNCTAD United Nations Conference on Trade and Development
UNE União Nacional dos Estudantes
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................... 13

I ARTISTAS INDEPENDENTES: CONCEITOS EM DISCUSSÃO ....... 20


I.I Mercado e economia fonográfica ................................................................ 20

I.II Configurações e especificidades ............................................................... 33

I.III Narrativas acerca da independência ......................................................... 35

II TRAJETÓRIA E FORMAÇÃO ........................................................... 47


II.I Genialidade e ócio ....................................................................................... 48

II.II Relações familiares e profissões............................................................... 51

II.III À procura de trabalho e identidade profissional ..................................... 72

III RETRATOS DO MERCADO DE TRABALHO ARTÍSTICO .............. 76


III.I Condições estruturais ................................................................................ 77

III.II Imaterialidade e mito ................................................................................ 85

III.III Facetas da precarização .......................................................................... 96

IV ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E MODELOS DE NEGÓCIOS.. 111

IV.I Distribuição ...............................................................................................111

IV.II Meios de comunicação tradicionais ......................................................125

IV.III Consumo e recepção .............................................................................135

V VIVER DE MÚSICA ......................................................................... 139


V.I Indústria do show ......................................................................................139

V.II O músico empreendedor .........................................................................149


V.III Migrações artísticas ................................................................................161

VI POLÍTICA CULTURAL NEOLIBERAL ........................................... 169


VI.I Escolha do Estado....................................................................................169

VI.II A era dos projetos ...................................................................................185

VI.III Independência e políticas públicas.......................................................195

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 198

REFERÊNCIAS ................................................................................... 208


13

INTRODUÇÃO

A principal pergunta sociológica que orienta a discussão desse trabalho


pode ser assim resumida: Quais as configurações e especificações que permitem
desenhar as genealogias dos músicos independentes, tendo em vista o contexto
econômico, político e social no qual é constituído o trabalho artístico? Ao longo desta
pesquisa, essa indagação desdobra-se em outros questionamentos: O que distingue
o trabalho artístico de outros tipos de trabalho? O que significa a vivência da
independência nas atividades culturais, especialmente a partir da reestruturação na
indústria musical? Qual a influência da política neoliberal no trabalho artístico
considerado independente? Independente em relação a quê? Por quê? Uma relação
estética e/ou uma contingência de mercado? É possível falar em graus de
independência? Existem diferenças entre produções independentes e a indústria
cultural? Em que medida a indústria cultural cria a ilusão da independência?
Finalmente, o que poderia ser entendido como independência para fins de políticas
públicas aptas a viabilizar a descentralização e diversificação da produção cultural?

Na tentativa de refletir sobre essas perguntas, esta pesquisa entrevistou


22 artistas, cujo viés de seleção considerou como independente aquele que tem a
música como única, senão principal, atividade; e desenvolve seu trabalho de
criação, produção, distribuição e promoção de forma autônoma às
gravadoras/distribuidoras, ou seja, sem intermediários. O estudo partiu de uma
inserção de campo qualitativo nas cidades de Recife e São Paulo, em razão do
trânsito da pesquisadora, mas também pela dimensão da prática musical
conceituada como independente, a qual vem sendo sustentada de forma diferente,
de acordo com as especificidades mercadológicas e políticas de cada cidade. A
abordagem qualitativa se mostrou adequada para captação de estruturas
complexas, seus processos, contexto e inter-relações, no sentido de entender o
modo como a experiência social é criada e adquire significado. A entrevista contou
com uma organização livre em profundidade e semiestruturada, no intuito de
valorizar a chance do entrevistado em dizer o que ele considera mais importante
sobre a sua realidade, enfatizando as singularidades de um fenômeno e suas
14

diferentes perspectivas. O roteiro aberto sofreu alterações de acordo com a trajetória


de cada entrevistado previamente pesquisado.

Os processos inerentes à construção das entrevistas e análise das


diferentes histórias de vidas são esforços em explorar referências que, ao final, se
traduzem em importantes aspectos das estruturas sociais. Nessa direção, as
entrevistas exploram variáveis, como: sentidos do trabalho artístico; estruturas de
remuneração; relações familiares e de formação; locais de fala e migrações
artísticas; concepções acerca da independência; fator contingência mercadológica;
heterogeneidade/polivalência e empreendedorismo cultural; modelos de negócios;
políticas públicas e meios de comunicação; órgãos de representação; relações de
gênero, etnia e sexualidade. Trata-se de uma tentativa de descortinar as condições
de sobrevivência na música considerada independente, tendo em vista as diferentes
realidades e contextos em que esses trabalhos são desenvolvidos. Trata-se também
de compreender as dificuldades, frustrações e conquistas vivenciadas no cotidiano
dos músicos, que informam as relações sociais vividas e suas contradições. Em
outros termos: diante das tensões e dinâmicas decorrentes do novo papel social e
econômico dos artistas-empreendedores, quais os significados de “viver de música”?

Em seu estudo sobre Mozart, o alemão Norbert Elias (1995) elabora um


modelo teórico para análise sociológica do artista, o qual recupera as dimensões
ontogênicas do momento histórico para entender as pressões sociais que agem
sobre o indivíduo. O autor (ELIAS, 1995) demonstra que o artista sempre esteve
ligado a estruturas sociais que lhe possibilitaram a realização do seu trabalho em
determinadas condições históricas e sistemas de interações, denominado de
configurações. Ao elaborar indagações sociológicas para compreender a relação do
artista no contexto da Corte, Norbert Elias (1995, p. 62) analisa o significado de ser
socialmente reconhecido como artista e ser, ao mesmo tempo, capaz de alimentar
sua família. Conforma explicitado por Liliana Segnini (2014, p. 77), na sociedade
contemporânea, na qual novas dimensões se colocam e outras tantas são
reiteradas, a investigação de Elias parece ser ainda mais urgente, com significações
diversas a ser exploradas. Nesse sentido, é um desafio para as ciências sociais
entender quais as configurações que imprimem as genealogias do artista, em suas
relações de dominação, exploração e autonomia.
15

As particularidades da análise das configurações dos músicos


independentes relacionam-se às transformações promovidas pelas tecnologias da
informação e da comunicação, assim como são parte de um contexto mais amplo
que informam o movimento de legitimação, proeminência e conveniência da cultura
e do entretenimento dentro da cadeia produtiva recente, enquanto importante esfera
econômica e de linguagem simbólica, política e social. O crescimento das indústrias
culturais, durante todo o século XX, que possibilitou a expansão da arte na forma de
mercadoria, hoje impulsiona e intensifica o trabalho artístico. Cada dia mais as
pessoas se ocupam das atividades culturais. Nas duas bases de dados que
permitem uma referência ao trabalho artístico no Brasil (IBGE/PNAD e MTE/RAIS),
observa-se um crescimento do número de profissões relacionadas ao campo cultura
e do espetáculo (dos quais os músicos representam o maior crescimento em
números absolutos) comparado com o mercado de trabalho no país. A ênfase
cronológica desta pesquisa se dá a partir dos anos 1990. Nesse período, se
intensifica a Nova Produção Independente (NPI) na indústria da música brasileira, ao
mesmo tempo em que setor cultural do país experimenta as acentuações das
políticas neoliberais.

Inaugurada em meados do século XVII e consolidada entre os anos 1960


e 1990, a concepção de cultura como recurso (YÚDICE, 2006), tem atraído cada vez
mais investimentos para as indústrias culturais e colocado em pauta a perspectiva
do gerenciamento e racionalidade administrativa na área. Proliferam-se as diversas
organizações agenciadoras de cultura, chamando a atenção de teóricos, governos,
empresariado, terceiro setor, regulamentações comerciais, jurídicas e bancos de
desenvolvimento. Na emergência de conceitos como economia da cultura, economia
criativa e (re)teorizações contemporâneas do trabalho imaterial, a cultura é inscrita
na agenda do empreendedorismo. Para entender em quê se traduz estes termos, a
relação entre trabalho e atividade artística é base teórica para o desenvolvimento
desta tese e leva em consideração sociólogos que abordaram os temas analisados
em diferentes pontos de vistas (ANTUNES, 2009; BECKER, 2006; BENHAMOU,
2007; COLI, 2006; COULANGEON, 2004; MENGER, 2005; PICHONERI, 2011;
REQUIÃO, 2008; SEGNINI, 2012).

A principal hipótese analítica desta pesquisa configura o trabalho artístico


enquanto laboratório de flexibilidade em uma economia política das incertezas
16

(MENGER, 2005), cujas representações de independência evidenciam as práticas


de precariedade nesse tipo de atividade. As conclusões das análises acerca do
trabalho artístico na França apontam para a ironia evidenciada por Menger (2005, p.
109): as artes que, desde há dois séculos, têm cultivado uma oposição radical em
relação ao mercado, aparece exatamente como precursora na experimentação da
flexibilidade, ou até da hiperflexibilidade em um mercado de trabalho
ultraindividualizado e inspirado na política cultural neoliberal. A produção
independente não apenas estaria incluída nesse contexto econômico e político,
como seria a expressão paradigmática de uma inclusão ainda mais subsidiária,
cooperada, especializada e precária no mercado cultural.

Para elucidar os sentidos do trabalho artístico e os significados da


independência, as discussões dessa tese são apresentadas em seis capítulos. O
primeiro capítulo denominado Artistas independentes: conceitos em discussão parte
da pertinência analítica do sociometabolismo do capital de István Mészáros (2011)
para situar o processo de reestruturação do capital e a emergência da cultura. O
objetivo é analisar as estruturas que atuam no campo artístico, as mediações
recíprocas que constituem a indústria da música no Brasil e a atuação dos músicos
independentes. Destaca-se a noção de cadeia produtiva da musica, enquanto
conjunto de atores e processos que conformam o panorama de produção musical.
Sua sistematização está associada ao tripé produção – distribuição – consumo.
Autores que analisaram o desenvolvimento da indústria fonográfica no Brasil
(CAZES, 1998; DIAS, 2000; MARCHI, 2006; MORELLI, 2009; PINTO, 2011; VAZ,
1988; VICENTE, 1996) contribuem para a identificação de momentos relevantes em
sua história. Na compreensão das relações de mercado e economia fonográfica é
possível discutir as diferentes configurações da independência hoje, tendo em vista
a narrativa dos músicos entrevistados.

O Capítulo II Trajetória e formação parte do conceito de


interseccionalidade de Angela Davis (2016) para explorar classe, raça e gênero dos
entrevistados, no intuito de analisar como as diferentes opressões se combinam e se
entrecruzam informando os itinerários artísticos. Esse caminho conceitual é
acompanhado de variáveis como idade, região e orientação sexual, indicativos da
dinâmica complexa abordada pela socióloga francesa Danièle Kergoat (2010) em
seu conceito de consubstancialidade nas relações sociais. A perspectiva biográfica e
17

a valorização da experiência é a vereda metodológica utilizada para entender as


dimensões das atividades artísticas, a criação de suas acepções e suas
consequências na vida dos entrevistados. Autores que se dedicaram a estudar a
ideia do artista no tempo (DURAND, 1989; WARNKE, 2001) contribuem para a
análise da construção histórica que relacionada a atividade artística à genialidade,
cuja ênfase coloca o trabalho artístico como exceção às outras práticas, ofuscando e
idealizando a sua compreensão. A questão central que se coloca nesse capítulo é a
dos mecanismos que fazem aparecer ou celebrar “talentos” e os modelos de
organização de sociedade que daí derivam.

O terceiro capítulo chamado Retratos do mercado de trabalho artístico é


uma tentativa mais próxima de contribuir para uma análise sociológica da arte na
perspectiva da categoria trabalho. Trata-se de integrar a atividade artística na esfera
do trabalho e dos constrangimentos que são singulares e que a constituem,
exaltando suas peculiaridades. Para essa tarefa, o capítulo analisa as condições
estruturais exploradas pelos estudiosos das indústrias culturais (ADORNO, 2002;
BENJAMIN, 1994), as relações entre economia e cultura na contemporaneidade, o
mercado de entretenimento global e suas desigualdades regionais. Na “nova
economia”, as análises do modo de produção tem intensificado um instrumental
teórico que reserva lugar privilegiado ao trabalho imaterial. Esse capítulo
problematiza a investigação do trabalho imaterial realizada pelos chamados
neomarxistas (NEGRI; LAZZARATO, 2001; GORZ, 2009) para incluir pressuposto da
produtividade, segundo o arcabouço analítico marxiano. A finalidade da reflexão é
demonstrar como a sociopolítica da cultura tem sido composta de contradições para
o trabalho artístico, tendo em vista as facetas da precarização presentes na inserção
das subjetividades artísticas no contexto mercadológico.

O capítulo IV Organização do trabalho e modelos de negócios analisa o


desenvolvimento dos sistemas técnicos que propiciam novas vias de acesso à
música, ao mesmo tempo em que influencia as práticas dos atores envolvidos nessa
cadeia. Por um lado, observa-se o esforço das inúmeras estratégias das gravadoras
e distribuidoras em manter sua relevância enquanto intermediárias, historicamente
oligopolizadas. Por outro, brechas se abrem e se alargam para a atuação dos
músicos independentes. Os resultados dessas tensões estão presentes nos dados
da indústria da música hoje. Nesse contexto, emerge em importância a discussão
18

dos meios de comunicação tradicionais – rádio e TV – na estruturação do mercado


musical, bem como a responsabilidade do poder público no tema. Finalmente, o
capítulo faz uma relação entre o uso da internet e a recepção da música
considerada independente. A partir da lógica da distinção de Bourdieu (2008), são
abordadas as capacidades de produzir práticas e obras classificáveis, além da
capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas, constituindo o mundo social
representado, segundo um universo simbólico muito específico.

O quinto capítulo Viver de música investiga as formas que os músicos


encontram de encarar os desafios do trabalho artístico e como eles se percebem
nessa conjuntura. Cuida-se de uma investida em avaliar as estruturas de renda
básica dos músicos tendo em vista a centralidade da indústria do show hoje, as
formas de contratos e cachês, a dinâmica dos festivais independentes e suas
remunerações. Nesse quadro, analisam-se o engendramento de um comportamento
empreendedor, assim como sua institucionalização. A autogestão e o
empreendedorismo de si mesmo guardam suas vinculações com as faces da
precarização, assim como são parte das contradições do trabalho artístico. Esse
capítulo também explora as migrações artísticas e os aspectos mercadológicos,
econômicos e políticos presentes nas cidades de São Paulo e Recife, para
contextualizar as perspectivas que o viver de música independente assumem em
cada espaço específico.

Por último, o Capítulo VI Política cultural neoliberal recupera a trajetória


histórica das políticas públicas setoriais como fator que atua sob as condições da
atividade artística. Trata-se de desenhar a construção do campo cultural no Brasil no
intuito de informar o percurso, a escolha e o lugar do Estado. Pesquisadores atentos
às políticas culturais (CALABRE, 2009; CHAUÍ, 2006; RUBIM, 2008; WU, 2006)
auxiliam a entender o ambiente de crescente participação das empresas no
financiamento do trabalho artístico, cujo corporativismo preconiza o processo de
hegemônico de privatização dessa gestão hoje. Acentuam-se a centralidade dos
interesses empresariais, o crescimento do mercado de projetos, os gestores
especializados em editais, a burocracia cultural e as desigualdades regionais de
recursos. A partir dessas reflexões, o capítulo procura contribuir para a elaboração
de uma definição conceitual do músico independente, tendo em vista a ideia de
19

critérios para prioridades nas políticas públicas no que se refere aos incentivos, no
propósito de descentralizar a produção e a distribuição dos recursos culturais.

Esse trabalho ainda conta com registro audiovisual do campo,


considerado como meio de análise, interação, desdobramento e propagação da
pesquisa, ampliando a possibilidade metodológica, de linguagem e de comunicação.
A escolha dessa técnica também serve à desmistificação da ideia de dom ou talento
natural que permeia o trabalho do músico. Se o trabalho artístico, especialmente o
musical, seria o principal reino da criatividade, da abstração e do tempo livre, área
da emancipação e da subjetividade, o registro audiovisual auxilia a inserção dessa
atividade no mundo real, não como produto de um estágio de inspiração quase
sempre fetichizada, mas também como processo (também) de trabalho consciente e
racional.

De todas as profissões reconhecidas pela sociedade industrial


contemporânea, aquelas ligadas às artes são as menos estudadas. Além de se
constituíram um campo econômico recente, trazem em torno de si ambiguidades
conceituais que não são tratados pela sociologia e que fogem, de certo modo, ao
quadro temático estudado pela sociologia do trabalho. Esta pesquisa se propõe a
apresentar um conjunto de reflexões na tentativa de contribuir para o debate teórico
acerca do trabalho artístico, em meios às discussões de regulamentações e políticas
públicas culturais, da comunicação e do trabalho, em suas articulações
fundamentais.
20

I ARTISTAS INDEPENDENTES: CONCEITOS EM DISCUSSÃO

A primeira dificuldade metodológica desse trabalho encontra-se na


definição do músico independente. Sua historicidade frequentemente ligada à
reestruturação da indústria fonográfica estadunidense não deve ser aplicada por
simples analogia à indústria brasileira sem que ocorram generalizações analíticas.
Mesmo assim, existe uma conexão entre um processo universal que se particulariza
com contradições: a reestruturação do capital nas diferentes esferas produtivas,
entre elas a cultura. Por isso, o campo analítico em que se situa a discussão do
trabalho artístico musical independente é parte do contexto mais amplo que o
filósofo húngaro István Mészáros (2011) chamou de sociometabolismo do capital.

Mészáros (2011) parte do núcleo formado pelo tripé Capital, Trabalho e


Estado para analisar as bases materiais sobre as quais se fundamentam as
condições de produção e reprodução social no capitalismo contemporâneo.
Reconhecer a dimensão das estruturas sociais que atuam no campo artístico é
importante para compor as múltiplas facetas do trabalho artístico independente,
cujas tensões se caracterizam pelo complexo inter-relacionado dessas mediações
recíprocas. Enquanto a indústria da música (da qual faz parte a indústria fonográfica)
emerge com destaque no mercado cultural, sua organização ao longo do tempo
anuncia, assim como ajuda a explicar, as diferentes formulações do conceito de
músico independente hoje.

I.I Mercado e economia fonográfica

A música destaca-se na paisagem midiática contemporânea quanto à


intensidade de sua mundialização. Seus formatos e reprodutores praticamente
eliminam fronteiras para a sua difusão. A ênfase da música na expansão e
consolidação da indústria do entretenimento é identificada na sua especificidade. Do
conjunto das mercadorias produzidas na indústria cultural, a música se distingue por
meio da grande interação que estabelece com todos os meios de comunicação,
sobretudo no seu engajamento com a forma. A mercadoria musical, além de poder
21

ser ouvida no reprodutor fonográfico de cada um a partir do ato de compra ou


escolha do formato, está presente no rádio, na TV, no cinema, na publicidade, nos
computadores.

Ao mesmo tempo em que há uma crescente mundialização da música no


contexto das indústrias culturais, destaca-se que a indústria fonográfica se
caracteriza, historicamente, como setor de grande concentração e rentabilidade de
oligopólios. Isso pode ser explicado por meio da produção dos meios técnicos,
necessários à acumulação, que fez surgir o mediador que é também o investidor. A
economia de modo mediado também é a que mais sente o impacto das alterações
tecnológicas em sua organização produtiva e distributiva. A contradição presente no
movimento geral da indústria fonográfica pode ser assim resumida: a indústria busca
a acumulação por meio da tecnologia, essa tecnologia ao mesmo tempo em que
favorece a acumulação da indústria coloca em questão a própria necessidade da
indústria enquanto mediadora. A relativização da importância da indústria, por sua
vez, aflora uma crise, até que a indústria, finalmente, provoca uma reorganização.

Para compreender as ambiguidades presentes no movimento geral de


reorganização da indústria fonográfica que intensifica a atuação dos músicos
independentes, o pesquisador Luiz Carlos Prestes (2004, p. 34) ressalta a
pertinência da noção de cadeia produtiva da música, enquanto conjunto de atores,
processos e ambientes que conformam o panorama de produção musical. Sua
sistematização está associada ao tripé produção – distribuição – consumo, cuja
estrutura organizacional informa os diversos atores dessa cadeia, assim como as
formas peculiares de subordinação do trabalho.

Essa história pode ser contada a partir do momento em que o ouvinte


pode levar para casa não apenas a partitura que poderia ser executada por seu
piano, mas também a música executada1. Marcia Dias (2000, p. 43) analisa a fase
inicial da indústria fonográfica, mecânica e elétrica, em que o trabalho dentro do
estúdio se resumia a reunir os músicos contratados pela gravadora na sala de

1 O engenheiro de produção Davi Nakano (2010, p. 629) explica que até o final do século XIX, o
consumo de música só era possível em apresentações ao vivo, já que não havia tecnologia de
gravação de som comercialmente viável. Naquele contexto, a produção e o consumo de música se
organizavam ao redor das editoras e publicadoras de partituras musicais. Com a invenção do
fonógrafo, durante as primeiras décadas do século XX, diversas empresas começaram a produzir e
comercializar equipamentos de reprodução, popularizando marcas como a Gramophone e a Victrola.
22

gravação, posicioná-los a distâncias variáveis do microfone em função do volume


relativo que cada instrumento deveria ter sobre o conjunto, abafá-los, se fosse o
caso, e depois gravar a música o número de vezes que fosse necessário até a
obtenção do registro considerado ideal. A gravação se limitava a ser o registro do
desempenho real do artista, uma vez que o produtor do fonograma ou o engenheiro
do som não modificavam qualitativamente o produto. Diante dessa configuração, o
economista José Paulo Pinto (2011, p. 84) afirma que, nas duas primeiras fases da
indústria fonográfica, a subordinação do trabalho dos músicos era apenas formal,
típica da manufatura.

A partir dos anos 1970, a estrutura organizacional da indústria da música


se complexifica, permitindo uma análise mais apurada das relações sociais de
trabalho e de produção no setor, enquanto ramo da indústria cultural. A antropóloga
Rita Morelli (2009) esclarece que a estrutura organizacional da indústria da música
dessa época apontava para a clara distinção entre atividades criativas e artísticas,
de um lado; e o trabalho voltado para a produção material, de outro. A visão dualista
ou dicotômica do processo de produção podia ser observada na organização dos
espaços, nucleados em dois ambientes. Nos estúdios, terreno de atuação dos
músicos, intérpretes, produtores e técnicos de som produtores da denominada fita
máster, espécie de matriz do material sonoro dos futuros fonogramas. E na fábrica,
onde atuavam trabalhadores que transformavam aquele material no produto final, o
disco, em condições de ser distribuído e comercializado.

No decorrer dos anos 1970 observa-se a progressiva especialização


dessa organização produtiva na indústria da música. Trata-se da verticalização e
hierarquização dos departamentos das gravadoras em diversos setores segundo
padrão fordista de produção. Tal situação indicava uma estrutura bem mais
complexa de profissionais distribuídos em diferentes áreas: artística (equipes de
produção, composta por orquestradores, regentes e produtores; técnica
(especialistas em áudio e eletrônica); comercial (marketing, capa/embalagem,
produção, distribuição e promoção dos discos); e industrial (matrizes). Os enormes
quadros de trabalhadores das gravadoras multinacionais que atuavam no Brasil
refletiam essa estrutura. José Paulo Pinto (2011, p. 42) relata que a Phonogram, por
23

exemplo, que contava com 170 empregados e 150 artistas em 1968, passou a ter,
em 1974, o contingente de 500 empregados para atender apenas 28 artistas.

A consolidação da indústria fonográfica brasileira nos anos 1970, ao


elevar a divisão do trabalho, trazia consigo também complexidade maior em relação
à remuneração dos trabalhadores, fazendo com que cada grupo se relacionasse de
forma diferente com a gravadora. José Paulo Pinto (2011, p. 77) afirma que a forma
salarial era geralmente restrita aos técnicos de estúdio e aos trabalhadores de
reprodução de discos e fitas. Os músicos (os de apoio, e não os intérpretes
principais) usualmente recebiam cachês por empreitadas (gravações) e, quando não
cediam todos os seus direitos às gravadoras, recebiam pequena parcela da quantia
arrecada pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), que
remunera os direitos conexos ao direito do autor. No caso dos autores (ou
compositores) normalmente havia participação percentual nas vendas dos discos. Já
os intérpretes cediam às empresas os direitos exclusivos sobre as suas
interpretações – por até 10 anos, em alguns casos – recebendo em troca quantia
fixa e/ou participação na venda dos discos (que não chegava a 5% do preço do
varejo).

Segundo Morelli (2009, p. 47), durante a década de 1970 no Brasil, a


indústria do disco crescia a taxa média de 15% ao ano, acompanhando o
crescimento acelerado do mercado de bens de consumo, em especial o mercado de
aparelhos de reprodução sonora. A partir de 1976, empresas estrangeiras vieram a
se estabelecer no país, cujos efêmeros sucessos internacionais deram lugar à
conquista da “franja” do mercado brasileiro de disco. Intensifica-se a consolidação
do mercado de discos no Brasil, cujo marco mais citado é o lançamento da etiqueta
Som Livre pelo Sistema Globo de Gravações Audiovisuais (SIGLA). A etiqueta das
trilhas de novelas desponta em 1977 como líder do mercado brasileiro de discos.

Cresce cada vez mais a importância do trabalho do produtor artístico,


enquanto criador dos aspectos mercadológicos da produção fonográfica. Nesse
contexto, ainda que a atividade dos músicos fosse absolutamente necessária ao
desenvolvimento da indústria da música, o avanço da racionalização econômica na
indústria fonográfica relativiza a autonomia e criatividade artística, subjugada pelo
papel do produtor. Nesse sentido, o trabalho dos músicos se torna cada vez mais
24

produtivo porque se destina ao mercado e aos seus constrangimentos. A


pesquisadora Luciana Requião (2008, p. 23) descreve que o olhar estratégico do
produtor era capaz de criar produtos com elevados potenciais de venda, o qual era
responsável pelo surgimento comercial de uma grande diversidade de artistas e
segmentos musicais.

O mercado brasileiro de discos chega ao último ano da década de 1970


em 6º lugar no ranking mundial. Durante toda a década de 1970 é possível concluir
que a indústria fonográfica se estruturou de forma verticalizada, complexa e
hierarquizada, cujo papel central era atribuído ao produtor artístico. No entanto,
durante a década de 1980 a venda de suportes físicos diminuiu consideravelmente.
José Paulo Pinto (2011, p. 104) desta que embora a conjuntura macroeconômica
não fosse a única explicação para a crise do setor, a diminuição do ritmo de
acumulação do capital global que ocorreu durante a década de 1970 afetou as
principais indústrias fonográficas internacionais e nacionais. Aliadas a esse fato,
surgem as fitas cassetes e suas cópias domésticas, as quais embaraçam a utilidade
dos discos.

No mercado estadunidense consolida-se o processo de reestruturação


produtiva da indústria fonográfica, cujo modelo aberto de acumulação pós-fordista
flexibiliza e desverticaliza a produção. Entre as estratégias encontradas pela
indústria fonográfica para manter ou aumentar a sua margem de lucro, destaca-se a
aceleração do processo de terceirização produtiva. O lema do it yourself fortalece a
formação de pequenas empresas fonográficas que possuem meios próprios de
produção, colocando em relevo as relações entre o indivíduo empreendedor
autônomo versus a América corporativa. A figura do músico independente passa a
ter maior visibilidade, ao mesmo tempo em que a indústria se concentra nas tarefas
de distribuição e promoção. A reestruturação da cadeia econômica musical
representa um novo contexto social, de forte influência tecnológica e elaborado a
partir de um rearranjo de critérios.

No Brasil, embora não se possa falar propriamente em uma


reestruturação de um regime fordista para um regime pós-fordista na indústria
fonográfica, é possível destacar as mudanças das relações sociais de trabalho e de
produção entre artistas e gravadoras de discos. O sociólogo Eduardo Vicente (1996,
25

p. 102) analisa o conjunto de inserções tecnológicas no fazer musical a partir de


1980 que torna viável a terceirização da produção. O quadro de pessoal da indústria
fonográfica é substancialmente diminuído. Os profissionais da música passam a
atuar, cada vez mais, de forma autônoma. Sob sua responsabilidade está a
minimização dos riscos e custos assumidos pelas grandes gravadoras, assim como
o papel de descobrir talentos e renovar o setor.

Desestabiliza-se a clássica distinção de tarefas entre as atividades


artísticas e técnicas sobre a qual se assentava a própria hierarquia da indústria
fonográfica nos anos 1970. Um conjunto de procedimentos tecnológicos passa a ser
introduzidos na produção e faz com que a gravação faça parte do próprio processo
de composição musical. A partir da reorganização produtiva na cadeia da economia
musical nacional, o processo de criação passou a ser influenciado pelas
possibilidades de edição, resgate de obras, sampling, reapropriação, entre outros
mecanismos técnicos2.

O embaralhado das fronteiras, proporcionado pelos equipamentos que


permitem a integração de múltiplas funções, sugere aos músicos a necessidade de
formação técnica e musical mais complexa, capaz de lhes permitir a realização das
diversas etapas do processo de produção musical. O conhecimento necessário para
a operação dos novos meios tecnológicos passa, frequentemente, pela aquisição do
próprio equipamento. Diante disso, as possibilidades de produção musical, para o
artista, se tornam cada vez mais ligadas à aquisição dos recursos tecnológicos que
possibilitam essa criação, de forma que o músico é cada vez mais submetido à
estrutura de produção/consumo no fazer musical. Proliferam-se o surgimento dos
estúdios caseiros. Estavam reunidas as condições para a consolidação de uma
produção e, posteriormente, de uma cena independente brasileira.

2 Vicente (1996, p. 45) elenca a importância dos seguintes equipamentos tecnológicos relacionados à
produção: samplers, sintetizadores, drum machines, sequencers, módulos, multi-timbrais, módulos de
efeito, gravadores digitais, dawes, softwares, arranjadores. E explica algumas funções básicas: o
sampleamento: envolve a digitalização de quaisquer amostras sonoras e seu posterior
processamento, armazenamento e produção; a sintetização: incorpora as amostras sonoras e
equipamentos que permitem a execução de trilhas musicais complexas a partir de uma única fonte; o
sequenciamento: programação de diferentes trilhas instrumentais de uma música a partir de
programas de computador ou aparelhos eletrônicos (os sequencers), que podem então ser
reproduzidas em estúdios ou em apresentações ao vivo. Essas técnicas permitem uma ampliação do
grau de manipulação do som, uma vez que digitalizado ele pode ser copiado (e reproduzido em outro
trecho da música), acelerado, retardado, distorcido, transposto, afinado etc.
26

O compositor e arranjador brasileiro Henrique Cazes (1998) historiciza a


música independente nacional a partir do registro de Chiquinha Gonzaga.

Entre tantos pioneirismos da vida da compositora, a produção


fonográfica independente foi um deles. Chiquinha (Gonzaga) e o
marido João Batista abriram uma fábrica de discos no bairro do
Engenho Novo (na cidade do Rio de Janeiro). Mesmo tendo durado
pouco (1920 a 1922), a gravadora serviu para lançar artistas
importantes (...). Mais tarde, Antônio Adolfo liderou o movimento da
produção independente, mas teve o juízo de não abrir uma fábrica
(CAZES, 1998, p. 39).

Além de Chiquinha Gonzaga, citam-se como primeiras experiências


independentes de gravadoras, ainda em 1929, as produções de Cornélio Pires e
Carmen Miranda3. No entanto, a cena independente tem como marco histórico mais
citado o lançamento do disco “Feito em Casa”, em 1977 (selo musical “Artezanal”),
por Antonio Adolfo, após inúmeras recusas de gravadoras atuantes no país em
contratar o seu trabalho. No mesmo período, outros artistas brasileiros já
fomentavam o debate sobre a independência, produzindo e gravando os seus discos
às próprias custas. É o caso do lançamento do LP Paêbiru de Zé Ramalho e Lula
Côrtes em 1972 – entre outros títulos produzidos de modo autônomo nos estúdios
da gravadora pernambucana Rozenblit – assim, como a edição do disco de bolso
d´O Pasquim, o Tom de Jobim e o Tal de João Bosco, no mesmo ano.

Experiências como as citadas acima estimularam o lançamento de


diversos trabalhos independentes. Esse processo culmina na emergência, a partir de
1982, da Lira Paulistana, a qual, embora não tenha significado uma novidade no
marco precursor da música considerada independente no país, representou a
passagem de experiências isoladas, para uma atitude coletiva. A criação musical de
Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e outros artistas na década de 1970 encontrara
um local de convergência, um ponto de encontro. Naquele contexto, Gil Nuno Vaz

3 Em 1929, Cornélio Pires tomou a iniciativa de produzir um disco de violeiros da região de Piracicaba
(interior de São Paulo). Em fins da década de 1970, passou a ser considerado o pioneiro no mercado
de música sertaneja além de símbolo da produção independente. Também é citada como iniciativa
independente a gravação do primeiro 78 r.p.m de Carmen Miranda pela gravadora Brunswick, em
1929.
27

(1988, p. 26) avalia que o critério principal de definição do independente era a


insubmissão mercadológica e estética às exigências das grandes gravadoras. Na
leitura do texto de Vaz (1988) percebe-se, contudo, uma imprecisão sobre a
característica fundamental que distinguiria o músico independente desse período. A
independência se caracterizaria por uma relação econômica de produção, única via
de acesso ao mercado, portanto uma contingência mercadológica? Ou a escolha de
uma atitude estética, um espaço de resistência cultural frente à organização da
indústria?

Segundo Eduardo Vicente (1996, p. 132), o grupo Lira Paulistana não foi
um movimento musical, mas uma iniciativa empresarial que consistiu na montagem
de um núcleo de produção e difusão artística formado por um teatro, uma gráfica e
um selo fonográfico, cujos músicos eram consequências mais diretas de uma falta
de opção mercantil, do que propriamente uma opção política e/ou estética. Em
primeiro lugar, porque não existia ligação clara entre a cena independente e algum
grupo político ou estético. Em segundo, porque os nomes de mais destaque da cena
independente, rapidamente aceitavam os convites feitos por grandes gravadoras,
como aconteceu com a Boca Livre que assinou com a EMI em 1981. Por grandes
gravadoras, também chamadas de majors, entende-se aquelas empresas
internacionais de produção, entre as quais destacam-se a Sony Music, Polygram,
EMI, WEA, BMG e MCA. Essas seis empresas detinham 74% da distribuição
mundial de música no início da década de 1972 (VICENTE, 1997, p. 178).

Tendo em vista a diversidade das noções de independência, Gil Nuno


(1988, p. 23) sistematiza três graus de autonomia do artista frente às gravadoras: o
primeiro seria o independente propriamente dito, situação em que o músico assume
integralmente as responsabilidades e custos de sua criação, gravação e distribuição
(o autor cita como exemplo o disco “Feito em Casa” do Antonio Adolfo). O segundo
nível de dependência seria a associação cooperativa com outros músicos
independentes, possibilitando a consecução de estrutura e atividades em comum.
Num terceiro nível, o músico manteria uma relação comercial com o produtor
fonográfico, na base de negociação de condições. Nesse último caso situa-se o
grupo Lira Paulistana, que se associou a gravadora nacional Copacabana.
28

Durante toda a década de 1980 cresce acentuadamente o número de


lançamentos fonográficos considerados independentes no terceiro nível descrito por
Gil Nuno (1988), os quais ganhavam notoriedade junto ao público e à crítica
especializada. Nos anos 1990 estabelece-se, então, uma cena independente com
força suficiente para dar vazão a diversos segmentos do mercado. Os músicos
independentes – associados aos festivais e com o apoio de veículos da mídia
especializada, como a MTV Brasil – revelam diversos nomes capazes de
despontarem no cenário nacional, os quais passam a assinar contratos com as
majors, consolidando as relações de terceirização e complementariedade. É
importante destacar que o sucesso estratégico da indústria fonográfica em terceirizar
a produção dependia fundamentalmente do domínio estrito sobre as vias de
distribuição, já que, caso isso não ocorresse, estava aberta a possibilidade para que
os novos selos conquistassem sua autonomia e passassem a disputar o controle
direto do mercado.

Nesse contexto, o rearranjo da indústria fonográfica na década de 1990


terceiriza, flexibiliza e subcontrata a produção às empresas de pequeno porte
conceituadas como independentes, as quais se tornam cada vez mais dependentes
da estrutura das grandes gravadoras para distribuir, promover e divulgar os seus
trabalhos. Várias empresas de pequeno porte desenvolveram ou mesmo foram
criadas em função de diferentes níveis de cooperação e especialização com as
grandes companhias fonográficas4. Essa composição da reestruturação produtiva
levou Vicente (1996, p. 145) a concluir que a configuração dos artistas e produtores
independentes dos anos 1980 e 1990 não significava uma ameaça ao controle das
grandes gravadoras, no sentido de representatividade no mercado. Sua articulação
é o que permitia o desenvolvimento do modelo aberto de produção, por meio da
relação de interdependência das empresas autônomas e especializadas que, ao
final, jogavam sempre a favor das grandes empresas, permanecendo altamente
vulneráveis às forças do mercado e às ofertas monopolistas.

4 Vicente (1996, p. 61) relata que, entre os profissionais que saíram da Warner, muitos criaram suas
próprias empresas fonográficas, como Pena Schmidt (Tinitus), Conie Lopes (Natasha Records) e
Nelson Motta (Lux). Além deles, Mayrton Bahia, ex-Odeon e PolyGram, criou a Radical Records,
Marcos Mazzola, também saído da PolyGram, criou a MZA e Peter Klam, ex-diretor da Warner e da
PolyGram, criou a Caju Music. Entre os artistas que eram ou já tinham sido contratados de grandes
gravadoras e que criaram suas próprias empresas citam-se Ivan Lins (Velas), Dado Villa-Lobos
(RockIt!), Marina Lima (Fullgás), Ronaldo Bastos (Dubas), Egberto Gismonti (Carmo), entre outros.
29

No mesmo sentido, a economista francesa François Benhamou (2007, p.


43) considera que, no setor da indústria fonográfica, a oferta está estruturada sobre
a forma de “oligopólio com franjas”. Algumas empresas dominantes, por vezes
implantadas desde longas datas, comandando as redes de distribuição, constituem o
núcleo do oligopólio. Em sua periferia, pequenas e médias empresas, dependentes
das maiores, sobretudo em matéria de distribuição, divulgação e promoção, formam
sua franja necessária. Segundo a pesquisadora, as companhias mais importantes
tendem a deixar uma grande parte da inovação sob a responsabilidade de sua
franja. Atentas, porém, às novidades de criação, procuram apropriar-se delas assim
que o mercado é criado. Desse modo, as pequenas empresas desempenham o
papel de viveiro de criação, muitas vezes adotando estratégias de nicho,
especializando-se em áreas pouco ocupadas, de maneira a atrair uma clientela
cativa e firmar sua reputação. Os obstáculos ao desenvolvimento surgem depois,
sobretudo na distribuição, o que resulta num pequeno índice de sobrevivência das
empresas novas. As pequenas companhias precisariam, portanto, das maiores para
escoamento dos seus produtos, o que explicaria o grau de concentração na parte
final dessa cadeia comercial.

Diante desse desenho do setor musical, Vicente (1996, p. 79) explica que
existe também uma pequena fatia do mercado incorporada aos circuitos autônomos
de produção e consumo musical, resultado da emergência de diversas cenas locais
de música, cuja viabilidade comercial assegurara a sobrevivência de alguns músicos
e empresas independentes. Vicente (1996, p. 82) considera como circuitos
autônomos aqueles que, sem a presença de grandes gravadoras ou redes de mídia
de alcance nacional, fornecem condições para as apresentações musicais, produção
e divulgação dos artistas que os integram. Esses pequenos circuitos dispensam as
grandes gravadoras, uma vez que dentro deles toda a cadeia de produção musical
já está em funcionamento. Tal fatia do mercado frequentemente tem uma
localização geográfica definida ou relaciona-se a identidades étnicas, religiosas e
urbanas.

Finalmente, se a tecnologia foi o trunfo da indústria fonográfica na


reestruturação da sua produção que impulsionou os primeiros circuitos conceituados
como independentes no Brasil, a partir dos anos 2000 essa mesma tecnologia
30

trouxe a dificuldade de controle das grandes gravadoras em continuar a sua


estratégia de concentração na distribuição. O desenvolvimento da técnica estimulou
a criação de tecnologias digitais, como o formato MP3 e os softwares de trocas de
arquivos via internet, os quais trouxeram como consequência a crise de formatos
físicos.

O processo de reorganização e reconfiguração da indústria brasileira da


música, impulsionada pela emergência das novas tecnologias de produção e
reprodução digitais, tem consolidado a produção independente no Brasil. Os anos
2000 experimentam a proeminência de gravadoras com sistemas autônomos de
realização em relação às majors, cujo funcionamento tem assegurado êxitos
comerciais e crescente relevância no cenário cultural nacional. O pesquisador
Leonardo De Marchi (2006) estuda a Nova Produção Independente (NPI) e explica
que o uso do adjetivo “nova” faz remissão a experiência do período analisado
anteriormente nas décadas de 1970/80.

Segundo De Marchi (2006, p. 128) a NPI é resultado do complexo


processo de reorganização da indústria fonográfica brasileira, frente às
transformações nas formas de produção, distribuição e consumo, promovidas pelo
regime técnico-econômico. Aproveitando-se das condições do mercado musical no
Brasil, surgem empresas que passam a assumir novas funções dentro da cadeia
produtiva contemporânea, cuja principal representante é a gravadora Biscoito Fino.
Segundo o autor (DE MARCHI, 2006, p. 129), a principal característica
diferenciadora da NPI em relação à produção conceituada como independente nas
décadas de 1970/80 tem sido a crescente profissionalização do setor, assim como o
respaldo no grande capital nacional.

Nesse contexto, o critério de independência que tem prevalecido no Brasil


tem sido aquele que faz oposição às majors, ou seja, a definição da independência
se dá a partir da negação do capital estrangeiro. As novas gravadoras
independentes, além de não trabalharem necessariamente com músicos relegados
do negócio fonográfico (a Biscoito Fino, por exemplo, distribui artistas como Chico
Buarque e Maria Bethânia), conta com estrutura organizacional parecida com a das
majors. No caso da Biscoito Fino, além da gravadora somar profissionais
experientes da indústria fonográfica, a empresa tem respaldo do capital especulativo
31

de grande grupo do sistema bancário nacional, o que pode ser percebido na


trajetória da gravadora.

Kati de Almeida Braga entrou para a história corporativa brasileira. A


empresária transformou o Banco Icatu (criado pelo pai Antônio Carlos de Almeida
Braga, o Braguinha, para administrar os rendimentos financeiros da família), em
Icatu Holding, por meio de várias atividades – da construção civil a área de seguros,
da publicidade a produção. No âmbito do entretenimento, a empresária criou a
Biscoito Fino, fechou contrato com a EMI em Portugal e a Disc Music, na Espanha,
para levar a música nacional à Europa. Também abriu escritório na França e
negocia com companhias locais a criação de um selo brasileiro. O grupo também
colabora com a Conspiração Filmes e Lumiére. No início de 2012, comprou 25% de
participação na DM9, holding publicitária (ÉPOCA, 2002).

A partir da definição do independente que se encerra no antagonismo às


grandes gravadoras estrangeiras, é possível concluir que o desenvolvimento e
consolidação da NPI brasileira vêm movimentando novas tensões e articulações no
que tem se entendido como independente. Nesse contexto, fica evidente o quanto a
noção de música independente e seus derivados – cena independente, artista
independente, gravadora independente – deve ser problematizada e especificada
enquanto categoria analítica para compreender a heterogeneidade das relações do
mercado e do trabalho artístico musical. Em outros termos, a expansão de uma
produção considerada independente no país impõe a necessidade de uma
identificação, distinção e definição mais clara entre os diferentes agentes que
ocupam esse campo.

Dados da International Federation of the Phonographic Industry (IFPI)


(2012, p. 3) retratam que em 2012 as independentes (critério de oposição às majors)
foram responsáveis por 25,3% dos lucros mundiais com música, seguidas pela
Universal (23,5%), EMI (13,4%), Sony (13,2%), Warner (12,7%) e BMG (11,9%). Ou
seja, esses cinco conglomerados ficaram com mais de dois terços de todo o
faturamento do mercado da música. No Brasil, a avaliação feita pela Associação
Brasileira dos Músicos Independentes (ABMI) em 2012 aponta que 90% da
produção de fonogramas está nas mãos de independentes às majors. No entanto, a
participação dessas empresas independentes gira em torno de 12 a 25% no
32

faturamento de todo o mercado fonográfico. Nesse caso, observa-se a alta


concentração de venda por parte das majors em torno de poucos nomes. Ou seja,
mesmo com o aumento do número de selos independentes, o mercado musical
permanece concentrado nas mãos das grandes gravadoras.

Diante da desproporcionalidade entre a produção e a representatividade


no mercado, a configuração do comércio musical nacional se enquadra no conceito
de “cauda longa” criado em 2004 pelo físico e escritor estadunidense Chris
Anderson. O termo é baseado nas distribuições de dados da curva de Pareto, cuja
figura abaixo é caracterizada pelo prolongamento horizontal muito comprido em
relação ao prolongamento vertical. O consumo de produtos costuma seguir um
padrão semelhante ao da curva, com poucos produtos sendo muito consumidos (os
chamados produtos hits) e muitos produtos sendo pouco consumidos (os não-hits).

Figura 1 – Distribuição de cauda longa

Fonte e elaboração <http://labinove.blogspot.com.br/2008/10/cauda-longa.html>

Finalmente, nesse contexto em que número reduzido de corporações


ainda assume o protagonismo mercadológico do ambiente cultural, este trabalho se
volta para a emergência de movimentos, redes e meios autônomos de expressão,
interação e mobilização capazes de qualificar o campo independente no mercado
33

brasileiro de música, considerando a pluralidade de formas de estruturação de suas


atividades.

I.II Configurações e especificidades

Um estudo realizado pelo Grupo de Pesquisa em Política Pública para o


Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (GPOPAI, 2010) destaca as
duas definições básicas de independência no campo musical brasileiro hoje. A
primeira, e tradicional, é caracterizada pela exclusão do capital estrangeiro das
grandes gravadoras. A partir desse critério, a tipologia independente pode ser
utilizada para designar tanto o músico que produziu seu CD em um estúdio caseiro,
quanto a Biscoito Fino, por exemplo, que mesmo sem contar com o capital
estrangeiro tem respaldo no grande capital privado nacional articulado
internacionalmente. A segunda caracterização do independente tem sido definida
recentemente a partir da autonomia econômica em relação ao Estado, ao adotar
sistemas de financiamento alternativo às leis de incentivo público.

A terceira definição, e pressuposto conceitual desta pesquisa, parte da


autonomia econômica do próprio artista, em todas as fases da cadeia musical
(criação, produção, distribuição e promoção/difusão), tendo ou não financiamento
público. A partir daí procura-se entender como esses artistas criam, produzem,
distribuem e promovem seus trabalhos, quais suas formas de financiamento, de
contratação, suas redes de relações no mercado e no campo da música, assim
como as dificuldades dessa forma específica de atividade frente ao mercado e às
políticas públicas culturais. Quer dizer, uma análise sociológica do músico enquanto
trabalhador autônomo e empresário de si mesmo, em conexão com as políticas
públicas setoriais.

No conceito que parte da autonomia econômica, entretanto, percebeu-se


que a definição do que faria parte ou não de uma cena independente se apresenta
como objeto de permanentes disputas simbólicas e estéticas. Os fenômenos
musicais autônomos, sobretudo massivos e populares (como o tecnobrega
34

paraense5, o arrocha na Bahia ou o funk carioca) tendem, geralmente, a não ser


vistos como parte da cena independente, embora sejam produzidos fora da estrutura
das grandes gravadoras e de forma autônoma. Por outro lado, o hip hop, o rock
alternativo e os gêneros denominados híbridos ou inclassificáveis têm sido
categorizados como independente pela mídia, espaços de consagração e festivais
especializados, aliando aspectos estéticos que conferem uma aura cult à produção.
O que indica que na conceituação independente está em jogo um conjunto de
posições e tomadas de posições de agentes de um determinado universo simbólico
e profissional, negociando espaços privilegiados de prestígio e poder (BORDIEU,
1989, p. 23).

A genealogia do músico independente para fins desta pesquisa conjugou


três fatores: a) vive senão exclusivamente, preponderantemente da música; b) tem
autonomia econômica; e c) tem sido categorizado como independente pela mídia e
festivais especializados (no decorrer desta pesquisa ficou evidente o atributo cult da
amostra independente). A partir desta genealogia foram realizadas entrevistas com
22 artistas. São eles: Alessandra Leão, Angelo Souza (Graxa), Anna Tréa, Caio
Lima, Catarina Lins de Aragão, Cleyton José da Silva (Guitinho), Fábio Trummer
(Fabinho), Felipe Cordeiro, Fernando “Catatau”, Gilberto Amaral (Gilú), Hugo Gila,
Isaar França, José Guilherme Lima (Missionário José), Juçara Marçal, Luísa Maita,
Marcelo Segreto, Marcia Castro, Otávio (Tatá Aeroplano), Ricardo da Silva (Rico
Dalassam), Romulo Fróes, Tiago Andrade (Zé Cafofinho) e Yuri Rabid. Embora esta
pesquisa tenha elaborado um conceito prévio de músicos independente para fins
metodológicos, são as próprias narrativas dos artistas entrevistados que localizam
os vários sentidos da independência.

5 O tecnobrega foi analisado em 2006 por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas (FGV). O
estudo entrevistou 76 bandas, 273 aparelhagens e 259 vendedores ambulantes de CDs e DVDs em
Belém do Pará. Segundo a pesquisa (LEMOS, 2008, p. 21), o tecnobrega se expandiu de maneira
independente das grandes gravadoras e dos meios de comunicação de massa, por meio da
multiplicação de estúdios caseiros e a produção musical de baixo custo, e se tornou um modelo de
negócio que criou novas formas de produção e distribuição. O processo de produção, circulação e
promoção dessa cadeia envolve uma estrutura complexa suficientemente articulada, composta por
casas de festas, shows e vendas nas ruas. Nesse contexto, a não ser por valor simbólico e como
forma de prestígio, pertencer à gravadora não é relevante. Quando os músicos percebem que as
vantagens de ter contrato com gravadora podem ser obtidas ou substituídas pela ação de outros
agentes – bom estúdio caseiro onde se possa fazer a produção e a estrutura de venda informal – o
contrato com empresas da indústria fonográfica deixa de ser a melhor opção. Diante disso, 88,37%
das 76 bandas de tecnobrega analisadas na amostra nunca tiveram contrato com gravadora ou selos.
Por fim, é importante destacar que, mesmo considerando a “eficiência locacional” do tecnobrega, a
maioria dos artistas não consegue viver “só” de suas atividades com as bandas.
35

I.III Narrativas acerca da independência

Tendo em vista a diversidade das concepções de independência na


história da música brasileira, um dos primeiros tópicos lançados nas entrevistas diz
respeito à dificuldade no termo/categoria/conceito “músicos independentes” para
pesquisa. A pergunta foi provocativa à reflexão e procurou explorar o que os artistas
entendem por essa expressão, sua configuração hoje, suas singularidades e
especificidades nacionais e regionais, se se colocam nessa categoria, porquê e
como. As variações das respostas deixam em evidência muitas perspectivas
diferentes e expõe tensões entre os sentidos da independência e/ou autonomia hoje.

Na fala dos artistas entrevistados, a caracterização do independente se


fundamentam desde a clássica oposição à major, passando pela exclusão do
financiamento estatal, até o destaque para a liberdade artística e a aura indie ou cult
ligada, sobretudo, à exclusão dos meios tradicionais de comunicação. No decorrer
das narrativas observam-se, ainda, falas que sustentam noções de graus de
independência, a figura do “operário da música”, a contingência da condição de
independência e as ideias que não saúdam a exclusão dos meios tradicionais de
comunicação, mas a reivindicam.

a) Oposição às majors

A primeira e principal referência de independência nos artistas


entrevistados é, de forma geral, o critério estadunidense de oposição às majors
(capital estrangeiro). Algumas reflexões especificam melhor a ideia de independente,
enquanto outras se limitam a reconhecer a amplitude do termo na crítica da
nomenclatura. Nesse sentido, a cantora, compositora e instrumentista
pernambucana Isaar entende que a independência está ligada à queda das grandes
gravadoras internacionais, mas destaca a incerteza conceitual do termo. Ela usa a
nomenclatura “alternativa” para caracterizar o que está fora do “quadrado das
gravadoras” e enxerga o enorme guarda-chuva que essa caracterização pode
abarcar (FRANÇA, 25/2/2016).

Para o músico, compositor, produtor musical e professor Missionário José


(2/9/2015) a terminologia independente tem muito a ver com outro momento
36

histórico, ligado à reestruturação da indústria fonográfica estadunidense. Hoje em


dia, segundo o músico, as condições que determinaram esse momento histórico, no
sentido de “o que é um artista independente”, existem de forma diferente. Para ele a
relação de independência estava mediada pelos grandes meios de distribuição das
majors e o independente não tinha acesso a sistemas de distribuição e meios de
comunicação. Hoje, embora ainda haja muitos gargalos, a distribuição é uma
realidade mais palpável para os músicos. Sua reflexão, portanto, se pauta na
possibilidade de autonomia econômica também na distribuição, não apenas na
produção musical. No mesmo sentido, para o rapper paulistano Rico Dalassam
(15/6/2016), sua música é independente porque todo o processo de produção,
distribuição e promoção é feita por ele mesmo e seu namorado, sem qualquer
intermediação ou interferência.
Anna Tréa é guitarrista, cantora e compositora, trabalha com Emicida e
tem um projeto solo. Para a artista a independência também está pautada na
ausência de relação com uma grande empresa. Mas Anna se pergunta quem seria o
“grande investidor” hoje, afirmando que as relações mercadológicas estão um pouco
confusas, tanto para os músicos, quanto para os próprios investidores. Embora a
artista não aprofunde essa fala, é importante observar que sua reflexão tem estreita
relação com a discussão da NPI, caracterizada por movimentar tensões no próprio
mercado brasileiro. Anna termina sua exposição afirmando que hoje existe a
possiblidade de “fazer as coisas acontecerem” em termos de distribuição e
comunicação e se considera “totalmente independente” por isso (TRÉA, 12/2/2016).

A dificuldade de organização conceitual do independente e a crítica da


necessidade dessa organização é levantada pelo cantor, compositor e produtor
Romulo Fróes (30/4/2015). O músico destaca que uma das dificuldades dessa
“geração independente”, da qual ele se inclui, é a sua variação: “Tem muitos grupos,
cada um tem o seu rolê, tem o seu rolê estético, o seu rolê de divulgação, tem a sua
turma...” Romulo acha que não é mais possível organizar essa geração assim como
aconteceu com a MPB e a Bossa Nova, por exemplo. Entente que grande parte da
dificuldade acadêmica e jornalística com a “nova geração” de independentes é
devida à persistência do pensamento de “organizar”. “Como organizar uma geração
que tem o Romulo Fróes, a Mallu Magalhães, a Tulipa Ruiz, o Cidadão Instigado?”,
pergunta.
37

Mais à frente, o próprio Romulo é levado a “organizar” o seu pensamento,


afirmando que não tem mais a figura da indústria, a figura da gravadora, do diretor
artístico etc., uma vez que os papéis estão todos misturados. Ele sustenta que o que
caracteriza o músico independente está relacionado fundamentalmente ao “tocar a
sua própria carreira”, e, para tanto, não existe uma estética específica, por exemplo.
Para o músico, a intersecção que une todos os independentes é “a intimidade com o
estúdio”, necessidade criada pela ausência da gravadora.

Na medida em que não existe mais aquela situação em que uma


indústria ou gravadora chegava e dizia ‘fechei o estúdio três
meses...’, o artista teve que começar a gravar em casa, gravar no
computador, lidar com toda parte tecnológica, administrativa e de
marketing. Esta forma com que eles tocam as suas carreiras seria o
que caracteriza o músico independente hoje. Então, se algo une
essas pessoas é que elas gravam os seus próprios discos, elas
lançam os seus próprios discos, elas divulgam seus próprios discos
[...] Então, eu acho que músico independente é isso (FRÓES,
30/4/2015).

Romulo traz, então, a figura do operário da música (grifo nosso) para


assinalar a principal característica do independente hoje: ter que lidar com
equipamento de som, de gravação, depois ter que pensar em estratégias de
lançamento... “A gente é um bando de operário, a gente acorda cedo, a gente
ensaia, toca, grava, toma café, pega ônibus, metrô...” (FRÓES, 30/4/2015). Ele narra
que já foi chamado de decano da música independente, uma vez que lançou o seu
primeiro disco sem gravadoras há cerca de 10 anos. Nessa época ainda existia a
possibilidade de ter um contrato com uma gravadora e ele foi atrás disso, mas
quando percebeu que não ia conseguir pensou: “Tá bom, mas como eu vou
continuar fazendo música?” Explica que, em última instância, a definição de um
artista é aquele que precisa fazer arte. “Pra mim é isso, sabe? Artista é quem precisa
fazer arte. Se você precisa fazer arte, você tem que achar suas armas” (FRÓES,
30/4/2015).

A partir da fala de Romulo esta pesquisa foi estimulada a pensar sobre a


contingência versus a escolha da condição de estar independente e a consequente
atitude empreendedora do artista, destacada mais a frente neste estudo. No mesmo
38

sentido de precisar fazer música nas condições dadas, o músico e compositor


paulista Otávio, o Tatá Aeroplano (30/4/2015) conta que veio de uma estrutura em
que não havia uma noção muito definida sobre “viver às próprias custas”. Ele
destaca que começou a trabalhar efetivamente com música no final dos anos 1990,
momento em que houve uma transformação na indústria: “quando as gravadoras
ruíram foi quando eu comecei a fazer música. Foi quando eu comecei a gravar
mesmo um dos discos” (AEROPLANO, 30/4/2015).

Diante desse contexto, Otávio destaca que já começou a fazer seus


primeiros discos com “a estrutura nova”, ou seja, sem a intermediação das
gravadoras, “sem saber o que estava fazendo, mas fazendo...”, se conectando com
alguns selos, lendo, conversando e buscando “alternativas” às gravadoras. O músico
diz que as pessoas que estavam nos pequenos selos, assim como ele, também não
sabiam muito o que fazer, na medida em que faltavam informações de mercado.
Então, por exemplo, ele lançava um disco, “era legal pra caramba”, e quando eu ia
lançar o próximo disco era como se fosse começar do zero. “Porque não existia um
pensamento estruturado de como ser independente... Putz, a gente não sabia como
fazer” (AEROPLANO, 30/4/2015).

Com o passar do tempo, contudo, o músico afirma que foi aprendendo a


entrar no estúdio, gravar e adquirir experiência em, por exemplo, capitalizar o disco,
fazer um lançamento, saber quem vai comprar esse disco, quem vai se conectar
com sua música, como estabelecer um contato com esse público que vai
acompanhar os outros lançamentos. A partir da definição de tais pontos, Otávio diz
ser possível estruturar seu trabalho, mas ele deixa claro que ainda falta informação
de mercado. Ao falar um pouco mais sobre sua autonomia na independência e sua
forma de trabalhar, o músico se mostra bastante entusiasta do “tomar conta” de sua
própria carreira, tanto do ponto de vista da realização do seu próprio trabalho e da
identificação da sua música, quanto das relações que são travadas com o público e
com os parceiros profissionais.

Eu prefiro trabalhar assim, porque daí eu penso no disco, penso toda


a estrutura com as pessoas que estão comigo. Porque eu não
trabalho sozinho, eu sempre trabalho em grupo... E cada vez mais
com músicos fantásticos. Essa coisa que a gente tá vivendo agora é
39

maravilhosa. Isso é lindo, é lindo... E o lance de trabalhar sozinho é


por isso. Porque se você contrata um selo, o cara do selo tem uns
interesses... Que são financeiros... Ele tem um interesse que não
bate com o que eu penso. Eu sou muito mais simples nesse ponto.
Então, é uma perda de energia eu ficar querendo lançar um disco por
alguma gravadora [...] Geralmente fica uma relação viciada, em que
um quer ir por um lado, e o outro, por outro... Então, acho que hoje é
fundamental você realmente tomar conta disso (AEROPLANO,
30/4/2015).

A intimidade entre a autonomia/autogestão do independente e o mercado


é destacada pelo músico, compositor e pesquisador Marcelo Segreto. Ele entende
que o termo independente surgiu na música porque havia uma dependência das
grandes gravadoras, mas que, hoje em dia, depois de 15 anos de música
independente, a principal luta dos artistas ultrapassa a questão de produzir de forma
autônoma e se finca nos mecanismos de estar no mercado. Segundo o músico:
“Todo mundo batalha para entrar no mercado porque pra você conseguir viver do
seu trabalho, você precisa estar no mercado pra fazer ele circular, né? Mesmo que
seja outro tipo de inserção”. Fica evidente em sua fala que música independente não
é um termo oposto ao mercado, mas o pressupõe. Nessa esteira, o músico
reivindica mecanismos de visibilidade por meio, por exemplo, da inserção do seu
trabalho nos meios tradicionais de comunicação – rádio e TV (SEGRETO,
14/4/2015).

b) Financiamento não estatal

Além do critério de oposição às majors, alguns entrevistados empregam o


termo independente para se referir à ausência de financiamento público. O
guitarrista e membro da banda Cidadão Instigado, Fernando Catatau também
entende que um dos critérios de definição do artista independente sempre foi a
ausência de grandes gravadoras e que hoje as coisas estão um pouco nubladas em
termos dessa definição porque gravar um disco em casa é uma realidade palpável
para grande parte dos músicos. Mais à frente, quando diz que lançou um disco
independente, Fernando afirma que tirou dinheiro do seu bolso, sem qualquer apoio
do Estado, sugerindo que a independência está relacionada, também, à ausência de
financiamento público (CATATAU, 10/9/2015).
40

Além de não ter contratos com gravadoras e financiamento público,


Fernando enfatiza que o independente não paga jabá nas rádios pra tocar, nem está
na televisão por causa de gravadora. O músico afirma que já apareceu em
programas globais e tocou em grandes festivais e que, em todos esses casos, foram
as respectivas produções que o chamaram. Ele não foi intermediado por nenhuma
gravadora e, por isso, não deixou de ser independente em tais situações
(CATATAU, 10/9/2015). Essa singularidade levantada por Fernando é um bom
termômetro que não nega, mas reivindica um tipo específico de inclusão nos meios
tradicionais de comunicação.

Para o músico pernambucano Cleyton José da Silva, o Guitinho do Grupo


Bongar, existe um grande conflito em definir a independência hoje. Após destacar a
ideia de oposição às majors, Guitinho diz que “existem festivais que se dizem
independentes, mas, você vai ver lá que tá com a logo do BNDES, tá com a logo do
Funcultura”, apontando para a exigência de autonomia do financiamento estatal.
Finalmente, ao mesmo tempo em que exige essa condição para definir uma
independência, o músico reconhece a importância do financiamento público
enquanto paradigma de sustentabilidade do seu próprio trabalho (SILVA, 29/2/2016).

c) Liberdade artística

Para outros músicos entrevistados a grande característica que distingue o


músico independente hoje é a liberdade artística. O cantor e compositor Angelo
Souza, o Graxa, afirma que o independente tem a liberdade de fazer, “de lançar
coisas quando quiser, gravar um determinado tipo de música da forma que quiser”
(SOUZA, 26/2/2016). No mesmo sentido, a cantora Juçara Marçal destaca que o
músico independente se caracteriza pela possibilidade de nortear e pautar o seu
trabalho com “certa liberdade”, sem quem ninguém determine que música fazer ou
com quem tocar, por exemplo. Juçara acha esse tipo de “liberdade” essencial
quando se trata de expressão artística, não sendo lógico que outra pessoa, que não
ela própria, determine a forma e o caminho de exercer isso (MARÇAL, 7/5/2015).

Juçara enfatiza também que pensar em independência é sinônimo de


pensar em trabalhar de forma polivalente e multifacetada, ao explicar que a
41

estruturação dessa atividade hoje envolve desde fazer o CD, até a capa, o
lançamento, os shows etc. Juçara afirma que, por acerto e erro, tem descoberto o
seu próprio caminho nesse contexto. E que, mesmo que haja tropeços, tem total
controle de sua expressão artística e isso “é o mais legal”, o que demostra a
satisfação com a situação de autonomia e controle do resultado final do seu trabalho
(MARÇAL, 7/5/2015).

A cantora e compositora Luísa Maita desenvolve um raciocínio próximo


ao de Juçara Marçal no que toca ao poder de escolha e autonomia, no sentido de
determinar a maior parte dos rumos de sua própria carreira. Ela destaca que o mais
importante na vida de um músico é ele escolher o que quer fazer e ter a
possibilidade de fazer. No entanto, Luísa afirma que isso é um tanto complexo, não
se resumindo apenas a uma questão de gravadora, mas de vários consensos. Em
sua fala, Luísa concebe a possiblidade de existência de um relacionamento
independente em grandes gravadoras, como a Universal, por exemplo, desde que
“você não abra mão de coisas que são importantes pra você” (MAITA, 13/4/2015).

d) Aura cult

Em alguns músicos entrevistados restou manifesto o aspecto cult da


produção independente, seja para criticá-lo, seja para afirmá-lo enquanto expressão
de distinção. No primeiro exemplo, o músico Angelo Souza faz um paralelo com
músicos que tocam em shoppings e barzinhos, por exemplo. O músico sustenta que
muitos deles também são independentes, no sentido de autonomia econômica, mas
que não são assim categorizados pela mídia e nichos de consagração
especializados. “Dificilmente o brega recifense é tido como independente”, dispara
(SOUZA, 26/2/2016).

A fala do músico paraense Felipe Cordeiro, por sua vez, traz uma certa
oposição entre independentes, mercado e mídias tradicionais. Felipe aponta que o
termo independente “está muito datado” e que há dois anos conheceu o termo de
um agente da música do Pará, Marcelo Damaso (Festival Se Rasgum), chamado
midstream, “e que seria exatamente isso que a gente chama, a grosso modo, de
mercado independente, música independente, mercado médio da música e os anos
90, lá trás, chamou de alternativa” (CORDEIRO, 14/4/2015).
42

Felipe explica, então, que o midstream abarcariam esses artistas que não
estão nas rádios comerciais e/ou não tocam na grande mídia nacional, que é o caso
dele, mas que, conseguem manter a sua carreira e fazer show pelo Brasil inteiro,
graças, principalmente, à descentralização da informação por meio da internet, que
favorece a aproximação dos diferentes públicos. Aliado ao “poder da internet” Felipe
destaca também a “dependência” de muita gente, colegas e parceiros de profissão,
cujas relações possibilitam a sustentabilidade do seu trabalho. Percebe-se, em seu
discurso, uma saudação à internet e à ideia de rede, no sentido de favorecer um
público ativo, “que vai atrás do seu artista” e que promove um “feedback legal” do
seu trabalho (CORDEIRO, 14/4/2015).

Assim como outros artistas, embora Felipe Cordeiro esteja sempre


ponderando as dificuldades de sua atividade, há, de uma forma geral, uma
saudação ao contexto atual, sobretudo quanto à liberdade artística desse contexto,
segundo ele, “mais real”. “Porque na época os músicos faziam as músicas, aí vinha
um cara e fazia a capa do disco, o outro fazia a distribuição, o outro fazia a
prensagem, o outro vendia o show...” E o artista tinha pouquíssima participação
nesses movimentos, inclusive e principalmente no aspecto artístico (CORDEIRO,
14/4/2015).

e) Graus de independência

Finalmente, a cantora e violonista baiana Marcia Castro desenvolve um


raciocínio sobre estratificações de independência. A artista afirma que a primeira
independência que surgiu foi o da gravadora, mas que hoje, com as mídias sociais,
o termo se expande para outros paradigmas de medição. A noção de independência
de Marcia parte da ausência de mediação comercial entre o artista e o público: “É o
próprio artista que se comunica e que estabelece uma relação comercial diretamente
com o seu público, seja fazendo disco, seja distribuindo disco”. A partir daí, Marcia
explica que existem vários níveis de independência. O grau máximo de
independência seria aquele artista que sequer tem uma assessoria de comunicação
e faz tudo por rede social, por exemplo. O grau médio de independência seria
aquela artista que não tem gravadora, banca o seu próprio disco, mas tem uma
assessoria. E o artista independente no grau mínimo seria aquele artista que gravou
43

o seu disco sozinho, mas tem uma distribuidora e uma assessoria (CASTRO,
5/5/2015). Tais definições de Marcia compõem as escalas da independência, cuja
régua seria os níveis de mediações existentes na comunicação do artista com seu
público.

f) Escolha e/ou contingência

No decorrer das entrevistas, percebeu-se que a condição de não estar


dependente de algum contrato com gravadoras, sobretudo de distribuição, pode ser
entendida enquanto escolha do músico (já teve proposta, mas recusou; já teve e não
quer ter de novo; ou nunca teve e não quer ter), mas também enquanto contingência
de mercado. Nesse último caso, o artista almeja contrato, mas ainda não foi
convidado. Esse tópico, no entanto, foi alvo de muitas tensões entre as falas, as
quais, muitas vezes, se traíram durante a mesma entrevista, revelando contradições.
Romulo Fróes, por exemplo, deixa claro que não é independente porque
quis a princípio, mas por contingência mercadológica, ou seja, porque não
conseguiu fechar um contrato com gravadora. O músico acha que essa coisa do “ah,
eu sou independente porque eu quero”, um pouco de “marra”. Ele explica que o
músico é independente hoje, sobretudo, porque é assim que o mercado está
constituído e porque ele pode ser assim, tendo em vista o acesso aos meios
tecnológicos. Romulo destaca que essa condição de estar desvinculado de uma
gravadora, inclusive, fez muita falta, sobretudo no começo da sua carreira, em que
ficou 10 anos sem viver de música, mesmo fazendo discos, saindo na capa do jornal
e ganhando prêmios todo ano: “Todo disco que eu lancei (estava) na lista dos
melhores do ano, e eu não conseguia viver da minha música...” (FRÓES,
30/4/2015).

Hoje, Romulo enfatiza que nem pensa mais em gravadoras/distribuidoras,


ao mesmo tempo em que afirma que aceitaria uma conversa com uma delas. Ele
narra também que pensou muito em gravadoras no começo da sua carreira porque
ainda era uma via de acesso para viver de música, mas que hoje tem todo um
caminho que ele mesmo ajudou a construir, que faz com que o independente nem
sequer lembre da gravadora, porque está preocupado, na verdade, em viabilizar a
sua vida fora desse circuito que nunca lhe acolheu. Em suas palavras:
44

Porque não existe mais o contrato lá. Eu vou fazer o quê numa
gravadora? Eles não me querem e eu também... Ah, eu acho que
mais do que tudo eles não me querem! Eu acho, sabe? Nunca
ninguém me ligou e falou ‘Romulo, tudo bem? Aqui é da gravadora
tal... Quer fazer uma reunião?’ Eu acho que eu faria... Queria ir lá
ver, mas eles nem sabem que eu existo, então por que eu vou ficar
pensando neles? Eu tenho que pensar: como eu vou conseguir
fazer o que eu quero, a música que eu quero, por mais estranha
que ela seja, e pagar o aluguel ainda assim? Eu acho que esse é
um resumo da minha vida. Não é uma escolha ser independente.
Eu acho que é uma contingência. A grande novidade e a grande
felicidade é que, 15 anos depois de que quando eu comecei, é
possível fazer o seu disco do jeito que você quiser, tocar pra quem
você quiser... Você não vai ficar milionário, você não vai comprar um
avião, você não vai ser ouvido tanto... Mas você vai fazer o que você
quer. Não é a maior coisa da vida de alguém você fazer o que você
quer? Eu aprendi isso cedo... Você faz o que você quer... Eu não
conheço outra definição de felicidade pra mim (Grifos nossos)
(FRÓES, 30/4/2015).

No mesmo sentido de independência enquanto contingência, Marcelo


Segreto explica que, do ponto de vista histórico, essa “autonomia” das gravadoras
não foi uma escolha dos músicos. As coisas foram “caminhando para tal contexto”,
de forma que “naturalmente” foi possível ser independente. Hoje, o que acontece,
segundo o músico, é um movimento inverso do que acontecia: primeiro certa
projeção do artista, depois o trabalho da distribuidora, se houver, e quando for
interessante para elas: “porque você pode gravar na sua casa. Você coloca na
internet, o seu vídeo faz sucesso e aí vem o produtor atrás de você. Ah, quero
vender o seu show”. Ele também destaca que as condições contratuais das
distribuidoras hoje, de forma geral, não tem sido interessante para os músicos.
Marcelo conta que tem amigos que possuem contrato com gravadoras e o que
acontece, com frequência, é que essas empresas não aceitam deixar um disco pra
download gratuito, por exemplo, o que seria um absurdo, do ponto de vista do
interesse do músico e não da gravadora (SEGRETO, 14/4/2015). No mesmo
sentido, Rico Dalassam afirma que está aberto para o diálogo com as gravadoras e
que algumas delas já lhe procuraram com propostas, mas que até agora o contrato
que ele acha válido não chegou: “uma coisa que protege a minha obra e me protege
e não seja essa coisa no susto... Assim eu não topo” (SILVA, 15/6/2016).
45

A cantora, compositora e percussionista Alessandra Leão, por sua vez,


afirma que prefere trabalhar de forma independente. Embora reconheça a vantagem
da distribuidora fazer o disco chegar aonde sozinha ela não consegue, conta que já
teve contrato com gravadora na época da banda Cumadre Fulozinha e não viu a
gravadora fazer nada que ela própria não tenha conseguido fazer durante esses
anos. Com exceção de que a gravadora não pagou!, afirma. “Com exceção disso, aí
eu faço melhor do que eles!”, enfatiza a artista. Ela explica que os contratos com as
gravadoras hoje não recai apenas sobre o discou ou fonograma. “Você já deve ter
ouvido falar que eles ganham sobre tudo... Qualquer coisa que eu fizer na minha
vida a gravadora tá ganhando” (LEÃO, 2/9/2014).

Alessandra Leão também toca em um importante aspecto da


independência em relação à criação artística com o seguinte depoimento:

Eu tenho uma colega nossa que ficou um ano com o disco pronto e a
gravadora segurou: ‘não, não está no momento adequado’. Tá, mas
em um ano você vive de quê? Você faz o quê? Além disso, daqui a
um ano sua cabeça, sua obra já é diferente, já não é a mesma
coisa.... Às vezes não faz mais nem sentido aquele arranjo ou aquela
letra... Não faz mais sentido às vezes porque você mudou... (LEÃO,
2/9/2014).

O percussionista pernambucano Gilú Amaral, por sua vez, queria uma


distribuidora porque reconhece sua limitação na circulação da produção, sobretudo
física. Ele percebe a demanda do disco enquanto obra de arte: “é a capa, as fotos,
essas coisas...”. E por isso entende que, mesmo com o mercado de discos
oscilando, é importante estar nas lojas físicas (AMARAL, 12/11/2014). Luísa Mata
também acredita na possibilidade de relações positivas com selos e plataformas de
músicas. Embora esteja no momento sem contrato com distribuidora, Luísa conta
sua experiência com o selo Oi Música – plataforma de música de distribuição via
celular. Ela afirma que a Oi investiu muito no seu trabalho e conseguiu estruturar
uma assessoria de imprensa e distribuição muito “legal” (MAITA, 13/4/2015). No
mesmo sentido, Isaar resume: “Eu queria até deixar de ser independente... Alguém
que quiser que eu dependa, tô aí dependendo...” (FRANÇA, 25/2/2016).
46

Uma vez definidas as características que uniriam os músicos


entrevistados (viver de música, autonomia econômica e consagração e mídias e
festivais especializados), observou-se uma grande variação nos aspectos distintivos
do que seria um músico independente hoje. Independente de capital internacional?
Independente de gravadoras e distribuidoras? Independente de financiamento
público? Independente da mídia tradicional? Independente da estética massiva? O
ponto de intersecção, porém, se fundamenta, de forma geral, na autonomia
econômica e na autogestão da carreira que desemboca no empresariamento de si
mesmo, no discurso de “liberdade artística” e no perfil polivalente dos artistas. Nesse
contexto, a ênfase na contingência de “continuar produzindo música” é o caráter que
informa importantes aspectos da produção musical independente hoje. Finalmente, a
saudação ou não da condição “independente”, sua adequação, assim como o grau
de profundidade dos raciocínios conceituais sobre o termo, anunciam outros
aspectos dos artistas entrevistados, relacionados à trajetória e formação de cada
um.
47

II TRAJETÓRIA E FORMAÇÃO

Ao longo da pesquisa com os músicos considerados independentes


observou-se uma variação mais ou menos homogênea em termos de classe, raça e
gênero. No entanto, heterogeneidades e dissidências também fazem parte de boa
parcela da amostra, de forma que o cruzamento desses dados revela importantes
aspectos do trabalho artístico. Depois de tentar entender a historicidade conceitual
do artista independente, esse capítulo preocupa-se com o enfoque da
interseccionalidade, no intuito de analisar como as diferentes opressões se
combinam e se entrecruzam para informar as diferentes trajetórias dos artistas
entrevistados. Sobre o conceito de interseccionalidade, a professora, filósofa e
ativista Angela Davis (2016, p. 12) afirma que:

É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça,


também, informa classe. E gênero informa a classe. Raça é a
maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a
maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para
perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a
perceber que entre essa categorias existem relações que são mútuas
e outras que são cruzadas.

Além de classe, raça e gênero, observam-se também as variáveis de


idade, região, orientação sexual e formação que ajudam a entender as diferentes
trajetórias. Esse caminho conceitual é abordado pela socióloga francesa Danièle
Kergoat (2010) em seu conceito de consubstancialidade das relações sociais. Diante
da dinâmica dessas complexidades, pergunta-se sobre o impacto, ou não, na
escolha em ser músico, tendo em vista as noções de ócio ligadas às profissões
artísticas em geral.

A perspectiva da biografia permite a valorização das experiências,


assentes numa interação prolongada com os narradores em diálogos de
profundidade. Nesse contexto, alerta-se para o risco de redução da biografia a uma
simples história de vida utilizável como exemplo, caso particular ou ilustração, em
48

uma interpretação que se situa em um nível elevado de abstração. Para evitar esse
reducionismo epistemológico o capítulo se esforça para manter as singularidades
das narrativas, ao mesmo tempo em que relaciona a biografia individual dos músicos
às características estruturais globais da situação histórica datada e vivida, para dar
contas das suas lutas, dos seus pontos de vistas e das formas como foram
construindo as suas agências.

Segundo a cientista social e musicóloga Juliana Coli (2006, p. 43) a


atividade artística contém múltiplas dimensões, na medida em que é ao mesmo
tempo: expressão artística, realização de um trabalho e exercício de uma profissão.
Embora essas dimensões existam, as articulações analíticas integram,
frequentemente, a atividade artística apenas a termos como criatividade,
empreendedorismo, inovação, liberdade, talento, vocação, dom e genialidade. A
ênfase em tais noções atua na criação de significados que colocam o trabalho
artístico como exceção às outras práticas, ofuscando e idealizando a sua
compreensão multidimensional.

II.I Genialidade e ócio

A ideia do artista, e especialmente do músico, e seu modo de existência


não se dá de forma homogênea em todas as formas históricas. Coli (2006) pesquisa
especialmente o trabalho musical em suas origens pré-capitalistas e analisa essa
atividade a partir de um ponto de vista moral e social. Segundo a autora (COLI,
2006, p. 51), do ponto de vista moral, a profissão do artista era vista como uma
forma de degradação: o músico era visto como um saltimbanco. Essa dimensão da
degradação faz recordar a metáfora da Cigarra e a formiga, na qual o papel da
formiga está relacionado diretamente a um tipo de trabalho manual e o da cigarra, a
uma espécie de diversão. Do ponto de vista social, o músico estava ligado a uma
imagem pouco recomendada, próxima a do vagabundo. O conceito de trabalho na
história do pensamento ocidental apresenta-se fundamentalmente centrado em dois
aspectos: fadiga e necessidade. O caráter denotativo da arte apontaria para uma
moral adversa, que levaria ao ócio. Em outros termos, o não-trabalho no âmbito da
arte incluiria dentro de si o conteúdo do ócio.
49

Considerações sobre o artista na Antiguidade Clássica e na Idade Média


apontam para a sua oposição ao artesão, junto com a perspectiva de inspiração ou
intuição divina. Subjacente à apresentação das formas pelas quais a arte e os
artistas foram acolhidos nas cortes do Ocidente europeu, o historiador da arte Martin
Warnke (2001) explica o valor especial atribuído às obras de arte e à ideia de
capacidade superior dos criadores. O autor (WARNKE, 2001, p. 45) elucida que,
após a metade do século XIII, as relações, sobretudo entre artistas plásticos e as
cortes, assumem formas definidas e específicas. Na medida em que os reis da
Europa ocidental vão consolidando sua soberania, emerge a necessidade de suas
representações pictórias. A participação das artes na manifestação da aura do
príncipe e a proximidade privilegiada do artista com relação ao soberano produziu e
consolidou a impressão de uma extraordinária forma de atividade superior, nutrida
por bênçãos especiais e dotada de uma competência universal.

Segundo Warnke (2001, p. 24) os dados históricos fornecem algumas


características básicas do posto do artista na corte. O pintor, por exemplo, estava
situado no círculo de serviços do bem-estar do soberano: seu ocupante recebia um
título, um pagamento fixo, presentes especiais e podia exercer autoridade sobre os
outros empregados. Nesse mesmo contexto, Coli (2006, p. 103) elucida que o
mercenarismo, para o músico, representava uma atividade doméstica e restrita à
satisfação da corte. A pesquisadora afirma que o contrato de trabalho de Bach, por
exemplo, era idêntico ao de um doméstico da corte, cujo ofício caracterizava-se por
uma forma de servidão. Esse caráter, contudo, não se realizou sem a resistência
dos artistas em executar exatamente o que lhe era solicitado pela corte (COLI, 2006,
p. 112).

O Renascimento imprime uma boa aceleração à figura profissional dos


artistas que encontram alguns espaços mais amplos e reconhecidos, desvinculados
das exigências eclesiásticas. Intensifica-se uma transição entre o mecenas individual
para o mercenário empresarial no trabalho artístico. Os contornos da racionalidade
burguesa sugerem a autonomia do artista em relação às estruturas tradicionais,
preparando o terreno para o nascimento ideológico do gênio, a título de justificativa
do papel do artista nessa nova sociedade que possibilita certa mobilidade social.
50

O cientista social José Carlos Durand (1989) explica que no Brasil as


artes não eram vistam com bons olhos pelos clãs oligárquicos, cujo ensino durante o
Império era endereçado principalmente aos filhos de artesãos, dos pequenos
comerciantes e ex-escravizados. O fato da música ter sido executada nesse período
por negros e mulatos em uma sociedade escravocrata também informa o sentido de
uma ideologia da banalização social das atividades artísticas na sociedade
brasileira. Não raro encontra-se no país uma ideologia da atividade artística como
sinônimo de negação do trabalho e de um prazer depreciativo no limite da
desvalorização da atividade humana.

A emergência da modernidade soma várias influências ligadas ao


romantismo, ao pensamento cartesiano racional e ao iluminismo, enquanto
movimento pela busca do sujeito autônomo, prevalecendo sobre dogmas e crenças.
É nesse período que a noção de individualização do artista e a figura do gênio
criador se tornam efetivas. Tais noções partem da premissa de que a inspiração não
é tida como algo que vem do ente exterior, mas sim de dentro do próprio artista, que
passa a ser valorizado por suas capacidades criativas subjetivas. Com o sujeito
econômico burguês surge também o sujeito artista, desdobrado no gênio. Juliana
Coli (2006) explica esse movimento no âmbito da música nas seguintes palavras:

A ética depreciativa e adversa da atividade musical contribui,


inicialmente, pra a afirmação da ideia do ócio e transforma-se,
posteriormente, em uma refinada ideologia capitalista legitimada pela
‘indústria do tempo livre’, segundo a qual toda a atividade lúdica
parece neutralizar o complexo processo de valorização do capital. O
significado moral da depreciação do músico transforma-se em um
valor ideológico de inversão da realidade do capital, ao mesmo
tempo em que a evolução histórico-social serve como base
econômica dessa ideologia (COLI, 2006, p. 53).

O resultado analítico dessa construção histórica que relaciona a atividade


artística, grosso modo, à genialidade, ao lazer, ao prazer e ao ócio, reforça a ideia
do artista com capacidades naturais. Nesse sentido, a arte é inspiração pura.
Diferente do ofício, ela é irracional, somente suscetível de revelação e não de
compreensão. Interior, gratuita, mágica, iluminada, a arte se abre a alguns
51

privilegiados que comungam através dos séculos um mundo de valores. Sua via de
acesso é a intuição e o inconsciente. A dificuldade de se entender os artistas como
trabalhadores deriva, desde então, da ideologia romântica da criação como algo fora
do mundo e, sobretudo, fora do mercado.

Assim, as análises tendem a privilegiar a obra do artista enquanto criação


estética, em prejuízo do processo de trabalho que a elaborou. Nesse sentido, o
sociólogo francês Pierre-Michel Menger (2005, p. 15) explica que:

É com a celebração dos valores da inspiração, do dom, do gênio, da


intuição, da criatividade que triunfou, na era romântica, o
individualismo artístico, entendido simultaneamente como o princípio
e o resultado da concorrência entre os artistas na sua procura
sistemática de originalidade estética, e como o produto da
concepção, então muito difundida, segundo a qual o artista é o
indivíduo por excelência, a pessoa realizada na essência da sua
humanidade.

Na ótica que acentua o artista enquanto trabalhador, Menger (2005)


realiza uma análise sociológica da arte na perspectiva da categoria trabalho. A
questão que se coloca é a dos mecanismos que fazem aparecer ou celebrar
talentos. Colocar a questão dos talentos sobre os quais as atividades artísticas se
manifestam é igualmente interrogar-se sobre as condições necessárias à revelação
destes talentos e os modelos de organização da sociedade que daí derivam.
Analisar tais processos da profissionalização artística é descobrir como o artista é,
ao mesmo tempo, trabalhador e mestre da desmultiplicação de si, saltimbanco e
também homem de métier, impaciente face a todo o limite e igualmente hábil a
inventar soluções inéditas para gerir os riscos aos quais se expõe (MENGER, 2005,
p. 23).

II.II Relações familiares e profissões

A partir da definição de independente desse trabalho, e tendo em vista os


músicos entrevistados, o primeiro reconhecimento desse capítulo refere-se ao perfil
socioeconômico da amostra. Dos 22 artistas, 15 são homens (dos quais três se
52

declaram negros) e sete são mulheres (das quais quatro se declaram negras e três
são mães). Têm, em sua maioria, menos de 40 anos. Estão predominantemente em
São Paulo e a maior parte se inscreve no ensino superior (completo ou incompleto),
quase sempre relacionada à área musical ou artística em geral. Em termos de
estratificação de classe, a maioria da amostra se declara privilegiada em termos
econômicos e/ou inseridas em famílias de históricos artísticos. Algumas trajetórias
individuais, de forma especial, informam importantes cruzamentos de todos esses
dados, inclusive no que toca às suas exceções.

Anna Tréa, negra, 33 anos, é paulistana e concedeu entrevista para esta


pesquisa em passagem pelo Recife com o músico com quem toca, Emicida, no
carnaval de 2016. Anna nasceu na Mooca, mas morou em Diadema até os dezoito
anos, quando foi para São Bernardo. Hoje leva a sua carreira em São Paulo. Em sua
família não existe histórico de músicos de forma específica, senão artístico de uma
forma geral. Sua casa sempre foi bastante musical, o que lhe possibilitou uma
vivência na música, ainda que só auditiva, e na dança. Ela conta que sua mãe
sempre escutou muita música brasileira e negra. Seu pai, pintor surrealista, sempre
escutou muita música new age. Seu irmão foi mais ligado ao samba rock e ao
pagode de mesa. Essa interdisciplinaridade na vivência musical sempre esteve,
portanto, presente em sua vida.

Embora não recorde exatamente quando o interesse em tocar lhe


alcançou, Anna Tréa tem em sua memória a imagem de uma vitrine, a qual expunha
um violão ou uma guitarra e dela falar para si mesma “queria isso aí”. Quando
começou a tocar, com oito anos, já fazia muito tempo de ter visto essa vitrine. Então
pensou “vou ter que correr atrás do prejuízo, já estou velha”, revela entre risos. Seu
primeiro curso na área musical foi em uma escolinha de bairro. Uma época que,
segundo Anna, era comum os bairros contarem com um centro cultural. Foi nesse
momento que ela, “finalmente”, começou a aprender violão (TRÉA, 12/2/2016).

Anna Tréa (12/2/2016) explica que sempre tocou desde muito cedo e
sempre trabalhou com música. Talvez por isso a questão da sua família entender a
música enquanto trabalho e profissão nunca foi uma questão muito complexa.
Mesmo assim, ela lembra que certo dia, ainda adolescente, estava na mesa com
seus pais. O tema da conversa era “escolhas profissionais”. Anna, então, torceu
53

para que eles não lhes perguntassem sobre as suas próprias escolhas. Seu
pesadelo virou realidade e sua mãe lhe questionou sobre sua disposição
profissional. Nesse momento, Anna conta que chorou bastante. Sua mãe,
preocupada, perguntou o que estava acontecendo. Depois de muitas lágrimas Anna
enfim desvendou aquele mistério: “eu queria fazer música”. Sua mãe riu e disse
“mas isso é maravilhoso, qual o problema nisso?”.

Anna chegou a cursar música na Fundação das Artes em São Caetano do


Sul, mas parou no último ano. Fez alguns cursos ligados à música antes e depois do
ensino superior, fez aulas particulares e se envolve com o estudo autodidata de
muitos instrumentos diferentes. Embora seja guitarrista de formação, pesquisa e
toca baixo, além de instrumentos de percussão. A artista quantifica e qualifica a sua
formação como “dedicação total à música”, mesmo identificando algumas lacunas.
Anna também tem forte envolvimento com a dança e tenta integrar todas essas
dimensões na hora de expor o seu trabalho nos palcos.

Em vários shows do Emicida destacam-se as vozes da plateia que grita


adjetivos como “gostosa” para Anna Tréa. Em relação às especificidades em ser
mulher, artista e negra, Anna se mostra bastante analítica, lúcida e rigorosa. Afirma
que o mundo, de uma forma geral, é muito hostil com as mulheres e essa situação
se repete nas artes, com suas características especiais. Anna reconhece que é um
desafio ser mulher nesse meio porque exige um estado de proteção constante, além
de estar o tempo todo “tendo que provar que merece estar ali”. Em seus termos:

Então, você precisa falar em termos técnicos, você precisa esfregar


na cara das pessoas que você sabe, você precisa bater de frente
mesmo, responder, ser grossa. É complicado...! E, na verdade, o
nosso grande objetivo é o mesmo e é nesse ponto que precisamos
chegar, direta ou indiretamente, seja através da porrada, seja através
do diálogo. Estamos aqui pela música, não é isso? Vamos trabalhar?
Vamos! Às vezes, a gente tem que discutir antes de começar a
trabalhar. Ai meu Deus, sério? Tem muita coisa que é indireta, né?
Existe uma separação ali e tal. É complicado! Um meio bastante
complicado pra nós! Eu não vou provar nada pra você, sabe? Eu vou
tocar! E isso já é uma prova. A minha dedicação e a minha entrega
total é a maior prova que posso te dar. Se isso não te prova, então,
sinto muito, sabe? E por mais duro que isso possa parecer, é muito
leve pra mim. A vida não é, mas essa questão é tão certo... Eu vim
aqui tocar e vou tocar! E eu acho que, na verdade, quando a gente
54

fala de paixão, a gente quebra paredes. É dessa maneira que eu


consegui quebrar várias paredes e estabelecer comunicação com
várias pessoas. Essa é uma forma. Tem muita coisa que eu não
escuto porque a gente toca de fone e tudo mais. Eu costumo ser bem
rigorosa. Não dá pra dar mole e deixo muito claro quando a pessoa
está passando dos limites. E ainda tem o lance que é arraigado na
cultura, né, essa relação de poder ‘– não, eu não posso tocar no
Emicida; mas nela eu posso, ela é minha!’. Entendeu? (TRÉA,
12/2/2016).

A inserção das mulheres no mercado de trabalho passa,


necessariamente, pela divisão sexual do trabalho, além da articulação entre os
conceitos de classe, raça e outras variáveis, como região, idade e formação. Esse
caminho conceitual foi longamente abordado por diversas autoras, entre as quais
Danièle Kergoat. Daniéle Kergoat (2010, p. 12) desenvolve uma série de
argumentações acerca pertinência analítica e metodológica do conceito de
consubstancialidade, tendo como premissa a definição da própria noção de relação
social: uma relação antagônica e conflituosa entre grupos sociais. A autora
compreende o inter-relacionamento entre as relações sociais como um nó que só
pode ser desatado analiticamente.

A proposta teórica apresentada por Kergoat (2010, p. 14) é compreender


as relações sociais como estruturantes da nossa sociedade; relações estas que
compartilham da mesma substância e são coextensivas, isto é, “ao se
desenvolverem, as relações sociais de classe, gênero e raça se reproduzem e se
coproduzem mutuamente”. A observância das práticas sociais revela que, em
circunstâncias específicas, o gênero “cria” a classe; ou a “raça” redefine a noção de
gênero, e assim por diante. A tese central dessa proposta teórica é compreender o
intercruzamento dinâmico e complexo que as relações sociais propiciam. Esses são
os componentes de uma totalidade que definem espaços, posições, trajetórias e
práticas sociais de homens e mulheres também no mercado de trabalho artístico.

Na família do músico recifense Caio Lima, branco, 30 anos, seu pai é


músico, toca em bar e faz parte de uma orquestra de frevo. Sua mãe canta, como
uma forma de estar em casa, de festejar em família, de celebrar. O violão e a
música, portanto, sempre estiveram muito presente em sua casa. Embora não veja
uma influência familiar direta em ser músico, Caio entende que o fato dele nascer
55

nesse ambiente o incentivou a, em meio a algumas frustrações, dar vazão aos seus
sentimentos por meio da música. Caio, inclusive, queria ser jogador de futebol. A
música sempre esteve em sua casa por uma questão de “cantar no banheiro,
experimentar o corpo mesmo...”, explica. Assumir a música como ofício, como
atividade, como trabalho, por sua vez, depende de vários fatores e “de muita loucura
mesmo”, conta em entrevista na Rua Mamede, centro do Recife, em 4/3/2016. Caio
é formado em música pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

O cearense Fernando Catatau, branco, 43 anos, concedeu a entrevista


para esta pesquisa na cidade em que é radicado, São Paulo, em um estúdio
musical. Afirma que começou a se interessar por música porque sua mãe sempre
teve uma relação muito forte com a música e insistia que ele, de alguma forma,
tocasse um instrumento. Quando Fernando tinha nove anos sua mãe lhe colocou
para estudar piano, mas foi um instrumento que ele não se identificou, de forma que
frequentava as aulas porque era “obrigatório”. Sua família tinha uma escola de
samba em Fortaleza/CE e seu sonho era tocar caixa na escola, mas como era muito
pequeno seus tios não o deixavam. Quando tinha mais ou menos 13 anos, começou
a tocar guitarra, teve algumas aulas e logo entrou em uma banda de um amigo no
colégio (CATATAU, 10/9/2015).

Após um ano tentando tocar guitarra sem muito êxito (“eu ficava ali, ficava
em pé com a guitarra, mas não era uma coisa que ia muito pra frente”, afirma),
Fernando Catatau abandonou temporariamente a música para se dedicar ao skate,
participou de vários campeonatos pelo Brasil. Depois, se dedicou à fotografia. Após
esse tempo afastado da música, Fernando reencontrou alguns amigos e resolveu
montar uma banda. O músico conta que sua mãe pegava muito em seu pé porque,
segundo ela, ele não teria foco. Catatau explica que, no colégio, era um dos
desajustados, como vários são. “Aquilo de não prestar atenção etc. E você é tratado
assim, como lixo”. Ele explica que de ser tratado de forma pejorativa no colégio até
achar realmente um caminho profissional foi um percurso dolorido porque a
sociedade não lhe dá a opção de respeitar esse tempo acontecer. Por isso, embora
a sua mãe tenha lhe direcionado desde muito cedo para a música, Fernando só
mergulhou nesse universo quando sentiu que estava no seu tempo de fazer isso. Ao
falar em formação no âmbito da música, Catatau afirma que fez cursos, de acordo
com as necessidades da sua vida (CATATAU, 10/9/2015).
56

Na trajetória do músico recifense Angelo Souza, negro, 30 anos, não tem


ninguém da família envolvido com música ou “com nada relacionado à arte, nem
literatura, nem nenhum tipo de coisa assim, teatro, nada...”, afirma. Angelo também
é chamado de Graxa porque além da música trabalha em uma oficina mecânica. Ele
tem dois trabalhos e distingue suas atividades afirmando que quando está
trabalhando com música não sente a hora passar, diferente do que acontece na
oficina: “quando eu tô na oficina, as horas passam bem devagar”. Embora sua
história com a música tenha começado como uma brincadeira com os amigos, Graxa
enfatiza que tem a música como um trabalho que ele gosta, ao mesmo tempo em
que uma opção de renda. Graxa não tem formação em música: “Foi, tipo, no
começo, comprando revistinha de cifra, depois compondo, tá? Nada de formação
nenhuma” (SOUZA, 16/2/2016). Graxa depôs relativamente apressado,
pontualmente às nove horas da manhã, conforme combinado, porque ia trabalhar na
oficina mecânica.

O músico olindense Cleyton José da Silva, negro, 33 anos, tem a sua


trajetória musical ligada à comunidade terreiro de Xambá, em Olinda/PE, aonde
nasceu, vive até hoje e concedeu essa entrevista no dia 29/2/2016. Guitinho, como
também é chamado, destaca que a música, para ele, é um elemento muito orgânico
na sua vida, cujo primeiro contato efetuou-se por meio da sua comunidade e da sua
família, via religião. Apesar de vivenciar a música de forma umbilical, principalmente
o coco, a ciranda e o candomblé, Guitinho afirma que sua família não tinha a exata
compreensão de que música poderia ser uma profissão, de forma que a atividade
musical sempre foi relacionada à vadiagem, diversão e passatempo.

Guitinho relata que, em sua comunidade, os seus pais passaram por


experiências de criarem grupos musicais que não “deram certo”. “Meus pais faziam
reproduções das ‘coisas do sul’, cantando pagode e samba”, conta. Quando
Guitinho criou o grupo Bongar, com integrantes da própria família, uma outra parte
da família alimentou a ideia de que ia ser mais uma experiência negativa. “Se o
pagode não deu certo, imagine o coco”, disseram. Guitinho costuma relatar que o
Bongar “deu certo” porque foi a primeira experiência que a Xambá teve de cantar ela
própria, de forma que a resposta à sua família e à sua comunidade veio da
potencialidade de cantar a sua própria aldeia (SILVA, 29/2/2016).
57

Quanto à sua formação, Guitinho afirma que quando terminou o ensino


médio, com 17 anos, escutou da sua mãe o famoso “‘e agora’ da periferia - E agora,
você vai trabalhar, porque você vai ser uma renda a mais pra família”. E, então, sua
mãe conseguiu um emprego no Banco do Brasil. Guitinho prontamente recusou o
ofício. Tinha acabado de fazer a prova do Conservatório para violão clássico, tinha
passado e disse a sua mãe que queria estudar violão. “Ela ficou chateada. Eu
também super compreendia, porque família de pobre... era uma renda que tava
deixando de ser colocada em casa”. O músico afirma que todo dia saía a pé com o
violão nas coisas e a marmita na bolsa da Xambá, em Olinda, até o Conservatório
em Recife, cerca de 15 a 17 quilômetros. No entanto, Guitinho permaneceu no
máximo um ano dentro do Conservatório Pernambucano. O músico explica que não
se adaptou ao formato educacional, ao que eles tocavam e valorizavam. Por isso
saiu do Conservatório e resolveu se refazer na música, viver da música como ele
compreendia, como ele já tinha, de certa forma, sido educado e formado pela
comunidade terreiro de Xambá. Hoje, a inserção de Guitinho na Universidade é
como estudante de Ciências Sociais na UFPE (SILVA, 29/2/2016).

A cantora recifense Isaar, negra, 42 anos, e mãe, afirma que o que mais a
influenciou na música foi o fato de sua família ser muito musical. Ela recorda de
muitas festas “arrodeada de música ao vivo”, em que seu avô cantava. Sua tia era
solista de um coral da terceira idade. Seu primo é o Marrom Brasileiro, cantor e
compositor de vários sucessos pernambucanos. Sua mãe escutava todo o tipo de
música o tempo todo. Issar, então, sempre teve interesse e vivência na área
musical. Mas apesar de estar inserida em uma “família musical talentosa”, com um
caso de “sucesso profissional”, Isaar conta que existiu uma cobrança doméstica e
pessoal relacionada à sua escolha profissional. Ela atribui essa cobrança ao fato de
sua família ter uma estrutura muito específica: suburbana, periférica e negra. Ela
conta que seu pai afirmava com frequência “esse negócio de artista é coisa de rico,
num te mete nisso não; termina teu curso, que isso num vai dar certo!”. Com essa
lembrança e lágrimas nos olhos, Isaar canta o seguinte trecho da música de
Paulinho da Viola:

Posso cantar?
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‘Eu tinha catorze anos de idade, quando meu pai perguntou se eu


queria estudar Filosofia, Medicina ou Engenharia. Tinha eu que ser
doutor. Mas, para sua indignação, eu queria um violão pra me tornar
sambista. Sambista não tem valor nessa terra de doutor. Ah, doutor.
O meu pai tinha razão!’.

Eu choro quando eu escuto que ‘o meu pai tinha razão’. E, assim,


com a idade, as cobranças são maiores, de todo mundo, na
sociedade, de você mesmo, né? É por aí... (FRANÇA, 25/2/2016).

Isaar explica que quando decidiu fazer alguma coisa da vida, no sentido
de estudar e se profissionalizar, não foi em música. Fez faculdade de Rádio e TV na
UFPE. As primeiras pessoas que fizeram faculdades em sua família foi ela e os
irmãos, em seguida seus primos e as gerações que estão chegando agora. Isaar
sempre gostou de cantar. Quando adolescente, afirma que ia para luaus e cantava
bastante. Seus amigos diziam “ah, você canta bem”. Até que ela realmente acreditou
que poderia cantar bem. Em música, sua única formação foi algumas aulas de
canto, já depois do primeiro disco solo lançado (FRANÇA, 25/2/2016).

Em relação a ser mulher, negra e nordestina, Isaar destaca e


problematizar o estereótipo regional que pesa sob a sua produção musical. Em suas
palavras:

O que eu percebo, pelo estereótipo, assim, eu posso cantar, cantar


eu posso. Agora não posso cantar tudo. Eu tenho que cantar... eu
tenho que cantar só, assim, regional, entendesse? (risos) Porque,
por exemplo, eu fiz uma música, eu publiquei e as pessoas falaram
que lembravam as conquistas, não sei o quê – com todo respeito e
tal. Mas, assim, a música não lembra isso, mas as pessoas tentam
buscar isso. Esse estereótipo é muito forte. Ah, eu gosto disso, mas
gosto de outra coisa. Gosto de música clássica e gosto de ciranda.
Então, eu senti muito e ainda sinto quando eu quero fazer uma coisa
que tá fora do ‘regional’ porque uma coisa é o meu sotaque
recifense, entendeu? Então, se você quer chamar isso de regional,
tudo bem. É o meu sotaque recifense, mas, assim, é da região de
Recife. E aí, você chegar e ver os caras do hip hop cantando em São
Paulo - ah, isso não é regional? - mas o sotaque deles é da região
dali. Então, isso é uma coisa que existe mesmo. Agora,
musicalmente, eu percebia também o preconceito forte que tinha
com a música tradicional... E o meu canto, ele não é um canto
estudado pelas vias, né? Assim, eu não estudei ele, não fiz aula de
canto. E aí, eu senti um pouco desse preconceito de você ter que tá
no seu lugar ali, né? De não poder sair. E é um desafio também pra
59

mim, pra essa carreira, sair e voltar disso, ter essa porta aberta
(FRANÇA, 25/2/2016).

Em pesquisa sobre a indústria na música no Nordeste, Felipe Trotta


(2010, p. 19) destaca que nas associações entre músicas e espaços geográficos é
necessário ter em mente os processos de silenciamentos e disputas culturais que
forjam uma identidade regional ou nacional a partir de uma suposta prática única.
Eleger uma música para o Nordeste, “tradicional” por exemplo, significa escolher
elementos (e aceitá-los) enquanto representantes da imensa área ocupada pelos
nove estados da região. Nesse sentido, vários “nordestes” ficam de fora dessa
representação, o que gera discursos de não-identificação com este imaginário. Em
outras palavras, enquanto tentativa de síntese, essa identidade é resultado de um
discurso bem sucedido promovido por alguns sujeitos, mas descontinuamente
contestados e desautorizados por outros, em um conflito contínuo.

Juçara Marçal, negra, cantora, compositora e professora de canto e teatro


nascida em Duque de Caxias, RJ, tem 52 anos e vive em São Paulo desde o
começo da década de 1990. Durante a entrevista em seu apartamento em Maio de
2015 observou-se a recorrência de alguns temas, sobretudo no que toca às relações
familiares, formação acadêmica, busca da estabilidade financeira e a difícil decisão
de “ser artista”. Juçara vem de uma família que, nos seus termos, sempre teve
“dificuldades financeiras”, as quais, no seu caso, impulsionaram a sua trajetória pela
procura da estabilidade econômica por meio de várias formações.

As profissões mais “regulares” pautaram boa parte da vida de Juçara. Ela


conta que foi para São Paulo para ser técnica em computação. Quando chegou em
São Paulo para estudar fez um semestre de Matemática na Universidade de São
Paulo (USP), mas desistiu do curso. Ela lembra os primeiros cálculos na faculdade,
“era um negócio muito angustiante...”, conta. Juçara foi, então, fazer Jornalismo na
mesma Universidade. No segundo ano de Jornalismo, um dos professores era
diretor de redação da Folha e a convidou, junto com outros colegas do curso, a
participar da reunião de pauta do Jornal. Ela lembra que quando chegou na Folha e
viu como funcionava, falou “Nossa, também não é isso. Ou seja, na verdade faltou
um belo de um teste vocacional”, ri (MARÇAL, 7/5/2015). Entrou para o curso de
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Letras também na mesma Universidade e concluiu os dois cursos. Juçara também


fez Mestrado em Literatura Brasileira na USP.

Em paralelo às todas essas formações, o gosto pela literatura e pela


música sempre esteve presente na vida de Juçara, visto com permissão por sua
família, desde que delimitado como hobby. Juçara, então, sempre conviveu com a
busca de “ter aquela coisa estável e a música correr em paralelo”. Quando entrou na
USP fez parte do coral da Universidade, o qual depois se tornou um coral
independente. E lá estava Juçara fazendo concertos às próprias custas, sem o
aparato da Universidade, mas “assim, ah, um hobby aí, umas horas de folga”,
explica. Juçara ia articulando as suas atividades com a ideia de “conciliar tudo”:

Eu ia fazendo desse jeito, na tentativa de achar uma maneira de


continuar a faculdade, de alguma forma, mas a coisa da música
caminhando. Foi desde aí que surgiu essa questão de como conciliar
a estabilidade financeira ou o mínimo de sustentabilidade pra
continuar fazendo música (MARÇAL, 7/5/2015).

A partir dos relatos de Juçara acerca do contexto e das demandas de sua


família, fica evidente o quanto sua formação universitária corresponderia à
esperança de uma estabilidade econômica, assim como a dificuldade de tomar a
decisão de ser artista profissional, no sentido de viver de música.

Era aquela esperança de ‘Nossa, a filha boa de matemática... Ela vai


arrasar agora, vai ser engenheira’ (risos). E era um pouco isso. Eu
respondia um pouco a essa expectativa dos meus pais, né? E aí até
eu dar conta que ‘Putz, desculpa aí gente, mas não dá’ foi um
processo, assim... bem complicado né? E é claro que isso é uma
coisa com a qual eu convivo ainda hoje (MARÇAL, 7/5/2015).

Quando perguntada sobre alguma especificidade em ser mulher e negra


na sua profissão, Juçara informa que enquanto cantora negra, e mais: “enquanto
cantora que canta as coisas que tem a ver com a herança africana”, sabe que tem
uma responsabilidade imensa com esse tipo de discussão. Ela enfatiza que tem
61

muito cuidado de colocar sua condição e “militância” da maneira que mais lhe toque
e faça sentido para ela mesma. Juçara se sente pertencente a uma cultura negra e
popular e entende a arte, como parte da vida das pessoas, e uma forma de se
encontrar. Em suas palavras:

Então, eu acho que o mais importante é que eu faça de uma maneira


que tenha muito sentido pra mim, de uma maneira muito verdadeira,
né? Não é uma coisa que ‘Ah, eu vou cantar porque eu achei bonito’.
Aquilo tem que fazer um baita sentido pra mim. Eu fiz parte de um
grupo que pesquisava principalmente a cultura popular. E foi a partir
do trabalho desse grupo que eu comecei a frequentar terreiros de
candomblé, brincadeiras de roda em Pernambuco, Paraíba... E ver a
força que essa arte tem pra essas pessoas me fez entender muito do
meu fazer artístico. E me posicionar como brasileira... Porque até
então... Eu te falei né? Eu fiz coro da USP... Tem todo um jeito de
lidar com a cultura de uma forma mais erudita, né? Ah, essa própria
separação... Mas aí quando eu entrei no universo da cultura popular
foi um divisor de águas do ponto de vista estético e pessoal de
entender que a arte tem que fazer um outro sentido pra você, não
simplesmente de você ficar sozinho no seu nicho criando alguma
coisa distante da realidade. A arte pra essas pessoas faz parte da
vida. É a maneira de se encontrar, de celebrar, de chorar... Então,
isso mudou completamente o meu jeito de entender o fazer artístico.
E aí eu tento responder sempre a essa sensação... Eu tô inteira
nessa história? Se eu não tô inteira não é pra fazer, eu não tô
dentro... E aí tá inteira é isso que eu sou: sou negra, sou mulher.
Essa é a minha posição no mundo (MARÇAL, 7/5/2015).

No caso da cantora, instrumentista e compositora baiana, radicada em


São Paulo há sete anos, Marcia Castro, negra, 36 anos, observou-se um outro
contexto econômico familiar, bem mais estável. Mesmo assim, sua mãe, médica, seu
pai e irmão, advogados, tinham uma expectativa de que Marcia seguisse uma
dessas carreiras “mais formais”. Sua declaração “Vou fazer música” veio
acompanhada do “Mas como assim fazer música? Faz música paralelo, vai fazer
outra coisa...”. Para Marcia, provar que realmente ia se dedicar a música de forma
principal, viver da música e ter essa atividade como profissão foi um processo
múltiplo: “Tem vários processos dentro desse processo”, afirma (CASTRO,
5/5/2015). Os questionamentos familiares iniciais acerca da escolha de sua
profissão foram sanados via uma postura e formação empreendedora da artista.
62

Marcia chegou a cursar três cursos superiores. O primeiro, e único


concluído, foi Marketing. De início e sem mesmo ser perguntada sobre a questão do
empreendedorismo na área artística, Marcia destacou que o Marketing foi um curso
super importante dentro da cadeia na qual ela está incluída de “músicos
empreendedores”. Depois que concluiu Marketing, Marcia começou a cursar a
faculdade de Música na Universidade Federal da Bahia (UFBA), frequentando as
aulas durante dois anos e meio. Um mal entendido burocrático acumulou-se com
insatisfações e críticas quando à predominância do aspecto erudito do ensino e a
cantora deixou o curso.

Depois disso, Marcia resolveu cursar Direito por influência do seu pai.
Relata que estava difícil fazer música em Salvador e não se enquadrar no axé
music... Pensou: “Meu Deus do céu, eu sou louca... Eu vou fazer o quê da minha
vida fazendo música aqui em Salvador? Cantando em bar... Não vai dar certo isso...
Aí daí eu fiz ‘Não. Vou fazer Direito’”. Cursar Direito, nesse momento, representou
para Marcia a possiblidade de uma garantia financeira, ao mesmo tempo em que
cogitava deixar a música em segundo plano ou correr em paralelo. Cursou Direito
durante um ano e foi suficiente para entender que não era o seu caminho. Marcia
conta que ficou um pouco angustiada nesse período, época em que teve vários
“apertos no peito” relacionados ao fato de fazer algo que não se identificava.

Nesse momento, a artista percebeu com mais veemência que “tinha que
fazer música”, seguir esse caminho e saber lidar com as questões de mercado, sua
principal aflição e também de sua família. Ela explica que fazer “arte em si” é sempre
“a delícia da coisa” quando se descobre que quer ser artista. Mas as questões
comerciais são muito mais complicadas porque dizem respeito a sua sustentação no
mundo: “A poder ir e vir, a poder investir na própria carreira, a poder fazer a coisa
girar, a poder fazer com que sua vida pessoal também possa existir a partir do seu
trabalho”. Desde então, ela afirma ter enfrentado tais questões comerciais com muita
coragem, alternado com momentos ainda de um pouco de dúvidas, não de dúvidas
da escolha profissional, mas de que caminho seguir pra que seja feliz no aspecto
financeiro da sua carreira (CASTRO, 5/5/2015).

Para Marcia, algumas de suas condições são muito importantes na


construção do seu trabalho. Notadamente, o fato de ter nascido na Bahia, o fato de
63

ser negra, ser mulher e homossexual. Primeiro, ela explica que se considera negra.
“Porque aqui o negro não se acha negro”. Entende que essa negritude na sua
música e no Estado em que nasceu são muito importantes para sua construção
musical. Embora Marcia ache que a mulher tenha avançado um pouco no ambiente
de trabalho, e reconhecendo espaço para o gênero feminino na música (na música
popular o papel principal é da mulher cantora, segundo Marcia), existem
cruzamentos que explicam outras questões. Finalmente, a artista explica que sua
condição sexual não é um fato que releva como bandeira, mas não faz questão de
esconder. Gosta da prática do infiltrado e de cantar temas relacionados à
homossexualidade: “O De Pés no Chão, né? Que é o título do disco e que fala ‘Eu
nasci descalça, pra quê tanta pergunta?’” (CASTRO, 5/5/2015).

Na família do músico e professor José Guilherme Lima, branco, 39 anos,


todos gostavam muito de música, de forma que sempre se ouvia muita música em
casa e alguns dos seus tios eram músicos amadores. Sua mãe estudou artes
plásticas e trabalhou na área. Seu pai foi engenheiro químico de uma grande
empresa, o que lhe fez mudar de cidades algumas vezes. Nasceu no Rio de
Janeiro/RJ, cresceu e passou a adolescência em Recife/PE e mudou-se para São
Paulo/SP no início da fase adulta, aonde vive e trabalha hoje.

Missionário José, como também é chamado, começou a dar aulas de


música cedo e não teve muitos problemas familiares no sentido de relacionar música
ao ócio e suas variantes pejorativas. Mesmo que esse tenha sido um tema que
poderia ser tocado, essa não era uma grande questão em sua família. “Não era uma
coisa do tipo ‘meu pai quer que eu seja advogado e era uma tristeza pra ele eu ser
músico’”, afirma. Ele explica que era mais uma questão de ter uma consciência de
que, nesse caso, música não seria de forma alguma ócio, nem um passatempo... As
conversas com seus pais, do ponto de vista profissional, nunca foram no sentido de
“faça isso ou faça aquilo”, mas mais no sentido de “é importante que você trate isso
em uma perspectiva de...”. Afinal, “a gente vive numa sociedade que demanda
algumas coisas e essa é sua ferramenta pra se relacionar com a sociedade, você vai
ter que se virar”, afirma. Mesmo assim, Missionário conta (2/9/2015) que algumas
vezes escutou “faz um concurso público”. José é formado em música pela UFPE.
64

O rapper paulista Ricardo da Silva (o Rico Dalassam), negro, gay, 26


anos, é formado em cinema, queria ser diretor de arte, mas sempre fez raps.
Escrevia, mostrava para alguns amigos... Na sua família, ninguém é ligado à música.
Segundo Rico, as pessoas abandonaram seus sonhos pra ser funcionário de
alguém. Foi uma necessidade também, explica. A partir de um período, começou a
se sentir “morto”, algo na sua existência, algo particular. Sentiu que sua natureza
estava sendo oprimida. Queria falar, mas não tinha como falar. Queria ser, mas
estava difícil de ser ele mesmo, com tudo que o envolve. A arte que ele estava
exercendo não estava sendo escape, não estava lhe colocando diante de um lugar
que ele liberasse tudo que estava sentindo. Então falou pra si mesmo que iria se
permitir mais na música porque teria chance de encontrar pessoas que se
identificasse com o que ele vivia. Foi aí que gravou, lançou e a música “deu uma
andada” na sua vida (DALASSAM, 15/6/2016).

Para Rico Dalassam a música é um lugar de fala, tendo em vista que


quase sempre as pessoas não querem dar voz a jovem negro gay. “E aí sempre que
eu estou fazendo uma música, ela precisa ser um grito, ela precisa ser uma coisa
que está muito dentro de mim”, afirma. Ele conta que nunca quis ficar sofrendo
homofobia, racismo... Saber que esse é o primeiro olhar das pessoas sobre ele
sempre foi dolorido. As suas palavras podem contar melhor a sua trajetória na
música, tendo em vista o contexto social específico no qual se encontra.

A gente tá vivendo umas coisas muito horríveis, duras, esses dias...


E isso já me atrapalhou muito né? Muitos anos da vida... Me
atrapalhou por eu não saber lidar. Sempre fui um perdedor, oprimido,
sem força pra nada, eu deixava de fazer as coisas só porque eu
sabia que ia ser rejeitado... Foi assim que foi minha adolescência
toda. E tinha vários fatores né? Negro, gay, eu era gordo... Era
metido a saber das coisas de moda, sendo que eu era totalmente o
que a moda rejeitava... Mas cheio de sonhos... Então, pense você
cheio de sonhos que são a contramão que a sociedade quer... Sofria
horrores. E o primeiro orgulho que eu encontrei foi o orgulho negro. E
aí eu fiquei chato. Eu falava com as pessoas com o olho pegando
fogo, e isso passa, as pessoas sentem... que tem uma energia
saindo de você que não é comum, e aí isso é ótimo. Quando eu vi
que isso tava forte em mim eu falei ‘agora eu preciso ser uma bicha
que arrasa’. Ninguém vai me dar um mundo, eu vou ter que construir
o meu próprio mundo. E não é sendo fofo que isso vai acontecer. E
aí fui entendendo [...] Na questão do comportamento, as pessoas
falavam as coisas e eu já respondia. Eu não dava tempo das
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pessoas me humilharem, eu via que se criava uma atmosfera de


brincadeirinha eu já respondia. E o rap foi quem me deu as palavras.
Nas batalhas e tal, é uma coisa que você cria um diálogo de
perguntas e respostas muito rápido, você fica rápido pra retrucar,
sabe? E aí eu virei essa pessoa pronta pra retrucar e as pessoas
começaram a me tratar diferente. E aí eu também comecei a ler
pessoas que eram cheia de poder já, nos assuntos que me
interessavam. E tudo isso são descobertas que eu quero lidar logo. E
sempre estar pronto pra dividir com as pessoas. Porque tem gente
que me segue e isso faz diferença na vida de muita gente... Tem
muito retorno, sabe? Não é todo dia que eu fico lendo os inbox, mas
tem um dia que a gente tá trabalhando e eu digo ‘vamos abrir os
inbox’ e a gente sabe que a gente vai chorar, saca? É muita
história... Não dá pra explicar essa coisa de você influenciar a vida
de alguém. E tudo que você quis a vida toda foi que tivesse alguém
que influenciasse sua história, que te ajudasse a não se sentir
daquele jeito. [...] Eu ouço essa história e penso que preciso fazer
uma música ainda melhor, que deixe as pessoas com mais ânsia de
mudar a histórias delas etc. Quando eu ouço esses negócios isso
tudo volta pra mim. Eu tô gostando muito de viver isso (DALASSAM,
15/6/2016).

Na sua casa o fato de Rico querer viver de música nunca foi um fator de
desarmonia. Segundo o rapper, sua mãe sempre o enxergou como uma pessoa do
“eu quero, eu faço e faço dar dinheiro”. Ele sempre teve uma relação com moda e
com 13 anos começou a trabalhar como cabeleireiro. Depois foi trabalhar como
freeelancer. Rico não abriu mão, inicialmente, dos seus outros trabalhos para fazer
música. “Eu falei ‘eu vou ter dois empregos’” E se um não deixar eu ter o outro o que
eu quero ter é a música’”, relata (DALASSAM, 15/6/2016). Rico seguiu essa lógica,
até o momento em que não conseguiu atender todas as demandas. Hoje Rico afirma
que faz cerca de 8 shows por mês. Ao longo da entrevista, a narrativa do sucesso
via empreendedorismo, do empoderamento relacionado à estética da lacração e do
consumo, e a exaltação da passagem dos estratos de classes ficam bastante
evidente na fala do músico.

O cantor e compositor paulistano Romulo Fróes, branco, 44 anos, foi


bancário durante seis anos, indo de office boy à caixa, quando, finalmente, “pediu
pra sair”. Formado em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes, conta que se
existe algum dom em sua vida é para desenhar. Desenha desde muito cedo. Seu
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desejo era ser desenhista e depois artista plástico. Foi trabalhar com Nuno Ramos6,
de quem foi assistente 16 anos, e hoje é seu parceiro. A música sempre esteve
presente em sua vida. Seu pai gostava muito de música e Romulo chegou a ter
bandas no colégio e participar de alguns festivais, mas sua formação na área
musical não existia ou era muito precária. Ele conta que nunca estudou música de
forma “séria”. Fez uma aula de violão aqui, outra ali, e se preparou para ser um
artista plástico (FRÓES, 30/4/2015).

Durante sua experiência com artes plásticas, especialmente quando foi


trabalhar na produção da Bienal de 1992, Romulo começou a perceber que “não
tinha uma voz muito forte em artes plásticas”. Ele explica que era pintor, mas era
“muito genérico”. Conversando com Nuno Ramos, Romulo entendeu que não tinha
muito o que dizer caso se tornasse um artista plástico. E, curiosamente, na música,
começou a achar que, apesar de uma formação precária, tinha algo ali que “podia
acontecer”. Então, o que ele fez foi associar o seu “dinheiro da vida”, trabalhando
com o Nuno e com as artes plásticas, à música. Em outras palavras, associou o seu
sustento financeiro ao trabalho com artes plásticas, enquanto desenvolvia alguns
projetos musicais. Pensou: “achei um grande emprego”. Porque, além de ganhar
dinheiro “para a vida”, tinha facilidade de, por exemplo, “Vou tocar no Rio de Janeiro,
não posso vir hoje. Nuno dizia: Beleza, não tem problema”, conta (FRÓES,
30/4/2015).

Romulo destaca que, por causa do Nuno Ramos, fez e estudou “muita
coisa”, e que essa convivência foi muito importante para o que ele faz na música
hoje. No âmbito musical, quando começou a se dedicar um pouco mais, Romulo se
descobriu um compositor, o que atrapalhou um pouco a sua formação como
instrumentista. Porque quando aprendeu a fazer dois acordes, fez quatro músicas.
Quando aprendeu mais outros dois, fez mais oito músicas. Ele esquecia o nome dos
acordes, mas fazia a música. Começou a perceber que, apesar da precariedade na
formação, tinha uma “voz ali” e um encanto. Romulo acha que o Nuno também viu
isso e começou a querer fazer música em conjunto com ele, processo que dura até
hoje.

6 Nuno Álvares Pessoa de Almeida Ramos, mais conhecido como Nuno Ramos é
pintor,desenhista, escultor, cenógrafo, ensaísta e videomaker brasileiro.
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O músico, DJ, produtor e entusiasta da cena musical independente


paulistana, Otávio (Tatá Aeroplano), branco, inicia a conversa afirmando que na
música sempre foi autodidata. Começou a compor com seis anos de idade, melodias
e letras, sem tocar instrumentos. Com 18 anos, um amigo começou a musicar as
suas letras em cifras. Um dia esse amigo falou: “Compra um violão pra você
aprender, que você tem que ser autônomo e estudar um pouco pra se virar
sozinho...”. Nesse momento, Otávio conta que estudou um pouco de violão e canto,
mas não se interessou em fazer uma graduação em Música, por exemplo, atestando
que sua formação no campo musical aconteceu de forma muito intuitiva
(AEROPLANO, 30/4/2015). Do interior de São Paulo, Bragança Paulista, Otávio está
na capital do Estado há cerca de 16 anos, aprendendo, por erros e acertos, a viver
de música.

O cantor, compositor, instrumentista e (auto)produtor paraense, radicado


em São Paulo, Felipe Cordeiro, branco, 31 anos, conviveu com a música de forma
intensa durante toda a sua infância. Seu pai, com quem mora em um apartamento
hoje (aonde recebeu essa entrevista no dia 14/4/2015), é músico profissional e
produtor. Manoel Cordeiro foi proprietário de diversos estúdios na Amazônia e
gravou centenas de discos (a conta chega à aproximadamente 1000 durante sua
carreira). Toda sua família paterna é envolvida com atividades musicais. Portanto, o
mais natural para Felipe era “todo mundo ser músico”. Ele brinca que foi estranho
quando disse que ia ser professor de Filosofia. A sua vida foi sempre pautada pela
música e pela possibilidade de “viver de música”, com o apoio de sua família
paterna.

Mesmo com toda a influência e suporte musical de sua família, Felipe


terminou o ensino superior em Filosofia pela Universidade Federal do Pará (UFPA)
em 2009 e, nessa época, já fazia música, mas não era músico profissional, no
sentido de viver de música. Tinha vontade de ser professor e ter a música como uma
segunda profissão. No entanto, ele deixa evidente a incompatibilidade de ter a
música como segundo plano. Segundo Felipe: “obviamente que não tem como tratar
a música como segundo plano de nada ou como plano complementar, tem que ser
um grande plano”. Há 5 anos Felipe vive só de música: shows, produção musical, e
às vezes é músico de outros artistas. Atualmente cuida principalmente da sua
carreira solo que leva o seu nome (CORDEIRO, 14/4/2015).
68

Na trajetória da cantora, intérprete e compositora paulistana Luísa Maita,


branca, 33 anos, em união estável com músico, sua família é bastante ligada à
música. A artista conta que seus familiares, apesar de não muito estruturados no
meio da música (já que nem sempre “formaram uma carreira”), tinham “vocação e
muito talento”. “Meu pai, meus tios... eles eram músicos por essência mesmo...”,
afirma. Durante a sua infância e adolescência ela conta que tudo girava em torno da
música: “Todas as conversas eram sobre música, todos os melhores momentos
tinham música, sabe? Todas as realizações familiares eram através da música”
(MAITA, 13/4/2015).

A partir dessa condição familiar, Luísa destaca que acabou “herdando”


certos interesses e também certas aptidões musicais. Segundo ela, ficar próximas
de pessoas que tem esse “talento”, ver seus familiares compondo uma música,
expressando o significado do que é música, do que é arte... Isso influenciou muito
fortemente a sua vida. Ela acredita que seria diferente se ela fosse filha de
advogados, por exemplo. Luísa conclui, então, que não teve muitas escolhas... E
como sabia da dificuldade que era desenvolver uma carreira em uma geração pós
anos 70 (que foi talvez o momento mais difícil de se viver de música), tinha muito
medo de seguir a vida na música: “Eu tinha muito medo e acho que até hoje eu
tenho um pouco, na verdade...” (MAITA, 13/4/2015). Luísa não tem formação
específica na área musical, mas trabalhou em várias pequenas gravadoras em São
Paulo.

A ênfase nas ideias de vocação e talento fazem parte da celebração dos


valores de “inspiração”, do dom e da genialidade descrita no começo desse capítulo.
Essa percepção profissional do artista fundamenta uma visão bastante idealizada,
fetiche que impede o próprio artista de considerar a sua atividade como trabalho e
(também) como mercadoria. Em outros termos, as distorções de consciência são
parte da ilusão da condição “genial” ou “especial” do músico, representação mais
acabada da reprodução social da consciência de classe burguesa, no caso
específico, do gênio criador, na formação continuada do sujeito “artista”.

Por último, quanto à especificidade em ser mulher e artista, Luísa afirma


que “a mulher tem um lado que realmente é mais interessante em algum nível. Eu
69

não sei exatamente qual, mas a mulher tem uma complexidade”. Fica evidente em
sua fala a essencialização da condição feminina.

Toda uma coisa do sentimento esta relacionada à música, então


acaba sendo realmente interessante, né? A relação da música com o
feminino eu acho que é interessante porque tem a ver com a coisa
emocional, tem a ver com o sonho, que é uma coisa ultra feminino.
Eu acho que a mulher na música ela acaba fazendo essa ponte,
sabe? (MAITA, 14/4/2015).

Contradizendo e harmonizando elementos da realidade social efetiva, ao


mesmo tempo em que afirma a essencialização do feminino, Luísa reconhece as
regras presentes no corpo da mulher que permeiam o seu trabalho enquanto artista:
“sempre esperam que você seja a gostosa, sabe? Sempre esperam que você seja
charmosa”. Entende que “a questão da mulher” no mundo social hoje ainda é muito
complicada, no sentido que é difícil a adaptação da mulher no mundo, tendo em
vista “todos os preconceitos relacionados ao corpo, à idade”. E afirma que “tem um
monte de regras na mulher que são muitos chatas de lidar. Eu acho que o homem,
nesse aspecto, está muito mais confortável” (MAITA, 13/4/2015).

A família do compositor, cantor, violonista e pesquisador paulistano


Marcelo Segreto, branco, 32 anos, não tem “nada a ver com arte”. Seu pai, arquiteto,
e sua mãe, psicóloga, nunca foram contra Marcelo ser músico, mas também nunca o
incentivaram. Ele conta que o caminho da música sempre partiu dele mesmo.
Começou a estudar música erudita e ficava cerca de seis horas seguidas estudando
violoncelo, de forma que seus pais perceberam, desde cedo, que música e
trabalho/formação estavam intimamente relacionados no cotidiano do filho
(SEGRETO, 14/4/2015). Marcelo é idealizador da banda Filarmônica de Pasárgada,
formada em 2008, na USP, aonde concluiu ensino superior em Música. Atualmente
faz Doutorando na mesma área.

Na trajetória do músico pernambucano multi-instrumentalista Tiago


Andrade, o Zé Cafofinho, branco, 40 anos, seu pai foi procurador do trabalho, mas
sempre teve um pé na música. Aos 8 anos Tiago iniciou sua formação em piano no
Conservatório Pernambucano. Dois anos depois trocou o piano pelo violão, com o
70

qual compôs as suas primeiras canções na adolescência. Conheceu o músico Siba


e o maestro Marcos César, com o quais aprendeu a tocar rabeca e bandolim,
respectivamente. Tiago chegou a entrar para o curso de Música na UFPE, mas
abandonou dois anos depois para morar em São Paulo. Hoje Tiago mora em Recife
e já lançou dois trabalhos solo. Seu pai, Gaspar Andrade, também lançou um CD.
Pai e filho participam um dos shows do outro.

A família da cantora e compositora pernambucana Alessandra Leão,


branca, 37 anos, não é do meio artístico. Seu pai é consultor empresarial e quando
Alessandra estava terminando o segundo grau e queria fazer teatro, ele lhe
incentivou a pensar que não seria a profissão em si que lhe daria dinheiro ou não,
mas “você dentro daquela profissão”. De uma forma geral, Alessandra afirma que
seus pais sempre a apoiaram em suas escolhas profissionais, até o momento em
que Alessandra se tornou mãe.

Alessandra é enfática sobre o quanto sua trajetória profissional ficou


“complicada” com a vinda do seu filho. Alessandra era a caçula de suas irmãs e
engravidou sem estar casada. Nesse momento, seus pais lhe perguntaram quando
ela iria, de fato, começar a trabalhar. Nesta época ela namorava Caçapa, seu
companheiro musical e seu atual marido, e estava numa fase de bastante
reconhecimento no meio artístico, voltava de uma turnê pelos Estados Unidos da
América com o grupo Comadre Florzinha. Alessandra conta que foi um susto
quando ela voltou da turnê e seus pais falaram “E aí você já tem um filho é uma
outra realidade, não dá mais pra ficar brincando de musica”. “E aí veio realmente
uma confusão na minha cabeça. Como assim? Eu não to brincando”, afirma (LEÃO,
2/9/2014).

O casal Alessandra e Caçapa não possuíam autonomia financeira e,


portanto, viveram, durante um longo período, na casa dos pais de Alessandra. Os
pais da artista, que possuem uma condição financeira estável, preocupados com o
futuro do casal, neste quesito, lhe impuseram uma atividade administrativa num dos
negócios da família: gerenciar uma clinica médica dentro de um shopping em Recife
e, assim, conforme conta, sua carreira ficou comprometida. Esta passagem de sua
trajetória aponta para uma reflexão sobre as especificidades da relação de gênero e
o trabalho artístico. A leitura que pode ser feita é que Alessandra sofreu duas
71

violências pela sua própria condição de existência: por ser mulher e por ser uma
artista.

Durante o período em que trabalhou na clínica, Alessandra começou a


fazer terapias e se perguntar o que estava fazendo ali. A artista conta que foi um
momento de intenso sofrimento porque, embora continuasse cantando, a música
tinha sido colocada, contra a sua vontade, em último plano em sua vida. Alessandra
não tinha um horário flexível na clínica e só conseguia ensaiar uma vez por semana.
Caçapa, por sua vez, nunca concordou que Alessandra fosse trabalhar na clínica e
nunca deixou de fazer música. Ele largou a arquitetura e desde então nunca parou
de fazer música. Observa-se, então, as ambiguidades que a relação arte, trabalho e
gênero colocaram para a trajetória de Alessandra.

Somente depois de três anos gerenciando a clínica, muita terapia e


angústia, ela finalmente conseguiu se desligar do trabalho imposto pelos seus pais.
Alessandra retomou as suas atividades na música em 2003, mas como ela disse,
“na angústia do desempregado” (LEÃO, 2/9/2014). Por meio de contatos que já
havia conquistado no meio musical, a solução encontrada foi trabalhar com
produção. Participou de importantes projetos como, por exemplo, o Dossiê Samba
de Roda, considerado patrimônio nacional pela Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Em 2006 realizou seu primeiro
trabalho solo, contemplado pelo Programa Petrobrás Cultural/2007, o Brinquedo de
Tambor (CD), produzido e arranjado em parceria com Caçapa. Desde então,
Alessandra já lançou outros quatro trabalhos solos. Já trabalhou ao lado de músicos
como Antônio Carlos Nóbrega, Siba, Silvério Pessoa e Zé Neguinho do Coco.

Na ocasião da entrevista para esta pesquisa Alessandra morava em


Recife e cursava ensino superior em produção fonográfica. Hoje ela mora em São
Paulo e não concluiu a formação. Seu marido, o Caçapa, começou o curso de
Música, mas também não concluiu, repetindo as críticas já feitas por outros artistas
quanto ao caráter erudito do ensino superior em Música. Autodidatas, Alessandra e
Caçapa estão sempre lendo e fazendo cursos de pequena duração na área musical
e de produção fonográfica.
72

O caráter autodidata da formação musical também é manifesto em


artistas como o pernambucano Fabio Trummer, branco, 46 anos. Compositor,
arranjador, guitarrista e vocalista da banda Eddie, o Fabinho estudou arquitetura,
mas se dedicou ao estudo “por contra própria” na área musical (TRUMMER,
6/9/2014). Da mesma forma, o pernambucano Hugo Gila, branco, 38 anos,
tecladista e arranjador da banda Academia da Berlinda e da Orquestra
Contemporânea de Olinda, conta que nunca teve oportunidade de ter aulas de
música. Mas ouviu muita música e sempre observou as pessoas tocando. Pegou
muito material didático emprestado e hoje em dia a internet tem lhe ajudado nesse
processo constante de aprendizado (GILA, 13/8/2014).

A cantora, compositora, produtora e artista plástica pernambucana


Catarina Lins do Aragão, branca, 38 anos, e mãe, vem de família artística. Sua mãe,
Iza do Amparo, é uma notável artista plástica de Olinda. Seu irmão, Paulo do
Amparo, também é músico e artista plástico. Seu marido é o Hugo Gila, um dos
músicos entrevistados nesta pesquisa. Catarina passava horas nos sebos do Recife
e de Olinda pesquisando sons e criando um acervo que lhe ajudaria a começar sua
carreira de Dj. Hoje, Catarina toca em festas e tem um trabalho autoral solo, em que
mistura música e temática feminista. No decorrer da entrevista, em uma casa de
show em Olinda, Catarina destaca em vários momentos a intensificação da sua
jornada de trabalho quando se trata de “administrar” a sua vida artística e pessoal.

Eu vou me articulando, né? Da maneira que eu posso... Porque,


além disso, eu também sou mãe de dois filhos. (‘- É um filho e uma
filha’ - grita João, seu filho de 6 anos). E é uma loucura administrar,
cuidar de tudo, sabe?... O marido (Hugo Gila) músico também...
Imagina só... (ARAGÃO, 13/8/2014)

II.III À procura de trabalho e identidade profissional

Nas diferentes trajetórias alcançadas nesta pesquisa, uma condição


apareceu compartilhada por grande parte dos músicos: a procura de trabalho no
campo artístico e dificuldade de identidade profissional. No último caso, seja pela
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resistência em se assumir artista enquanto principal profissão, seja pelo alto grau de
fragmentação do trabalho, de modo que a identidade profissional fica diluída frente
às inúmeras atividades exercidas. Esses fatores, por sua vez, variam de acordo com
a classe, a cor, a família (artística ou não), a região e o gênero dos artistas, assim
como o cruzamento de todos esses fatores.

O fato da amostra desta pesquisa ser parte da “nova cena independente


brasileira”, cuja maioria dos nomes conta com histórico de influência artística familiar
e/ou estrutura financeira favorável suscitam algumas questões. Para esses nomes,
em geral brancos, a dificuldade em se assumir artista aparece, comumente,
pincelada em suas narrativas. É o que acontece com o músico Felipe Cordeiro, cuja
família achou estranho quando ele disse que ia ser professor de filosofia, ao invés
de músico. A exceção vem da Alessandra Leão, situação em que a condição de
gênero se sobressaiu à sua condição de classe financeiramente estável.

Na amostra da pesquisa, foram os artistas negros que mais destacaram


em suas narrativas a dificuldade em se assumir artista, ao mesmo tempo em são os
que mais contam com formação superior (dos sete artistas, apenas um não tem ou
não está fazendo curso superior). Mas essa observação varia quando considerado,
sobretudo, a condição familiar do artista, seja financeira e/ou artística. É o que
acontece no caso de Marcia Castro. A artista, negra e nordestina, explica que
quando tem que preencher uma ficha hoje e afirma que tem 36 anos e é cantora, a
pessoa já desconfia que ela não “está pra brincadeira”, por conta da idade. Hoje, na
sua família, as pessoas entendem que fazer música não está ligada somente ao ócio
(embora ele seja bastante importante no processo criativo). Sua família lhe vê
enquanto empreendedora dentro do seu trabalho, o que deixa Marcia muito feliz.
Esse entendimento familiar sobre a sua escolha, e até apoio, veio quando ela gravou
o seu primeiro disco, em 2007, momento em que Marcia teve uma conversa mais
séria com sua mãe: “Ó, mãe, é isso aqui... Tenho esse plano de ir pra São Paulo,
inclusive, preciso de você nesse momento pra isso. E ela foi muito bacana. E me
ajuda, inclusive financeiramente, quando eu preciso” (CASTRO, 5/5/2015).

Por outro lado, quanto mais dificuldade financeira, e ainda mais se o


músico não vem de família artística, mais adversidade para assumir o risco da
profissão artística. O caso de Juçara Marçal é emblemático da intersecção entre
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raça, classe e gênero. Mulher e negra, da mesma forma que Marcia, Juçara não
conta com suporte familiar na área artística e/ou uma situação familiar que pudesse
sustentar a sua escolha em “ser artista”. Na ocasião da entrevista Juçara tinha, há
pouco mais de um mês, pedido demissão da faculdade em que dava aula. Porque
segundo a artista, toda a sua trajetória é permeada por “essa coisa de tá com o pé
em duas canoas”. E pela primeira vez, em Abril de 2015, com 52 anos, ela assumiu
pra si mesma e pra sua família que iria “viver com as coisas da música”. Nas suas
palavras: “Agora eu sou uma pessoa totalmente independente, digamos assim.
Vivendo só de música” (MARÇAL, 7/5/2015).

No decorrer da entrevista, Juçara deixou evidente algumas


incompatibilidades que sua vida como artista lhe impôs. Ela relata que, até bem
pouco tempo, era professora de faculdade, dava aula de canto no curso de teatro. E
por mais que essa atividade estivesse envolvida com música, tinha “um
complicador”, já que existia um programa a ser seguido, tinha a coisa da “rigidez dos
horários, tem a coisa da preparação... Não é você estar lá só no horário da aula,
né?” (MARÇAL, 7/5/2015). Tal configuração foi ficando cada vez mais inviável de
administrar com sua vida enquanto artista. As viagens e os shows que acabam tarde
da noite complicam o compromisso de estar na aula no dia seguinte bem cedo.
Mesmo tentando manter suas atividades com a música e com a faculdade (ela tinha
um coordenador bastante compreensível que lhe permitia certa flexibilidade quanto
às reposições de aula), chegou um ponto em que ficou insustentável a conciliação.

Juçara revela, então, que começou a se sentir mal com a situação de


achar que não estava fazendo o seu trabalho de forma satisfatória. Nesse momento,
calhou dela ganhar o prêmio Governador do Estado, um recurso que, até então, ela
não pensava em ter. A cantora explica que “não é uma coisa que ‘agora vou
comprar uma piscina e beber champanhe’. Bem longe disso. Mas era uma grana pra
você ter uma reserva pra conseguir segurar por um tempo” (MARÇAL, 7/5/2015).
Nesse instante, ela entendeu que era a hora propícia de pedir demissão “e arriscar”
uma situação em que ela até então não estava acostumada, que é conviver com
uma sazonalidade. Em suas palavras:
75

Eu realmente tô num momento... Eu realmente pedi demissão agora,


em Abril... Então, ainda não sei o que é isso. Eu ainda não sei o que
é viver sem ter um salário que, por menor que seja, está ali todo dia
X do mês. Então, agora eu vou ter que entender como é isso de você
ter que lidar com a sazonalidade [...] Realmente agora eu vou
aprender a lidar com essa nova realidade. Mas eu resolvi arriscar
porque justamente do ponto de vista do trabalho com shows, com
gravação, tá rolando bastante... E aí a minha perspectiva é que isso
aumente, né? Vou trabalhar pra isso. Acho que até a coisa de pedir
demissão é pra ter disponibilidade pra que os shows e as gravações
aumentem cada vez mais. É bem esse momento aí... (MARÇAL,
7/5/2015).

Diante da análise das trajetórias pesquisadas observa-se que os


mecanismos que fazem aparecer ou celebrar “talentos” estão ligados a condições
familiares financeiras e/ou artísticas, assim como cor, gênero, idade, região e
formação. Cada uma dessas condições e suas articulações informam diferentes
dimensões das atividades artísticas. Como o sociólogo Howard Becker (2006)
demonstrou com simplicidade desconcertante, arte é uma atividade reconhecida,
transmitida, apreendida, organizada, celebrada, e, como toda atividade, obedece a
regras, a constrangimentos, insere-se numa divisão do trabalho, em carreiras
profissionais, trajetórias financeiras, políticas de financiamento etc.

A partir dessa premissa, esta pesquisa pergunta o que é possível apontar


como específico e o que distingue o trabalho artístico das outras formas de trabalho.
Por trás da criação da ideologia do gênio criador, em um mercado aparentemente
harmônico e ligado a valores nobres de inventividade e individualidade, escondem-
se aspectos reais de uma carreira. Em outros termos, o artista é (também) um
trabalhador. Sua caracterização “independente” conforme categorizado pela mídia e
festivais especializados (e seu atributo cult), até aqui, se dá por meio de um perfil
jovem, de estrato de classe privilegiado, masculino, branco, geograficamente
localizado e com nível de escolaridade elevada em relação ao restante da
população.
76

III RETRATOS DO MERCADO DE TRABALHO ARTÍSTICO

O quadro analítico para a elaboração do retrato sociológico do artista é


permeado por desafios teóricos e metodológicos. Qualquer que sejam as
especificidades das práticas artísticas, elas não constituem uma exceção ao mundo
trabalho, mas representam e reconfiguram sua exterioridade. Embora o trabalho
artístico esteja constantemente relacionado a uma atividade distante de sua
concretude e autonomizado das demais esferas da realidade social, sua realização
prática e objetiva coloca o artista inserido no mundo do trabalho e de todas as
relações que dele se desdobram. Percebe-se a insuficiência de construções
simbólicas como vocação e dom para dar resposta aos sentidos e organizações das
profissões artísticas. Trata-se da emergência das ciências sociais em analisar o que
vem a ser o trabalho artístico e em quê ele se diferencia das outras formas de
atividade. Nesse contexto, problematiza-se a investigação do trabalho imaterial
realizada pelos teóricos do neomarxistas – Antonio Negri, Maurizio Lazzarato e
André Gorz – para incluir pressuposto da produtividade, segundo o arcabouço
analítico marxiano do trabalho.

Nessa perspectiva, a socióloga do trabalho artístico no Brasil, Liliana


Segnini (2012), considera a arte como um trabalho e o artista como um trabalhador,
e, dessa forma, integra a atividade artística na esfera do trabalho e dos
constrangimentos que são singulares e que a constituem. O trabalho artístico se
inscreve também (mas não só) na lógica de mercado e esta vinculação expressa as
configurações do próprio momento histórico.

O ofício do artista requer um longo processo de formação


profissional, que não termina jamais. Todo ensaio, todo espetáculo
significa, ao mesmo tempo, trabalho (muito trabalho!) e
aprendizagem. Esta óbvia constatação só foi por mim realizada,
socióloga do trabalho já mais de trinta anos, recentemente, há dez
anos. Participar da elaboração da CBO 2002 – Classificação
Brasileira de Ocupações, coordenando os comitês compostos por
trabalhadores e ocupados em Artes e Espetáculos, representou um
momento de descoberta, superação de equivocada percepção de
que o artista é um ‘ser iluminado’ que necessita de pouco trabalho
para criar e interpretar (SEGNINI, 2012, p. 49)
77

Contrariando as compreensões que encerram as explicações do trabalho


artístico em significantes como genialidade, observa-se que o trabalho para o
músico é tido (também) como processo consciente e racional, ao fim do qual resulta
uma obra como realidade dominada e não – de modo algum – um estado de pura
inspiração. Ao longo da entrevista, na inserção das subjetividades no contexto
mercadológico, identificou-se que muitas vezes os artistas se sentem “diferenciados”
dos outros trabalhadores, mesmo afirmando condições de precariedade. Falas de
autolouvor e de valorização se misturam ao reconhecimento das consequências de
processos estruturais. Algumas narrativas aparecem permeadas pelos discursos de
poder das instituições e da oficialidade, enquanto produto de um contexto
contraditório.

III.I Condições estruturais

A indústria cultural como conceito surge por meio da análise de dois


fenômenos: o efeito social do surgimento dos veículos de comunicação de massa,
segundo Adorno e Horkheimer (2002); e os processos mecânicos e a capacidade de
reprodução de produtos culturais, segundo Benjamin (1994). A dinâmica que indica
o avanço da técnica industrial sobre os bens culturais é uma das premissas
essenciais das pesquisas desenvolvidas pelos filósofos de Frankfurt na década de
1950, a fim de registrar a situação das artes na sociedade capitalista. A partir da
noção de indústria cultural intensificam-se as discussões em torno da cultura
enquanto campo teórico econômico. A emergência da lógica da produção comercial
no âmbito cultural faz com que os produtos sejam assumidos como mercadorias
desde o momento da produção e fazem parte das mediações que informam a
configuração do trabalho artístico.

O sentido da prática total da formação econômica e o seu emprego no


tempo expressam o momento histórico subjacente à superprodução capitalista, com
base na necessidade estrutural do capitalismo em escoar seus produtos. Nesse
sentido, o escritor francês Guy Debord (1997) teoriza sobre o fetichismo da
mercadoria em sua categoria quantitativa de sobrevivência aumentada, enquanto
78

principal pressuposto do espetáculo. Segundo o autor (DEBORD, 1997, p. 22), a


produção econômica alarga a sua forma de funcionamento extensiva e
intensivamente até mesmo nos lugares menos industrializados, por meio de
mercadorias-vedetes, entre as quais a cultura assume o posto de destaque. O
crescimento das atividades culturais possibilita então que o seu mercado assuma o
impulso central do desenvolvimento da economia do espetáculo, de forma
equivalente ao automóvel no século XX e às ferrovias na segunda metade do século
XIX.

A abordagem analítica do trabalho artístico permite estabelecer relações


entre as formas desse tipo de atividade e a reestruturação do capital no tempo, no
sentido de que o próprio modo de produção de bens e valores no capitalismo
contemporâneo, sua dinâmica de distribuição e consumo aponta para o movimento
de proeminência da cultura e de suas atividades. A partir do estudo sobre a
acumulação pós-fordista na década de 1970, o geógrafo britânico David Harvey
(2002) explica o uso do termo sociedade pós-industrial para indicar as mudanças na
forma de acumulação do capital. O deslocamento do modelo de produção e
acumulação centrado na rigidez fordista para o regime fundamentado na maior
flexibilidade e complexificação dos processos produtivos assegura a ampliação das
modalidades de trabalho, produtos, serviços e mercados, orientados sob a
perspectiva global. Segundo Harvey (2002, p. 138), as principais características
dessa dinâmica estão basicamente relacionadas ao crescimento de bens simbólicos
e do setor de serviços, acompanhadas do uso intensivo da tecnologia e da
informação, tendo como vetores as noções de inovação e criatividade.

No mesmo sentido de observação quanto à proeminência do cultural


enquanto reserva disponível para a produção e a reprodução do capital, o
pesquisador George Yúdice (2006) explica a conveniência da cultura enquanto
recurso. Nos termos do autor (YÚDICE, 2006, p. 62), o papel da cultura expandiu-se
para as esferas econômicas e políticas, ao mesmo tempo em que absorveu e
eliminou distinções até então prevalecentes nas definições da alta cultura, da
antropologia e da cultura de massa. A projeção econômica do setor na sociedade
contemporânea atribuiu à cultura um protagonismo maior do que em qualquer outro
momento da história da modernidade, situação em que se misturam a economização
79

da cultura e/ou culturalização da economia. Todos estes fatores têm, primeiro,


operado uma transformação naquilo que se entende por cultura. E, segundo,
impresso uma racionalidade econômica, gerencial e administrativa no setor.

A partir das constatações da dimensão econômica da área cultural, o que


tem se convencionado chamar de cultura junto à UNESCO e diversas
nacionalidades está relacionado às indústrias geradoras de propriedade intelectual
(PI). Sua institucionalização junto ao mercado e à política global tem demandado
investimento teórico, pesquisas e debates no sentido do estabelecimento de uma
genealogia que dê conta da transformação da cultura em recurso. Surgem conceitos
como Economia da cultura, criativa e do entretenimento. O uso da economia
aplicada e de sua metodologia passa a ser instrumental, emprestando os seus
alicerces de planejamento e eficácia para reforçar consecução dos objetivos
traçados em termos de relações de oferta, demanda e consumo cultural. O setor,
tradicionalmente visto como tomador de recursos, mostra agora altos níveis de
rentabilidade. A cultura é então encarada na perspectiva do bom negócio 7, noção
que gera e atrai cada vez mais investimentos para as indústrias do entretenimento e
chama a atenção do empresariado, instituições governamentais e bancos
internacionais.

Não se trata de analisar nesta pesquisa as categorias de Economia da


cultura, criativa e do entretenimento, mas destacar o que tais noções assinalam a
respeito do período contemporâneo e suas consequências para o trabalho artístico,
especialmente no âmbito musical. Salienta-se a relação entre cultura e economia
não apenas como mercadoria, mas enquanto modo de cognição e organização
social associada à retórica de “nova economia” que se baseia no trabalho cultural e
criativo, fortemente amparado pelas novas tecnologias da informação e da
comunicação (TICs). Na verdade, a agenda sociopolítica da cultura que inclui a
“geração de trabalho e renda” de uma “classe criativa” conectada a termos como
inovação e autonomia é composta de ambiguidades para o trabalho artístico e faz
parte do esforço de compreensão de como a economia cultural tem funcionado
também enquanto economia política.

7Publicação amplamente difundida pelo Ministério da Cultura em 1995, uma espécie de cartilha sobre
o modo de investir em cultura no Brasil.
80

A institucionalização da cultura e sua expansão como fator de


desenvolvimento junto às organizações multilaterais do porte das agências que
compõem o Sistema das Nações Unidas, assim como a ênfase em sua noção
enquanto recurso, tem demandado a busca por indicadores do setor. Registra-se a
crescente participação da cultura na economia mundial e no Produto Interno Bruto
(PIB) de diversos países. De acordo com os dados mundiais, a cultura em sua forma
mercadoria estaria expandindo o setor do entretenimento como um dos setores mais
lucrativos desse século. O relatório mais recente desenvolvido pela Organização das
Nações Unidas (ONU), por meio de uma parceria entre a United Nations Conference
on Trade and Development (UNCTAD) e o Plano das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), com o apoio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o
Banco Mundial (BM), intitulado “Relatório da Economia Criativa – 2010”, destaca a
importância da área na economia global, responsável por 10% do PIB mundial e cuja
taxa de crescimento médio anual é de 14% (UNCTAD, 2010).

No relatório da UNCTAD (2010), poucas vezes a palavra trabalho (grifo


nosso) apresentou-se de forma relacionada ao artista ou produtor da cadeia
econômica quantificada. Na maioria das vezes em que a palavra trabalho apareceu
foi vinculada a atividade do próprio relatório e das instituições que o promoveram. O
documento faz menções espaças a um “artista criativo”, enquanto “extremidade
originadora da cadeia de valor”. Em outra situação o documento chega a defender a
existência de uma “legislação nacional abrangente” para o artista (sem explicar em
quê isso consiste), assim como o aumento dos padrões de proteção da PI enquanto
paradigma remuneratório para o “empreendedorismo criativo” (UNCTAD, 2010, p.
86).

Sobre o discurso que procura assegurar a remuneração dos artistas por


meio da PI, em sua variante específica do direito autoral e os que lhe são conexos,
concluiu-se em estudo próprio (CERQUEIRA, 2013) que esses mecanismos não
fazem parte dos rendimentos dos músicos a ponto de serem tidos como paradigmas
remuneratórios. Na verdade, o direito autoral, tal como construído, regulamentado e
fiscalizado tem servido de extração de lucro para o capital, consubstanciado na
figura dos conglomerados do entretenimento. Destaca-se que a consciência, nesse
terreno, sempre foi mais editorial do que propriamente autoral. Em outros termos, a
81

razão tutelar do direito do autor não é proteger a criação intelectual, mas sim, desde
o início, proteger os investimentos, ou seja, o mediador, de forma que há um
antagonismo entre os trabalhadores/criadores no campo das artes e a apropriação
privada dos mediadores por meio do direito autoral.

Na América Latina também crescem os esforços de institucionalização da


cultura, o número de publicações que a relaciona com a economia, assim como as
iniciativas quantitativas, inclusive com o respaldo de organismos internacionais8. Da
mesma forma, evidencia-se a existência do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL)
Cultural que se configura como rede regional e institucional que trabalha para
fortalecer os sistemas de informações culturais. A Argentina assumiu a
responsabilidade pela centralização e processamento das informações culturais de
cada país. Em 2009, o Observatório de Indústrias Criativas de Buenos Aires concluiu
que no ano de 2008, o setor correspondeu a 9% do PIB da cidade e 9,5% dos
empregos gerados (UNCTAD, 2010, p. 84). O Sistema de Informação Cultural do
MERCOSUL também serviu de base para a publicação Nosotros e los Otros: el
comercio exterior de bienes culturales en América Del Sur, o qual demonstra um
déficit no saldo do comércio de bens culturais dos países da América do Sul no
contexto do comércio global.

A propósito do desequilíbrio na distribuição da economia global da cultura,


o antropólogo argentino Néstor García Canclini (2008, p. 63) relata que os Estados
Unidos da América (EUA) ficam com 55% dos lucros mundiais gerados pelos bens
culturais e comunicacionais; a União Europeia (UE), com 25%; o Japão e o restante
da Ásia, com 15%, e os países latino-americanos, com 5%. Para o autor (CANCLINI,
2008, p. 72) a possibilidade de existência de equilíbrio nas cifras encontra sua
inviabilidade práticas frente às regulamentações da cultura no âmbito dos
organismos comerciais internacionais, caracterizadas pelo corporativismo,
evidenciando a hierarquia do sistema mundial e as assimetrias entre as sociedades
centrais e periféricas, as quais concorrem igualmente no mercado global, formando
então uma criatividade estandardizada.

8 Entre os acordos internacionais no âmbito da cultura na América Latina destaca-se o Convênio


Andrés Bello, assim como as articulações com a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) e
o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
82

Embora o discurso da indústria do entretenimento incorpore as noções de


criatividade no livre mercado global, é preciso destacar a divisão deste trabalho do
ponto de vista internacional. Para Yúdice (2006, p. 109) o uso da força de trabalho
latino-americana em sua relação com o resto do mundo se caracteriza pelo
predomínio de empresas auxiliares com contratos temporários, submetidas ao
processo de produção controlado de fora. Essa configuração contribuiria para
ampliação na base de produção e criação para grandes indústrias do
entretenimento. De forma análoga à clássica divisão internacional do trabalho, na
produção cultural há uma distinção entre os países que concentram o acesso
tecnológico aos recursos mais avançados e os países com baixa capacidade de
participação nos mercados do entretenimento.

O grande destaque para análise das atividades artísticas está na


pesquisa realizada em 2014 pelo Projeto Trama: Rede de trabalhadores da cultura e
o Observatório de Políticas Culturais, com o apoio do Conselho de Cultura chileno,
intitulada “O cenário do trabalhador cultural no Chile”. Segundo o estudo (TRAMA,
2014), a indústria criativa é uma palavra sugestiva, mas que pouco acrescenta sobre
a situação dos artistas chilenos. Ao mesmo tempo em que há uma produção cultural
crescente no Chile destaca-se a precariedade das condições laborais neste tipo de
atividade. 65,7% dos trabalhadores da cultura não contam com qualquer espécie de
contrato de trabalho para a realização das suas atividades. Embora 61,7% dos
trabalhadores da cultura chilenos tenham título universitário, esta qualificação não se
traduz em suas remunerações, as quais são incertas e fragmentadas, em um
contexto em que 56,6% dos artistas são tidos como independentes (TRAMA, 2014,
p. 2).

No Brasil, após algumas tentativas de quantificar o setor cultural 9, em


2002 a UNESCO, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) uniram-se em torno da necessidade de

9 O primeiro estudo no sentido de organizar e sistematizar informações para a construção de


indicadores do setor cultural brasileiro foi realizado ainda na década de 1988. Por iniciativa do
Ministério da Educação e Cultura (MEC), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
produziu um inquérito especial sobre cultura no Brasil, também conhecido como Censo Cultural. O
resultado, contudo, não chegou a ser divulgado por mudanças institucionais ocorridas à época. Em
1995-1996, o Ministério da Cultura (MinC) contatou o IBGE sobre a possibilidade de realização de um
novo censo cultural, mas a ideia não teve prosseguimento. Em 1998, a Fundação João Pinheiro
realizou pesquisa, encomendada pelo MinC, cujos resultados indicam que foram gastos R$ 6,5
bilhões no setor, representando 1% do PIB daquele ano.
83

produzir e desenvolver uma base de informações relacionadas ao setor. Essa


proposta se concretizou com o acordo de cooperação técnica assinado em 2004
entre o IBGE e a Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (MinC). A
terceira e última atualização da pesquisa, com dados referentes aos anos 2007-
2010, indica que a participação da cultura10 nas atividades econômicas do país
representa 4,5% do PIB, com crescimento médio anual de 6,13%, o que é superior
ao aumento médio do PIB nacional (cerca de 4,3%) (IBGE, 2013, p. 25).

A pesquisa do IBGE em parceira com o MinC (2003, p. 45.) também


aponta que em 2010 quase 8% do total de empresas no país estava voltada para a
produção cultural, responsáveis por cerca de 4% dos postos de trabalho. A região
Sudeste apresenta a maior participação de trabalhadores em atividades culturais na
população ocupada. A próxima missão do MinC no sentido de mensurar os dados
sobre a cultura brasileira é implementar a Conta Satélite da Cultura, cujos resultados
apontarão mais referências sobre o setor. A tabela abaixo, extraída da pesquisa
MinC-IBGE (2003, p. 48), informa o número de empresas, pessoal ocupado, salários
e remunerações no setor cultural entre os anos de 2007 a 2010.

Tabela 1 - Número de empresas, pessoal ocupado total e assalariado, salários e outras


remunerações no total das atividades e nas atividades do setor cultural | Brasil 2007-2010

Pessoal ocupado em 31.12 Salários e


Número de outras
Ano
Empresas Total Assalariado remunerações
(1 000 R$)
Total de atividades
2007 4 420 345 42 641 175 36 658 326 602 812 132
2008 4 607 261 44 574 884 38 407 783 700 437 830
2009 4 846 639 46 682 448 40 212 057 781 881 723
2010 5 128 568 49 733 384 43 000 578 908 823 997

10 Segundo o IBGE (2013, p. 4), a concepção de cultura adotada nessa pesquisa está relacionada
com as atividades econômicas geradoras de bens e serviços. O setor cultural foi definido de acordo
com a referência da UNESCO sobre as atividades culturais. O ponto de partida do estudo
concentrou-se no levantamento das atividades culturais existentes na Classificação Nacional de
Atividades Econômicas (CNAE). Optou-se por excluir do âmbito da atividade cultural as atividades
econômicas estritamente ligadas ao turismo, esporte, meio-ambiente e religião, que compreendem
atividades culturais em alguns países. Consideram-se como atividades econômicas diretamente
relacionadas à cultura as atividades características que são típicas da cultura, tradicionalmente
ligadas às artes. Foram incluídas as atividades de edição de livros, rádio, televisão, teatro, música,
bibliotecas, arquivos, museus e patrimônio histórico.
84

Atividades do setor cultural


2007 367 228 1 857 281 1 322 793 27 663 438
2008 381 801 1 953 597 1 408 284 31 482 023
2009 392 824 2 000 573 1 443 876 34 873 713
2010 399 958 2 102 698 1 545 112 41 480 345
Participação do setor cultural no total das atividades (%)
2007 8,3 4,4 3,6 4,6
2008 8,3 4,4 3,7 4,5
2009 8,1 4,3 3,6 4,5
2010 7,8 4,2 3,6 4,6

Fonte e elaboração: Minc/IBGE, 2003, p. 35.

Outros muitos estudos são realizados no âmbito da Economia da cultura,


criativa e do entretenimento no Brasil. O relatório da Federação das Indústrias do
Estado do Rio da Janeiro (FIRJAN) lançou em 2008 um estudo pioneiro no País: “A
Cadeia da Indústria Criativa no Brasil” . O conceito que norteava as indústrias
criativas e que servia como base para a taxonomia das atividades econômicas inclui
setores como publicidade e arquitetura. O último estudo atualizado em 2014 estima
que a indústria criativa brasileira avançou 69,8% em termos reais, acima do avanço
de 36,4% do PIB brasileiro nos mesmos dez anos. Segundo a FIRJAN, a indústria
criativa cresceu 90% em 10 anos (FIRJAN, 2014, p. 23). Curiosamente, a pesquisa
da FIRJAN informa ainda:

Os trabalhadores criativos apresentam salários superiores à média


da economia como um todo, quase três vezes superior ao patamar
nacional. De maneira geral, as profissões criativas demandam
elevado grau de formação, contribuindo para geração de produtos de
alto valor agregado. Além disso, a meritocracia é um fator muito
valorizado entre a classe criativa, pois estas privilegiam o trabalho
movido a desafios e estímulos (grifos nossos) (FIRJAN, 2014, p. 32).

Diante do que foi exposto até aqui, destaca-se a proeminência,


legitimação e conveniência da cultura no capitalismo contemporâneo enquanto
importante recurso disponível, em diferentes níveis econômicos, de linguagem
simbólica, política e social. Crescem as atividades culturais e o número de pessoas
85

que trabalham nesse setor no Brasil e no mundo. Esses dados fazem parte do
contexto em que o trabalho artístico é desenvolvido e contribuem para a
compreensão das suas configurações. A propósito da noção de modernidade de
Marshall Berman (1986, p. 34), o autor destaca que o capitalismo não pode se
desenvolver sem modificar fenomenologicamente, e não ontologicamente, suas
relações de produção. Nesse sentido, a reestruturação produtiva inclui uma visão de
“novo homem” criativo. Esse arquétipo moderno do homem recém-criado expõe uma
das dimensões da modernidade que possibilita a ênfase nas atividades, produtos e
serviços culturais, criativos e tecnológicos, no contexto de uma “nova economia”,
hipoteticamente centrada no imaterial.

III.II Imaterialidade e mito

A questão do trabalho de criação ganha mais pertinência ao se considerar


a valorização dos meios de conhecimento e de criatividade nas economias
capitalistas modernas, cujo motor de expansão é a inovação incremental. As
teorizações sobre a produção contemporânea estão ancoradas, sobretudo, na
relevância de bens simbólicos, o que significa, fundamentalmente, a importância das
dimensões ditas imateriais de acumulação, nas quais se incluem as atividades
relacionadas à arte e à cultura. O economista político Ladislau Dowbor (2000, p. 23)
toma como ponto de partida o fato de que hoje, quando se paga um produto, 75% do
seu valor correspondem ao design e às estratégias de marketing. Essa seria a
novidade evidenciada pelo escritor estadunidense Jeremy Rifkin (2005, p. 28) sobre
a concepção do que dá valor aos produtos, ou seja, do que os tornam vendáveis
com o máximo de lucro.

Esse mundo considerado imaterial seria o resultado de uma


especialização da atividade humana que encarregaria alguns de desenvolver os
conhecimentos e inventar as obras capazes de satisfazer a necessidade de
novidade e divertimento? Ou informaria um novo paradigma sobre a criatividade no
mundo consubstanciado na expressão “capitalismo cognitivo”? A análise desse
modo de produção tem intensificado um instrumental teórico que reserva lugar
privilegiado ao trabalho imaterial. Apesar das grandes diferenças entre os autores
que trabalham com a ideia da centralidade do trabalho imaterial, todos parecem ter
86

em comum, três proposições básicas. Primeiro, a noção da imaterialidade desse tipo


de trabalho específico. Depois, a ideia da imensurabilidade desse trabalho, no
sentido de irredutibilidade. Por último, a concepção de que o trabalho imaterial
guardaria um potencial revolucionário imanente, uma vez que ele escaparia à lógica
do capital e estaria fortemente encorado nas tecnologias de informação e de
comunicação.

A principal corrente que desenvolve a teoria contemporânea da


centralidade do trabalho imaterial é chamada neomarxista. Seus principais
representantes são os filósofos Antonio Negri, Maurizio Lazzarato e André Gorz.
Tendo por base teórica o Grundrisse (MARX, 2011) e por substrato empírico a
Terceira Itália11, os neomarxistas partem da premissa da divisão dos três setores da
economia (agricultura, indústria e serviços) para afirmar que a reestruturação
produtiva teria dado ensejo à prevalência do tipo específico de trabalho que tem
como resultado um serviço e/ou informação, incompatível com a ortodoxia marxista
do operário taylorista-fordista, na medida em que não produziria mercadorias
tangíveis (GORZ, 2009, p. 16).

Gorz (2009, p. 23) assim define o conceito de imaterialidade: “o trabalho


do saber vivo não produz nada materialmente palpável [...] A coisa é perfeitamente
evidente nos ofícios artísticos”. Negri e Lazzarato (2001, p. 25), por sua vez,
caracterizam o trabalho imaterial como “aquela atividade criativa ligada à
subjetividade”. Do ponto de vista de seu conteúdo, afirmam os autores, “o trabalho
imaterial é o trabalho que produz o conteúdo informacional e cultural da mercadoria”.
Para os teóricos, essa atividade seria autônoma e inovadora, consoante o
entendimento de que socializaria os saberes, contemplaria as subjetividades,
incentivaria os níveis de cooperação e converteria os meios e processos
tecnológicos em proveito da emergente “comunidade comunicacional, organizativa e
relacional” (NEGRI; LAZZARATO, 2001, p. 42). De acordo com o contexto teórico do

11 O termo Terceira Itália é empregado para ressaltar especificidades frente a duas realidades que,
classicamente, eram opostas para afirmar o dualismo econômico e societal italiano. De um lado, o
triângulo industrial tradicional, ao norte. De outro, o Mezzogiorno, região marcadamente agrícola e
subdesenvolvida que compreende o centro-sul e as ilhas. A principal característica da Terceira Itália
está na consagração de pequenas empresas industriais com processos de trabalho flexíveis e alta
capacidade de inovação.
87

imaterial, o trabalho artístico seria o principal reino da criatividade e do tempo livre,


área da emancipação e da subjetividade.

A concepção de trabalho imaterial toma corpo a partir da ideia de sua


imensurabilidade em unidades abstratas simples que tem como medida o tempo
necessário para produção. Gorz (2009, p. 29) pontua que o trabalho imaterial
recorreria a “capacidades heterogêneas”, ou seja, “sem medida comum”; entre as
quais, o julgamento, a intuição, o senso estético e o nível de formação e de
informação. A rigor, essa irredutibilidade do imaterial acarretaria a crise na teoria do
valor de Marx pela dificuldade de padronizar e estandardizar a dimensão qualitativa
dessa produção. Quer dizer, a incerteza quanto ao tempo socialmente necessário à
produção imaterial colocaria em crise as noções clássicas de “sobretrabalho” e
“sobrevalor”. Em última análise, por não ser redutível à medida tradicional, sua
avaliação pelo capital restaria problemática. Finalmente, para os autores
neomarxistas, o trabalho imaterial não se prestaria à apropriação privada e
escaparia à lógica do capital.

Essa imensurabilidade do trabalho imaterial, por sua vez, indicaria, para


os neomarxistas, um potencial revolucionário imanente. Por meio dessa modalidade
de trabalho, a relação do indivíduo com a produção se dá “em termos de
independência com relação ao tempo de trabalho imposto pelo capital [...] e em
termos de autonomia com relação à exploração” (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p.
30). Em outro momento, Lazzarato (2001) afirma uma “radical autonomia” do
trabalho imaterial. Na ótica do autor, a “crise do valor trabalho” daí decorrente “é
também a crise do capitalismo” (LAZZARATO, 2001, p. 73). Esses autores (GORZ,
2009; NEGRI; LAZZARATO, 2001) acreditam que graças ao próprio
desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, pela primeira vez na história,
uma sociedade livre de produtores pode aparecer com o processo lógico da
evolução técnico-econômica. De acordo com essa perspectiva existiria hoje, pelo
menos como tendência, a possibilidade de existência de atividades desatadas da
produção de mais-valia no interior da sociedade capitalista, na medida em que o
trabalho produtor de mais-valia seria apenas o trabalho físico-material.

As principais características do imaterial são resumidas pelo sociólogo


Jean Lojkine (2002, p. 34) em sua obra Revolução informacional, quando enfatiza
88

que a superação da sociedade mercantil já estaria inscrita no caráter imaterial da


informação, o que a impediria de ser portadora da forma mercadoria. Nesses termos,
a revolução informacional seria, portanto, o “anúncio e a potencialidade de uma nova
civilização, pós-mercantil”. Logo, a tendência analítica dos neomarxistas apontaria
para ideia de centralidade da imaterialidade, irredutível à mensurabilidade e com
potencial revolucionário imanente, a partir de processos de subjetivação. A rigor,
segundo a tese da centralidade do imaterial, as classes sociais se dissolveriam no
“conjunto das subjetividades produtivas e criativas” da sociedade global.

Em última análise, a teoria da centralidade do imaterial (e como tal, da


informação e da comunicação) guarda relação com as proposições teóricas
habermasianas, acentuadas na atividade comunicativa. Por meio da Teoria do agir
comunicativo, Habermas (2010, p. 78) sublinha que a linguagem veicula a distinção
do homem, sua humanização e integração. O autor (HABERMAS, 2010, p. 93) parte
da concepção dual da sociedade, propondo o seu entendimento como “sistema” e
“mundo da vida”. O “sistema” seria o espaço da economia de mercado planificada,
orientada pelo lucro, calcada na contabilidade, na administração e na divisão do
trabalho e, por isso, portadora da “razão instrumental”. O “mundo da vida”, por sua
vez, seria o espaço da racionalidade dos indivíduos mediado pela linguagem e pela
intersubjetividade comunicativa, onde aconteceria o “agir comunicativo” que traria
em si o momento do entendimento livre de dominação e da integração social.

Não interessa aqui empreender uma análise e uma crítica sistemática ao


pensamento habermasiano, mas simplesmente refletir, primeiro, sobre a semelhança
de suas premissas e a discussão do trabalho imaterial que coloca a centralidade das
tecnologias e da comunicação. Segundo, evocar o desafio de, a partir da teoria
habermasiana, pensar as relações entre a “ação comunicativa” e as relações de
poder econômico e político. Em outros termos, Habermas, assim como os teóricos
do imaterial, traz a perspectiva de que o consenso seria o motor da história por
meios dos processos de comunicação e informação, mas não problematizaria a
mediação sistema-mundo da vida. Por não polemizar as relações de poder na “ação
comunicativa”, o cientista social Sérgio Lessa (2011, p. 42) afirma que Habermas
partiria de perspectiva excessivamente uniformizante e acabaria preso à concepção
89

clássico-iluminista sobre as possibilidades emancipatória das instituições sociais, de


forma que “suas concepções de fundo são puramente idealista”12.

Na verdade, a ênfase nas análises dos processos comunicativos,


tecnológicos e informacionais como processos sociais abstratos acarreta o
isolamento dessas questões da história do desenvolvimento das forças produtivas e
das relações sociais. Nesse sentido, os interessados em dar explicação estritamente
técnica esquecem de dizer que o terreno no qual a técnica conquista seu poder
sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre
essa sociedade, de forma que a racionalidade técnica seria a racionalidade da
própria dominação. Diante disso, essa dinâmica pode ser examinada a partir de
duas posições extremas. Uma que faz das tecnologias o instrumento neutro da
sociedade. E outra que a entende como força que aumentam a produtividade do
capital e não apenas a do trabalho.

Os contrapontos argumentativos aos princípios teóricos e políticos dos


neomarxistas não são poucos. O debate acerca da centralidade do trabalho
geralmente padece de fragilidade teórica. Porque nem sempre os autores falam
sobre a mesma dimensão do trabalho. Na verdade, Marx teria explicado a diferença
entre trabalho abstrato13 e trabalho concreto, ao relacionar a categoria universal à
sua particularização histórica. A dimensão concreta levaria em consideração o
caráter ontológico do trabalho, isto é, o trabalho como momento fundante de
realização do ser social, condição para existência do homem e ponto de partida para
a constituição do ser social, intercâmbio metabólico homem-natureza, sua dimensão
qualitativa. O trabalho abstrato, por sua vez, seria a subversão capitalista da
categoria trabalho14, que tem por finalidade imediata a produção de mais-valia, o que

12 Nesse sentido, Lessa (2011, p. 77) destaca: “Se nos perguntarmos qual o fundamento da
possibilidade de consensos em uma humanidade não apenas dividida em classes, mas também em
países imperialistas e outros miseráveis, a resposta habermasiana é muito frágil: em última instância
pelo fato de termos por pano de fundo da relação comunicativa um ‘mundo da vida’, definido como
‘espaço transcendental no qual falante e ouvinte se saem ao encontro’”.
13 Se o trabalho assume a forma necessariamente assalariada, abstrata, fetichizada e estranhada,

essa dimensão histórico-concreta não pode ser tomada a-historicamente. A historicidade do trabalho
informa a sua dúplice e contraditória dimensão: o trabalho propriamente livre (trabalho concreto) e
trabalho-labor (trabalho abstrato). Apesar da existência dessa distinção, o trabalho-labor foi erigido à
categoria de trabalho-dever. Sua construção ideológica se deu desde a concepção como castigo na
estrutura greco-romana, passando pela construção da Idade Média, até a glorificação e consolidação
no sistema capitalista.
14 A concepção marxista concebe o homem como ser distinto por ter capacidade de trabalho,

entendido como prática humana criativa, por ser capaz de interagir com a natureza a ponto de
90

informa que a superação dessa condição só seria possível em outro sistema


econômico.

A desconsideração dessa dupla dimensão presente no trabalho, que lhe


dá complexidade, vem fazendo com que muitos autores entendam as modificações
organizativas e produtivas, sobretudo tecnológicas, do trabalho abstrato como
expressão da crise e da perda da centralidade do trabalho concreto, ou seja,
enquanto perspectiva ontológica. Em outros termos, pode-se perceber, com
modificações, como a superestimação do poder da técnica no desenvolvimento
histórico comparece com força no debate contemporâneo do trabalho imaterial e
artístico. As teorias se apoiam, implícita ou explicitamente, na tese de que o
desenvolvimento tecnológico seria o momento determinante no desenvolvimento das
forças produtivas e, portanto, das relações de produção. Tem-se por premissa a tese
segundo a qual a introdução de novas tecnologias alteraria o fundamento das
relações sociais. Ou seja, é atribuído significado ontológico às alterações técnicas
centradas no imaterial. Lessa (2011, p. 257) entende, ao contrário, que a técnica
está inserida nas condições de objetividade da história, no sentido de que “o
momento predominante não se localiza na técnica, mas nas relações sociais que a
determinam”15.

modificá-la e produzir as condições de sua existência material e intelectual. Em Marx, o trabalho não
é algo negativo para o homem. Pelo contrário, o trabalho é o que torna o homem efetivamente
humano, traz a consciência de si e o diferencia dos outros animais. Constitui o salto ontológico das
formas pré-humanas para o ser social. É o que está, portanto, no centro da humanização do homem.
O capitalismo, contudo, perverte a noção de trabalho, uma vez que o instrumentaliza para a aquisição
do capital, transformando o trabalho concreto em trabalho abstrato.
15 Lessa (2011, p. 72) contesta os autores centrados no imaterial esclarecendo que “Marx tinha uma

concepção inteiramente distinta: as ideias não seriam ‘imateriais’, mas partes movidas e moventes de
uma nova materialidade [...] no [...] qual as ideias exercem força material decisiva. As ideias são parte
da porção subjetiva de uma nova matéria consubstanciada fundamentalmente pelo trabalho. A
oposição da qual se trata é entre a subjetividade e a objetividade do mundo material dos homens, e
não entre a ‘matéria’ e o ‘imaterial’. O mesmo autor (LESSA, 2011, p. 45) explica, então, que a ideia
do imaterial enquanto subjetividade como alternativa dentro do próprio capitalismo seria “uma mistura
ingênua, do ponto de vista metodológico, de um empirismo banal com um idealismo mal resolvido”.
Porque a questão decisiva é: como, de qual modo, por quais mediações pode-se constituir a rede de
relações do tipo “novo” no interior do capitalismo? E em que esfera? Na subjetividade (superação do
produtivismo, recusa da ética da acumulação) ou na objetividade (processo cotidiano centrado na
superação da propriedade privada dos meios de produção)? Segundo Lessa (2011, p. 49), o
movimento de “elevação da humanidade” em novos patamares de desenvolvimento pós-mercantil
que requerem a persuasão de todos os usuários – e não de classe – e que tem como categoria
fundante o “amor pelo tempo por se construir” seria uma impossibilidade histórica dentro do
capitalismo.
91

Há diferenças substanciais entre os autores que levam a cabo a


originalidade do debate do trabalho imaterial enquanto teoria específica em sua
defesa de centralidade e os postulados marxianos. Marx fornece uma noção de
trabalho imaterial quando menciona duas possibilidades da produção imaterial, ou
duas formas de existência do resultado da produção imaterial. A primeira delas é o
resultado do trabalho existir separadamente do produtor direto, podendo circular
como qualquer mercadoria no intervalo entre a produção e o consumo, tais como
livros, quadros, e toda produção artística que tenha a possibilidade de existência
separada da atividade de seu criador (Marx, 2004, p. 119). Em tais casos, mesmo
que o resultado do trabalho seja imaterial, é necessário sua incorporação aos
elementos materiais gerados por outros trabalhadores.

Questões referentes ao trabalho imaterial já surgem na teoria marxiana


quando se analisa atentamente os elementos mais simples do processo de trabalho.
A relação entre a necessidade, a criação de objetos para satisfazer essas
necessidades e o ato dessa satisfação já inclui, implicitamente, temas transversais
ao imaterial. É importante mencionar que tais relações não são temas exclusivos à
obra O Capital. Desde Os Manuscritos Econômico-Filosóficos e A Ideologia Alemã,
Marx e Engels analisaram este ato fundante da existência humana: “o primeiro ato
histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação destas
necessidades.” (MARX; ENGELS, 1991, p. 39). O que seria a produção intelectual,
artística e religiosa, senão a satisfação de necessidades por meio da produção
imaterial? Mesmo antes da complexificação do trabalho, as dimensões imateriais já
existiam dentro do próprio processo de trabalho material.

Diante disso, críticas à centralidade do trabalho imaterial começar a ser


realizadas a partir da própria noção de imaterialidade. O problema mais frequente
levantado é que o trabalho imaterial continuaria incontornavelmente material. Quer
dizer, mesmo o trabalho mais imaterial ou a mercadoria mais simbólica, ainda assim
guardam o seu lastro empírico. Nesse sentido, o sociólogo Ricardo Antunes (2009,
p. 128) explica que “mesmo no trabalho dotado de maior significado imaterial, o
exercício da atividade subjetiva está constrangido em última instância pela lógica da
forma/mercadoria e sua realização”. Ou seja, o trabalho assume a forma ativa de
subjetividade, desde que seu objetivo precípuo seja colocá-lo a serviço do capital e
92

suas necessidades de acumulação. Trabalho imaterial e material, na imbricação


crescente entre ambos, está, portanto, subordinados à lógica de produção de
mercadorias de capital e da acumulação de mais-valia. Nesse sentido,
diferentemente do que apregoam os apologistas da mudança, não se desenvolveu
uma sociedade de criação e da cognição libertada das amarras do produtivismo, ao
contrário, vem ocorrendo um processo de intensificação da exploração em todas as
esferas do trabalho humano.

Especificando a discussão no âmbito da produção musical, Juliana Coli


(2006, p. 240) explica que na caracterização do trabalho musical, em relação a
outros tipos de trabalho, é produzido um produto imaterial abstrato, o som. Porém ao
converter-se em matéria concreta assume características mercantis. A autora (COLI,
2006, p. 242) identifica no trabalho artístico a incidência do processo geral de
subsunção formal do trabalho ao capital. Na análise do trabalho imaterial, enfatiza-
se, portanto, a importância de se entender a tendência da conversão da
improdutividade em produtividade em sua objetividade social. A produtividade, por
sua vez, se caracteriza por ser socialmente determinada. Nesse sentido,
independente de ser trocado por renda ou capital, ou seja, independente do nível de
relação, direta ou indireta, de produção de mais-valia no trabalho imaterial, o mais
importante é identificar as condições objetivas que configuram a tendência real de
sujeição da atividade artística na ordem do capital.

Para a elucidação do presente momento da produção capitalista, a


discussão do trabalho imaterial necessitaria, portanto, ser incluída na teoria do
trabalho produtivo. Em sua Dissertação de Mestrado, o sociólogo Vinícius Santos
(2012, p. 34) analisa a pertinência da discussão do trabalho imaterial marxiana (e
não neomarxiana), a partir de três ordens que enfatizam a produtividade do trabalho.
A primeira, a ordem da utilidade. A segunda, do processo de trabalho na ordem do
capital, ou seja, a subsunção real e formal do trabalho. E, finalmente, a ordem da
exploração da capacidade de trabalho socialmente combinada. Sua análise destaca
a possibilidade do trabalho circular como produtor de mais-valia no ciclo de
valorização do capital. Do ponto de vista do processo de trabalho, é produtivo aquele
trabalho que se converte em produto, em mercadoria. O capital engendra uma força
93

produtiva social. Por sua vez, dada as relações especificamente capitalistas, a força
de trabalho socialmente combinada gera mais-valia.

Dessa forma, embora o artista seja dono da sua voz, por exemplo, ainda
assim, não domina inteiramente as condições objetivas do seu trabalho, visto que
“não basta ter um controle dos meios de trabalho em sentido estrito, é necessário ter
o domínio dos meios de trabalho em sentido amplo, além do objeto sobre o qual se
trabalha” (COLI, 2006, p. 235). Trata-se, pois, de uma espécie de trabalho que
suporta relações sociais contraditórias: enquanto possuidor dos meios de produção,
o músico poderá até ser considerado capitalista, mas, segundo Coli (2006, p. 235)
“um capitalista precário, mais próximo das condições do trabalhador assalariado de
si mesmo ou assalariado indireto do capital”. Porque, mesmo como produtor
independente ou autônomo, o trabalhador da música é cercado pelas condições de
mercado que o colocam frequentemente na condição de um trabalhador informal,
sujeito a maior exploração, já que muitas vezes o valor da compra da sua força de
trabalho é camuflado pelo “salário por peça”16.

Por fim, quanto à ideia de imensurabilidade do trabalho imaterial, de


acordo com o pesquisador Henrique Amorim (2009, p. 27), Marx realiza a relação de
proporcionalidade entre horas necessárias à produção e quantidades de
mercadorias produzidas. Não obstante, na problemática teórica de Marx sobre valor-
trabalho, não há a tentativa de determinação do valor como algo essencialmente
calculável, matematicamente mensurável, aritmeticamente previsível. Em Marx, o
valor de uma mercadoria não é o valor incorporado nela individualmente, mas sim o
trabalho social necessário a sua produção. Sob este pressuposto, uma mercadoria
pode ter seu valor alterado após sua produção. Marx promove uma diferenciação
essencial entre valor de uso (enquanto conteúdo da relação de determinada
produção social) e valor de troca (enquanto manifestação do valor na esfera da
troca). Além do aspecto quantitativo que se manifesta nas trocas sob a forma
fenomênica do valor de troca, o valor possui um aspecto qualitativo. A pergunta que

16 A medida do valor é o tempo de trabalho socialmente necessário. A quantidade materialmente


determinada do salário por peça, na verdade, não serve para medir o valor. Na forma mais comum de
assalariamento capitalista, o salário por tempo, o trabalho é medido por sua duração. Ao contrário, no
salário por peça, o trabalho é medido “pelo quantum de produtos em que o trabalho se condensa
durante determinado período de tempo. [...] O salário por peça é, portanto, apenas uma forma
modificada do salário por tempo” (MARX, 2013, p. 38).
94

deve ser feita em relação à teoria do valor nesse contexto é: como o trabalho
imaterial entra no processo de produção do valor que valoriza o capital?

As objeções mencionadas à teoria-valor de Marx pelos neomarxistas são


fruto de uma interpretação quantitativista do valor. A incongruência amplamente
percebida (inclusive pelos marxistas) entre trabalho imaterial e teoria quantitativista
do valor, levando em conta o aumento crescente das atividades imateriais na
produção, pode levar o assunto a dois caminhos. Nas palavras de Dal Rosso:

O primeiro consiste em supor que a etapa da teoria do valor está


sendo superada pela divisão social do trabalho e que é necessário
desenvolver novas categorias para analisar a luta de classes e a
evolução da sociedade. Outro consiste em alargar as tradicionais
noções da teoria do valor no sentido de incorporar a produção de
valor também em diversas atividades imateriais (DAL ROSSO, 2008,
p. 34-35).

Embora as teorizações neomarxistas sobre trabalho imaterial informem


importantes dimensões da reestruturação produtiva e mutabilidades do capitalismo
contemporâneo, pouco acrescenta na análise das condições de trabalho das
atividades artísticas. Primeiro, porque a noção de imaterialidade pode estar
impressa na exterioridade dos seus produtos e serviços, mas nada esclarecem
sobre as particularidades da lógica material de sua realização enquanto mercadoria
e sua produtividade. Segundo, porque a ideia de imensurabilidade desse tipo de
trabalho também nada diz sobre as formas de remuneração e apropriação desse
tipo de trabalho (afinal o preço é realizado todos os dias e existe trabalho humano
não-pago não mensurado nos anos de formação, ensaios etc., no caso do cantor,
por exemplo). Terceiro, porque a tecnologia comunicativa e informacional altera
modos de atividades, mas não pode ser tida como processos sociais abstratos e
centrais na análise do trabalho, uma vez que, por si só, não elucidam e nem
determinam a especificidade do trabalho artístico.

Por isso, a ênfase desta pesquisa recai sobre o esforço teórico em


aprofundar os sentidos do trabalho artístico, para além das teorias neomarxistas que
95

focam na centralidade do imaterial, mas, sim, a partir do arcabouço analítico


marxiano do trabalho. No âmbito da reestruturação produtiva tal esforço se traduz na
tentativa de compreender as novas estratégias de racionalização do capital que não
se explicam (somente) por seu resultado imaterial, mas por sua produtividade,
reflexo das condições objetivas e materiais de sua realização. O processo de
investigação do trabalho artístico requer a compreensão da realidade desse campo,
em suas dinâmicas, contradições, estratégias de envolvimento e dificuldades de
identidade e organização. Trata-se de localizar particularidades e ambiguidades na
valorização, exploração, intensificação e hibridação desse tipo de atividade, no
contexto do capitalismo contemporâneo. Como as ideias de liberdade e autonomia
estão conectadas com os modos hegemônicos de precarização das sociedades
capitalistas ocidentais? Em que medida a subjetivação dessas ideias contribui para a
reprodução das relações políticas e econômicas neoliberais?

A propósito desses questionamentos, a editora estadunidense Sarah Grey


(2015) narra um interessante fato para levantar “os mitos da ‘classe freelancer’”. Em
uma situação em que foi convidada por telefone para participar de um “movimento
popular” para auxiliar freelancers (www.itsmybusiness.com) convocado por meio da
empresa de direitos Duane Morris, Sarah (2015, p. 1) evidencia como os freelancers
são construídos ideologicamente como parte da pequena burguesia, ainda que,
efetivamente, possam ser a sua parte mais baixa, uma espécie de “precari-
burguesia” (grifo nosso). Sarah destaca que a ideia de freelancer (e os artistas
estão contemplados nessa designação) como uma nova classe empreendedora é
um dos mitos centrais do trabalho precário na atualidade, assim como a “classe
criativa”.

Nesse contexto, Anna Tréa destaca que a música é diversão pra quem
não trabalha com música. “Obviamente, que a gente se diverte também. Mas pra
que essa diversão da gente aconteça, a gente precisa trabalhar muito antes”, afirma
(TRÉA, 12/2/2016). Da mesma forma, Isaar sublinha as múltiplas dimensões da sua
atividade, enquanto diversão e trabalho, “muita disciplina e responsabilidade”
(FRANÇA, 25/2/2016). Juçara Marçal também destaca uma questão muito prática de
sua atividade artística: “preciso pagar as contas no final do mês, mas nem sempre
os contratantes lembram disso”, ri (MARÇAL, 7/5/2015).
96

III.III Facetas da precarização

Conforme sintetizado no pensamento de Menger (2005, p. 4), nas


representações atuais o artista é apresentado como uma encarnação possível do
trabalhador do futuro, a figura do profissional inventivo, móvel, rebelde perante as
hierarquias e intrinsecamente motivado. Como se o artista exprimisse no presente,
com todas as suas ambivalências, um ideal possível de trabalho desamarrado dos
constrangimentos econômicos. Na tradição de análise que insiste no caráter extra
econômico da atividade artística e que a designa como forma idealmente desejável
de trabalho, Menger (2005, p. 49) explica que Marx concebeu o trabalho artístico
enquanto arquétipo do trabalho livre, modelo de atividade não alienada por meio da
qual o sujeito se realiza na plenitude da sua liberdade, exprimindo as forças que
fazem a essência da humanidade.

Segundo Pierre-Michel Menger (2005, p. 23), a criação artística ocupa


uma posição excepcional nos primeiros escritos de Marx, em particular nos
Manuscritos de 1884. Nessa obra, foi elaborada não uma estética específica, mas
uma estética geral que fez da atividade artística o instrumento de medida de toda a
crítica do trabalho assalariado. Na verdade, Marx não tinha como prever a
proeminência das indústrias culturais e, consequentemente, teorizar sobre a
subsunção formal do trabalho artístico ao capital, embora tenha partido da premissa
da arte enquanto realidade objetiva acerca do homem concreto que (também)
trabalha no marco de determinadas relações históricas, políticas e sociais. Por isso,
é pertinente se perguntar hoje: como reconhecer a autonomia de um sistema de
inovação ao qual o mercado se acomodou tão bem que fez dele o seu motor de
desenvolvimento atual?

Atualmente as estatísticas revelam o rápido crescimento do setor das


artes e dos espetáculos, tanto do ponto de vista da oferta, quanto da procura.
Emerge em importância não tanto medir a dimensão quantitativa desse setor, senão
para perguntar se, diante desse contexto, as artes ainda constitui uma esfera
diferente na qual nenhum dos princípios de funcionamento seria comparável aos do
mundo da produção. Ou se, pelo contrário, o desenvolvimento das atividades de
97

criação obedece aos constrangimentos econômicos e políticos do mundo do


trabalho, embora com ajustamentos. Na síntese dos resultados da pesquisa sobre
mercado de trabalho artístico realizada na França, Menger (2005, p. 18) demonstra
que o trabalho artístico é feito de incertezas, em um mercado de trabalho
caracterizado por dois eixos: hiperflexibilidade e precariedade.

A partir da noção de “dupla face da incerteza” nas atividades de criação,


Menger (2005, p. 8) procura evidenciar não apenas o lado encantador de realização
de si mesmo, como também o lado da concorrência, das diferenças de sucesso,
bem como das desigualdades que produzem essas diferenças. Sua pesquisa
(Menger 2005, p. 170) permite elaborar o seguinte quadro estatístico do grupo
profissional formado pelos artistas franceses: no seio da população ativa, os artistas
são mais jovens, mais qualificados formalmente, mais concentrados nas metrópoles,
conhecem taxas mais elevadas de trabalho independente, assim como de
desemprego e de subemprego involuntário, e são frequentemente pluriativos. Os
seus ganhos são em média inferiores aos ativos da sua categoria de pertença. E os
seus rendimentos são mais variáveis de um período a outro da sua carreira. As
desigualdades interindividuais são particularmente elevadas.

No mesmo sentido de observação, ao analisar as configurações do


trabalho artístico, Françoise Benhamou (2007, p. 23) observa que a administração
dos riscos, própria da atividade artística, faz com que este tipo de trabalho reúna três
características essenciais: descontinuidade, perspectivas incertas e variações de
remuneração. A autora (BENHAMOU, 2007, p. 37) afirma que o mundo do trabalho
cultural significa alto grau de envolvimento do trabalhador e de consumo de energia
pessoal. Polivalência, versatilidade e flexibilidade, critérios apresentados usualmente
como positivos pelo paradigma pós-fordista, significam mais intensidade, acúmulo
de atividades, subjugação do processo criativo e informalidade. O trabalho criativo
ou cultural é, então, complementado pela atuação profissional variada, requisito
fundamental para driblar os horários fragmentados e remuneração nem sempre à
altura do desejável, em um ambiente que não conta com proteção estatal.

Para explicar a organização do trabalho artístico, Menger (2005, p. 64)


elucida que, na história das artes, é possível perceber a multiplicação das atividades
artísticas num número crescente de especialidades profissionais complementares e
98

também concorrentes. É o processo de divisão horizontal (funcional) do trabalho por


áreas de especialização e de jurisdição. Becker (2006), por sua vez, sublinha que a
atividade artística mobiliza múltiplas categorias de profissionais ao longo de uma
cadeia de cooperação sem a qual as obras não seriam nem produzidas, nem
distribuídas, nem comentadas, nem avaliadas, nem conservadas. As artes e as
indústrias do espetáculo e do divertimento, como todos os setores produtores e
consumidores de inovações, suscitam constantemente novos métiers, novas
identidades profissionais e, correlativamente, a redefinição de fronteiras entre as
especialidades existentes.

Essa divisão do trabalho justapõe categorias profissionais que protegem


as relações de interdependência, passando da cooperação à concorrência e ao
conflito, mas não os situa numa hierarquia direta e organizada. Abre-se então o
grande debate: a diferenciação e a individualização são as assinaturas de um
processo de autonomização da esfera artística, ou, pelo contrário, sinais de sua
decomposição pelas forças dissolventes dos mercados capitalistas? Como dar conta
do projeto de fazer carreira em atividades atraentes, mas incertas e arriscadas?
Nesse contexto, a liberdade de organizar o trabalho não será, ao fim e ao cabo, a
condição por excelência da realização artística? Nesse sentido, destaca-se a
narrativa do músico Marcelo Segreto:

Geralmente eu faço o meu horário. É mais humano, eu acho. Porque


se você quer começar a trabalhar de meio dia, você começa meio
dia, você não tem que começar as 8h, só que provavelmente você
vai fazer o seu trabalho até 11h da noite. Então eu acho mais
humano você trabalhar assim, eu acho mais legal essa profissão. A
gente trabalhar porque gosta e trabalha respeitando a nossa vontade
individual de, ‘pô, essa manhã quero dar um rolê, depois eu volto e
trabalho até 2h da manhã’. Não é muito opressivo, né? Que nem um
trabalho que você tem que pegar as 8h e sair as 18h e se você faltar
você é demitido (SEGRETO, 14/4/2015).

O capitalismo contemporâneo trata de situar o trabalho artístico na


dependência de uma gama de saberes que não se resumem às exigências práticas,
mas também coloca a formação no centro do empreendimento de racionalização. No
entanto, a própria condição de formação também passa a ser decomposta em vários
99

segmentos mensuráveis: diplomas, formação no terreno, experiências de


mobilidade, formação contínua, investimentos pessoais, validação formalizada dos
saberes adquiridos pela experiência. Trata-se da aquisição de competências
comportamentais, de saberes e de savoir-faire em situação de aprendizagem
permanente. É por meio da polivalência das competências que Menger (2005, p. 34)
explica o continuum de formação do trabalho artístico hoje. Assim, a noção de
competência apresenta, também ela, mudanças, que vai conquistando outras
instâncias de consagração, além das tradicionalmente exigidas.

Nesse contexto, o modo com que ao artista tenta gerir a incerteza,


característica típica das suas atividades, é multiplicando e diversificando as formas
de realização do seu ofício. No resumo do Menger:

Ora quais são as formas de emprego através das quais o artista


oferece o seu trabalho? O auto-emprego, o freelancing, e as diversas
formas atípicas de trabalho – trabalho intermitente, trabalho a tempo
parcial, multi-assalariado – constituem as formas dominantes de
organização do trabalho nas artes, e têm como efeito introduzir nas
situações individuais de actividade a descontinuidade, as
alternâncias de períodos de trabalho, de desemprego, de procura de
actividade, de gestão de redes de inter-conhecimento e de
sociabilidade fornecedoras de informações e de compromissos, e de
multi-actividades na e/ou fora da esfera artística (MENGER, 2005, p.
18).

Finalmente, a tendência para a substituição do emprego (modelo


tradicional) pelo projeto é uma das características da nova configuração do trabalho
artístico. Segundo Menger (2005., p. 86) é possível retirar dessa tendência uma
ilusória conclusão sobre a crescente independência nas atividades artísticas:
funcionando como uma pequena empresa, envolvido diretamente na realização do
seu projeto, o artista ficará em condições de melhor realizar e proteger os seus
interesses. Operando individualmente, em freelancer e/ou em rede, associações e
parcerias, os artistas entram, então, na corrida dos “precários de luxo” (grifo
nosso). Nesse sentido, as ambiguidades presentes nessa configuração de atividade,
enquanto representação ainda maior de autonomia e liberdade, acentuam as
práticas de flexibilidade. A produção independente não apenas estaria incluída em
100

uma lógica mercadológica e neoliberal de política cultural, como é a expressão


paradigmática de uma inclusão ainda mais subsidiária, cooperada, especializada e
precarizada no mercado cultural.

Diante das análises sobre trabalho artístico é possível identificar, tanto as


seduções da independência no mercado de trabalho não tradicional (valorização da
autonomia, da responsabilidade, da criatividade), quanto as ameaças da
efemeridade dessa atividade (banalização remuneratória e respectivos riscos), em
um ambiente de grande fragmentação do trabalho e de variabilidade das
competências exigidas. Por um lado, a atividade artística assenta-se no alto grau de
envolvimento dos meios pessoais (esforço, energia, conhecimento) e coletivos
(equipamentos, financiamentos, trocas entre pares). Por outro lado, os meios de
criatividade não podem ser mobilizados a não ser ao preço de uma intensidade do
esforço e motivação. Nesse contexto, é preciso destacar, ainda, um conjunto de
gratificações não monetárias – gratificações psicológicas e sociais, fraca rotinização
de tarefas, etc. – que promete compensar provisória ou duradouramente ganhos
insuficientes em dinheiro.

No Brasil, não há lei trabalhista que regulamente o trabalho artístico e


nem proteção social e previdenciária especial. A Lei nº 6.533/1978 que dispõe sobre
a regulamentação das profissões de Artista e de Técnico em Espetáculos de
Diversões, define o artista enquanto o profissional “que cria, interpreta ou executa
obra de caráter cultural de qualquer natureza, para efeito de exibição ou divulgação
pública, através de meios de comunicação de massa ou em locais onde se realizam
espetáculos de diversão pública” (BRASIL, Lei nº 6.533, 1978), e prevê a
obrigatoriedade de sua inscrição no Ministério do Trabalho, assim como registro na
Delegacia Regional do Trabalho. Embora a legislação não trate o artista enquanto
trabalhador, consigna importantes normas para o contrato de trabalho, além de
prever, genericamente, que se aplicam aos Artistas e Técnicos em Espetáculos de
Diversões as normas da legislação do trabalho.

No âmbito da música, a Lei nº 3.857/1960 cria a Ordem dos Músicos do


Brasil (OMB) – órgão que em tese defende, fiscaliza e representa “o exercício
profissional de músicos de todos os gêneros e especialidades” - e é a única
regulamentação existente para categoria artística musical. A legislação prevê
101

importantes regras, como a limitação da jornada de trabalho (que não deverá


exceder 5 horas) e o tempo que deve ser computado para fins de remuneração dos
músicos, o qual deve incorporar a duração dos ensaios (BRASIL, Lei nº 3.857,
1960). A Portaria nº 3.347/1986, por sua vez, estabelece regras à contratação de
músicos, instituindo a Nota Contratual como instrumento para negócios eventuais ou
de curta duração. Finalmente, alguns sindicatos (entre eles, o Sindicato dos Músicos
do Rio de Janeiro) têm elaborado tabelas de valores como referências para o
pagamento de artistas.

A composição geral das ocupações que constituem o mercado de


trabalho artístico é descrita na rubrica “Profissionais dos espetáculos e das artes”
pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Na identificação do Ministério do
Trabalho e Emprego no Brasil (MTE), por sua vez, os artistas se inscrevem no
Grande Grupo dos “Profissionais das ciências e das artes”, subdividido no Subgrupo
de “Comunicadores, artistas e religiosos” e “Profissionais dos espetáculos e das
artes”. Neste último Subgrupo registram-se outras ocupações, entre as quais os
“Produtores de espetáculos”; os “Músicos compositores, arranjadores, regentes e
musicólogos”; e os “Músicos intérpretes” (MTE/CBO, 2002).

Liliana Segnini (2009, p. 20) analisa as especificidades dos Profissionais


dos espetáculos e das artes no Brasil, a partir da permanente expansão desse
grupo, o qual apresenta crescimento superior em relação aos ocupados no mercado
de trabalho total no país. Segundo a autora (SEGNINI, 2009, p. 21), enquanto a
população ocupada cresceu 16% entre 1992 e 2001, o grupo de ocupações dos
Profissionais dos espetáculos e das artes registrou um aumento de 67% no mesmo
período. Esses dados são confirmados quando considerado o período mais recente
entre 2003 e 2011, no qual a população ocupada apresentou crescimento de 17%
enquanto os inscritos no grupo referido registraram crescimento de 22% (SEGNINI,
2012, p. 45). No universo das ocupações artísticas, os músicos representam o maior
crescimento observado no período de 1992 a 2001: 231%. Esses dados informam
que os músicos constituem 51% dos profissionais agrupados na rubrica dos
Profissionais dos espetáculos e das artes (SEGNINI, 2009, p. 21).

Diante da evidência de que cada vez mais as pessoas se ocupam do


trabalho artístico, cumpre interrogar sobre os aspectos qualitativos desse mercado
102

de trabalho, representados nas condições de realização desse tipo de atividade.


Nesse sentido, Segnini (2012, p. 148) destaca que, enquanto o trabalho com registro
em carteira, considerado formal, compreendia 46% (42.923.215) do total dos
trabalhadores ocupados no país (93.493.067) em 2011. No grupo “profissionais dos
espetáculos e das artes”, essa percentagem é drasticamente reduzida para 8%
(57.845) (IBGE/PNAD, 2013). Os números reiteram, de forma ainda mais intensa, a
situação ocupacional dos músicos: somente 4% (5.661) têm acesso a esse tipo de
contrato; além disso, 24% (30.841) se declaram “sem carteira”, e 70% (88.887), por
“conta própria”. A tabela abaixo demonstra os dados da informalidade no setor
ocupacional dos espetáculos e no âmbito da música em especial.

Tabela 2 - Comparação entre ocupados no Brasil, profissionais dos espetáculos e das artes,
por posição na ocupação | Brasil, 2011

Posição na Ocupados no Profissionais dos


% % Músicos %
ocupação Brasil espetáculos e das artes

Formal 43.923.215 46 57.845 8 5.661 4


Autônomos 33.680.691 36 615.196 87 119.728 94
Sem carteira 14.015.804 15 112.985 16 30.841 24
Conta própria 19.664.887 21 502.211 70 88.887 70

Fonte: IBGE/PNAD, 2011.


Elaboração: SEGNINI, Liliana, 2014, p. 79.

Nos dados trazidos até aqui é possível concluir, por um lado, o acelerado
crescimento do número de artistas comparado com o mercado de trabalho no país e,
por outro, o reduzido índice de trabalho formal nessa esfera de ocupação. A
informalidade e a incerteza que caracterizam o setor, por sua vez, são traduzidas na
predominância da flexibilidade, a qual se converte em uma dinâmica de precarização
das mais diversas formas de trabalho. Nas duas bases de dados que permitem uma
referência ao trabalho artístico no Brasil (IBGE/PNAD e MTE/RAIS) os trabalhadores
das artes e dos espetáculos representam um grupo cujas condições de trabalho são
predominantemente informais, autônomas e flexíveis, composto majoritariamente
por homens (com exceção da dança), brancos, com faixa etária entre 25 e 39 anos,
103

elevado índice de escolaridade quando comparados com os ocupados no país,


remunerações baixas e instáveis, além de uma reduzida participação em instituições
sindicais (84% não participam) e previdenciárias (78% não contribuem) – dados
referentes ao ano de 2011 (SEGNINI, 2014, p. 89).

Analisando a condição do artista enquanto trabalhador pode-se ler muitas


das tendências do novo espírito do capitalismo. Em pesquisa com 39 músicos
finalistas do Programa Rumos Itaú Cultural 2007/2009, Liliana Segnini (2009, p. 32)
reitera os dados produzidos pelas estatísticas nacionais no setor do trabalho
artístico. A autora (SEGNINI, 2009, p. 8) destaca a predominância dos músicos
premiados na região Sudeste do país (sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro), o que
pode ser explicado na ênfase dessa região no número de profissionais da música,
de vagas no ensino superior em instituições públicas, de editais e de verbas
captadas por meio das leis de incentivo. Salários estáveis e direitos vinculados ao
trabalho, por sua vez, foram condições vividas por apenas quatro entre os 39
músicos entrevistados pela pesquisadora. Todos os entrevistados por Segnini (2009,
p. 33) reconhecem o campo de trabalho como flexível, competitivo, difícil, mas
apaixonante.

Nesse contexto de heterogeneidade do trabalho artístico, Juliana Coli


(2006, p. 159) esclarece que o diploma representado pela educação formal, embora
importante na lógica da racionalização do capitalismo contemporâneo, não é
elemento decisivo para que o músico atue no mercado de trabalho, assim como não
garante o seu sucesso profissional. Com isso, as credenciais de legitimidade do
quadro sociológico do artista são substituídas pela lógica do status, das relações no
campo artístico, do prestígio e da autoimagem. O alto grau de fragmentação do
trabalho artístico em diversas atividades leva, por sua vez, a uma não identidade
profissional ou de fragmento de classe no âmbito dos trabalhadores dos espetáculos
e das artes.

No mercado de trabalho musical tanto no Brasil como no exterior, a


docência no ensino superior público e o trabalho em orquestras constituem as
principais possibilidades de trabalho formal para o artista da música. Philippe
Coulangeon (2004, p. 3), sociólogo e pesquisador na área do trabalho artístico
104

musical na França, reafirma essa questão ao analisar as figuras típicas da profissão


de músico: os permanentes e os intermitentes de espetáculo.

Hoje, o conjunto das profissões relacionadas ao espetáculo vivo e ao


audiovisual está submetido ao reino das formas atípicas de emprego
salarial. Todavia, o emprego permanente, globalmente residual no
conjunto dessas profissões, atinge em torno de 5% dos músicos
intérpretes, quando se consideram apenas os músicos de orquestra,
e até 13% quando se incluem músicos titulares de um emprego
estável no ensino. Essa porcentagem minoritária, mas não sem
importância, de permanentes distingue particularmente comediantes,
outra grande categoria de artistas intérpretes, para a qual essa
categoria de emprego desapareceu praticamente, com exceção da
Comédie Française. Desse modo, a distinção de duas figuras
profissionais perpassa a profissão de músico intérprete, a de
permanente de orquestra e a de freelance intermitente
(COULANGEON, 2004, p. 5).

Desde o início dos anos 1990, o Brasil vive uma redução sistemática dos
postos formais de trabalho para o artista da música. O ideário neoliberal na gestão
cultural vem realizando, por meio da reestruturação produtiva, a redução do papel do
Estado e o fortalecimento das parcerias público-privadas no âmbito das orquestras,
cuja lógica tem operado na supressão de diversos direitos vinculados aos contratos
de trabalho dos músicos. A pesquisa de Juliana Coli (2006) sobre o trabalho dos
músicos no Theatro Municipal de São Paulo constitui um exemplo significativo desse
contexto. A autora (COLI, 2006, p. 45) elucida que os músicos da Orquestra
Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) são contratados na condição de
prestadores de serviços temporários, situação extremamente instável de trabalho e
que faz com que 80% dos contratos de trabalho dos músicos sejam renovados (ou
não) a cada seis meses, dentro de um período de 11 meses por ano (durante o mês
de janeiro os músicos não recebem salários).

No mesmo âmbito de observação do trabalho artístico formal, a


pesquisadora Dilma Pichoneri (2011) analisa o processo de reestruturação da
Orquestra Sinfônica Municipal (OSM) do Estado de São Paulo, a qual durante muito
tempo representou a conquista direitos sociais relacionados ao trabalho dos
músicos. Pichoneri (2011, p. 156) destaca que, para o conjunto de músicos-
105

trabalhadores da Orquestra, as mudanças recentes resultantes da reestruturação


têm significado diminuição dos postos formais de trabalho, aumento das formas
precárias e flexíveis de emprego e diminuição dos direitos vinculados ao exercício
do trabalho. As implicações desses processos para os sujeitos neles envolvidos
cruzam os seguintes caminhos: trabalhadores flexíveis, processos de
individualização que resultam em diminuição de direitos, crescente instabilidade,
insegurança e medo em relação ao futuro.

Fora dos circuitos historicamente formais de trabalho, o cenário contextual


do trabalho artístico é ainda mais precário e, por excelência, flexível, seja em termos
do conteúdo do trabalho, seja em termos de locais, horários e contratos. Menger
(2005, p. 34) caracteriza, então, o campo de atividade artística, como “laboratório de
flexibilidade”, o qual se desdobra no alto grau de heterogeneidade. Nesse sentido,
Segnini (2012, p. 59) elucida que, entre as várias formas que os músicos encontram
para “dar um jeito” e continuar na profissão, é possível destacar a docência
particular, o trabalho cooperado e associado, a realização de outros tipos de
trabalho não diretamente relacionados à música, além do “tornar-se produtores” por
meio do domínio das regras das leis de incentivo à cultura.

Na lógica da produção por projetos, Menger (2005, p. 45) destaca, ainda,


a demanda constante na reorganização dos fatores de produção, de forma a mapear
e recrutar o profissional de maneira rápida, por meio de redes de conhecimento,
pelas quais são identificados os melhores artistas para cada espetáculo, para
responder a cada edital, de acordo com diferentes possibilidades de remuneração.
Observa-se, pois, a diferenciação horizontal de competências na multiplicidade de
elos contratuais temporários com profissionais autônomos constituindo equipes que
se juntam ou se separam de acordo com as circunstâncias. O autor (MENGER,
2005, p. 45) aponta, então, a existência de um “exército artístico de reserva
altamente qualificado”, enquanto pré-condição para a manutenção dessa forma de
organização.

Finalmente, Segnini (2009, p. 51) esclarece que no mercado de trabalho


dos espetáculos e da arte, a participação dos homens é superior à das mulheres
tanto no interior do próprio grupo – 69,8% – como na comparação com os ocupados
no mercado de trabalho no Brasil – 58%. No âmbito da música, em 1992, entre
106

50.839 músicos, somente 5% eram mulheres. Em 2006, 14 anos depois, as


musicistas representaram 18% dos ocupados que se declaram músicos. Portanto,
na composição do grupo ocupacional observado, é possível perceber a intensa
participação dos homens, apesar do recente crescimento do número de mulheres.
Segundo Segnini (2014, p. 83), a implicação dessa forma social de divisão do
trabalho entre homens e mulheres é percebida por meio de dois princípios
organizadores: o de separação e o de hierarquia. Além das mulheres participarem
menos do mercado de trabalho artístico, é possível assinalar que existem atividades
consideradas masculinas (instrumentistas) e femininas (interpretação e canto), e que
as primeiras valem mais que as segundas, em termos econômicos e também de
status.

Indo ainda mais fundo das relações sociais do trabalho artístico, Segnini
(2014, p. 84) analisa as consubstancialidades de classe, gênero e raça/cor da pele,
tendo em vista especificamente o grupo dos profissionais da música. Sua pesquisa
informam diferenças quando se considera o lugar que ocupam as trajetórias de
homens e mulheres nas formas de vivenciar o campo artístico, seja no trabalho com
vínculos duradouros e formais (orquestras/corpos estáveis e docência), seja no
trabalho intermitente (trabalho artístico de curta duração, financiado por meio de
projetos, editais, cachês e outras formas). Em suma, a análise de Segnini (2014, p.
84) permite afirmar que o mundo da música é um espaço de homens brancos e, o
dos solistas, de homens brancos que pertencem a uma elite econômica e social.

No intuito conhecer a processualidade das relações de trabalho musical


em um contexto ainda mais tendente a precarização, a pesquisadora Luciana
Requião (2008) realizou estudo de campo com 80 músicos nas casas de show do
bairro da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro. Segundo a pesquisa (REQUIÃO, 2008,
p. 29), os contratos informais ou “de boca” são os mais recorrentes nesse meio.
Somente eventualmente os músicos são pagos por nota contratual, que seria a
configuração legal de contratação estabelecida. A forma de pagamento
predominante encontrada foi o couvert artístico, segundo o argumento da “parceria”
entre dono da casa do show e o músico. A porcentagem paga aos artistas é variável
de acordo com critérios do contratante (40 a 70% do preço cobrado ao público a
título de couvert). Embora possa ser caracterizado vínculo trabalhista na maioria dos
casos estudados por Requião, a totalidade dos músicos entrevistados trabalha sem
107

vínculo empregatício formalizado, e não há fiscalização nesse tipo de atividade. No


entanto, e de forma geral, a informalidade dessas relações não é vista como fator
negativo, uma vez que o pagamento de impostos ou contribuições que ocorre
quando as relações são formalizadas baixaria ainda mais a remuneração dos
músicos.

A precarização das condições de trabalho do músico passa, além da


informalidade e da flexibilidade, pelo trabalho não pago. A pesquisa de Requião
(2008, p. 34) elucida que não são contabilizadas as horas de ensaio e as horas em
que os músicos ficam disponíveis para o empregador, para fins de cálculo da
remuneração pelo trabalho realizado. Na verdade, o modo de produção capitalista,
que tem como característica a absorção de trabalho não pago, se utiliza do processo
histórico que fetichiza o trabalho artístico de forma a delimitar o trabalho musical
apenas ao momento da apresentação. No caso das apresentações ao vivo ainda é
preciso considerar a passagem de som, momento em que o músico fica à disposição
do técnico que irá operar os equipamentos do show. Todo esse processo de
trabalho não é computado para fins de composição salarial, o que significa horas de
trabalho não remuneradas.

Ao contrário do que acontece com a música clássica e instrumental, da


totalidade dos entrevistados pela pesquisa de Requião (2008, p. 23), apenas 30%
realizaram algum curso superior, o que está diretamente relacionado à renda familiar
desses trabalhadores. Classes sociais mais elevadas têm mais tempo dedicado à
formação e planejam possuir algum meio de produção como escola de música,
estúdio de gravação e equipamentos eletrônicos. Os músicos de fragmentos de
classes sociais mais baixas têm trajetória de formação profissional mais irregular,
uma vez que o investimento financeiro para formação profissional na área da música
é considerado alto em relação à compra de instrumentos, acessórios, material
didático e transporte.

Finalmente, o estudo de Luciana Requião (2008, p. 77) também confirma


a intensificação, flexibilização e heterogeneidade do trabalho no campo da música. A
autora observou que a rotina de trabalho dos músicos pesquisados ultrapassa 40
horas semanais, levando em conta as horas de estudo, ensaio e a apresentação de
show. A totalidade dos músicos entrevistados por Requião exerce mais de uma
108

função em suas atividades profissionais na área da música. Entre essas atividades


estão as de instrumentista, cantor, professor de música, copista, técnico de som,
regente, arranjador e compositor. Cerca de 1/4 dos músicos entrevistados exerce
também atividade profissional em outras áreas não diretamente relacionadas à
música, como locutor, professor e vendedor de produtos de diversas naturezas.

Por fim, evidencia-se cada vez mais nas grandes cidades brasileiras a
presença de artistas de/na rua. Em pesquisa produzida por Celso Henrique Gomes
(1998) sobre músicos de/na rua em Porto Alegre, elucida-se as configurações de um
espaço ainda mais flexível, instável e precário de trabalho em que a remuneração é
garantida por meio de doações espontâneas. Em São Paulo, um estudo realizado
por meio do Instituto de Pesquisa, Estudos Capacitação em Turismo (IPETURIS),
fez um levantamento de artistas que realizam suas atividades nas ruas das regiões
da Paulista, Centro e Rua Teodoro Sampaio/Praça Bento Calixto. Nessa pesquisa
(SÃO PAULO TURISMO, 2014), foram aplicados questionários para uma amostra de
104 artistas e 20 grupos de artistas de/na rua. Os resultados confirmaram de forma
ainda mais acentuada os dados trazidos até aqui.

A pesquisa da IPETURIS destaca que a maioria dos artistas que atuam


na rua são do gênero masculino (88%), realizam outras ocupações (62% são
autônomo), estão na faixa de 21 a 31 anos (36%) e realizam atividades na rua de há
pelo menos um ano (35%), com motivação principal de fonte de renda. O perfil
desses artistas também informa particularidades ainda mais interessantes: a maior
parte conta com grau de escolaridade até o ensino fundamental (40%). Do total dos
artistas que atuam nas ruas, a maioria (61%) está realizando atividades musicais
(SÃO PAULO TURISMO, 2014)17.

Diante dos estudos que procuram entender os paradoxos da atividade


artística enquanto realização de um trabalho e exercício de uma profissão é possível
perceber que, menos do que qualquer outro campo de atividade, o campo de

17Em São Paulo a Lei Municipal nº 15.776/2013 e o Decreto nº 55.140/2014 regulamentam a atuação
dos artistas de/na rua e especifica algumas regras, como limitações espaciais, autorizações prévias
para estruturas de palco, níveis de ruído, necessidade de cadastro municipal dos artistas de/na rua e
duração das apresentações (as quais não devem ultrapassar 4 horas). Por fim, o mapeamento dos
artistas na de/rua em São Paulo é realizado por meio da plataforma online
<http://www.artistasnarua.com.br/>.
109

invenção criadora não é uma exceção às leis do mundo político-econômico, nem aos
jogos estratégicos dos atores sociais. Na verdade, as análises sobre trabalho
artístico representam e reconfiguram com mais intensidade muitas das
ambiguidades presentes no mundo do trabalho contemporâneo. Em um contexto de
proeminência das atividades culturais e da lógica neoliberal (o mercado determina
não só o preço como as formas de contrato, de pagamento e as condições de
trabalho artístico) as especificidades desse tipo de atividade, frequentemente
relacionadas a termos como criatividade e autonomia, se traduzem em protótipos de
flexibilidade, polivalência, insegurança, heterogeneidade, individualização e
precariedade.

Esse “laboratório de flexibilidade” (MENGER, 2005, p. 12) em uma


economia política das incertezas faz com que a esfera das ocupações artísticas
desenvolva as mais variadas formas flexíveis de trabalho e hibridações de atividades
no capitalismo atual. Esses destaques apontam para a ironia evidenciada por
Menger:

Não só as actividades de criação artística deixaram de ser a face


oposta do trabalho, como elas são cada vez mais assumidas como a
expressão mais avançada dos novos modos de produção e das
novas relações engendradas pelas mutações recentes do
capitalismo. Longe das representações românticas, contestatárias ou
subversivas do artista, seria agora necessário olhar para o criador
como uma figura exemplar do novo trabalhador, figura através da
qual se lêem transformações tão decisivas como a fragmentação
salarial, a crescente influência dos profissionais autónomos, a
amplitude e as condições das desigualdades contemporâneas, a
medida e a avaliação das competências ou ainda a individualização
das relações de emprego (MENGER, 2005, p. 22).

O paradigma da “classe criativa” e empreendedora constitui um modelo


hegemônico em que noções como sujeito criativo, autonomia e independência se
reconceitualizam sob a lógica do livre mercado, em um cenário construído por
paródias em que a liberdade do indivíduo opera novos modelos de dominação e
exploração. O significado dessas configurações e suas contradições nesta pesquisa
podem ser observadas por meio da seguinte pergunta feita aos artistas
entrevistados: Como viver de música? A partir das narrativas emergidas foi possível
110

estabelecer muitos paralelos com as facetas da precarização observadas nos


estudos descritos pelo(a)s pesquisadore(a)s do Brasil e do mundo.
111

IV ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E MODELOS DE NEGÓCIOS

No universo da indústria do entretenimento, a música emerge enquanto


expressão da mundialização, capitalização e inovação tecnológica, colocando em
evidência a organização do trabalho, em um mercado historicamente concentrado.
Desde a criação das tecnologias de gravação e reprodução sonora, a história da
economia da música é fortemente influenciada pela evolução dos sistemas técnicos,
os quais, ao mesmo tempo em que criam novas vias de acesso à música,
influenciam as práticas dos atores envolvidos nessa cadeia. Enquanto economia de
modo mediado pela tecnologia, a indústria da música passa por constantes
reestruturações. Se a tecnologia foi o trunfo da indústria fonográfica na
reestruturação da sua produção que impulsionou os primeiros circuitos conceituados
como independentes no Brasil, a partir dos anos 2000 essa mesma tecnologia
trouxe dificuldades para as grandes gravadoras em continuar a sua estratégia de
atuação de concentração, desta vez na distribuição.

O desenvolvimento da técnica estimulou a criação de tecnologias digitais,


como o formato MP3 e os softwares de trocas de arquivos via internet, os quais
trouxeram como consequência a crise de formatos físicos. Pela primeira vez na
história da música o avanço e o desenvolvimento tecnológico não emergem dentro
dos limites diretos da indústria fonográfica. As primeiras respostas da indústria giram
em torno da repressão, da intermediação e da concentração, cujo modelo de
negócio é baseado no acesso. Para os artistas independentes, ampliam-se as
possibilidades de distribuição e promoção via internet, contudo, reitera-se a
importância dos meios tradicionais de comunicação (rádio e TV), além de
reconfigurar a relação entre produtor e consumidor. Nesse contexto, o mercado
ainda permanece concentrado em poucas empresas, mas novas brechas se abrem
e se alargam para a atuação dos músicos considerados independentes.

IV.I Distribuição

Por meio das formas de compartilhamento de músicas virtuais e das


cópias não autorizadas, o mercado fonográfico mundial e brasileiro experimenta
112

novas formas de consumo e distribuição de músicas nos primeiros anos da década


de 2000, cujo primeiro impacto é a crise do mercado de discos físicos associados às
grandes gravadoras. A expansão das reproduções não autorizadas tem preocupado
a grande indústria, sobretudo, porque potencializa a flexibilidade não apenas da
produção, mas da distribuição, historicamente oligopolizada. Frente à disseminação
da partilha de músicas à revelia da intermediação das majors, a primeira solução da
indústria vem na forma do combate e perseguição legal, civil e criminal. Primeiro
contra os provedores de serviços de compartilhamento de arquivos peer to peer
(P2P) e software; depois contra os usuários que compartilham arquivos – aplicando
medidas técnicas de proteção18 e realizando campanhas educacionais do tipo
“piratas são criminosos”.

Além da repressão às cópias não autorizadas, a concentração sob a


forma de conglomerados do entretenimento tem sido mais uma resposta das majors
enquanto estratégia de atuação no mercado cultural e da comunicação. As grandes
empresas têm procurado se agrupar, de forma a viabilizar o crossmedia ou
marketing 360 graus, caracterizado pela distribuição de serviços e produtos em
diferentes mídias existentes no mundo digital e offline. Ou seja, a concentração
crossmedia possibilita que a mesma campanha, empresa ou produto utilize
simultaneamente diferentes tipos de meios de comunicação: imprensa, TV, rádio e
internet, por exemplo. Essa possibilidade é maximizada nas situações de
propriedade cruzada dos conglomerados da cultura e da comunicação, quando o
mesmo grupo controla diferentes mídias.

Essa configuração explica a dificuldade financeira de empresas que se


especializam apenas no setor fonográfico e o sucesso mercadológico das
propriedades cruzadas, na medida em que a associação de empresas diferenciadas,
mas afins, multiplica a capacidade de ação no mercado do entretenimento. Entre os
exemplos mais significativos desse tipo de fusão cita-se a
Sony/Columbia/Matsuchita/MCA e a Phillips/A&M Records. O doutor em
comunicação e cultura Dênis de Moraes (2010) explica que não é possível entender

18Entre as ações de combate às cópias não autorizadas destaca-se o Digital Rights Management
(DRM). O DRM é também conhecido como trava tecnológica e pode ser instalado em hardwares ou
mesmo na mídia física e se utiliza de um código que criptografa os dados da mídia impedindo a
realização de cópias.
113

a indústria cultural hoje sem entender o conglomerado, enquanto forma


organizacional dominante nas indústrias do infoentretenimento:

Em poucos setores o nível de concentração foi tão espantoso quanto


na mídia. Em curto prazo, o mercado da mídia global passou a ser
dominado por sete multinacionais: Disney, Warner, Sony, News
Corporation, Viacom, Vivendi e Bertelsmann. Nenhuma dessas
empresas existia em sua forma atual de empresa de mídia há
apenas 15 anos. Hoje, quase todas elas figuram entre as trezentas
maiores empresas não financeiras do mundo. Das sete, apenas três
são verdadeiramente empresas norte-americanas, embora todas elas
tenham nos Estados Unidos operações fundamentais. Em conjunto,
essas sete empresas possuem os principais estúdios de cinema dos
Estados Unidos; todas as redes de televisão norte-americana, exceto
uma; e as poucas empresas que controlam 80 a 85% do mercado
global de música (MORAES, 2010, p. 221).

No mesmo sentido, David Harvey (2002, p. 152) destaca que o que


ocorreu com a indústria do entretenimento foi expressão de uma reorganização do
sistema financeiro global na emergência de poderes ampliados de coordenação
financeira, por meio do movimento dual. De um lado, a formação de conglomerados
da comunicação. De outro, a proliferação de descentralização das suas atividades.
Segundo o autor, as fusões e incorporações no setor são parte partes integrantes
dessa lógica. No caso da indústria da música, observa-se um processo de
concentração e oligopolização acentuada ao longo do tempo. Os dados da
Federação Internacional da Indústria Fonográfica demonstram que na década de
1970 seis empresas eram responsáveis por 74% do mercado musical. Em 2010 a
mesma porcentagem é distribuída entre cinco empresas (IFPI, 2012).

Essa disposição cruzada das indústrias do entretenimento informa a


ênfase da atividade das empresas fonográficas a partir dos anos 2000: sua
capacidade de distribuir, divulgar e promover a comercialização das músicas.
Enquanto o ato de gravar o disco é praticado por terceirizadas, a própria
denominação “gravadora” para designar os representantes da indústria da música
demonstrar-se equivocada, uma vez que o papel das empresas na atualidade é
proporcionar recursos de investimentos na difusão; utilizar experiência em marketing
para o gerenciamento estratégico dos produtos; fornecer canais de distribuição; e
prestar assessoria jurídica, mormente contratual e comercial aos músicos.
114

Em paralelo à emergência de novas práticas distributivas que dificultam o


monopólio da indústria, os conglomerados também têm investido em novos modelos
de negócio, em que a empresa passa da condição de produtoras de mercadorias
para a condição de prestadora de serviços, baseadas no acesso. Se até a década
de 1990 a indústria da música limitava-se às atividades de produção e
comercialização de fonogramas físicos, o formato tradicional de venda direta de
mercadorias é substituído cada vez mais pela comercialização do direito de uso.
Nesse sentido, Jeremy Rifkin (2005, p. 42) refere-se ao momento econômico
contemporâneo como a “era do acesso”, ao explicar que as novas tecnologias
apontam para a mudança do paradigma em que se compravam produtos, para a
situação de compra dos “direitos de entrada”. Nessa dinâmica, as atividades se
tornam pagas ou substituídas por relações contratuais, sob a forma de associações,
assinaturas, taxas de admissão e tarifas.

O economista Ladislau Dowbor (2000, p. 15) ratifica o entendimento de


Rifkin e chama atenção para o universo dos serviços de intermediação, que formam
o “capitalismo de pedágio” hoje. Nesse contexto, a cobrança do direito de trânsito do
produto na esfera econômica assume um importante papel. O autor (DOWBOR,
2000, p. 19) exemplifica que na prática não se compra mais o telefone ou a compra
é simbólica, mas paga-se todo mês pelo direito de usá-lo. Não se paga a consulta
médica, mas o plano para ter direito ao acesso aos serviços de saúde. A impressora
custa bagatela, o importante é a compra regular do toner exclusivo. O que se tem,
então, é a corrida pelo aumento da renda, segundo o modelo do “pay-per-life”, sem a
qual ocorre a privação de serviços essenciais, entre eles a participação na cultura.

Na indústria da música, o movimento de desmaterialização dos suportes


físicos aponta para novas formas de rentabilidade, sobretudo por meio da
exploração do digital. O processo aberto que terceiriza a produção tenta agora
assegurar o monopólio da distribuição e, sobretudo, da divulgação e promoção, por
meio do controle do acesso. Diversos são os exemplos que explicitam a forma
contemporânea de remunerar o capital no setor musical, levando em consideração
que a valorização dessa economia tem sido facilitada pelas configurações do
conglomerado. Os novos modelos de investimentos nessa área envolvem, desde a
venda de músicas digitais e o merchandising, até a venda de música embarcada,
115

por meio do comércio interempresas, assim como a sincronização de fonogramas


em filmes, propagandas e vídeos games. Citam-se também a importância dos
streamings19 e licenciamentos, além da crescente participação das empresas da
música nos rendimentos de shows e execuções públicas.

Segundo dados da IFPI (2012, p. 22), entre 2004 e 2010, houve retração
de 31% no faturamento da indústria da música mundial. Foi quando, em 2003, a
venda de fonogramas pelo meio digital iniciou seu processo de entrada nos circuitos
ampliados do capital. Os dados disponíveis sobre a receita de música digital são
fornecidos pelas gravadoras às suas associações representativas. No caso
brasileiro, quem coleta os dados e produz os relatórios sobre a indústria da música é
a Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD)20. Os dados divulgados
pela ABPD apontam que o faturamento das principais empresas do setor fonográfico
brasileiro caiu de R$1,1 bilhão, em 1997, para R$ 360 milhões, em 2009. Nos
últimos anos, tem se esboçado uma interrupção deste movimento de queda,
observando-se taxas bastante modestas de crescimento. Esse aumento é apoiado,
sobretudo, pela ampliação do mercado de música digital. Segundo levantamento da
ABPD (2011, p. 9), as receitas relacionadas ao mercado digital representaram 16%
do mercado total de música em 2012. O mesmo relatório aponta também que, de
modo geral, houve crescimento em todos os formatos de negócios digitais21.

Os esforços de modernização da indústria da música são no sentido de


manter a sua relevância enquanto intermediárias. Entre as novas formas de
19 O streaming é a técnica de reprodução de arquivos multimídia por meio da rede, caracterizada pelo
fato de que o arquivo do conteúdo não permanece no dispositivo do usuário após a reprodução. Ou
seja, caso o usuário deseje reproduzi-lo outras vezes, terá que baixar o conteúdo novamente do
servidor.
20 Esses relatórios nacionais são a base para a geração de dados agregados em escala mundial e

sua publicação pela IFPI. Entretanto, enquanto a ABPD reúne atualmente 10 gravadoras associadas,
existem mais de 160 gravadoras atuantes no país, de forma que as empresas vinculadas à ABPD
não representam nem 10% das gravadoras que atuam no mercado brasileiro. Mesmo assim, as
gravadoras agregadas à ABPD representam 75% das receitas totais da indústria musical nacional.
Por isso, os números levantados pela ABPD não deixam de ser relevantes. As filiadas à ABPD são as
grandes gravadoras que exercem controle sobre os meios de distribuição e promoções e apresentam
vendas expressivas. São elas: EMI Music, MK Music, Munic Brothers, Paulinas, Record Produções e
Gravações LTDA, Som Livre, Sony Music Entertainment, The Walt Disney Records, Universal Music e
Warner Music. Ou seja, a visão geral do mercado da música que elas fornecem é útil, uma vez que
permite identificar as tendências gerais do mercado.
21 Entre as novas formas de rentabilidade, o lançamento da loja iTunes pela empresa Apple tem sido

o marco mais citado quando à venda “a la carte” de arquivos de músicas digitais, vídeos de shows,
entre outros serviços. Além da iTunes, outras empresas vêm crescendo no setor, a exemplo da
Amazon, uma das maiores varejistas online do mundo, que em 2007 lançou seu serviço de
downloads de MP3 DRM-free, ou seja, sem travas tecnológicas.
116

rentabilização na indústria fonográfica, José Paulo Pinto (2011, p. 62) evidencia a


prática de venda de música embarcada, quando uma empresa fecha contrato com
gravadora ou distribuidora para vender seus produtos junto com músicas. Por
exemplo: a Danone, a Deel e a Coca-Cola já lançaram produtos que agregavam
códigos para realização de downloads de músicas. Entre os diversos modos de se
realizar a venda da música embarcada, o que mais chamou atenção desta pesquisa
foi o lançamento de CD da banda NX Zero, contratada pela Universal, que ajudou a
vender mais de um milhão de celulares da empresa Motorola, os quais continham o
álbum da banda, algumas faixas de vídeo, cenas de bastidores e papéis de parede.
A gravadora Sony Music Entertainment e a Sony-Ericson, empresas do mesmo
conglomerado, chegaram a acordo similar com a banda brasileira Jota Quest, tendo
vendido 900 mil celulares em 2013.

Outra fonte de receitas obtida pelas gravadoras se relaciona à


sincronização de músicas em filmes, propagandas e vídeo games. A sucursal da
Universal Music no Reino Unido (IFPI, 2012, p. 22) relata que as rentabilizações
advindas da sincronização em games já ultrapassam as de filmes e estão atrás
somente da sincronização em propaganda. O setor de jogos como um todo está se
tornando uma fonte cada vez mais significativa de demanda por música. Só em
2008, a indústria de jogos eletrônicos teve receitas globais em torno de US$ 48,3
bilhões. Títulos como Guitar Hero e Rock Band possibilitam ao jogador fazer
downloads de músicas na internet por meio do controle do jogo. A empresa
Microsoft relatou vendas de 3,8 milhões por mês em músicas no Xbox Live em 2012
(IFPI, 2012, p. 45).

Por sua vez, a reprodução de música na internet por meio do streaming é


o modelo de acesso por excelência da indústria da música. Entre os serviços
oferecidos nesse campo destaca-se o Spotify. O programa permite escutar músicas
gratuitamente pela internet, bem como contratar planos pagos que possibilitam o
acesso às músicas em viagens internacionais, maior qualidade de som, entre outros
benefícios. Depois de instalar o aplicativo e se inscrever no serviço, é possível
navegar pelas seleções de músicas pré-definidas ou buscar um estilo ou artista em
particular. É possível também criar playlists com músicas preferidas e compartilhá-
las entre dispositivos. Além dos serviços mais específicos que têm como base o
117

acesso, outros fluxos de receitas estão sendo obtidos pelas gravadoras de forma
indireta, por meio do licenciamento de músicas que são veiculadas em redes sociais
ou em sites de streamings de vídeos – como o Youtube. A remuneração, nesses
casos, pode se dá tanto por taxas de licenciamento como por participação
percentual nas receitas desses sites, relacionadas à publicidade.

Além disso, as “gravadoras”, que hoje são também donas da imagem do


artista, procuram vender cada vez mais produtos com base na marca dos seus
artistas, a exemplo de bonés, camisetas, vinho, uísque etc. O AC/DC, banda de rock
australiana, lançou em 2011 a coleção de vinhos com o nome de suas canções mais
famosas. No mesmo ano o Motley Crue, banda estadunidense de rock, teve seu
nome colocado em uma série limitada de garrafas de uísque da marca
estadunidense Jack Daniel’s. Desta forma, a indústria vem se concentrando no
processo de persuasão do consumidor a identificar-se com seus artistas por meio da
prática do merchandising.

Quanto aos shows ao vivo, atualmente os contratos preveem, entre outras


coisas, a taxação em média de 10% da bilheteria de seus artistas, cujo preço dos
ingressos tem crescido a cada dia22. O ápice dessa nova forma de subsunção são
os chamados contratos de 360 graus, em que a indústria tem muito mais controle
sobre a receita geral advinda da exploração da carreira dos artistas. No intuito de se
afirmar cada vez mais como intermediária, a empresa participa de todas as
atividades produtivas do músico contratado, inclusive e principalmente, os shows,
em um contexto em que o artista é incluído na retórica da colaboração e da parceria
com a “gravadora”.

Ao mesmo tempo em que experimenta novos modelos de negócios e


formas de rentabilização no intuito de manter seus monopólios, a indústria
fonográfica reduz, pouco a pouco, o seu poder de barganha quanto aos
independentes. O independente, enquanto emblema de reestruturação da indústria
22 Na última década, o preço de shows no Brasil subiu muito acima da inflação e do dólar. Segundo
Miranda (2010), em menos de dez anos, a diferença de preços entre dois festivais de grande porte - o
Rock in Rio e o SWU, por exemplo, subiu 1.729%. Segundo dados do IBGE, a inflação acumulada de
janeiro de 2001 até junho de 2010 é de 84,78%. Os produtores culpam a meia-entrada pela alta dos
preços. A Lei nº 12.933/2013 que dispõe sobre o benefício do pagamento de meia-entrada para
estudantes, idosos, pessoas com deficiências e jovens de 15 a 29 anos comprovadamente carentes
em espetáculos artístico-culturais e esportivos limitou a concessão do benefício em 40% do total dos
ingressos disponíveis para cada evento.
118

fonográfica, hoje mais do que nunca, realiza não apenas os processos de produção,
mas de distribuição dos seus trabalhos de forma autônoma às grandes gravadoras
intermediárias, embora ainda não represente a maior fatia de consumo das músicas
atuais. Seus mecanismos de organização e modelos de negócios vão de encontro
às estratégias das grandes indústrias/empresas fonográficas tradicionais.

Para a maioria dos músicos independentes entrevistados nesta pesquisa,


a música gravada em suporte físico (CD, DVD, vinil ou até fita k7) não representa
uma porcentagem significativa de suas remunerações, embora a componha. O
suporte físico, nesse contexto, tem o caráter de cartão de visita das bandas e
gerador de “ciclos de shows”, além de compor o reconhecimento coletivo do artista,
conforme demonstrou Paulo Del Picchia (2013)23. Guitinho (SILVA, 29/2/2016)
afirma que não consegue, do disco, ter uma renda para os integrantes e que a
venda dos discos ajuda em algumas contas, como pagamentos de ensaios e
manutenção dos instrumentos. Tatá Aeroplano (30/4/2015), por sua vez, explica que
vende o disco barato, entrega pessoalmente nos correios, e que não ganha muito
em cima dos discos, mas que esse pouco dinheiro junta com outros “poucos
dinheiros” e é assim que tem conseguido sobreviver de música e ser identificado no
meio independente.

Nos casos pesquisados por esse trabalho, ao contrário do que acontece


no exterior, notadamente nos mercados estadunidenses e britânicos, os artistas
considerados independentes não conseguem auferir rendimentos diretamente da
23Picchia (2013) investigou, em Dissertação de Mestrado, o porquê de, no mesmo período em que as
vendas de discos físicos diminuem, um grupo de compositores urbanos passa a produzir e lançar
discos físicos de forma autônoma, contínua e intensa. Acompanhando processos criativos e
produtivos de três compositores paulistas – Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Tatá Aeroplano, Picchia
demonstrou que o disco é uma engrenagem fundamental desse maquinário social de construção de
artistas. Nesse sentido, os artistas causam e são causados pelos discos; eles fazem os discos e os
discos os fazem na medida em que circulam e são reconhecidos coletivamente. Esse reconhecimento
coletivo é essencial para um indivíduo passar para a categoria de artista, de forma que não adianta o
comunicante da obra dizer “eu sou um artista”, ele tem que ser reconhecido enquanto tal. Obviamente
que não é só o disco que age, mas sem o disco fica praticamente impossível agir nessa rede de
artistas novos e que movimenta a cena musical independente. “Os artistas gravam os discos porque
os discos gravam os artistas. Por que os discos gravam os artistas? Porque eles são agentes causais
fundamentais que ao trocarem propriedades com outros agentes (jornalistas, internet, familiares,
ouvintes, músicos etc.) tornam possível que compositores como Tatá, Rodrigo e Kiko perpetuem sua
arte, amplifiquem seu público e divulguem seus nomes. E Eles (os discos) são pessoas-artístico-
musicais, são processos criativos, são toda rede de associações tecida dentro dos estúdios entre
humanos e não-humanos, são cartões de visita, são vitrine, são um conjunto de canções que
individualiza a obra de um compositor, são a pessoa desse compositor se distribuindo e se
multiplicando através do ciberespaço, e são, ainda, em alguma fase de sua trajetória social,
mercadorias” (PICCHIA, 2013, p. 182).
119

internet. Todos os entrevistados afirmam utilizar a internet para distribuição gratuita


das suas músicas e promoção das suas produções, mas nenhum citou a internet
como meio direto de rendimentos financeiros, uma vez que não vendem música na
rede. Portanto, o sonho de sucesso na internet não tem se materializado em retorno
financeiro direto para a maioria dos músicos independentes, embora a rede
impulsione a realização de shows e a venda de CDs e/ou produtos dos artistas.

Os 22 entrevistados declaram ter perfis em redes sociais como Facebook,


Twitter, Instagram e Spotify. Os artistas independentes se utilizam do barateamento
das tecnologias não só quanto à produção, mas também para a atividade de
distribuição e promoção, naquilo que pode ser alcançado por esses meios e levando
em consideração o contexto social e econômico das realidades locais. O Facebook
se tornou tão importante para o mundo musical e artístico que existe uma
configuração especial no site chamada “página de artista”. O músico pode criar sua
página, em que normalmente disponibiliza seus discos, fotos, agenda de shows etc.
Entre os artistas entrevistados, a banda Mombojó (Missionário José), Marcia Castro,
Metá Metá (Juçara Marçal) e Cidadão Instigado (Fernando Catatau) são as páginas
que mais somam curtidas no Facebook (66.957, 58.669, 29.307 e 21.793,
respectivamente).

No contexto em que os músicos afirmam “colocar tudo de graça na


internet” observa-se dois perfis de artistas entrevistados. O primeiro que saúda a
disponibilização gratuita de suas músicas como etapa necessária para o
reconhecimento e a realização de shows. E o segundo que se preocupa com a
dinâmica da gratuidade dos seus trabalhos nas redes em longo prazo. Para Romulo
Fróes não há um sentimento de “estar dando a música de graça”, mas sim de expor
o seu trabalho. Por isso, ele afirma que sua música está em todas as plataformas:
no disco físico, no vinil, no iTunes, no site dele para baixar de graça, no Youtube, de
forma que o consumidor escolhe como acessá-lo. “O que eu sei é o seguinte: a
minha música tem que estar disponível”, enfatiza. Porque só assim ele se tornará
conhecido e as pessoas irão para os seus shows. Chegando no show do Romulo
“tem lá a banquinha, o CD, o vinil, e as pessoas compram. É assim que funciona”
(FRÓES, 30/4/2015).
120

Da mesma forma, Otávio (AEROPLANO, 30/4/2015) afirma que,


disponibilizando todo o seu trabalho gratuitamente na internet, garante um resultado
financeiro satisfatório por outros meios. Porque cada disco que ele lança na internet
impulsiona a venda desse próprio disco físico. “São pessoas que vão curtindo o som
e que fazem questão de ter o álbum físico”, explica. Todo o seu trabalho na internet
está conectado com redes sociais em que ele publica promoções e informações, de
forma que essa lógica tem funcionado em relação ao conjunto de sua
sustentabilidade até então. Juçara Marçal (7/5/2015), por sua vez, considera
decisiva a disponibilização do seu trabalho gratuito na internet quando se trata de
constatar a expansão do Metá Metá.

A gente logo que gravou, o primeiro passo foi disponibilizar na


internet, de graça. [...] E aí é isso. Eu tenho absoluta certeza, eu
assim como todo mundo do Metá Metá, que o lance do Metá Metá ter
se expandido tem a ver com esse jeito de lidar com a coisa. Que
gravadora pensa nisso? Eu acho que o legal quando você
disponibiliza é que tem gente que conhece o Metá Metá em todo o
Brasil... Por que? Porque o cara vai lá, ouve alguma coisa e tem a
possibilidade de baixar o disco inteiro e saber qual que é a do disco
inteiro. Não é aquela coisa de ouvir um pedacinho... Ele baixa e se
ele curta o som, pronto. Tá cooptado (risos). É um pouco isso que a
gente faz com a música. A pessoa tem a possibilidade de ouvir o
trabalho inteiro. E aí se ela curte ela vai atrás e expandi. Essa
pessoa é a pessoa que vai expandir porque ela curtiu. Direto na
página do Metá Metá a gente anuncia lá show num sei aonde, e
direto lá uma sequencia de comentários ‘Olha fulana, vai assistir a
esse show que é muito legal’... As pessoas acabam fazendo esse
trabalho da distribuidora, que a distribuidora não faz. É muito mais
legal ir sozinho e achar o nosso caminho. Pra gente tem funcionado.
E muito... (MARÇAL, 7/5/2015)

No segundo perfil que se preocupa com a dinâmica da gratuidade nas


redes em longo prazo encontra-se Marcia Castro. A artista destaca que a
remuneração da distribuição digital é algo muito importante que o mercado
independente ainda não se atentou. Segundo a cantora, essa falta de atenção
acontece porque sua geração começou a divulgar o seu trabalho no momento de
mudança de paradigma das gravadoras, ou seja, sua geração já nasceu na prática
do download gratuito: “Então, a gente naturalizou o fato das coisas estarem de graça
121

na rede”, de forma que acaba pensando muito pouco sobre os mecanismos de


arrecadação na internet. Marcia declara que tem artistas que nem entendem o que
acontece com a distribuição digital... “Quem faz com que o seu trabalho chegue,
quem é que ganha com isso, quem deixa de ganhar com isso...”, explica (CASTRO,
5/5/2015).

Marcia comenta sua experiência de distribuição na Sony e afirma que a


gravadora hoje sai do papel de distribuição física porque existem poucas lojas, mas
ganha um filão de mercado imenso com distribuição digital porque os meios digitais
acabam repassando pra gravadora, que não repassa pro artista de forma “justa”.
Além disso, existem as plataformas digitais que ganham sem repassar para o artista
também: “O Youtube que não paga a ninguém...”. Marcia também destaca que sua
geração acaba não pensando muito sobre tais questões porque é afogada de
compromissos e responsabilidade e “simplesmente não tem tempo pra tudo”. No
entanto, ela enfatiza a importância desse assunto, uma vez que “muita gente ganha
dinheiro, menos o artista. Tem gente ganhando dinheiro à custa do nosso trabalho,
entendeu?” (CASTRO, 5/5/2015).

O download de graça eu acho legal, eu acho bom, desde que não


exista ninguém ganhando a partir disso, né? Por exemplo, se eu
quero liberar o meu disco de graça, ok. Eu vou lá na minha
plataforma e libero. Mas eu não acho justo o que algumas
plataformas estão fazendo que é pagando uns royalties que têm
muitos zeros e zeros e zeros até chegar no um, entendeu? E eles
estão ganhando muito com assinatura, eles estão ganhando muito
com publicidade. Então, eu não acho justo que o Youtube não pague
a gente de um modo digno. Na verdade, que esteja sem pagar há 3
anos. E o nosso conteúdo esteja lá de graça e eles ganhando...
Então, a crítica que eu tenho é essa: Poxa...! A gente dá de graça,
mas pra fazer é caro ainda, entende? A gente nem encontrou ainda o
ponto de equilíbrio nesse lugar... (CASTRO, 5/5/2015)

No mesmo sentido, ao avaliar a disponibilidade gratuita de músicas na


internet e o lucro das grandes varejistas online o músico Bruno Consetino destaca
as seguintes observações em entrevista à Revista Outros Críticos:
122

A música quanto está de graça na internet, cumpre o seu papel


essencial, que é ser uma doação do artista para o mundo; e esse
círculo se retroalimenta, já que artistas também têm à sua disposição
toda essa música. Mas ela não existe só nesse mundo ideal, é
também um produto de mercado e vale dinheiro e se os artistas não
estão ganhando, alguém está. E se seguirmos o dinheiro,
chagaremos nas grandes corporações da internet: Google, Apple,
Amazon etc., super atravessadores do capitalismo informatizado, que
estão lucrando um monte às nossas custas e ainda por cima
legitimam sua condição de sanguessugas com o respeitável valor de
democratização cultural. Não sejamos ingênuos. Eles desenvolvem
uma plataforma online de venda que, por sinal, é uma ótima solução
técnica para a venda do registro sonoro hoje, mas que custa uma
ninharia se comparada à dispendiosa estrutura da falida indústria
fonográfica; dominam o mercado global, não estabelecem nenhuma
relação com o objeto concreto, vendendo desde batedeiras a livros, e
querem nos enfiar contratos abusivos goela abaixo - o Itunes cobra
mais de 50% de comissão sem colocar um puto do lucro no início da
cadeira produtiva. Então, parece que tudo é lindo, mas não é
(OUTROS CRÍTICOS, 2014, p. 40).

Com a forte retomada do controle das majors sobre o mercado, que


representam esses acordos com os serviços de streaming (serviço de música online)
em oposição ao P2P (que permite o download da obra e relação direta entre artistas
e usuários), o que ocorre agora é que os valores dos objetos musicais continuam
baixos, mas os atravessadores não medem esforços para se manter enquanto
intermediário por meio de acordos judiciais e extrajudiciais, se colocando entre
usuários e artistas. Na atualidade, são pagos centavos aos artistas mais executados
e nada aos demais. Ainda que exista cada vez mais dinheiro circulando no setor
musical, comprova-se a ampliação dos problemas sociais e de renda nesse campo.

Marcia Castro ainda reflete que, por enquanto é jovem e tem força de
trabalho para concentrar sua remuneração nos shows, mas que vai envelhecer.
Portanto, se sua geração não ajustar essas relações, que são de trabalho, vai
chegar um momento em que ela não poderá fazer shows e as coisas ficarão
bastante complicadas. “Daqui a pouco a gente vai tá cansado pra tá batalhando
show, né? E a gente faz discos, a gente faz músicas, e não é remunerado por isso
em quase nenhuma esfera, entende?”, conclui (CASTRO, 5/5/2015).

Quanto à propriedade da gravação, todos os artistas afirmaram ser hoje


donos dos seus próprios fonogramas, uma vez que não têm contrato com nenhum
123

gravadora/distribuidora. No primeiro disco da Orquestra Contemporânea de Olinda,


contudo, Gilu Amaral lembra que firmou um contrato de distribuição com a Som
Livre. Nesse contexto, é interessante o depoimento do músico porque enfatiza as
diferenças entre ser dono do próprio fonograma e cedê-los a uma distribuidora.

Com a Som Livre a gente fez um contrato de distribuição que a gente


achou interessante porque era um contrato que a gente conseguiu
fazer um acordo. E era só o fonograma, né? O fonograma fica com
eles 5 anos, eles ficam donos das músicas 5 anos, entendeu? Mas
quando a gente fechou com a Som Livre a gente não podia liberar
em nosso site. Só que isso hoje não existe. Não existe esse controle
mais... Nesse segundo (CD) a gente já fez uma coisa bem legal. A
gente fez o ‘pague com twitter’. A gente licenciava, você fazia o
download... Só que pra fazer o download você tinha que twittar ou
compartilhar ele no facebook. Então isso foi bem legal... A gente em
5 dias teve 5 mil downloads. Eu nem sei quanto tá agora, nunca mais
vi... Então a gente tem que tá muito antenado em tudo (AMARAL,
12/11/2014)

No universo das propriedades dos fonogramas, as práticas de


licenciamento que partem de “todos os direitos reservados”, apesar de não ser mais
a única possível, ainda são as mais utilizadas. Poucos artistas declararam registrar
suas obras em Creative Commons (CC). Elaborada em 2001 por um grupo de
pesquisadores coordenados pelo advogado estadunidense Lawrence Lessig, a CC
faz parte das licenças criativas ou copyleft (em trocadilho com copyright) e cria uma
opção do meio-termo legal entre "todos os direitos reservados" e o domínio público,
uma vez que proporciona os instrumentos concretos para que os criadores possam
regular os usos de suas obras. Por meio das licenças CC os autores estabelecem as
disposições sob as quais querem compartilhar suas obras, deixando que outros as
usem, copiem, distribuam e modifiquem, mantendo seu direito moral ao
reconhecimento como criadores e proibindo, por exemplo, o uso comercial.

Quanto à participação do direito autoral na renda dos artistas


considerados independentes por esta pesquisa, considerando o total dos 22 músicos
entrevistados, apenas dois afirmaram receber até 10% de sua remuneração com
direitos autorais, o maior percentual observado, embora a maioria esteja registrada
em órgão de arrecadação de direitos autorais, como o ECAD e a União Brasileira de
124

Compositores (UBC). Quanto à propaganda – diferente do que ocorre com a


execução pública, quando os direitos são recolhidos e distribuídos via ECAD –, o
pagamento para o uso de música ocorre por meio de contratos específicos. Esses
contratos estabelecem valores fixos pela música ou trecho que será utilizado em
período determinado de tempo, levando em consideração a duração da propaganda,
o veículo de exibição e alcance geográfico. Apenas um entrevistado auferiu
rendimento de propagandas, realizando jingles para o banco Bradesco.

Da mesma maneira que acontece com a propaganda, o pagamento de


trilha sonora é estabelecido por meio de contrato que regula o valor fixo de uso da
música. Sobre a sincronização de músicas em programas de TV, Otávio declara
para esta pesquisa que recentemente a GNT (das Organizações Globo) pediu uma
música sua para entrar num programa de TV: “Ah, quero que sua música seja o
tema de um dos nossos programas”. O músico ficou bastante entusiasmado e
perguntou as condições contratuais. A resposta foi mais ou menos assim “Eu quero
que você ceda as músicas de graça” e mandaram um contrato especificando essa
gratuidade. Otávio conta que tentou, minimamente, acordar outras condições, mas a
Globo não se abriu para o diálogo (AEROPLANO, 30/4/2015).

Putz, o contrato é terrível, saca? O contrato você dá a música pra Globo


poder usar essa música não só no programa, mas também em outras
coisas... Assim, absurdo, sabe? Aí eu falei ‘Não! Esse contrato é
impossível, cara’. Reescrevi o contrato e mandei... ‘Ah, mas com esse
contrato a GloboSat não aceita’. ‘Ah, beleza, eu não tenho interesse’... O
jeito que eles trabalham com os artistas autônomos é terrível! [...] Então é
muito complicada a relação com a TV... Você levar um fonograma pra lá...
Eles querem a propriedade daquilo! E aí, cara, nem ferrando que eu vou
fazer isso, entendeu? Então você acaba se limitando um pouco por causa
dos contratos... Antigamente a galera assinava dando risada... [...] Desse
ponto de vista a gente vive uma época terrível. Porque as corporações elas
estão aí... A gente vai se relacionar com elas, mas tem que ser
minimamente justo né? O problema é o tipo de contrato que eles
mandam... (AEROPLANO, 30/4/2015)

Juçara Marçal, por sua vez, afirma que realizou algumas participações de
trilhas em filmes, mas sempre na forma de “colaboração”, cujo sistema acontece
mais ou menos assim: “‘Olha, é um filme independente, a gente tá querendo tua
125

música...’. E aí a gente disponibiliza pra esse filme. Mas não é uma fonte de renda”,
explica Juçara (MARÇAL, 7/5/2015). É possível inferir que a economia das trocas
tem grande peso no meio independente, o que vem sendo sempre ratificado nesta
pesquisa das mais diferentes formas, sendo as dinâmicas de “colaborações” as mais
frequentes.

Finalmente, além da comercialização das músicas em formatos físicos


variados, outros produtos ligados à marca/imagem do artista tomam fôlego nesse
novo cenário considerado independente, como por exemplo camisetas, casacos,
bonés, adesivos, pôsteres, chaveiros etc. Embora a maioria dos músicos
entrevistados sequer produza esses tipos de produtos, destaca-se nas falas
entrevistadas a tendência e o desejo de promover os trabalhos também por esses
meios. A banda Mombojó, Eddie e Filarmônica de Pasárgada já produzem esses
tipos de produtos. Mas o grande destaque no campo do merchandising de artistas
vai para o Laboratório Fantasma, do Emicida (com quem toca Anna Tréa) e seu
irmão Evandro Fióti. Além de discos, a loja virtual vende calças, shorts, saias,
bermudas, vestidos, moletons, camisetas e bonés. No ano de 2016, o LAB participou
da São Paulo Fashion Week (SPFW), injetando diversidade e representatividade no
evento, em um desfile histórico < https://goo.gl/xhSNPJ >.

IV.II Meios de comunicação tradicionais

Embora a internet seja frequentemente citada pelos músicos


independentes enquanto importante meio de produção, distribuição e promoção dos
seus trabalhos, engendrando novas sociabilidades e alterando a correlação de
forças no processo de comunicação, grande parte da amostra enfatizou os limites da
rede virtual, no que toca ao seu alcance para maior número de pessoas. “Eu acho
massa a internet, mas ao mesmo tempo eu acho mó ilusão”, anuncia Fernando
Catatau (10/9/2015). Ainda que amplamente utilizada, a internet não consegue
superar as estratégias de promoção e divulgação que os meios tradicionais (rádio e
TV) detêm.
126

Segundo a Pesquisa Brasileira da Mídia 2015 (BRASIL, 2014, p. 3),


mesmo considerando o crescimento da internet no país, o rádio e a televisão são os
únicos meios de comunicação efetivamente universalizados, presentes em 97% e
86% dos domicílios no Brasil, respectivamente. A internet, por sua vez, ainda tem
alcance limitado. Apenas 25% dos domicílios brasileiros têm computador, dos quais
18% possuem acesso à internet. Dos domicílios com acesso à internet 58%
possuem banda larga, sendo que 66% desses possuem velocidade de até1 mbps. O
uso dos meios de comunicação segue o padrão de consumo determinado pela
renda, escolaridade e faixa etária: o uso diário e mais intenso da internet é maior
entre os jovens, com renda familiar superior a cinco salários mínimos (BRASIL,
2014, p. 3).

Além dos limites da universalização da internet, Marcelo Segreto levanta


um importante aspecto, relacionado à concentração também nesse meio, que faz
com que existam poderes desiguais e acessos diferentes para os artistas nas
redes24.

Ao contrário do que se pensava, com a internet a concentração de


todo o mercado musical aumentou mais nas mãos de poucos artistas
do que se distribuiu em vários artistas. Então, mesmo com a internet
tem essa coisa: ‘ah, se a gente é artista independente, a gente vai
ficar na internet... E os artistas de gravadoras eles vão pra TV, pros
rádios, pros meios mais tradicionais’. Eu acho que todos os meios
precisam ser acessíveis... E na internet as coisas não são assim tão
‘fáceis’ como parecem. Porque eu posso colocar a minha música no
Youtube. Mas se o Roberto Carlos colocar uma música no Youtube
ele já tem todo um sistema, sites que são parceiros dele, que
ganham dinheiro com isso... é muita grana. Então, é muita
concentração nesse meio também (SEGRETO, 14/4/2015)

Ao mesmo tempo em que apontam para contradições da internet, os


resultados desta pesquisa confirmam o difícil acesso aos meios tradicionais da mídia
pelos artistas independentes e ratificam um aspecto fundamental do arranjo que
estrutura, ainda hoje, a indústria da música no Brasil: a importância dos meios de

24Em 2015, o Spotify Brasil divulgou um ranking com os artistas brasileiros mais ouvidos no país. No
topo da lista encontra-se a dupla Henrique & Juliano, seguida da dupla Jorge & Mateus (MANNARA,
2015).
127

comunicação tradicionais para a promoção de artistas em âmbito nacional. Dos 22


entrevistados, apenas seis afirmaram conseguir utilizar, em algum momento, a rádio
e/ou televisão como meio de distribuição e promoção dos seus trabalhos. Desse
número, três deles já estiveram em grandes gravadoras. A Orquestra
Contemporânea de Olinda, por exemplo, que firmou um contrato de distribuição com
a Som Livre em seu primeiro CD, apareceu nos programas globais Fantástico e
Encontro com Fátima Bernardes. Nesses casos de exposição em mídias tradicionais
os entrevistados declaram a diferença da recepção, ou seja, do “feedback do
público”. “Das poucas vezes que a gente apareceu em televisão e rádio, a gente viu
que a diferença é muito grande. Vem realmente muita gente...”, afirma Felipe
Cordeiro (14/4/2015).

De uma forma geral prevalece a fala do Fábio Trummer (6/9/2014): “Os


programas de rádio e TV são muito raros, vez ou outra transitamos nesses meios,
mas não podemos contar com eles como estratégia de trabalho”. Nesse sentido, se
a independência, em algumas situações, possa ser uma escolha, a forma com que
usa os meios de comunicação é uma contingência, sobretudo política, para os
artistas entrevistados. Porque dos 22 artistas, todos enfatizam a falta dos meios
tradicionais de comunicação na projeção dos seus trabalhos, sobretudo
considerando as dimensões continentais do país. Otávio deixa manifesto que o rádio
continua sendo cada vez mais importante para o músico, da mesma forma que a TV.
O que existe, contudo, é que os meios tradicionais estão cada dia mais distante.
Embora as coisas “fluam” sem o rádio e a TV, ele não dispensa a sua contribuição,
assim como exalta a importância de alguns programas de nichos que ainda resistem
nesses meios tradicionais.

É muito distante, sabe? A gente tem pouquíssimos lugares onde a


gente possa apresentar o nosso som [...] Ir pra um programa de TV
de grande exposição... Putz, ótimo, né? Imagina... Agora que eu tô
um pouco estruturado... Ir num programa... Ia vender disco pra
caramba! Ia ser genial. Mas não acontece. Têm coisas que crescem
com a gente, a Roberta Martinelli, com o Programa Cultura Livre,
Patricia Palumbo... São coisas que tem mais a ver com a gente.
Agora as coisas de grande visibilidade, Globo e tal... isso tem se
tornado cada vez mais distante, infelizmente (AEROPLANO,
30/4/2015).
128

Alessandra Leão também enfatiza a dificuldade de acesso aos meios


tradicionais de comunicação, sobretudo nos grandes conglomerados, como a Globo,
ao mesmo tempo em que explicita e condena as práticas de favorecimento no rádio,
como o jabá. Ela também destaca a dificuldade de acesso às grandes lojas para
distribuir o seu trabalho. Todos esses fatores impactam não só no seu trabalho, mas
na diversidade cultural do país, de uma forma geral.

Alguns meios parecem que vão ser sempre difíceis, né? Algumas
coisas em TV, por exemplo... Essas coisas ainda realmente são bem
inacessíveis porque eu mesma não vou pagar R$ 50.000 pra tocar
no Faustão, né (risos)?! Isso realmente faz quem tem uma estrutura
enorme atrás. As rádios, a maioria, ainda é movida pelo jabá. Há um
tempo eu vi um estudo que a programação média de uma rádio
variava cerca de 40 músicas por mês. Era alguma coisa nesse
sentido... Mas minha gente! Como 40 músicas por mês? Claro que
eles devem colocar uma ou outra coisa ali perdida, mas é muito
pouco... Eu posso estar enganada nesses dados, mas de todo modo
é uma discrepância enorme. Porque as rádios e as TVs tocam o que
as grandes gravadoras produzem. E às vezes essas grandes
gravadoras não produzem nem 1/10 do que é produzido no mercado
nacional! [...]. A distribuição a gente faz muito pela internet também.
Mas aí também existe uma limitação. Também não é uma
distribuição ampla que cubra nacionalmente. Tem aquelas lojas, que
são lojas onde as pessoas naturalmente procuram a música que a
gente produz. Mas são pouquíssimas as que sobrevivem. Tem
capital hoje no Brasil que não tem loja de disco, não tem uma Passa
Disco, por exemplo25! Tem Lojas Americanas, tem supermercado...
Mas nas Americanas, por exemplo, o meu disco não entra. Só entra
com grandes distribuidoras.... Não entra assim direto não. Você não
chega na Americanas e diz ‘ó quero vender meu disco’! A FNAC
ainda abre a exceção quando a pessoa vai tocar lá de graça...
(LEÃO, 2/9/2014)

De forma semelhante, Marcia Castro também destaca a importância do


rádio e da TV enquanto potência na circulação de um trabalho musical: “em todo
lugar do mundo vai existir uma antena de rádio”; assim como repudia a prática do
jabá. Na televisão ela cita o poder das novelas na disseminação de uma música.

25A Passa Disco foi inaugurada em 2003 e permanece atuante no mercado de venda de discos em
Recife, especializada em música pernambucana. Atualmente a loja também tem funcionado como
selo e como espaço cultural.
129

Para a artista, quanto mais pessoas a ouvirem, melhor. Ela lamenta os entraves ao
acesso a esses meios de comunicação, sobretudo porque gostaria de ser mais
ouvida, bem como explicita as relações de poder nesses meios.

Saber que sua música está sendo ouvida e está sendo querida pelas
pessoas. Que existe o desejo pela sua música... Imagine que
maravilha isso! Enfim, às vezes eu penso que qualquer música é
suscetível do sucesso, que as coisas são uma questão de como se
mostra aquela música [...] Depende do acesso que você tenha a
esses veículos, né? Eu gostaria muito que minha música fosse vista
por mais pessoas, por muitas pessoas. Mas, assim, rádio, o mercado
independente já dá como perdido. Porque existe o jabá aí
violentamente. Algo que eu não sei se um dia vai acabar porque é
muito dinheiro que gira em torno disso, são muitos interesses, de
gente muito grande. Então, eu acho que pra minha geração, tocar na
rádio é um privilégio de poucos no mercado independente. Às vezes
acontece, assim, quando é um programador que gosta muito da sua
música, quando você tem uma relação de amizade com alguém
próximo de uma rádio e tal e coloca [...] Mas você tá na programação
de modo constante é realmente muito difícil (CASTRO, 5/5/2015).

Em relação ao jabá, importa destacar, ainda, o depoimento de Rico


Dalassam. Destoando dos outros artistas, o músico entende que, embora o jabá seja
uma prática perversa, pode ser realizada como forma de “investimento”. “Essa grana
volta se você escolher a música certa pra investir. É uma coisa escrota né? Mas é o
capitalismo... É uma grana que você pegou daqui e botou ali. É um jogo né?”,
afirma. Para o músico, a prática do jabá faz parte de uma visão empreendedora, a
qual informa que é necessário saber onde colocar dinheiro na construção do seu
objetivo. Rico entende que para alcançar seu objetivo de fazer shows ele precisa
estar na visibilidade das pessoas. Por isso, “se pintar uma grana legal e eu tiver uma
música que eu ache que ela vai pegar, eu pego essa grana daqui e ponho lá,
entendeu? Esse dinheiro volta” (DALASSAM, 15/6/2016).

Romulo Fróes ratifica a falta do rádio e expõe o desmantelamento do


pouco que existia nesse meio. “Nesse momento, a gente tá passando por uma coisa
chata e triste pra caramba”, se referindo à rádio Cultura de São Paulo, “que era um
dos poucos espaços que a gente tinha, Robertinha (Martinelli) lá se matando pra
deixar o Cultura Livre de pé. Era um negócio absolutamente inovador, que misturava
130

rádio, internet, TV”. Romulo explica que estão limando com os poucos programas ao
vivo e que isso faz muita falta porque as poucas vezes que ele tocou em rádio foi
sempre uma alegria pra ele. Por considerar a cena independente a qual está incluído
uma geração de nincho, ele afirma que toca em programas de amigos, de uma
forma bastante específica. “Mas nunca liguei o rádio e tava tocando a minha música.
Só quando eu sabia que ia passar na Patricia Palumbo naquela hora, e aí eu
sintonizada” (FRÓES, 30/4/2015).

Em relação a esses espaços de nichos, além do programa comandado


por Roberta Martinelli (o Cultura Livre), o Metrópolis e a Rádio online Vozes, liderada
por Patricia Palumbo também foram citados enquanto importantes espaços de
resistência e diversidade musical. Em Recife, Catarina Lins do Aragão (13/8/2014)
chamou atenção para a importância de programas locais nos espaços tradicionais,
como o extinto Programa do Roger. Isaar (25/2/2016), por sua vez, atentou para a
importância do Sopa Diário, também abolido. Hoje Recife conta apenas com a rádio
pública Frei Caneca (101.5 FM), criada há 56 anos, mas no ar desde 30 de Junho de
2016, fruto de intensa luta entre os segmentos locais.

Além dos poucos espaços nas mídias tradicionais, seja grande ou de


nicho, Guitinho (SILVA, 29/2/2016) ainda levanta uma importante questão,
relacionada à música vinde de comunidade negra e de candomblé, da qual faz parte.
Trata-se das ambiguidades entre querer estar exposto e não ser estereotipado ou
ridicularizado nesse processo, quase sempre perverso, uma vez observado o papel
da mídia nos discursos de ódio e intolerância hoje.

Aqui (em Recife), primeiro, os espaços são pouquíssimos, né? E um


grupo engajado como o Bongá, ele vive um grande dilema, né? Ano
passado a fez uma reportagem, que, ao mesmo tempo foi importante
pra gente, pra uma emissora de TV, pra Globo, com a qual a gente
tem muito questionamento. Ao mesmo tempo, a gente fica dizendo:
caramba, quando a gente fez, a gente vê o tamanho da repercussão.
E eu não olho pela repercussão pra o Bongá, mas eu olho pra
repercussão que foi da música do terreiro; você colocar um espaço
num dia de sábado, de uma hora... a gente defendendo a bandeira
do candomblé, no momento que a gente vive. Então, isso pra gente
foi importante, numa comunidade tradicional, negra. Mas a gente
sente a dificuldade que é imensa de reconhecimento dos grupos e
que essas emissoras de TV tratem de uma forma digna, coerente,
respeitosa a nossa música. Porque, ao mesmo tempo que a gente vê
131

um espaço desse, depois a gente vai ver em outro instante uma


chacota muito grande, uma desclassificação gigante dessas
emissoras. E com toda essa intolerância, esses discursos de ódio...
É triste ver que os meios de comunicação poderiam ser um grande
parceiro da diversidade na sociedade, mas não são (SILVA,
29/2/2016).

Finalmente, alguns músicos abordam a questão da atuação do poder


público no tema. Nesse sentido, Felipe Cordeiro afirma que “seria muito diferente se
rádio e TV cumprisse “os seus deveres de concessão publica, e aí vai para aquela
discussão da democratização da mídia...”. Felipe destaca que frequentemente
escuta “não se faz mais música brasileira como antigamente”. Mas se os meios
tradicionais de comunicação tivessem um comportamento mais honesto em relação
à produção atual a realidade cultural do país seria completamente diferente, em
termos de diversidade (CORDEIRO, 14/4/2015). Romulo Fróes também garante que
se os músicos independentes tocassem nas rádios, por exemplo, os seus trabalhos
iam ter outra dimensão e lamenta que os poderes não “façam nada” para mudar um
quadro que eles têm uma obrigação legal de intervenção, já que se trata de
concessões públicas (FRÓES, 30/4/2015). O depoimento de Fróes, inclusive,
levanta a defesa de cotas em programações:

Devia ter uma lei, dizendo ‘É o seguinte, você tem que tocar num sei
quantas músicas por dia, dessas músicas você tem que tocar uma
variedade X e você tem que tocar pelo menos 5 músicas de artistas
novos e tal’. A mesma coisa vale pra TV (FRÓES, 30/4/2015).

Na mesma direção, Isaar (25/2/2016) defende a importância das TVs e


rádios públicas, afirmando que “tem que ter programação com música de artista
independente, que de outra forma não estaria ali”. Ela exalta o papel dos meios
tradicionais de comunicação públicos, exemplifica a recepção dos ouvintes mesmo
quando apareceu em um programa local “pequeno” e afirma a necessidade de
distribuição/promoção da música na rádio e na TV para o fechamento do ciclo de
fomento cultural do poder público.
132

A televisão pública, a rádio pública, elas têm esse papel e elas


cumprem esse papel mesmo, sabe? Porque, uma coisa era a vida no
Recife com o programa Sopa Diário, que era uma horinha, na hora
do almoço, concorrendo só com programa policial, que dá uma
audiência danada. E mesmo assim fazia uma diferença incrível... das
pessoas passarem na rua e falarem: ‘ah, eu te vi no Sopa Diário’. E
foi muito engraçado que quando eu apareci... apareceu um clipe meu
segundos no NETV... aí as pessoas: ‘você voltou!’ Como eu voltei?
Eu tô aqui! ‘Você voltou, te vi de novo na televisão! Eu te via no Sopa
Diário, te vi no NETV! Que massa, você voltou!’ Então, é o poder da
televisão. Então, imagina se uma Globo Nordeste bota quinze
minutos da programação diária... Isso é uma coisa gigante, sabe? E
isso fomenta público que sai pra pagar. Mas é isso que eu digo: a
Prefeitura, ela poderia, enquanto Prefeitura, e o Governo do Estado,
enquanto Governo do Estado... eles têm horário de publicidade, mas
eles deveriam ter horário de música, sabe? Isso tá dentro. Se não dá
pra tá dentro de uma Secretaria de Comunicação, que seja na de
Cultura mesmo, porque isso faz parte de um fomento cultural
(FRANÇA, 25/2/2016).

Finalmente, Marcelo Segreto levanta a importância da Lei da Mídia


Democrática, assim como do Marco Civil da Internet.

As concessões estão concentradas, né? Não pode...! Isso não é


democracia, né? Não é um meio de comunicação democrático se
poucas pessoas têm um controle de todos os meios, inclusive da
internet. A TV é um meio de comunicação pública. A gente tem
direito de divulgar o nosso trabalho na TV, eu acho importante isso.
Porque a TV, queira ou não, ela é muito mais assistida do que o
nosso canal no Youtube, entendeu? Então pra gente seria
importantíssimo ir num programa grande de TV. Eu acho importante
músico independente no geral tentar se inserir nos meios de
comunicação, no rádio. O que seria legal seria ter uma rádio e uma
TV mais justos, né? Um rádio que você não tivesse que pagar 10 mil
reais pra tocar um mês... Que não tivesse que pagar pra participar de
um programa... (SEGRETO, 14/4/2015).

A partir das entrevistas realizadas e dos dados coletados sobre o


emprego dos meios de comunicação hoje, é possível concluir que embora a internet
seja o meio mais utilizado pelos músicos para distribuição e promoção de suas
atividades, não há uma dispensabilidade dos meios tradicionais – rádio e tv – na
dinâmica dos seus trabalhos. Além dos limites da internet em relação à remuneração
do músico e alcance de público, há uma enorme lacuna no gargalo da distribuição
provocada pela ausência do rádio e da TV no país, fortemente monopolizada por
133

uma indústria não mais fonográfica, mas da música, a qual não está propriamente
em crise, mas que reconfigura o tempo todo o seu poder de articulação no sentido
de manter e fortalecer os seus oligopólios. Em paralelo a esse poder de adaptação
da indústria que renova os seus mecanismos de concentração, emergem e resistem
espaços de mobilização alternativos e/ou independentes que sugerem todo um
campo de atuação do poder público na divulgação da cultura, que extrapole os
circuitos da internet.

No Brasil, apesar de consagrar assimetrias legais exclusivas em relação a


outros serviços públicos (sobretudo no que se refere à renovação, ao cancelamento
e aos prazos de concessões de emissoras de rádio e televisão outorgados pelo
Estado para exploração privada), a Constituição Federal (CF) de 1988 constitui um
marco de referência na legislação da radiodifusão no país. Como resultado de anos
de luta de setores da academia e da sociedade civil organizada, nela foram inscritas
normas e princípios que teriam sido capazes de alterar substantivamente a estrutura
concentrada da radiodifusão brasileira no rumo de sua democratização. A realidade,
todavia, revela que quase nada se avançou no que se refere às condições de
funcionamento e estruturação do mercado de radiodifusão. A inoperância do
Congresso Nacional na regulamentação das normas e princípios referentes à
comunicação social consagradas na CF/88 já foi objeto de duas Ações Diretas de
Inconstitucionalidade por Omissão (ADOs n.º 10 e 11), as quais aguardam decisão
do Supremo Tribunal Federal desde 2010.

Vale registrar, em particular, a não regulamentação de dois dispositivos


constitucionais: (a) o parágrafo 5º do artigo 220 e (b) o “Princípio da
complementaridade” inserido no caput do artigo 223. No artigo 220 é garantida a
livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação mas,
dentre outras condições, destaca em seu parágrafo 5º: “Os meios de comunicação
social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. A
não regulamentação deste parágrafo e a consequente ausência de qualquer
restrição à propriedade cruzada tem permitido a histórica concentração do controle
da comunicação social nas mãos de uns poucos oligopólios empresariais. O caput
do artigo 223, por sua vez, determina que as outorgas e renovações de concessões
para o serviço público de radiodifusão devem observar “o princípio da
complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”. A não regulamentação
134

do princípio da complementaridade, combinada com a não regulamentação do


parágrafo 5º do artigo 220, tem permitido a manutenção do flagrante desequilíbrio
estre os sistemas de comunicação social, com a predominância do sistema privado.

Diante desses fatos, permanece a questão sobre quais seriam as razões


que, historicamente, tem impedido a regulamentação dos dispositivos referentes à
comunicação social da CF de 1988 e a consequente ausência de avanço na
democratização da comunicação. Ao longo dos anos, aqueles que defendem a
democratização da comunicação têm sustentado sua posição em torno da
necessidade da universalização da liberdade de expressão, do direito à
comunicação no sentido de ter voz, isto é, de ouvir e ser ouvido, de acesso
igualitário e participação no debate público, de formação de uma opinião pública
democrática. Esses argumentos expressam uma visão republicana de democracia
apoiada na soberania e na participação populares.

Nesse sentido, desde 2012, a campanha “Para Expressar a Liberdade –


Uma nova lei para um novo tempo”, uma iniciativa do Fórum Nacional pela
Democratização da Comunicação (FNDC), tem movimentado dezenas de entidades
do movimento social brasileiro (mais de 260 atualmente). A campanha tem como
principal objetivo mobilizar o Brasil no intuito de conseguir um novo marco
regulatório da comunicação, por meio do apoio ao Projeto de Lei de Iniciativa
Popular da Comunicação Social Eletrônica, conhecido como Projeto de Lei da Mídia
Democrática, que regulamenta os arts. 5, 21, 220, 221, 222 e 223 da CF. A proposta
precisa da adesão de 1% do eleitorado nacional para ser protocolada na Câmara
dos Deputados e poder seguir o trâmite até virar lei, o que abrange cerca de 1,3
milhão de adesões. No seu conteúdo, um dos pontos da proposta é promover e
fomentar a cultura nacional em sua diversidade e pluralidade, mediante o fim dos
oligopólios e monopólios de mídia, a transparência nas concessões de canais de
rádio e televisão e o fortalecimento da comunicação pública e comunitária.

A Lei nº 12.965/14, por sua vez, foi um dos últimos atos de Dilma
Rousseff como presidente da República. Sancionado em 23 de Abril de 2016, o
Marco Civil da Internet, como também é conhecido, estabelece princípios, garantia,
direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Entre os principais pontos da Lei
está a neutralidade, cujo conteúdo informa que a rede deve ser igual para todos,
135

sem diferença quanto ao tipo de uso, o que significa que os provedores de acesso
devem tratar todos os dados que circulam na Internet da mesma forma, sem
distinção por conteúdo, origem, destino ou serviço. Com a neutralidade, um
provedor, por exemplo, não pode beneficiar o fluxo de tráfego de um site ou um
serviço em detrimento do outro. Assim, a Lei garante a escolha do usuário sobre o
conteúdo que deseja acessar e a livre concorrência na rede. Mas a neutralidade
ainda precisa ser regulamentada por meio de decreto presidencial. Dilma, contudo,
foi impeachmada dia 31 de agosto de 2016 e o atual presidente da República,
Michel Temer, não demonstra qualquer interesse em avançar nesse debate.

IV.III Consumo e recepção

O desenvolvimento das tecnologias da informação ao longo do tempo,


além de reconfigurar o binômio entre arte e técnica, reajusta a comunicação entre
artista e público. A internet e as redes sociais possibilitam hoje uma interação mais
direta entre o músico e “seu público”, conforme informa Marcelo Segreto
(14/4/2015). Nesse contexto, a fala dos entrevistados abordam tanto o artista que vai
atrás do seu público, quanto o público que “vai atrás do seu artista”, explica Felipe
Cordeiro (14/4/2015). Segundo o músico, os artistas que têm a internet como
principal meio de comunicação acabam encontrando um jogo de interação e
feedback do público muito “sincero e gratificante”. Felipe explica que “na época das
gravadoras o artista era um cara genial, aquele maluco que vivia fazendo loucura no
camarim, no palco”. Hoje, o músico responde pela sua obra, pelo que faz, pelo que
posta, pelo que sai no jornal. Nos termos dele, “a conversa é direta!”.

O cara que vai ouvir o teu trabalho ele vai estar em contato com a
obra daquele artista mesmo. Ele pensou a capa, ele pensou a
comunicação, sabe? Antigamente era tudo montado, a roupa do cara
era montada, a capa do disco, o papo... Hoje é tudo muito franco.
Acho que essa franqueza é característica de nossa época. [...]
Antigamente o artista era mistificado... Não que o cara não fosse
bom, mas o cara tinha 15 produtores!!! Tinha milhões de reais
investidos... (CORDEIRO, 14/4/2015)
136

Nas páginas dos artistas entrevistados encontram-se muitos exemplos


dessa interação direta, como pedido de informações de horários, preços e locais de
shows, avaliação de videoclipes e/ou músicas e demandas de apresentações.
Nesse sentido, a internet funciona tanto como instrumental de alcance de um público
determinado, quanto da intensidade das relações. Isso foi dito pelo músico Caio
Lima. Para ele a internet age de forma muito mais intensiva do que expansiva. O
músico conta que a resposta do público sobre a Rua é muito importante para a
banda, até mesmo do ponto de vista da produção. No caso da Rua, a banda pediu
para os ouvintes que tirassem fotos de situações despertadas a partir da audição do
disco. Isso gerou tantas fotos e interações que a banda produziu um livro. “Era outra
forma de atingir não só quem tava sabendo daquela rede, daquele circuito, mas aqui
fora também. Os livros se esgotaram rapidamente”, conta Caio (LIMA, 4/3/2016).

No universo do consumo/recepção da música considerada independente


hoje é importante destacar o caráter cult, também chamado de indie e hipster, que
ronda esse tipo de produção. O termo indie (abreviação de independente) entrou em
uso no início da década de 1980, quando músicos e produtores passaram a agir de
forma autônoma às grandes gravadoras, principalmente no Reino Unido e nos
Estados Unidos. Hoje o termo se aplica à indústria cultural de forma geral e faz
referência a um estilo que busca a popularidade restrita. Já o termo hipster é
frequentemente utilizado para se referir a um grupo de pessoas pertencentes a um
contexto social da classe média urbana. A cultura hipster é marcada pela música
considerada indie e estilos de vida considerados “alternativos”, na medida em que
busca pouca popularidade e muita originalidade. Mas qual o fator ilusório presente
no ambiente da circulação dessas mercadorias?

Embora os termos indie e hipster signifiquem muito mais a cristalização


de um estereótipo massificado e mediado para entender, categorizar e “marketizar”
um tipo de consumidor, importa ressaltar que a ideia do independente é fortemente
relacionada a essas tags. Missionário José atesta essa premissa ao afirma que o
independente não interage com o público do sertanejo, com o tecnobrega ou com o
funk carioca, por exemplo. “A gente fala muito pra pessoas de classe média com
alguma escolaridade que vive em um determinado nicho dentro da realidade do
Brasil. É um pedaço do mercado que acredita que não lida com o mercado” (LIMA,
2/9/2015). Com mesmo raciocínio, Luísa Maita faz menção “a música que o povo
137

consome” para fazer distinção da sua. É preciso frisar, contudo, que a pretensa
superioridade da música considerada independente não é uma regra observada nas
entrevistas, mas passa por alguns entrevistados, em sua minoria.

Nesse contexto da lógica da diferenciação percebem-se os “gostos” como


marcadores de distinção, associados ao nível de instrução e origem social,
constituindo modos de práticas sociais. Trata-se dos gostos enquanto disposição
adquirida para diferenciar, estabelecer ou marcar diferenças por uma operação de
distinção. É assim que a arte e o consumo artístico estão predispostos a
desempenhar uma função social de legitimação das diferenças sociais. Nesse
sentido, Bourdieu (2008, p. 99) se pergunta sobre os usos sociais aos quais se
presta cada tipo de arte, ao trazer, por exemplo, benefícios simbólicos e distinção
para um grupo seletivo de pessoas, estruturando um estilo de vida característico. O
autor recorre ao princípio unificador ou gerador das práticas, o habitus de classe,
como forma de explicar um conjunto de agentes situados em condições
homogêneas de existência, “impondo condicionamentos homogêneos e produzindo
sistemas de disposições homogêneas, próprias a engendrar práticas semelhantes”
(BOURDIEU, 2008, p. 97).

O habitus enquanto capacidade de produzir práticas e obras


classificáveis, além da capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas e
esses produtos (gosto), constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço
dos estilos de vida. No público considerado cult, indie e/ou hipster é preciso destacar
o poder propriamente de constituir, instituir e impor, uma categoria particular de
sinais. É o que Bourdieu (2008, p. 100) chama de capital cultural e que está
frequentemente ligado ao capital econômico, impelindo um grupo de pessoas para a
maximização dos rendimentos distintivos e ao consumo ascético. Nesse contexto,
destaca-se a presença e o efeito de homologias (BOURDIEU, 2008, p. 102), que são
os interesses específicos de distinção, os quais podem ser totalmente
desinteressantes para outros públicos.

As diferentes frações de classe dominante distinguem-se


precisamente no aspecto em que participam da classe considerada
em seu conjunto, ou seja, pela espécie de capital que se encontra na
origem de seu privilégio e por suas maneiras diferentes de diferir do
138

comum e de afirmar sua distinção que lhe são correlatas


(BOURDIEU, 2008, p. 240).

Nesse sentido, o consumo dos produtos ditos cults, indies e/ou hipster,
além de cumprir um papel de distinção, são acessíveis, sobretudo, a uma parcela de
consumidores que executam a função de descobridores desse tipo de arte de
vanguarda. Ao mesmo tempo em que consome, o público cult também cumpre o
papel de instância de consagração. São esses fatores combinados que fazem com
que os fenômenos musicais autônomos massivos e populares (o tecnobrega
paraense, o arrocha na Bahia ou o funk carioca, por exemplo) não sejam
categorizados como parte de uma “cena independente” pelas mídias e festivais
especializados. O que está em jogo na conceituação do “independente”, portanto, é
um conjunto de posições e tomadas de posições pelos agentes de um determinado
universo simbólico que busca a distinção, relacionados, sobretudo, a uma fração de
classe dominante e privilegiada, em razão de um capital cultural específico, que
também é econômico.
139

V VIVER DE MÚSICA

No contexto das atividades culturais, o empreendedorismo é reconhecido


como a forma mais apropriada de encarar os desafios do “trabalho criativo” hoje. A
partir das configurações do mercado e da economia cultural contemporânea,
multiplicam-se os artigos, encontros, feiras, rodadas de negócios e manuais com
dicas “valiosas” para quem pretende viver de música, que vão desde a importância
do network até o estudo do planejamento e da realização da carreira. Para entender
“como viver de música” e seus significados no mundo trabalho, este capítulo aborda
o engendramento de comportamentos e práticas ditas empreendedoras, presentes
nos discursos dos músicos entrevistados, e suas relações com as facetas da
precarização analisadas no Capítulo III.

Dos artistas que compõem a amostra desta pesquisa todos os 22 artistas


afirmam “viver de música”, pois seus rendimentos vêm exclusivamente ou
prioritariamente da música, ao mesmo tempo em que confirmam o caráter flexível,
contínuo, informal e pulverizado de suas atividades. O empreendedorismo cultural é
reafirmado nas narrativas em suas ambiguidades fundamentais, tanto no aspecto
positivo da autonomia e liberdade artística, quanto no aspecto negativo das
consequências da intermitência, polivalência e intensidade do trabalho. As análises
desses discursos ajudam a compor as condições de trabalho do músico
independente ou autônomo que, geralmente, presta seus serviços a mais de uma
banda, gravando, ensaiando e tocando com outros artistas. Suas principais fontes
de renda vêm dos shows, mas eles também compõem suas receitas por meio da
produção de trilhas sonoras, jingles, festas e atividades de docência (exemplos mais
citados). O objetivo deste capítulo é analisar as condições concretas do trabalho
artístico independente traduzidas no “viver de música”.

V.I Indústria do show

A substituição parcial de um modelo de negócio centrado na indústria


fonográfica para o show redefine o foco da cadeia produtiva da música, como bem
140

afirma Guitinho: “a gente tinha uma ilusão de que quando a gente lançasse o disco
que ia resolver nossa vida e não resolveu. Então, a gente apura mesmo é durante o
show” (SILVA, 19/2/2016). Nessa direção, quando indagados sobre a estrutura de
renda básica que lhes possibilita viver de música, segundo a importância das
atividades exercidas, os 22 músicos entrevistados foram unânimes em destacar as
apresentações ao vivo como sendo a maior fonte de remuneração. “A sobrevivência
e a vivência musical migrou pro show, em torno dos shows”, explica Felipe Cordeiro
(14/4/2015).

Na indústria do show, os músicos destacam a necessidade de, pelo


menos inicialmente, tocar de graça para “formar público”, uma vez “se você não tiver
público, você não tem nada”, assevera Marcelo Segreto (14/4/2015).

Se você tiver público você já consegue certa entrada no mercado,


mesmo sendo pequena, mas você consegue. Porque, por exemplo,
imagina uma banda que está começando agora. Se ela tiver um
público de 50 pessoas ela consegue tocar num barzinho e o cara vai
deixar ela tocar ou tocar no Mundo Pensante, na Serralheria. Vai
tocar num bar que não paga cachê, mas tem bilheteria... O dono do
bar vai deixar você tocar porque ele sabe que você vai trazer público
(SEGRETO, 14/4/2015).

Quando se trata de comentar a forma de contrato e recebimento da


remuneração nos shows, a totalidade dos músicos salienta o caráter flexível, e
muitas vezes informal, da forma de pagamento, condicionado ao “depende de onde
vou tocar”. Na iniciativa privada, as formas de pagamentos citadas pelos artistas
variam, desde “pagar para tocar”, ou não receber “nada”, passando pelo
recebimento de galinhas, “ajuda de custo” e escambos variados, até chegar na
participação de bilheteria e no cachê, cujos valores e condições são flexíveis. A
frequência dos shows durante o ano também é variável: “tem períodos que são mais
complicados e períodos que são mais tranquilos”, afirma Marcia Castro (5/5/2015).
Sobre o recebimento dos seus shows e a necessidade de respeito e valorização do
seu trabalho, a fala do músico Hugo Gila é emblemática:
141

Já recebi galinha! É bom até falar isso, sabe? É bom porque também
eu não sou advogado, eu sou músico... Faço música. Então quer
dizer: é bom que me paguem pelo meu trabalho. Porque se não, não
vai ter espetáculo. Só fiz música na minha vida toda. A única coisa
que eu fiz na vida mesmo foi música. Então eu quero que respeitem
isso, sabe como é? (GILA, 13/8/2014)

O músico Tiago Andrade explica que o escambo de “serviços criativos” é


uma das várias formas de pagamento, as quais o músico se submete pois precisa
trabalhar. Tiago diz que, desde o início da sua carreira, o escambo é praticado de
forma constante: “chamava alguém pra gravar e depois eu prestava serviço pra essa
pessoa. Fazia foto de divulgação e aí a gente tocava na exposição pra poder ter as
fotos de divulgação”. Segundo o músico, o escambo é algo que permeia o seu
trabalho até hoje e faz parte do ciclo de informalidade e flexibilidade ao qual está
incluído (ANDRADE, 21/7/2014).

As remunerações de bilheteria e cachês também assumem valores


negociáveis, “dependendo do contexto”. Felipe Cordeiro afirma que, às vezes, toca
com direito a participação na bilheteria, ou seja, recebe uma porcentagem do valor
arrecadado com os ingressos pagantes, enquanto o restante fica com a casa de
show que promove o espetáculo. Outras vezes Felipe consegue tocar com “cachê
cheio”, cujo valor varia, dependendo do local e do contratante. Da mesma forma, o
músico já “perdeu dinheiro” para “fazer público”. Ele afirma que essa alternância de
sua remuneração é “típica” do mercado em que está inserido: “se você não entender
isso e não se movimentar você não paga suas contas” (CORDEIRO, 14/4/2015).

A bilheteria é a principal fonte de renda dos artistas que tocam nas


pequenas casas de shows, tidas como “alternativas”, em São Paulo. Essa opção, de
acordo com os músicos, informa a difícil condição financeira das próprias casas de
shows, como sublinha Marcelo Segreto (14/4/2015) ao referir-se ao Centro Cultural
Rio Verde, Espaço Cultural Puxadinho da Praça, Mundo Pensante, Casa do Mancha
e Serralheria26.

26Em 2014, pequenas casas de palco permanente de São Paulo, que priorizam criações autorais em
música, decidiram reunir-se para trocar experiências. As casas: Central das Artes, Rio Verde, Casa
do Núcleo, Casa do Mancha, Puxadinho, Serralheria, Zé Presidente, Mundo Pensante, Epicentro
142

Eles pagam bilheteria porque na verdade eles são que nem a gente.
Dá pra fazer um estudo desses com as casas de shows.. Eles
também são que nem a gente. Tem uma coisa de ajuda mútua,
assim... Eles também estão na batalha, sabe? Eles também
precisam chamar amigos pra ir na casa, também precisam divulgar
pra caramba porque as casas estão sempre que nem a gente, meio
na raça pra continuar (SEGRETO, 14/4/2015).

Romulo Fróes (30/4/2015) destaca que as pequenas casas de show em


São Paulo “é um negócio que ninguém fala e que no final das contas o PF (prato
feito) dos músicos”. Da mesma forma que Marcelo Segreto, Romulo explica que nas
pequenas casas de show as pessoas são como os músicos independentes, no
sentido de que são “uns caras que não ganham grana, os cara que gostam de
música, aí troca ideia com você, dá um jeito, você vai e faz o negócio acontecer só
pelo puro prazer de fazer essa música de invenção”.

Olhe, artista é assim hoje em dia: você vai de busão ou a passagem


de avião mais em conta, fica na casa dos brothers, rachamos a
bilheteria e vão 120 pessoas, por exemplo, absolutamente
concentradas na minha música, num lugar pequeno, ficam te ouvindo
fazer a música mais esquisita do mundo, e aí é uma alegria...
(FRÓES, 30/4/2015)

Na dinâmica dessas pequenas casas de apresentação, Otávio


(30/4/2015) explica que o artista precisa se esforçar para levar o público. E que isso,
inclusive, faz parte do trabalho contínuo de divulgação de sua música. Tocar no
Puxadinho da Praça, exemplifica Otávio, não “dá grana. No máximo uns 1000 reais,
se encher a casa...” Mas que o importante, nesse caso, não é o dinheiro direto. O
importante é “você fazer os shows em lugares diferentes, ter um público que vai... E
aí não é uma questão financeira, é uma questão de circular”. Hoje, o músico afirma
que consegue entender essa lógica e que, independente de ganhar dinheiro direta
ou indiretamente, se prepara “como se fosse um show no SESC”.

Cultural, Jongo Reverendo, JazzB e Jazz nos Fundos, uniram-se num coletivo batizado de P10-
Casas de Música Autoral SP, para discutir estratégias mercadológicas.
143

O exemplo do SESC em São Paulo é citado várias vezes pelos artistas


entrevistados enquanto principal chance de ganhar um “cachê cheio”. Otávio
(30/4/2015) afirma que no SESC, quando recebe um cachê “interessante”, é que
pode pagar toda a equipe. Romulo Fróes (30/4/2015) reitera que a remuneração em
forma de dinheiro só acontece quando tem um estival bancado por edital ou um
show no SESC. “De novo, o velho SESC. Mas o SESC é onde se paga cachês”,
enfatiza o músico.

Os caras das pequenas casas eles abrem o jogo ‘Moçada, a gente


não tem grana. A gente ama vocês, a gente pode fazer assim e
assim. Vocês topam ficar na casa do fulano? A casa é massa, tem
um rango massa...’ Aí você vai, fica na casa do cara, conhece o cara,
o cara te leva pra tomar uma, é massa demais... E vai no show, o
show tá cheio, as pessoas te amam e tá massa. E você não perdeu
dinheiro, ou seja, tá ótimo! Ai quanto mais gente souber, quanto mais
mercado tiver, quando mais dinheiro tiver, quanto mais apoio do
governo tiver, a coisa vai melhorando... (FRÓES, 30/4/2015).

Nesse contexto, Juçara Marçal (7/5/2015) também destaca a importância


da rede de relações na circulação do seu trabalho no Brasil e no mundo, por meio da
ideia de “parceria” com produtores e casas de shows. Deixa claro que existem vários
tipos de conversação nos cachês e condições de trabalho. Que não pode esperar
que a prefeitura crie um espaço de apresentação, por exemplo. Porque precisa
“fazer a coisa rolar”. Para tanto, entra em diversas parcerias em uma “rede de
independência”, sempre com a ideia de realização do seu trabalho, mais do que,
propriamente, uma boa remuneração financeira.

Então, a gente brinca que uma hora vai ter um roteiro, um mapa de
pessoas maluquinhas em várias cidades (risos) [...] São produtores que
têm essa mentalidade: ‘Bom, mudou o quadro. Como é que a gente vai
fazer pra coisa rolar?’ Porque, caso contrário, você fica ali esperando que
a prefeitura crie um teatro... O Metá Metá é um coletivo, mas que lida com
o Rodrigo Campos, tem o Marcelo Cabral, o Romulo (Fróes)... Um ajuda
no disco do outro, grava sem cachê, toca sem cachê... É isso... Um grupo
de pessoas que tem essa mentalidade de fazer a coisa rolar de alguma
maneira, né? Não ficar esperando sentado que o edital role pra você
gravar o seu disco [...] Não! Vai atrás, né? E esse povo das casas, tem
várias reuniões, eles conversam direto... Esse povo que tá achando
maneira de viabilizar a história... E estão sempre no vermelho, estão
144

sempre correndo atrás. Não é um negócio fácil sabe? Quem resiste é


quem tem a mentalidade de ‘Bom, vamos na parceria’, e vai levando...
(MARÇAL, 7/5/2015)

Na cidade do Recife o circuito das casas noturnas e espaços de shows


voltados a públicos interessados nas propostas de músicos independentes, tal qual
aqui conceituado, é bem menor que em São Paulo. Nesse contexto, os artistas que
estão em Recife explicam que é bem mais difícil “fazer bilheteria” na cidade. “Tentar
fazer bilheteria aqui é complicado. Você sair de casa e ter toda uma logística de
organizar tudo e você voltar pra casa sem dinheiro... É uma realidade de Recife”,
assegura Isaar (25/2/2016). Com a ausência de um circuito consolidado de
pequenos espaços de apresentação, a cidade conta com o apoio do governo do
Estado, sobretudo no ciclo de festas (com destaque para o Carnaval e o São João).

Mas, em relação aos shows contratados pelo poder público, muitas são
as críticas dos artistas entrevistados. Desde os critérios de seleção dos artistas,
passando pelas condições de contratações, até a demora nos pagamentos dos
cachês e desvios de verbas. Em Recife, por exemplo, Guitinho (SILVA, 29/2/2016)
narra que o Bongar conseguiu um patamar artístico que elevou o seu cachê. E que,
por isso, a banda muitas vezes não consegue entrar nas grades dos grandes
festivais produzidos pelo Governo.

Como é que vai se pagar, por exemplo, quinze, vinte mil reais a um grupo
de coco? É inadmissível. O Tribunal de Contas do Estado não admite isso,
mas admite Sandy e Júnior chegar aqui e ganhar trezentos mil; Caetano
Veloso e tal. Isso é super normal. Pra eles, isso é normal. Então, eu
enquanto negro, enquanto artista que faz a música da comunidade negra,
a gente sente isso na pele mesmo. A propaganda de atração pro turista...
Se fosse aquilo ali, o carnaval realmente era a coisa mais linda, mas não é
nada daquilo que se propaga. Não é o caboclo de lança. O caboclo de
lança ta lá à míngua, dentro do busão, ferrado pra ganhar um pão com
manteiga27. Mas você vai ver os nossos gestores dando entrevistas com

27Em texto intitulado Realidade do maracatu rural para além do marketing cultural, Lula Marcondes
(2015) relata a experiências de um grupo de Maracatu Rural de Pernambuco em polos de carnaval.
Apesar de ser um relato sobre vivências recentes e específicas de apenas um grupo, elas têm um
caráter mais amplo e se reproduzem de forma sistemática na relação do Estado com outras
agremiações de Maracatu Rural. O texto expõe a maneira humilhante e abusiva com que alguns
governos municipais tratam os brinquedos de maracatu durante o ano e, principalmente, no carnaval.
Uma realidade bem diferente da que é proposta nos planos de marketing e publicidade para venda do
Maracatu Rural como produto cultural pelo mundo afora. Um maracatu com mais de 80 componentes,
145

camisas estampadas com belo caboclos de lança, com o homem da meia


noite, sorrindo, dizendo que a cultura popular ta aí e dando entrevista
dentro de camarote, né? (SILVA, 29/2/2016).

Ao analisar os dois principais eventos culturais com patrocínio do Estado


em São Paulo e em Recife – Virada Cultural e Carnaval, respectivamente -
observam-se as disparidades de cachês entre artistas considerados independentes
e artistas de grandes gravadoras. No Portal da Transparência da Prefeitura de São
Paulo, constata-se que os cachês da Virada Cultural 2016 para os músicos
independentes giraram em torno de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), ao passo que
existiu cachês na casa dos R$ 148.000,00 (cento e quarenta e oito mil reais)28
(PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2016). Em Recife, além das disparidades dos
cachês, as críticas giram da demora do recebimento do valor acordado.

Em 2015, nas vésperas do Carnaval, os artistas recifenses ainda não


tinham recebido os cachês do São João de 2014. No Carnaval de 2016, por sua vez,
os artistas não tinham recebido os cachês da folia de 2015. O atraso no pagamento
fez com que vários artistas pernambucanos, como Nação Zumbi, China, Alessandra
Leão e Fábio Trummer (os dois últimos entrevistados por esta pesquisa),
declarassem publicamente que não iam tocar no Carnaval de 2013, em boicote e
protesto à falta de respeito da Secretaria de Cultura local. Em entrevista a esta
pesquisa, Catarina Lins do Aragão comenta como a dinâmica dos atrasos de
pagamentos atinge a produção e distribuição do trabalho musical independente.

A questão da política de pagamento mesmo... É muito burocrática e


muito descompromissada. Porque você investe pra tocar. Você paga
van, você paga equipe técnica, você paga hospedagem, você paga
alimentação... Se você tem capital de giro você entra num esquema
desse. Ou então você bota num cartão de crédito e você não sabe
quando vai receber. A (Academia da) Berlinda tocou no Festival de
Inverno de Garanhuns esse ano no palco principal da Guadalajara. O
povo lá dançando, se requebrando... Lotou! E você vê aquele

que viaja quilômetros com um elenco formado de brincantes das mais variadas idades entre crianças
e idosos, chega a receber entre R$ 200,00 e R$ 300,00 por apresentação (MARCONDES, 2015, p.
2).
28 As bandas Cidadão Instigado e Academia da Berlinda (que foram entrevistadas por esta pesquisa)

receberam, cada uma, R$ 21.000,00 (vinte e um mil reais) e R$ 22.000,00 (vinte e dois mil reais),
respectivamente. A banda Aláfia, que poderia estar na amostra desta pesquisa, recebeu R$
10.000,00. Os cantores Ney Matogrosso e Alcione receberam, cada um, 148.000,00 e 90.000,00,
respectivamente (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2016).
146

camarote dos políticos... Um derrame de dinheiro, de bebida, de


tudo, sabe? E o artista não recebe até hoje... São seis meses de
atraso já!!! É complicado, né? (ARAGÃO, 13/8/2014)

Finalmente, o desvio de verbas com eventos musicais tem sido uma


questão preocupante nos fóruns de discussão do tema. No ano de 2009, em uma
sessão que durou quase três horas, a Primeira Câmera do Tribunal de Contas do
Estado de Pernambuco julgou irregular uma auditoria especial realizada na
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), cujo objeto
foi analisar possíveis irregularidades na contratação de artistas em eventos
musicais. A ação resultou em uma devolução de R$ 2.187.280,00 aos cofres
públicos estaduais.

Ainda nos meandros das contratações com o poder público, o músico


Marcelo Segreto (14/4/215) disponibilizou contrato com o Estado de São Paulo para
a elucidação das condições de realização e remuneração dos shows no caso de
“Parceria para a realização de eventos culturais”. Nessa situação, o Estado cede ao
“parceiro”, ou seja a banda, a permissão para usar a estrutura de uma praça,
disponibilizando um técnico de som e equipamentos de som. A banda, por sua vez,
arca com toda a organização e produção do show (o qual deve ser aberto ao
público, sem cobrança de ingresso), controla a entrada e saída das pessoas, tem
responsabilização civil, penal e/ou trabalhista ao longo da produção e execução da
apresentação, e nada recebe a título de remuneração.

Na esteira da centralidade dos shows enquanto uma das principais


consequências assumidas pela reestruturação produtiva no campo musical, bem
como das configurações atribuídas pela independência nesse contexto não mais
mediado pela estrutura das grandes gravadoras, destaca-se a importância dos
festivais independentes, assim como do conjunto de mídias e encontros
especializados na promoção e circulação de artistas independentes. Diante disso,
cita-se o Circuito Fora do Eixo (FdE), assim como a criação, em 2005, da
Associação Brasileira de Festivais Independentes (ABRAFIN).

No ano de 2010, a ABRAFIN (2010) contou com 44 festivais em diversas


regiões brasileiras. Segundo dados dessa própria Associação, no mesmo ano, esses
147

festivais chegaram a atingir público em torno de 300 mil pessoas, com shows de
pelo menos 600 bandas nacionais e internacionais. A partir do final de 2011, a
ABRAFIN passou por um processo de críticas, sobretudo à sua associação
(considerada excessiva) ao FdE, e sofreu uma desfiliação de 13 importantes
festivais, consolidando uma divisão no campo dos festivais independentes
brasileiros. Em julho de 2012, a ABRAFIN foi renomeada como Rede Brasil de
Festivais (RBF). Os festivais desfiliados à RBF/ABRAFIN, por sua vez, criaram em
Novembro de 2012 a entidade Festivais Brasileiros Associados (FBA) 29, a qual
passaria a atuar de forma autônoma ao FdE.

O Circuito FdE surgiu em 2005 a partir do encontro e articulação entre o


coletivo cultural Cubo Mágico (Cuiabá-MT), do qual faziam parte Pablo Capilé e
Lenissa Lenza, e produtores de coletivos de Uberlândia-MG (entre os quais, Talles
Lopes), Rio Branco-AC e Londrina- PR. Paradigma de rede e de fluxo, o FdE se
estabeleceu, inicialmente, a partir da proposta de conectar nacionalmente cenas
musicais independentes locais, por meio de uma gestão organizacional
“colaborativa, horizontal, autônoma e livre” entre coletivos, tendo como suportes
facilitadores as novas tecnologias digitais. A meta mais ampla seria colaborar com a
construção de uma “nova geografia musical” e um “novo mapa cultural no país”, de
modo a fortalecer circuitos sustentáveis de produção e circulação fora do eixo Rio-
São Paulo (FORA DO EIXO, 2015).

Em artigo próprio publicado na Carta Maior (CERQUEIRA, 2015), aborda-


se a história e a dinâmica do FdE. Interessa aqui os mecanismos do coletivo em
termos de remuneração dos shows que contratam, uma vez que multiplicam-se as
críticas dos artistas em relação ao não pagamento de cachês por parte do FdE, ou o
seu pagamento na forma de CuboCard (a moeda inventada por Pablo Capilé). Nesse
sentido, foram reunidas denúncias de Daniel Peixoto (ex-Montage), Diogo Soares
(Los Porongas) e Bruno Kayapy (Macaco Bong), além do posicionamento crítico em
redes sociais de diversos artistas, como Tulipa Ruiz, Guizado, Jesus Sanches, Regis

29Fazem parte do FBA: Abril Pro Rock (PE), Goiânia Noise Festival (GO), Porão do Rock (DF), Mada
(RN), Festival Demo Sul (PR), Rec Beat (PE),Festival Casarão (RO), Primeiro Campeonato Mineiro
de Surf (MG), Tendencies Rock Festival (TO), Festival El Mapa de Todos (RS), Psycho Carnival (PR),
Festival 53HC (MG), Festival Udirock (MG), Araribóia Rock (RJ), PMW Rock Festival (TO), TOME -
Tocantins Música Expressa (TO) e Flaming Nigths (MG)
148

Damasceno, Rafael Castro, Catarina Dee Jah (uma das entrevistadas desta
pesquisa), Maurício Fleury, Negro Leo, Karina Buhr, Thiago França, entre outros.

Em seu sítio na internet, China – cantor e compositor pernambucano –


escreveu o texto intitulado “Fora do Eixo e Longe de Mim” (2012) para esclarecer o
funcionamento do FDE. Segundo o músico, embora os números indiquem a
quantidade de eventos – a maioria subsidiado por dinheiro público – muitas bandas
reclamam da ausência pagamento, além da falta de estrutura para realizarem seus
trabalhos. Abaixo a transcrição do seu depoimento.

Eu vivo da música e preciso receber os cachês dos shows para con-


seguir sobreviver. Ainda não estão aceitando ‘cubo card’ na padaria
e em nenhuma conta que eu tenho que pagar no fim do mês.
Aí eu pergunto: se tem dinheiro público na parada é porque rolou um
edital, certo?Se rolou um edital, tinha lá o nome das bandas que
tocaram, certo? Se tinha o nome das bandas, devia ter o valor
cobrado pelas apresentações, certo? E se tinha isso tudo, cadê o
dinheiro para pagar as bandas? Não, meus caros, não são todos
que recebem pelos shows. Apenas alguns. Talvez os que apóiam as
ações do coletivo FDE. Uma banda (que não citarei o nome) disse
que fez uma turnê pelo FDE. Quase trinta shows. Desses quase
trinta, apenas três ou quatro tiveram cachê (que foram pagos pelos
SESCs onde eles se apresentaram). Os outros vinte e tantos foram
em lugares que não tinham a menor estrutura para se apresentar.
Som de péssima qualidade e equipe inexperiente. Sem falar no
público de menos de vinte e cinco pessoas… numa quinta-feira, e no
interior sei lá de onde. E os músicos ainda tinham que ficar pela casa
dos amigos. Só quem cresce no FDE é o próprio nome do coletivo,
que usa o talento e o suor das bandas para garantir a próxima verba
para as suas atividades. Esse papo de que estão ajudando a cena
independente é conversa mole. Alguns membros do FdE estão
fazendo nome em cima dessa cena. [...] Concluindo… Não sou con-
tra o FDE!
A ideia é linda mesmo. Sensacional! Imagina uma rede de festivais
pelo país inteiro… onde as bandas vão circular e mostrar o seu tra-
balho? Chega a emocionar. O modus operandi é que é estranho,
esquisito mesmo. [...]
Mais estranho ainda era o fato deles pegarem grana pública para
bancar os festivais e não pagarem aos artistas que não ‘estavam’
com eles, claro. E não estou falando de calote. O papo era reto; não
temos cachê para te pagar. Se quiser tocar é assim.
Já me convidaram para tocar em alguns festivais organizados pela
ABRAFIN. Nunca topei. Mas o papo era: China, te damos alimenta-
ção, hotel e passagens aéreas para a sua banda. Para a equipe não
rola, pois temos ótimos profissionais aqui (que nunca trabalharam
comigo, vale lembrar). E eu perguntava: Mas e o cachê?
E a resposta era: Cara, você vai ter a chance de tocar para um
149

grande público e ainda pode passar o fim de semana aqui para


conhecer a cidade. Não temos como te pagar um cachê.
Minha resposta era (aprendi com um amigo): Se vocês me derem
hotel e alimentação o ano todo, eu toco de graça no festival. Se
fosse assim, eu não me preocuparia com as contas, né? Tava tudo
certo. E se eu quisesse fazer turismo, eu não iria trabalhando, iria de
férias (CHINA, 2012).

Nesta pesquisa o músico Fernando Catatau afirma que tem muitas


críticas ao FdE porque para ele é uma coisa muito simples: “não pode tentar
desmerecer o nosso trabalho, entendeu? A gente toca em qualquer lugar, desde que
paguem o cachê”. E continua: “É o meu trabalho e eu sei o valor que ele tem. Não
estou pedindo nada além do que o normal. Então é isso. É simples. Em relação à
essa galera de festivais, a gente só quer receber”, enfatiza o músico (CATATAU,
10/9/2015). Rico Dalassam, por sua vez, afirma que fez seus primeiros shows via
FdE e que nunca teve problemas com eles: “os caras me ajudaram a circular por
alguns lugares que eu não iria naquele momento. Cheguei, mostrei minha cara,
minha música e tudo certo”, declara Rico (DALASSAM, 15/6/2016).

Diante do destaque da atuação do FdE na dinâmica musical considerada


independente hoje, em nota que rebate as críticas pelas quais passou o FdE, Pablo
Capilé afirma que o circuito atua como alternativa à deficiência estrutural nos sistemas
de distribuição da cultura brasileira, que não permite a circulação e a fruição dos
processos e produtos de forma igualitária. Nesse sentido, se o exemplo do FdE é
emblemático enquanto alegoria do funcionamento do capitalismo em relação à imagem,
tecnologia, sociabilidade, empreendedorismo cultural e apropriação de rendimentos,
indicam também a necessidade de articulações decisivas entre trabalho,
regulamentação da comunicação e política públicas culturais, enquanto eixo constitutivo
desses processos formadores das experiências contemporâneas.

V.II O músico empreendedor

O sociólogo Antônio Canelas Rubim (2008), utilizando-se da tipologia


trazida por Antonio Gramsci, explica que um sistema cultural engloba três
intelectuais: os que criam, isto é, os artistas e cientistas; os que difundem tal
150

produção, como os profissionais de comunicação; e o terceiro que são os


organizadores da cultura, como os gestores, produtores e mediadores. O campo da
cultura englobaria, portanto, três segmentos básicos: criação, difusão e organização.
Na atualidade, contudo, a consagração do empreendedorismo cultural está
relacionado aos processos de terceirização e reestruturação da indústria cultural
descritos no Capítulo I. Hoje os segmentos básicos se confundem enquanto
ocupação de espaços de atuação no mercado cultural e, principalmente, em relação
aos saberes desenvolvidos em cada profissão, coexistindo no mercado de trabalho.

A moderna concepção de empreendedorismo surgiu com os economistas,


sendo Schumpeter (1934) um dos pioneiros na formulação teórica desse conceito.
Para este economista, o empreendedor é um agente de inovação e fator dinâmico
na expansão da economia. Nessa perspectiva, o empreendedor é um agente capaz
de realizar com eficiência novas combinações de recursos. Ele não é
necessariamente o proprietário do capital, mas um agente capaz de mobilizá-lo. Da
mesma forma, ele não é necessariamente alguém que conheça as novas
combinações, mas consegue usá-las eficientemente no processo produtivo.
Finalmente, empreendedores são aqueles profissionais capacitados a criar,
organizar, gerenciar e desenvolver seus empreendimentos de modo sustentável, em
lugar da excessiva dependência do Estado.

Na década de 1990, os professores da Universidade de Warwick, na


Inglaterra, se utilizaram do conceito de empreendedorismo cultural em seus estudos
sobre as indústrias criativas. O que diferenciaria um artista de um empreendedor
cultural é que o primeiro estaria focado apenas na criação e produção cultural,
enquanto o segundo expande suas atividades ao longo da cadeia produtiva da
indústria criativa, preocupando-se com a distribuição e venda do produto ou serviço
cultural. No mesmo sentido, em um artigo escrito para o Encontro de Estudos
Multidisciplinares em Cultura (Enecult), a professora Tânia Limeira, da Faculdade de
Administração da FGV-SP, definiu o empreendedor cultural como um mobilizador de
recursos criativos e econômico-financeiros, bem como um articulador de redes
sociais, visando à criação, organização, gestão e sustentação de empreendimentos
culturais (LIMEIRA, 2008, p. 11).
151

A partir do reconhecimento da dimensão econômica da área cultural e do


fortalecimento das noções de Economia da cultura, criativa e do Entretenimento,
intensifica-se o processo de institucionalização do empreendedor cultural. No Brasil,
concorre para isso a criação da Lei Complementar nº 128/2008 que instituiu a figura
do Microempreendedor Individual (MEI), o qual se registra pela internet e recolhe os
impostos em valores fixos mensais. A Lei Complementar nº 133/2009 (simples da
cultura), por sua vez, reduziu a carga tributária das microempresas e das empresas
de pequeno porte, além de ampliar atividades culturais beneficiadas.

É intensificada a estruturação de cursos acadêmicos em algumas regiões


do país para formação de produtores e gestores culturais, iniciada ainda na década
de 199030. Com o objetivo de compreender o panorama das ofertas de cursos de
gestão e produção cultural no país, o Observatório Itaú Cultural apresentou um
relatório31, cujos resultados informam que, de 1995 a 2016, 90 instituições criaram
um total de 131 cursos (45% de produção, 19% de gestão, 15% produção em
linguagem específica, 10% pesquisa em produção, cultura e linguagens culturais,
6% em economia criativa/mercado, e 5% em política cultural). Os estados de São
Paulo e Rio de Janeiro tiveram, de 1995 a 2016, o maior número de cursos
iniciados, sendo, respectivamente, 33 e 32. Assim, São Paulo é responsável por
25,2%, e Rio de Janeiro por 24,4%, do total de cursos oferecidos no Brasil. Juntos,
os dois estados concentram 49,6% dos cursos ofertados desde 1995
(OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL, 2016, p. 10).

Em 2000, o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE)


lança o Programa Empreendedor Cultural, um conjunto de iniciativas que visam a

30 O primeiro curso de formação em gestão e produção cultural foi criado em 1995 pela Universidade
Federal Fluminense (UFF). Em 1996, a UFBA promoveu o bacharelado de graduação em
Comunicação Social com especialização em Produção em Comunicação e Cultura. Com mais de 20
anos, os dois cursos mais antigos ainda estão em atividade no país.
31 O relatório procurou mapear cursos no território nacional que, em sua nomenclatura,

apresentassem a combinação entre os seguintes constructos associados: Gestão e cultura, como,


por exemplo, gestão cultural, gestão de patrimônio cultural, gestão de bens culturais, entre outros;
Produção e cultura, como, por exemplo, produção cultural, produção de eventos culturais, produção
da cultura. Segundo seus graus acadêmicos, foram pesquisados cursos superiores de bacharelado,
licenciatura e de tecnologia, cursos de extensão vinculados à Instituições de Ensino Superior, cursos
sequenciais nas modalidades complementação de estudos (individual) e formação específica
(coletivo), cursos de pós-graduação lato sensu de aperfeiçoamento e de especialização/Marketing
Business Administration (MBA) e, por fim, cursos de pós-graduação stricto sensu (com linhas de
pesquisa orientadas aos assuntos gestão, produção e cultura) de mestrado profissional, mestrado e
doutorado acadêmicos (OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL, 2016, p. 10).
152

capacitação, o desenvolvimento e a expansão dos negócios na área da cultura.


Esse programa visa formar uma Rede de Agentes Culturais, que são pessoas
ligadas à cultura, como artistas, produtores, educadores, para que estes possam se
relacionar e se apoiar mutuamente. Atualmente, o SEBRAE define empreendedor
como:

O indivíduo que possui ou busca desenvolver atitude de inquietação,


ousadia e proatividade na relação com o mundo, condicionado por
características pessoais, pela cultura e pelo ambiente, que
favorecem a interferência criativa e inovadora (SEBRAE, 2006, p.
13).

Multiplicam-se também os manuais e encontros voltados para o


empreendedorismo cultural, como o Guia do Empreendedor Criativo, publicado pelo
SEBRAE. Na área da música, o livro Música LTDA: o negócio da música para
empreendedores, de Leonardo Salazar (2015, p. 155), lista os comportamentos
empreendedores: redes de contados, disposição para correr riscos calculados,
persistência, independência e autoconfiança. Em São Paulo a ExpoMusic e a
Semana Internacional da Música (SIM) são os eventos mais citados na área do
empreendedorismo musical. Sites como musicaemercado.org e
musicoempreendedor.com ajudam o artista a “tocar o próprio negócio”.

Para grande parte dos artistas entrevistados por esta pesquisa “o


caminho é ser empreendedor”. Para alguns, inclusive, o MEI atribui respeito ao
trabalho do músico, com consequente elevação da autoestima do artista, conforme
explicou Isaar França (25/2/2016). Esse empreendedorismo, contudo, muitas vezes
aparece na forma de empreendedorismo precário e/ou forçado, como resposta à
única forma de viver de música. Esse aspecto empreendedor do trabalho dos
músicos ora é visto de forma positiva, ora é visto de forma negativa pelos artistas
entrevistados. Tencionam-se noções de liberdade e autonomia com incerteza e
intensificação do trabalho.

Como o empreendedor cultural é tido como aquele que realiza e acumula


os seguimentos básicos de criação, difusão e organização, a multiplicidade de
153

funções é a primeira característica observada nas falas dos músicos entrevistados.


Em meio à corrida de editais e patrocínios, o artista é chamado a comportar-se como
empresário da sua própria carreira, um portfólio worker, a custo de uma gestão de
racionalidade dos seus capitais pessoais (tempo, esforço, competências, reputação).
Tais fatores configuram o artista quase-firma e desenham a face do músico,
sobretudo aquele tido como independente, enquanto empreendedor cultural. O
“tornar-se produtor do seu próprio trabalho” tem se constituído uma relevante
tendência no mercado artístico contemporâneo. Cresce a importância do profissional
da produção no mercado da indústria cultural, aptos a mobilizar recursos de
incentivo à cultura. Liliana Segnini (2009, p. 43) destaca que, de acordo com o
IBGE/PNAD, o grupo ocupacional Produtores de espetáculo registrou um
crescimento de 92% de 2002 a 2006 (de 25.937 para 49.745 profissionais atuando
na área).

Para os músicos, o empreendedorismo significa não apenas gravar suas


músicas, procurar fazer muitos shows e estar ativo no circuito considerado
independente. Na nova cadeia da música, o artista é o responsável por pensar como
um empresário, no sentido de articular as possibilidades de sua carreira artística
diante da demanda colocada pelos mercados em desenvolvimento. “Tocar o
negócio” significa, portanto, habilidades de relacionamento, comunicação e
organização. Contato com contratantes, envio de material para imprensa,
alimentação de redes sociais, administração do caixa, planejamento do
desenvolvimento da carreira e avaliação dos resultados alcançados são exemplos
das novas frentes de atuação dos músicos empreendedores, que assume a
execução, a comercialização e o gerenciamento da sua própria carreira.

Para viver de música, Otávio (30/4/2015) explica que realizada várias


atividades: é Dj, tem um banda e ministra oficinas ligadas à música. Quando teve a
dimensão de que a vida de músico “é essa”, Otávio diz que conseguiu multiplicar e
integrar várias atividades ao mesmo tempo, sem que isso represente uma espécie
de sofrimento criativo, senão uma oportunidade de remuneração e até de felicidade.
No decorrer da entrevista, o músico destaca vários aspectos da produção e gestão
cultural: “sou tão organizado que tenho tudo em planilhas, posso te mostrar depois”.
O músico alia o empresariamento de si mesmo a uma postura “pilhada” e entusiasta
do seu trabalho.
154

Hoje mesmo preciso mandar (um CD) pra Manaus, que o rapaz comprou
ontem, já comprou pelo sistema PagSeguro, já caiu direto na minha conta,
tem gente que deposita... Fica fácil quando você pega o ritmo de tudo isso
aí. Mas tem que tá realmente disposto a fazer esse trabalho. Que é
responder pras pessoas, mandar o disco, autografar, ir nos correios...
Ocupa um tempo, mas é um tempo que... Basta acordar cedo, né? (risos)
E dá pra fazer tudo! Isso não tira a minha capacidade criativa, pelo
contrario, eu tô cada vez mais pilhado nesse ponto, eu faço tudo, nada me
impossibilita nada. Porque tem aquele pensamento ‘Ah, se eu for cuidar
disso tudo, onde vai ficar meu tempo pra criatividade?’ Pô, é balela.
Porque você vai fazendo, vai fazendo, vai ficando tão no automático que
você vai ficando muito mais intuitivo até na hora de criar. Porque você fica
ágil! Você tem que fazer muita coisa e você tira tudo de letra. Você vai
evoluindo... É muito massa... Às vezes vou ao cinema, ou tô curtindo a
noite e tal... Aí dou uma atualizada na minha conta... E ‘Ah, um novo
pedido’. É uma relação legal e saudável, né? (AEROPLANO, 30/4/2015)

Sobre a autogestão no empresariamento de si mesmo, Marcelo Segreto


(14/4/2015) destaca pontos negativos e também positivos. Nos pontos negativos,
Marcelo enfatiza que acaba fazendo trabalho que não quer fazer. Hoje, ele é
responsável por ligar para os SESCs pra vender shows, e fazer “toda a burocracia
de falar com os contratantes”, pela divulgação na internet e uma “infinidade de
coisas” que ocupam um tempo considerável do seu dia em que ele preferia estar
compondo e/ou tocando. Do ponto de vista positivo, Marcelo reconhece que,
trabalhando da forma autogestionada, ou seja, independente de gravadoras, sendo
responsável pelo processo de produção (e não só artística), ele acaba fazendo as
coisas “mais do seu jeito”, de forma que o resultado final é mais “sincero”.

No mesmo sentido da polivalência de atividades, Marcia, além da sua


própria carreira autoral, participa de outros projetos (todos ligados à música). O
maior deles é o Pipoca Moderna, que possibilita encontros de artistas e acontece no
verão baiano. Para ela, é um projeto muito interessante em termos artísticos e de
certo modo comercial, embora seja também uma grande surpresa o que vai ser a
cada ano. No primeiro ano, por exemplo, Marcia teve lucro. No segundo, prejuízo.
No terceiro, lucro: “Então, enfim... É essa ciranda...”. Ao explicar como funciona a
junção da produção artística e executiva do seu trabalho, Marcia diz que é
efetivamente a produtora da sua própria carreira, em todos os sentidos, e
155

empresária de si mesma. A artista discorre que os papéis artísticos e de produção


executiva estão um pouco confusos dentro da cadeia de trabalho: “o artista é,
empresário é produtor, é o agente de show, é tudo. Obviamente que só de falar já
cansa. Então fazer cansa muito mais” (CASTRO, 5/5/2015).

Por um lado, Marcia avalia como “puxado” o desenvolvimento de todas


essas atividades. A artista entende que o “momento do ócio” é muito importante para
sua “recarga criativa”. Esse ócio se caracterizaria não apenas pela visão de não
fazer nada, mas de ouvir um disco, de ir ao cinema, de se inteirar um pouco com o
que está acontecendo no mundo. Ela lamenta não ter mais tempo para esse tipo de
ócio. Por outro lado, nas suas reflexões acerca das consequências da
heterogeneidade de funções, Marcia explica que, se para muitos artista pode ser
difícil fazer uma planilha, por exemplo, para ela é muito fácil e tranquilo fazer. Ela se
importa com o planejamento e gosta de participar dele. A sua mídia social, por
exemplo, é ela mesma quem alimenta. Marcia diz entrar em pânico só de pensar em
outra pessoa falando por ela de um jeito que não seja o seu (CASTRO, 5/5/2015).

Na vida profissional de Missionário José (2/9/2015) normalmente tem três


coisas acontecendo: shows, aulas e projetos de discos. “E aí essa balança varia. Eu
tento acompanhar isso um pouco, mas tem uma coisa que é naturalmente ingrata,
que é essa irregularidade”, afirma o músico que toca com Mombojó, Del Rey,
Alessandra Leão (uma das entrevistadas por esta pesquisa), Trio Eterno, Rodrigo
Caçapa e Lulina. Rico Dalassam, por sua vez, além de ter parcerias com outros
artistas, tem uma forte relação com a moda e participa de muitos projetos ligados à
publicidade, “fiz com a Adidas, com a Nike, Converse, Vivo... Não é todo mês que
tem, mas rola... Essa é uma grana”, afirma. Rico destaca que o mundo caminha para
o empreendedorismo, “o futuro é esse, o freelancer né?”. “Eu acho que você ser
dono do seu negócio é o que há. A música ela te permite ser isso. É claro que eu
faço um monte de coisa em horas que eu não quero, porque eu quero ver meu
negócio vingar” (DALASSAM, 15/6/2016).

Como o empreendedor não é um ator que age de maneira isolada (ele é,


antes de tudo, um articulador com capacidade de unir e conectar diferentes atores e
recursos dispersos no mercado e na sociedade, agregando valor à atividade
produtiva), outro aspecto fundamental relacionado à atuação do artista
156

empreendedor se refere à importância de se estabelecer contatos, parcerias e


amizades, processo que acaba sendo determinante para viabilização dos trabalhos
musicais. A disponibilidade e o empenho que o artista tem em “fazer amigos” é algo
necessário e derivado do novo papel do artista enquanto divulgador e articulador do
seu trabalho no mercado. Mercado este que, não dispondo do aporto das grandes
gravadoras, solicita cada vez mais a interconexão e colaboração entre agentes
como forma de viabilizar-se.

Romulo Fróes (30/4/2015) explica que realiza vários trabalhos em uma


espécie de “bando”. E exemplifica: “Agora o Rodrigo Campos vai gravar o disco
dele, aí todos nós vamos lá defender o Rodrigo Campos e grava e lança e divulga.
Aí agora é o Metá Metá, agora é o Passo Torto... A gente criou isso....” Nessa
dinâmica, Romulo destaca que depois que trabalha no disco do Rodrigo Campos,
por exemplo, e vai gravar o seu disco, percebe que aprendeu várias coisas com a
experiência “do outro”. Ele entende que na época da grande indústria fonográfica o
músico ficava muito ensimesmado e hoje acha interessante a “contaminação” com
outras pessoas e projetos coletivos.

Nesse exato momento eu estou produzindo um disco com um monte


de gente pra Elza Soares [...] e o Passo Torto tá dividindo um disco
[...] e a gente tá fazendo o disco do Rodrigo Campos. São três
trabalhos de lugares muito diferentes. Quando eu lançar meu
próximo disco certamente essas coisas vão me afetar (FRÓES,
30/4/2015).

Romulo destaca que está fazendo todos esses trabalhos de uma vez só
porque, para além do prazer estético, ele precisa sobreviver, “porque é preciso
ganhar dinheiro em várias coisas pra poder dar certo”. A multiatividade no campo
musical é explicitada por Romulo quando ele destaca que se dependesse apenas do
dinheiro do seu disco, ele não viveria de música: “E essa é a parte menos glamorosa
da história”, por muitas razões, como não ser instrumentista, e ter as sazonalidades
e inconstâncias relacionadas ao disco e aos shows. Por isso, Romulo se cerca de
grandes músicos, de grandes engenheiros de som e de vários trabalhos. Para ele,
as parcerias funcionam de forma primordial nesse mercado independente. O músico
157

também afirma que, “por ser metido a falar”, é chamado para palestras e debates.
Tanto que já fez um programa de televisão no Canal Brasil sobre a cena musical
independente de São Paulo. Ele também escreve artigos para jornais, assim como
participa de curadorias de festivais. Antigamente Fróes tinha até “um pouco de grilo”
do quanto uma coisa pudesse atrapalhar a outra, remetendo aos vários trabalhos e
projetos em que está envolvido. “Hoje em dia eu acho que tudo faz parte de tudo,
quando eu falo sobre música eu tô, na verdade, falando sobre meu trabalho
também”, afirma (FRÓES, 30/4/2015).

Luísa Maita deixa evidente em sua fala a multiplicidade de atividades que


realiza para viver de música. A artista afirma que, como não está em um momento
fácil porque como não lançou seu segundo disco, tem feito poucos shows e
produzido muitos jingles: “fiz pro Bradesco, fiz pra Coca-Cola e fiz pras Olimpíadas.
Na verdade, eu fiquei no Bradesco fazendo jingles durante sei lá, seis meses, um
ano”. Para Luísa, não há problema em fazer jingles, ao contrário do que acontece
com outros entrevistados. Na avaliação sobre suas atividades, Luísa explica que é
de uma geração que “nasceu sabendo que o negócio era difícil”. Na sua fala há uma
ciência do acúmulo de atividades, no sentido de arte e produção, sem que tenha
uma avaliação negativa dessa condição. A ideia de empreendedorismo é exaltada
em vários momentos. A artista conta que em sua trajetória a experiência no “lado
business” da música vem do seu “currículo em gravadoras”. “E então eu acho que o
artista que não tem isso, que não consegue pensar o próprio lado business, eu acho
difícil conseguir construir a própria carreira”, afirma (MAITA, 13/4/2015).

No mesmo sentido, Felipe Cordeiro (14/4/2015) enfatiza que não se pode


“ser artista como antigamente”. “Que é aquele artista romântico, né? (risos) Que só
faz música... Hoje a gente inclusive faz música...”. Nesse contexto, o músico ressalta
que, muitas vezes, é “chato” emitir nota fiscal, por exemplo, ficar preocupado com
logística, ligar para as casas de shows para “articular as coisas”. No entanto, Felipe
destaca que essas funções “administrativas” são cada vez mais importantes. A
intensificação do trabalho do músico nas esferas de produção e gerenciamento
estratégico de suas carreiras, fica evidente em várias passagens das falas dos
artistas entrevistados por essas pesquisas. Abaixo os destaques para alguns
trechos.
158

Penso no meu trabalho 24 horas e às vezes acho pouco e sonho


com ele! Trabalho como compositor, autor, arranjador, músico de
apoio, músico de estúdio, de montar bandas paralelas, empreender
no trabalho autoral, alguns de técnico de gravação, direção musical,
trilhas sonora para cinema, teatro, dança etc. Faz parte deste
mercado de trabalho... Temos que nos ocupar todos os dias e estar
sempre produzindo (TRUMMER, 6/9/2014).

Não tem como você viver só de uma banda, embora como a gente é
uma banda de certa forma jovem, mas que conquistou muita coisa
bacana, então todo mundo prioriza a Orquestra, mas todo mundo
tem outros trabalhos [...] A gente entende que é muito importante
essa autoprodução, também. A gente é uma das bandas que se
autoproduz, inclusive em eventos. A gente faz nossas festas [...]
Então a gente sempre tá correndo atrás de projetos, de fazer esses
eventos... Nós somos 15 pessoas. Imagina 15 passagens de ida e
volta... E eu sou um defensor de que o músico, o artista em geral na
verdade, ele hoje em dia tem que ter... Ele é um empreendedor, né?
Ele é um microempreendedor [...] Então eu sou um cara que acredito
muito nisso. Acho que você tem que compor, tem que tocar, tem que
entender de produção, tem que conversar com os patrocinadores.
Não é a produção fazer isso como antigamente. Antigamente, na
época das gravadoras, o artista ficava em casa... Ficava compondo...
Hoje em dia não é só isso. Tem que fazer isso e tem que tá muito
antenado com o que tá acontecendo e tá buscando e tá produzindo
junto...É sua vida né? Não posso pegar minha vida e botar na mão
de uma pessoa e querer que ela resolva... O músico tem que ser
empreendedor senão complica e a coisa não anda (AMARAL,
12/11/2014).

Eu também tenho esse trabalho não só com minha banda, mas como
produtoras de festas. Bem, agora, por exemplo, eu tenho
desenvolvido um intercâmbio cultural-musical com uma cena da
Argentina que eu tomei conhecimento há dois anos. [...] Então eu
tendo me desmembrar de várias maneiras. Eu sou uma
empreendedora também, né? Uma coisa alimenta a outra. [...]
Carnaval mesmo eu não tenho confirmação se vou tocar oficialmente
nos editais, então eu já estou me mobilizando pra vender ‘Caipigala’
que é uma bebida que eu inventei (risos)... É uma maneira que eu vi
de sustentar a família pós-carnaval porque com os editais a grana
você não sabe quando vai receber. Então eu vou vendo se esse
dinheiro que eu vendo birita eu consigo sustentar pós-carnaval uma
família. E também vou discotecar, talvez no rec beat (ARAGÃO,
13/8/2014).
159

Eu vivo exclusivamente de música, mas rola um polivalência aí na


parada, né? Na verdade, quanto mais independente, mais coisas
você precisa fazer. Eu trabalho como músico que acompanha. Eu
acompanho outros artistas, além do Leandro (Emicida). Produzo
algumas coisas: trilhas ou outros artistas. Esse ano vou produzir dois
artistas. Trilha pra dança, pra filme, pra teatro. Então é isso, assim,
tem uma polivalência. Eu acho que você precisa ser muito
inteligente, sagaz. Esse cenário, ele não permite que você fique
passivo, sabe? Você tem realmente agilizar as coisas e tal. Enfim,
comigo tá tudo bem. Eu acho que tem momentos que cansa,
obviamente, que eu preferia sei lá, só tocar mesmo. Mas feliz ou
infelizmente necessita dessa disposição de você se unir às pessoas
pra que coisas aconteçam. Eu acho que é isso. Eu produzo a mim
mesma. Eu tenho parceiros, mas sou a maior investidora em mim;
tanto de tempo, tanto de dinheiro mesmo, tanto de fazer o corre
mesmo, de fazer essas parcerias. A minha rotina? Eu tenho um
objetivo nessa rotina e nem sempre eu alcanço ele, né? O meu
objetivo, obviamente, seria dedicar a maior parte do meu tempo pra
tocar mesmo, pra criar coisas e tal, mas geralmente dedico uma
quantidade de horas. Dedico quatro horas, mais ou menos, pra
trabalhar essa parte burocrática. Acho que o mínimo quatro horas por
dia; às vezes, um dia inteiro. Depende. Depende do dia e das
necessidades [...] O resto do tempo eu tento estudar, ler, viver,
respirar, estar nos lugares. A gente precisa viver a arte de outras
pessoas também, sabe? Ir a shows, ir a teatros, ir a exposições,
conversar com as pessoas (TRÉA, 12/2/2016).

Em relação às cooperativas de música e empreendedorismo, Juçara


Marçal menciona que o seu primeiro disco, em parceria com o Kiko Danuchi, teve
uma ajuda da cooperativa de música para a gravação do CD. Ela destaca que a
ideia inicial da cooperativa de música era uma união artística que visava ajudar a
pensar e resolver a “parte burocrática”. Entretanto, o que era pra servir na ajuda dos
“problemas” acabou se tornando mais um problema. A artista, então, se distanciou
das cooperativas porque não se sentia mais parte delas. A cooperativa, na verdade,
“acabou virando o lugar onde você consegue a nota fiscal. Eu não acompanho mais.
Burocratizou. Então realmente não faz mais sentido. A coisa perdeu um pouco a
característica inicial”, explica. Estar na cooperativa lhe impede de abrir a MEI por
exemplo. Na sua fala, observa-se o seu desejo geral de ser uma
microempreendedora e os empecilhos de uma cooperativa de música cada vez mais
engessada nos modelos burocráticos (MARÇAL, 7/5/2015).
160

Quando perguntados sobre expectativas financeiras e realidades de


remuneração no empreendedorismo cultural independente, alguns artistas destacam
a falta de remuneração mais justa e/ou estável dos seus trabalhos. Nesse sentido,
Marcelo Segreto (14/4/2015) afirma “na música independente o negócio fica do
nosso jeito, mas a gente vive pobre”. Outros artistas exaltam a maneira “modesta”
que vivem as suas vidas, destacando outros tipos de remunerações, que não
monetárias. Otávio, por exemplo, afirma que não faz música para ficar rico. Diz que
vive com pouco, ao mesmo tempo em que não joga dinheiro fora.

A grana que entra é pro meu trabalho musical... Vivo de uma maneira
simples, gasto pouco dinheiro, ando pra caramba a pé pela cidade, não
gasto nem com ônibus, quase... Então, eu sou um cara econômico nesse
ponto. E aí eu consigo com isso, com esse jeito simples de viver... Toda
essa grana que entra eu coloco já numa conta que eu chamo de conta-
disco, e tenho sempre o recurso pra poder trabalhar com isso [...] Então,
eu consegui entrar nesse lance cuidando de tudo mesmo. E trabalho
sozinho com tudo isso. Dá trabalho, mas é prazeroso, né? Se a galera
tivesse mais atenta a essa autogestão, as pessoas estariam muito mais
livres pra fazer os seus trabalhos (AEROPLANO, 30/4/2014).

Da mesma forma, Romulo Fróes (30/4/2015) afirma que no meio dos


“vários pequenos dinheiros” que ele consegue fazer com o seu trabalho, acaba
tendo o dinheiro que precisa pra viver. “De modo modesto, mas tá tudo bem”. Em
relação ao “modo modesto”, Romulo retrata a demanda do lado de fora: “escrevem
artigos em jornais, acusando a minha geração de falta de ambição”. O músico acha
que se o plano não é ficar rico, mas “viver legal, fazer trabalho legal, conviver com
gente legal, com esse monte de pequenas coisas é possível” viver de música
independente. Ele termina a sua fala sobre remuneração enfatizando que hoje o
músico precisa se despir muito do “ego do artista” para conseguir viver de música
sem se frustrar. Há 15 anos Fróes conta que queria ser um ídolo da música
brasileira e que passou um tempo pensando desta forma. Hoje em dia ele afirma
não querer e nem perseguir esse ideal, mas oscila entre frases como “Claro que se
eu virar um ídolo e se eu compor com Caetano seria lindo” e “isso não ocupa mais
um minuto da minha cabeça” (FRÓES, 30/4/2015).
161

Finalmente, é preciso destacar a produção de si mesmo, frequentemente,


vem em forma de informalidade que marca profundamente a atividade musical
enquanto profissão. Dos 22 artistas entrevistados, apenas seis estão instituídos
como MEI, segundo a legislação vigente. A resposta à reestruturação produtiva por
meio dos processos de terceirização, flexibilização e subcontratação nem sempre se
deu nos moldes formais. Nesse contexto, o surgimento de pequenas e médias
produções musicais – entre as quais se inclui, com cada vez mais destaque, a
autoprodução – não assume, na maior parte dos casos, o arranjo de empresa
formalmente constituída32.

A apelação para as noções de autonomia, flexibilidade e liberdade no


capitalismo atual se aloja de forma central nas indústrias cultural e/ou criativas, as
quais assistem um avanço do capital sobre o trabalho de forma sofisticada e sem
precedentes. O caráter laboral dessas atividades se dilui simbolicamente atrás de
noções de rede colaborativa e horizontal. Nesse contexto, a constituição do
trabalhador da cultura como empreendedor faz parte da invizibilização do conflito
entre capital e trabalho. Em um contexto de retirada do Estado, um
empreendedorismo precário levaria ao seguinte resultado hoje: os músicos
independentes trabalham muito mais e não têm estabilidade financeira.

V.III Migrações artísticas

Esta pesquisa esteve localizada em São Paulo e Recife, em razão do


trânsito da pesquisadora, mas também pela dimensão da prática musical
conceituada como independente, a qual vem sendo sustentada de forma diferente,
de acordo com as especificidades mercadológicas e políticas de cada cidade. Dos
22 músicos entrevistados, 12 mantém residência em São Paulo e 10 em Recife. Dos
12 artistas que estão em São Paulo, apenas cinco são originalmente paulistanos (os
outros artistas radicados na cidade são do Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco,

32 Por outro lado, destaca-se também o fenômeno da pejotização enquanto nova forma de
precarização do artista-trabalhador formalizado como pessoa jurídica. A denominação pejotização
tem sido utilizada pela jurisprudência para se referir à contratação de serviços pessoais, exercidos
por pessoas físicas, de modo subordinado, não eventual e oneroso, realizada por meio de pessoa
jurídica constituída especialmente para esse fim, na tentativa de disfarçar eventuais relações de
emprego que evidentemente seriam existentes, fomentando a ilegalidade e burlando direitos.
162

Bahia e Pará). Todos os artistas foram perguntados da importância/preferência da


cidade em que se encontram para a visibilidade artística e possibilidade de trabalho
na área musical. A predominância dos artistas em São Paulo indica muitas questões
mercadológicas ligadas ao músico empreendedor.

Uma das músicas mais tocadas de Luísa Maita se chama “Alento”. Nela,
há uma representação da condição de vida na cidade de São Paulo: “Acordo cedo /
Com pé no freio / O mundo inteiro começa a girar...”, cujo clipe é composto por
imagens da cidade. A cantora e compositora explica que, como nasceu em São
Paulo e construiu sua vida nessa cidade, toda a sua trajetória profissional acabou se
desenvolvendo nessa metrópole. Ela destaca a dualidade da cidade. Por um lado,
São Paulo é uma cidade muito difícil, porque não “acolhe naturalmente” as pessoas
e é “hostil”, afirma. Por outro, a cidade é fundamental do ponto de vista profissional,
basicamente, por dois motivos: um estético, ligado à urbanidade, e outro
mercadológico, que consegue “caminhar, ser independente, colocar sua visão de
música e ao mesmo participar do mundo, não ficar num lugar tão oprimido”. Todas
essas questões comporiam uma “geração moderna” e inovadora paulistana, da qual
ela estaria incluída.

São Paulo é quase uma ponte entre o Brasil e o mundo, entre o


Brasil e o próprio Brasil, né? [...] Ela expressa o que as grandes
cidades do mundo expressam e o poder está nessas cidades e a
busca e a vida e o foco estão nessas cidades, eu acho. E aí eu acho
que São Paulo acaba trazendo esse vigor, essa energia, essa
modernidade (grifo nosso) que acaba sendo muito interessante pra
arte, apesar dela ser tão hostil, sabe? Então é um paradoxo e hoje
eu acho São Paulo muito interessante, apesar de sempre ter achado
ela muito difícil. Muito complexa a minha resposta? (MAITA,
13/4/2015)

O músico Marcelo Segreto (14/4/2015) também é paulistano e explica que


estar em São Paulo hoje faz parte de uma continuidade de vida, no sentido de
“nascer em um lugar e ir continuando”. Mas não só por isso. Porque Marcelo já
pensou em morar em outro lugar “mais tranquilo” e mais perto da praia. O músico,
contudo, pondera que, em termos de visibilidade artística e possibilidade de trabalho
na área musical, São Paulo é o local mais interessante de estar, do ponto de vista
163

do mercado musical. Ele destaca o aspecto mercadológico da cidade de São Paulo


e sua estrutura de casas de shows na cidade, sobretudo dos SESCs e de sua
consequente possiblidade de pagamento de cachês para que o seu trabalho seja
remunerado e possa existir.

São Paulo, mesmo que tenha pouco, ainda é lugar que tem mais
mercado musical. Então, assim, no Rio, por exemplo, não tem SESC.
Acho que o único lugar que paga cachê no Rio é Oi Futuro, Banco do
Brasil talvez. Mas, assim, pro músico independente é ruim isso né?
Aqui em São Paulo ainda tem SESC, tem certos lugares onde dá pra
você conseguir cachê, dinheiro né? E fazer o trabalho andar...
(SEGRETO, 14/4/2015)

Nascida na Mooca, em São Paulo, Anna Tréa morou desde muito nova
em Diadema e depois no ABC. Hoje, na capital, Anna afirma que está em seu
momento mais “efervescente” da cidade, se sentindo cada vez mais encantada pela
dinâmica das ruas. Tanto que gravou um vídeo Uma canção chamada Paulista, em
homenagem à avenida que leva o mesmo nome. A artista explica que acontece
muita coisa ao mesmo tempo na cidade e que, graças a essa dinâmica e a esse
ritmo, conhece muita gente interessante e agiliza muitas atividades, o que é positivo
para o seu trabalho, ao mesmo tempo em que ela precisa “segurar a onda para não
dar uma pirada nisso tudo”. “A minha dificuldade é essa coisa de muito concreto e
eu sinto necessidade de um pouco de tranquilidade, mas tá tudo certo” (TRÉA,
12/2/2016).

De Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo, Rico Dalassam


(15/6/2016) explica que além do “muita coisa acontecendo o tempo todo” existe uma
importante dimensão da cidade de São Paulo: a capacidade de ser uma “formadora
de opinião”. Para um jovem, negro e gay Rico afirma que estar em São Paulo para
ser minimamente ouvido é muito estratégico, uma vez que os jornalistas, os rádios e
as TVs “formadoras de opiniões” estão predominantemente nessa cidade.

Do interior de São Paulo, Bragança Paulista, Otávio está na capital do


Estado há cerca de 16 anos. Ele acha que São Paulo é uma cidade grande que
oferece a possibilidade de conexão com as coisas que estão acontecendo e que,
164

nesse contexto, é mais fácil de lançar um disco e circular, por exemplo. Exalta que
na capital tem gente do Brasil inteiro fazendo arte e que é um ambiente propício
para trocas musicais e de mercado, de modo que sua vida em São Paulo é também
uma estratégia de trabalho. Ao mesmo tempo, Otávio diz que viver em São Paulo é
muito complicado, e que tenta viver cada dia, sem gastar tanto dinheiro porque o
“negócio é estreito”, no seguinte sentido: “Viver de música é um negócio que você
tem que ter uma capacidade muito grande de organizar tudo pra não se perder. Mas
São Paulo é uma cidade necessária, nesse ponto” (AEROPLANO, 30/4/²015).

Nascida no estado do RJ, Juçara Marçal foi pra São Paulo muito
pequena. A artista explica que sua ida para a cidade não representou uma escolha
em relação à sua atividade artística, no entanto a sua permanência foi muito
importante para a possibilidade de trabalho na área musical. Ela se considera “muito
paulista” porque construiu em São Paulo toda a sua trajetória profissional. Do ponto
de vista do mercado da música, ela afirma que São Paulo, dentro do Brasil, é onde
tem mais movimentação nesse sentido. Mesmo no Rio de Janeiro, que já foi a
capital da música, as pessoas têm dificuldades atualmente de se movimentar
mercadologicamente e ter sustentabilidade econômica. Juçara esclarece, ainda, que
São Paulo não é um paraíso, “não é que você ganhe fortunas... Não, não é nada
disso. Mas você consegue se mover, sabe?”. Assim como outros artistas, ela
destaca a rede de pequenas e médias casas de shows como essencial para o seu
trabalho.

Você tem que tá em vários lugares pra dar conta das coisas que
você precisa pagar no fim do mês. De um ponto de vista muito
prático. Muito prático... Não é só ‘Ah, uma viagem estética’. É uma
questão prática mesmo, sabe? (MARÇAL, 7/5/2015)

Felipe Cordeiro é de Belém do Pará, mas vive e trabalha em São Paulo


há aproximadamente quatro anos. Ele ressalta as dificuldades de atividades para os
artistas fora do eixo Rio-Sp. Segundo Felipe, nesses casos, o caminho é “sempre 10
vezes mais longo”, por conta das “distâncias de integração”. Sua escolha em estar
nessa cidade faz parte dos seus planos de visibilidade artística e possibilidade de
165

trabalho. Segundo ele, a área de atuação em São Paulo é bastante diversificada.


Tanto é assim que quando veio para São Paulo estava com sua “careira andando” e
as coisas foram potencializadas. Ele se diz contente em estar e trabalhar em São
Paulo, mas também destaca que ser do Pará e estar no sudeste demanda uma
contextualização do seu trabalho muito mais intensa, uma vez que é necessário
deixa claro “o tempo todo, que tipo de referencia você tem em mente pra poder
comunicar com o sudeste, com o nordeste menos, mas especialmente o sudeste
que é um jogo de referências culturais mais distantes” (CORDEIRO, 14/4/2015).

Quando perguntada sobre estar em São Paulo, a baiana Marcia Castro


(5/5/2015) também enfatiza a questão mercadológica da cidade e explica que “o
único lugar que você pode viver mais dignamente de música é São Paulo”. Ela cita o
que chama de “casos especiais” em que há uma autossuficiência mercadológica do
eixo Rio-Sp, como acontece com o axé na Bahia, em que “a coisa gira a partir de lá”,
ou seja, não é preciso migrar pra Sp. Mas, fora esses casos especiais, Marcia não
vê um lugar em que se faça dinheiro com música que não seja São Paulo. Não só
fazer dinheiro, mas também se divulgar. Ela é bastante enfática no poder de
divulgação da cidade em que está e sua importância no desenvolvimento comercial
de uma carreira.

No caso do cearense Fernando Catatau, São Paulo era um sonho de


criança. Ele sempre quis estar em São Paulo, desde a primeira vez que conheceu a
cidade, “aquele sonho de vir pra cidade grandona e hoje eu não tenho mais esse
interesse. Eu sou louco pra ir embora daqui (risos)”, afirma. Como acabou
estabelecendo sua vida em São Paulo, Catatau relata que “o grande lance de São
Paulo não é nem o que a cidade lhe oferece, são as pessoas que vêm pra cá em
busca de determinadas coisas e daí vocês se encontram”. Para o músico, os
encontros são as coisas mais importantes da cidade, uma vez que tem gente do
Brasil inteiro migra para São Paulo com o mesmo foco, onde acaba acontecendo
muitos contatos e trocas artísticas (CATATAU, 10/9/2015).

Para os artistas que estabelecem residência em Recife, Isaar chegou a


passar uns cinco meses corridos em pouco em São Paulo e vai sempre que pode,
em função do trabalho. A artista afirma que o que mais gosta em Recife é a “riqueza
subjetiva e matéria prima de criação” que acontece na cidade. Por outro lado, ela
166

afirma as dificuldades de “caminhar de música”. Mesmo tendo muitas pessoas


amigas em jornais e rádios, formação na área e três discos na praça, Issar conta
que não consegue circular no entorno do Estado de Pernambuco, e aponta o caráter
provinciano que faz com que o nordestino tenha que, duas vezes no ano, arrumar as
malas e fazer uma turnê RJ – SP, ao invés de fazer um show em Caruaru, João
Pessoa, Campina Grande, Natal, Salvador, Fortaleza. Isaar afirma que essas
dificuldades muitas vezes a desanima, mas outras vezes a impulsiona a trabalhar
esses gargalos (FRANÇA, 25/2/2016).

Para Graxa, Recife é uma cidade cheia de música, com uma população
musical, no sentido de produzir muita música o tempo todo. Com isso, a cidade
acaba oferecendo muito produto musical, mas não absorve essa quantidade: “a
oferta é muito grande e a demanda tende a ficar bem baixa”, explica. Essa não
absorção de demanda está ligada a falta de espaços de apresentação, o que
dificulta “viver de música” sem que seja possível “fazer bilheteria”. Graxa afirma que,
por isso, é “um tiro no escuro” se dedicar a música em Recife, restando o ciclo de
festas financiadas pelo Estado ou aprovar um edital no Fundo Pernambucano de
Incentivo à Cultura (FUNCULTURA), o que tem se tornado mais difícil a cada ano,
uma vez que as verbas têm diminuído. Por tudo isso, Graxa entende que o fluxo
migratório de artistas do nordeste pro sudeste, especialmente São Paulo, ainda é
uma realidade. “Quem não mora em São Paulo pelo menos vai constantemente”
(SOUZA, 26/2/2016).

O músico Caio Lima (4/3/2016), por sua vez, afirma que passou muito
tempo reclamando da cidade do Recife, frustrado com a dinâmica, “porque ninguém
chamava a gente pra tocar, por exemplo”. Entretanto Caio entende que é preciso
inventar os lugares. Nesse sentido, “a cidade, na verdade, ela não existe ainda. A
cidade está sempre por vir. É uma potência. A cidade tem muito a oferecer”. Então,
ele afirma que começou a pensar no que poderia fazer, no que ele poderia inventar
para multiplicar ou potencializar a sua experiência na cidade. Nesse sentido, Caio
defende que os músicos precisam, por exemplo, fazer shows na Rua da Aurora em
uma “suficiência intensiva”, radicalizando a questão do “pague o quanto puder”33,

33Em Recife, o Grupo de teatro Magiluth criou um festival para convidar artistas e público ao diálogo
entre as artes, o Pague Quanto Puder. Os atores colocam em debate a disposição financeira do
público em relação a uma obra artística. Como sugere o nome do evento, o grupo decidiu deixar as
167

organizar concursos, festivais etc., no intuito de sair um pouco dos esquemas que já
estão consolidados na indústria cultural. Quanto ao êxodo artístico, Caio afirma que
é algo histórico, mas sonha com o dia em que não seja preciso de um êxodo pra
outro centro econômico porque em Recife existiria todas as oportunidades.

Diante das narrativas dos artistas entrevistados, muitos fatores podem ser
citados para informar as especificidades regionais e suas contextualizações para o
trabalho musical independente. Essas especificidades, por sua vez, não indicam
uma oposição, mas muitas vezes uma relação de complementariedade, sobretudo
quando observados os trânsitos artísticos migratórios. Enquanto Recife está
caracterizada pela dependência aos investimentos municipais e estaduais diretos
(os quais diminuem a cada ano e se concentram no ciclo de festas), São Paulo se
destaca pela predominância dos investimentos federais na forma de Mecenato e
pelo domínio de pesquisas sobre produção, gestão e empreendedorismo cultural.
Além disso, em São Paulo, as especificidades da cena paulistana contribuem para a
relativa proeminência deste polo musical no cenário nacional. Destaca-se uma maior
consistência do mercado musical independente, em comparação com outras capitais
brasileiras, no que se refere ao tipo de mercado voltado para as produções mais
segmentadas e de nichos.

Isso pode ser explicado por diversos fatores que contribuem para a
geração de renda do artista independentes. Na fala dos artistas entrevistados
podem-se resumir os seguintes fatores: a) significativo circuito de casas noturnas e
espaços de shows voltados a públicos segmentados interessados nas propostas de
músicos independentes; b) um conjunto importante de equipamentos e instituições
culturais, entre os quais destaca-se o SESC; c) canais tradicionais de mídias
sediados na cidade, com espaços e programas voltados à cobertura especializada

pessoas livres para escolherem o preço de seus ingressos. Em entrevista à Revista Cardamomo,
Erivaldo Oliveira, um dos integrantes do Magiluth, afirma que fez a seguinte pergunta ao público:
“Quanto você acha que deve sair do seu orçamento mensal para a sua construção intelectual,
cultural?”. O grupo destaca que já teve pessoa pagando R$0,30, assim como teve pessoa pagando
R$ 50,00. Contudo, fazendo uma média, o grupo acaba tendo uma bilheteria como se fizesse uma
apresentação normal com ingressos com preços pré-combinados. A diferença é que essa proposta
do preço livre atrai mais gente. “A média de preço das três edições foi R$5, R$7 e R$10. Ou seja, a
gente está conseguindo valorizar o preço do ingresso”, além de formar público, afirma Mário
(MACAU, 2016, p. 1).
168

desta cena, como jornais, revistas e programas de rádio e TV34; e d) concentração


em uma região territorial específica da cidade de bares, casas noturnas, estúdios,
gravadoras, lojas de instrumentos, residência de artistas, jornalistas e produtores
culturais.

Todos esses fatores concorrem para a afirmação de oportunidades


especialmente privilegiadas em São Paulo no que se refere ao desenvolvimento,
sustentabilidade e repercussão de trabalhos musicais independentes. Reunindo uma
variada gama de fatores decorrentes de sua condição enquanto pólo econômico e
da peculiaridade de seus equipamentos e recursos voltados à cultura, a cidade tem
reunido um proeminente campo de música independente e de empreendedores
culturais, os quais desenham uma ideia “modernista” da cidade. Essas
oportunidades também são responsáveis pela migração de um conjunto significativo
de músicos de outros estados brasileiros para o solo paulistano, o que contribui para
a cena estética e cultural diversificada.

34 Canais televisivos e radiofônicos voltados para públicos sedimentados, como os programas


“Cultura Livre” (Rádio e TV Cultura), “Metrópolis” (TV Cultura), “Trama Radiola” (TV Cultura), “Ensaio”
(TV Cultura), “Radiola Livre” (Rádio UOL) e “Vozes do Brasil” (Rádio Eldorado), tem dado especial
cobertura a cena musical independente, sobretudo paulistana.
169

VI POLÍTICA CULTURAL NEOLIBERAL

Para avaliação do trabalho artístico enquanto parte integrante do contexto


sociológico contemporâneo também é importante recuperar o ambiente das políticas
culturais como fator que influencia as condições desse tipo de ofício. A preocupação
central é resgatar a trajetória histórica das políticas setoriais para entender a sua
atuação na produção, distribuição e consumo das atividades culturais, frente a
realidade de crescente participação das empresas no financiamento do trabalho
artístico hoje. Trata-se de mapear a tentativa da construção da institucionalidade da
área cultural no Brasil, junto com seu aparato legal e discursivo que reflete um
projeto de implementação de ações governamentais, informando o percurso e o
lugar do Estado no campo da cultura.

A preocupação pelas condições de trabalho dos artistas ocupa um lugar


ainda coadjuvante e pouco estruturado no interior das políticas culturais. No decorrer
das entrevistas, os depoimentos evidenciam os equívocos que ocorrem quando os
poderes públicos deixam as decisões sobre o que se incentiva em termos culturais
nas mãos de setores de marketings das empresas. Dessa forma, os projetos ficam
incomodamente dependentes do capital de relações sociais de cada agente criador
ou de cada instituição específica. Finalmente, um dos grandes problemas quanto à
captação de recursos relaciona-se ao fato de produtores culturais de grande e
pequeno porte disputarem os mesmos recursos, promovendo uma concorrência
desequilibrada e sem qualquer critério.

VI.I Escolha do Estado

Segundo Antonio Rubim (2008, p. 32), a história das políticas culturais no


Brasil está marcada por tristes tradições que podem ser condensadas nas seguintes
expressões: autoritarismo, caráter tardio, descontinuidades e fragilidade institucional.
Essa herança é analisa pela historiadora social Lia Calabre (2009). A autora parte
dos anos 1930, período no qual o país passou por significativas mudanças políticas,
econômicas, administrativas, com processo de urbanização industrial crescente,
170

para entender as ações que tomaram formas de políticas culturais. Experiências


federais e municipais desenharam as primeiras tentativas institucionais brasileiras no
campo da cultura.

Na instância federal, no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945),


a administração pública perseguia a construção de um novo modelo de gestão que
buscava romper com a tradição da república oligárquica. No contexto de esboço de
uma racionalidade legal-administrativa de organização institucional do Estado foi
criado o Ministério da Educação e Saúde (MES), conduzida pelo Ministro Gustavo
Capanema, e cuja legislação do Conselho Nacional da Educação fazia referência à
cultura pela primeira vez no país. Lia Calabre (2009, p. 22) observa que o conceito
legislativo de cultura na segunda metade da década de 1930, era abrangente e de
caráter nacionalista. As atribuições do Conselho abarcaram as áreas clássicas das
artes, os meios de comunicação, a produção intelectual, a educação cívica e a
física, inclusive as atividades de lazer, além da proposição de pesquisas setoriais.

O presidente Vargas contava com a simpatia da classe teatral desde os


tempos em que foi deputado, antes da Revolução de 1930, quando apresentou um
projeto que reconhecia a existência da profissão de artista teatral. Durante a sua
gestão diversas iniciativas foram propostas no âmbito cultural, como por exemplo, a
criação do Conselho Nacional de Cultura (CNC). Foram criados também o Serviço
de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), o Museu Nacional de Belas
Artes, o Museu Histórico Nacional, o Instituto Nacional do Livro, o Instituto Nacional
do Cinema Educativo, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), entre
outros serviços e instituições.

O governo de Getúlio Vargas também foi marcado por ambiguidades.


Segundo Antonio Rubim (2008, p. 34), essa foi a primeira vez que o Estado nacional
realizava um conjunto de intervenções na área da cultura, articulando, ao mesmo
tempo, uma atuação de caráter afirmativo estruturada por meio de formulações
legislativas, institucionais e organizacionais; e práticas tendentes a repressão e
censura. Nesse mesmo período, ocorreu a primeira experiência de gestão de política
pública municipal. Trata-se da criação do Departamento de Cultura e Recreação do
Estado de São Paulo, em 1935, capitaneada e chefiada por Mário de Andrade, e
ligada a alguns dos ideais presentes no Movimento Modernista Brasileiro.
171

O ciclo que sucedeu o presidente Vargas não apresentou um programa


cultural consistente. As décadas de 1940 e 1960 foram marcadas por uma fraca
presença do Estado no campo da cultura. A maior parte das ações se restringia a
regulamentar e dar continuidade às instituições que foram criadas ao longo do
governo Vargas. Surgiram experiências não estatais relevantes como, por exemplo,
os Centros Populares de Culturas (CPCs), da União Nacional dos Estudantes (UNE).
O crescimento urbano-industrial gerava novas expectativas sobre a possibilidade de
desenvolvimento do mercado de consumo para as produções artístico-culturais.
Crescia a indústria cultural no Brasil, marcada por um processo significativo de
investimento privado. Ainda em 1946, foi criado, junto ao Ministério das Relações
Exteriores (MRE), o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC). Em
1953, a área da saúde finalmente ganha um ministério próprio e surge o MEC.

Lia Calabre (2009, p. 43) analisa que entre as décadas de 1960 e 1970,
as questões relacionadas à cultura ganharam maior importância dentro da área de
planejamento público e passaram a ser incluídas nas noções de desenvolvimento.
Na década de 1960, antes do golpe de 1964, o Governo Federal implementou
algumas ações visando estruturar uma política para o setor. Em 1961 foi criado o
Conselho Nacional de Cultura (CNC), diretamente subordinado à Presidência da
República, ocupado por Jânio Quadros. A visão de cultura presente na legislação do
Conselho estava limitada à área artístico-cultural, não contemplando, por exemplo,
questões de educação, lazer e esporte, presente na visão varguista. Em 1971, o
país contava com conselhos de cultura instalados e em pleno funcionamento em 22
estados. Durante este período destaca-se, ainda, a criação da Empresa Brasileira de
Filmes S.A. (Embrafilme), em 1969.

Nos anos de 1970 a estrutura administrativa do MEC é reformulada e o


Conselho da Cultura passa a cumprir uma instância consultiva e normativa. Durante
a gestão de Jarbas Passarinho (1969-1973) é implementado o Plano de Ação
Cultural (PAC), importante projeto de financiamento de eventos, além do
Departamento de Assuntos Culturais (DAC) e da Secretaria de Cultura no âmbito do
MEC. Observa-se um processo de fortalecimento da área da cultura dentro do
Ministério da Educação. Nesse período foram criados também o primeiro Plano
Nacional de Cultura (PNC), em 1975, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico
172

Nacional (IPHAN) e a Fundação Nacional das Artes (FUNARTE). O Brasil começa a


se abrir para novas dinâmicas internacionais por meio de encontros promovidos pela
UNESCO. Pela primeira vez no país é aprovada a regulamentação das profissões
de “Artistas e Técnicos de Espetáculos”, por meio da Lei nº 6.533/1978. O
reconhecimento dessas profissões são definidas via licença outorgada pelo
Ministério do Trabalho ou por meio dos sindicatos da categoria artística, criados
desde a década de 1930.

No fim dos anos 1970 é colocada a questão das distorções na criação,


distribuição, acesso e consumo de bens culturais. Nesse período foi criada a Política
Nacional de Cultura. Por meio do Decreto nº 91.144/1985 o governo de José Sarney
cria o Ministério da Cultura (MinC), assumido no ano seguinte por Celso Furtado.
Nessa época também foi aprovada a Lei nº 7.505/1986, conhecida com Lei Sarney,
que concedia benefícios fiscais na área do imposto de renda para operações de
caráter cultural ou artístico. Segundo Lia Calabre (2009, p. 33) embora tenha havido
um esforço do Ministro Celso Furtado, reconhecido por buscar a estruturação
institucional do MinC, o período de gestão do presidente Sarney foi de grande
instabilidade política dentro do Ministério. O resultado de tal conjuntura foi a
descontinuidade de projetos e pesquisas no setor.

O início da década de 1990 sofreu um grande desmonte na área cultural


do que tinha sido construído até então. O presidente Fernando Collor de Mello
promulgou as Leis nº 8.028 e nº 8.029. A primeira transformava o Ministério da
Cultura em Secretaria e a segunda extinguia uma série de entidades da
administração pública, na qual a área da cultura foi duramente atingida. Foram
dissolvidas, por exemplo: a FUNARTE, a Fundação Nacional de Artes Cênicas
(FUNDACEN), a Fundação do Cinema Brasileiro (FCB), a Fundação Nacional Pró-
Memória e a Embrafilme. Em substituição a Lei Sarney foi promulgada a Lei Federal
nº 8.313/1991, vigente até o presente momento. A Lei Rouanet, como ficou
conhecida, instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), cuja
finalidade é a captação de recursos financeiros para os diversos setores culturais.
Finalmente, em 1992, a situação que transformou o MinC em Secretaria da Cultura
foi revertida.
173

A promulgação da Lei Rouanet configura-se, desde então, como a


principal regulação de financiamento à cultura no país. Por meio de seus
mecanismos, subsidia-se a cultura diretamente via Fundo Nacional de Cultura
(FNC), indiretamente por meio do Mecenato e ainda via Fundos de Investimento
Cultura e Artístico (FICART). Entre as modalidades de financiamento o Mecenato
destaca-se como principal meio incentivador. Neste caso, o subsídio se concretiza
por benefícios fiscais ao imposto de renda devido, tanto no caso de pessoa física
quanto jurídica. Segundo a Lei Rouanet, pessoas físicas ou jurídicas podem
patrocinar um projeto cultural (com permissão de promoção e publicidade do
incentivador), caso em que se permite a dedução de até 100% do valor do
patrocínio, sempre respeitados os limites do imposto devido ao incentivador, ou seja,
de 4% ou 6% para pessoa jurídica ou física, respetivamente.

Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso é possível observar a


evidência do paradigma gerencial empresarial aplicado à administração pública.
Nesse período, o incentivo indireto por meio do Mecenato presente na Lei Rouanet
se torna o grande instrumento de política pública cultural. Essa situação
proporcionou o surgimento de uma série de iniciativas privadas na área da cultura,
ao mesmo tempo em que retirou o Estado do cenário decisório e da condução
política do processo. Esse movimento de retração do Estado e avanço da lógica de
mercado expressa mais que uma configuração econômica, mas também uma
escolha política pelo conceito liberal na gestão cultural.

No mesmo período do governo Fernando Henrique Cardoso em que se


observa o destaque para a gestão liberal surgem novas configurações no campo
social e político brasileiro. As lutas sociais e o processo de organização popular
fizeram com que em 1989 a nordestina Luiza Erundina fosse eleita prefeita do
município de São Paulo, pelo PT, que, por sua vez, convidou a filósofa e historiadora
Marilena Chauí para assumir a pasta da Secretaria de Cultura. Chauí pautou sua
gestão pela recusa do modelo liberal e instituiu o conceito de cidadania cultural.
Para a pesquisadora (CHAUÍ, 2006, p. 23), a cultura precisa ser entendida pelas
políticas públicas como direito dos cidadãos, sem confundi-lo com as figuras do
consumidor e do contribuinte, enquanto o Estado deve assumir a postura de
174

assegurador público de direitos, prestador sociopolítico de serviços e estimulador-


patrocinador das iniciativas da sociedade.

No contexto internacional, a cultura passa a fazer parte de forma mais


enfática do rol de reivindicações dos organismos transnacionais. A expansão dos
mercados culturais coloca em pauta discussões em torno do tema. Apropriando-se
desse debate e reivindicando a cultura como uma das áreas de sua competência
específica, a UNESCO passa a encabeçar discussões e realizar inúmeras
convenções, com o objetivo de regulamentar e formular recomendações para o
reconhecimento e valorização da diversidade cultural. Diversos documentos jurídicos
internacionais sobre Direitos humanos fazem menção aos Direitos culturais,
enquanto outros foram e estão sendo elaborados no sentido de vincular cultura ao
desenvolvimento social e econômico35.

A relativa retomada do papel ativo do Estado brasileiro nas políticas


públicas culturais se dá nos governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entre
os anos de 2003 a 2010 há um esforço no sentido de estabelecer um diálogo e
compartilhar com a sociedade brasileira a revisão, formulação, estruturação e
execução das políticas setoriais. Nesse período, foram realizadas importantes
iniciativas de sustentação e operacionalização, como o Sistema Nacional de Cultura
(SNC), o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) e o Programa de
Desenvolvimento Econômico da Cultura (PRODEC). Além disso, o slogan Cultura
para todos procurou materializar a descentralização e diversidade cultural com o
35 A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) em seu artigo 27 expressa que toda pessoa
tem direito a tomar parte livremente da vida cultural da comunidade, gozar dos progressos artísticos e
científicos que dela resultem, enquanto o Estado deve tomar parte para alcançar esses objetivos. O
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) prevê que o ideal do ser
humano livre não pode ser realizado a menos que se criem as condições que permitam a cada um
gozar de seus direitos culturais. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) considera a
estreita relação que existe entre a vigência dos direitos econômicos, sociais e culturais e a dos
direitos civis e políticos, porquanto as diferentes categorias de direito constituam o todo indissolúvel
que encontra sua base no reconhecimento da dignidade da pessoa humana, pelo qual exigem tutela
e promoção permanente. A Declaração do Direito ao Desenvolvimento (1986) reconhece que o
desenvolvimento é processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao constante
incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua
participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí
resultantes. A Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural (2002) afirma o princípio da
diversidade cultural enquanto fator de desenvolvimento, entendido não apenas em termos de
crescimento econômico, mas também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva,
moral e espiritual satisfatória. Em 2005, a Convenção sobre Proteção e Promoção da Diversidade das
Expressões Culturais destacou o papel transversal da cultura na economia e no desenvolvimento
social, propondo a não submissão dos produtos e serviços culturais às regras da Organização
Mundial do Comércio (OMC).
175

Programa Cultura Viva, que institui os Pontos de Cultura, e o Mais Cultura. Na


gestão de Gilberto Gil estimulou-se um processo de discussão e reorganização do
orçamento com objetivo de melhorar distribuição dos recursos destinados à cultura.
Pela primeira vez foi proposta uma revisão pública para corrigir as limitações da Lei
Rouanet.

No período dos governos do presidente Lula e especificamente no âmbito


musical, vale citar a formulação do Projeto Pró-Música - o Programa de Apoio à
Exportação de Música – e a implementação da Câmara Setorial de Música, criada
pelo MinC em 2005 e gerida pela FUNARTE. Nesse último caso, na busca de
diálogo com o segmento artístico e a sociedade foram realizados diversos fóruns e
reuniões temáticas com agentes ligados à cadeia da música para levantar os
principais problemas do setor. Os destaques das reuniões foram para pautas cujas
mesas foram denominadas “Trabalho”, “Formação”, “Direito autoral” e
“Financiamento, produção, difusão”. Nessa oportunidade, foi detectada, entre outras
coisas, a necessidade de regulamentação do trabalho do músico, bem como
descentralização dos recursos públicos e dos meios de difusão (MINC, 2010).

Para aprofundar a tentativa de combate ao ciclo de descomprometimento


do Estado com a cultura, o Governo Dilma Rousseff apresentou o planejamento a
longo prazo do Plano Nacional de Cultura (PNC), formulado com a participação de
consultas nacionais e regionais por meio de fóruns e conferências realizados pelo
país. Cita-se também o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais
(SNIIC) e o Plano de Economia Criativa, assim como a aprovação e regulamentação do
Vale-Cultura para trabalhadores. Tendo em vista esse contexto, Lia Calabre (2006, p.
23) afirma que o MinC, ao longo dos últimos dez anos, tem buscado construir as
bases para a consolidação das políticas públicas no Brasil. Houve um esforço
continuado de fortalecimento das instituições culturais e de estabelecimento das
diretrizes, amparadas na valorização de uma democracia cultural e na utilização
desta como instrumento de inclusão social.

Considerando a crescente institucionalização do planejamento político da


cultura cumpre observar a representação do artista no atual PNC. Instituído pela Lei nº
12.343/2010, com validade para 10 anos, a elaboração do PNC insere-se no contexto
das tentativas de avanços políticos e institucionais realizadas a partir do primeiro
176

mandato do governo Lula, que aponta para o papel de um Estado ampliado no setor. O
antropólogo social José Márcio Barros (2014) se dedicou a estudar o tratamento dado
ao artista no documento, que contem 12 princípios, 16 objetivos, 14 diretrizes, 36
estratégias, 275 ações objetivos e 53 metas. Para Barros (2014) o PNC apresenta
apenas duas ações que recaem na dimensão do artista como trabalhador.

[A ação 4.2.4, que propõe] estimular a adesão de artistas, autores,


técnicos, produtores e demais trabalhadores da cultura a programas
que ofereçam planos de previdência pública e complementar
específicos para esse segmento. [E a ação 4.4.1 onde se propõe]
desenvolver e gerir programas integrados de formação e capacitação
para artistas, autores, técnicos, gestores, produtores e demais
agentes culturais, estimulando a profissionalização, o
empreendedorismo, o uso das tecnologias de informação e
comunicação e o fortalecimento da economia da cultura (BARROS,
2014, p. 50).

No âmbito das metas do Plano, José Márcio Barros (2014, p. 48) contabiliza
sete medidas que em suas generalidades estão indiretamente relacionadas ao universo
do trabalho e ao artista enquanto trabalhador, como por exemplo “o apoio e difusão de
atividades culturais”; “educação em arte”; “certificação de profissionais de caráter
cultural”; e a questão dos direitos autorais. Quando se trata de uma visão mais direta
para o trabalho artístico apenas duas metas podem ser citadas. A primeira ainda está
em estágio de formulação normativa e diz respeito ao Programa de Certificação
Profissional e Formação Inicial Continuada (CERTIFIC), cuja operacionalidade visa
promover a produtividade e inclusão social e profissional dos artistas. A segunda meta,
por sua vez, leva em consideração as demandas de reconhecimento e regulação
atreladas às leis trabalhistas.

Em entrevista a Barros (2014), José de Oliveira Júnior, diretor de apoio ao


trabalhador associado do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculo de Minas
Gerais, comenta a ausência significativa no que tange à construção de proposições
efetivas e cuidadosas, que visem ao incentivo e à proteção das carreiras artísticas.
177

Analisando quantas vezes e em qual contexto a palavra “artista”


aparece citada no texto do Plano Nacional de Cultura apenas dez
vezes num total de 13.942 palavras do documento. O mesmo
acontece com a palavra ‘criador’, que curiosamente também aparece
citada dez vezes. [...] Fala-se muito da cultura, dos instrumentos, dos
produtos da atividade artística, dos equipamentos culturais, dos
gestores e até de recurso só não se fala ‘do artista’. Sintomático, não
acha? (OLIVEIRA JÚNIOR em entrevista a BARROS, 2014, p. 12).

Quando se trata dos planos setoriais nacionais, que têm como objetivo
garantir que as especificidades próprias de cada setor da cultura sejam observadas
e atendidas pelas políticas públicas, cita-se o Plano Setorial da Música. Nas 34 metas
expostas no documento apenas uma vez há uma menção direta da palavra trabalho
relacionada à atividade dos músicos. Por outro lado, o Plano coloca como diretrizes a
ser alcançadas o fomento do mercado de trabalho formal, o desenvolvimento da
formação musical e o incentivo desse tipo de atividade, sobretudo a independente (sem
conceituação). O documento encontra-se em fase de revisão, com intuito de reunir
ideias de ações que contribuam para realizações das suas metas.

Diante das análises realizadas até aqui, é possível concluir, primeiro, a


ausência do tratamento do artista enquanto trabalhador; segundo, a ausência de
instrumentos efetivos capazes salvaguardar essa categoria. Nesse sentido, Chauí
(2006) suscita a emergência das relações decisivas entre cultura e trabalho36.

O que seria uma relação nova com a cultura, na qual a


considerássemos um processo de criação? Seria entendê-la como
trabalho. Tratá-la como trabalho da inteligência, da sensibilidade, da
reflexão, da experiência e do debate, e como o trabalho no interior do
tempo, é pensá-la como instituição social, portanto determinada
pelas condições materiais de sua realização (CHAUÍ, 2006, p. 136).

36
A propósito desse entendimento, a seleção de discursos do Ministro da Cultura cubano organizado
pelo Sindicato Nacional de Trabalhadores da Cultura (HART, 1978, p. 177) destaca a estreita relação
do Ministério da Cultura com o Sindicato de Trabalhadores da Cultura do país, que conta com o dia
do trabalhador da cultura (correspondente ao nascimento de Raúl Gómez García) e diversas escolas
de formação descentralizadas. Segundo Armando Hart (1978, p. 187) toda a gestão é estruturada no
sentido de organizar, facilitar, estimular e proteger a atividade dos artistas, enquanto trabalhadores. O
Ministério da Cultura de Cuba desde 1976 procura aperfeiçoar normas do sistema contratual na
esfera laboral artística.
178

Com a perda do cargo de presidenta da república, após sofrer processo


de impedimento em 2016, Dilma Rousseff é substituída pelo seu vice, Michel Temer
(PSDB). Como uma de suas primeiras medidas, Temer extinguiu o MinC, que se
transformou em Secretaria subordinada ao MEC, comandado por Mendonça Filho
(DEM), político com inexpressiva atuação no campo cultural. À sombra do
argumento do corte de gastos, a decisão de extinção do MinC gerou uma enorme
insatisfação da classe artística. Vários prédios ligados ao Ministério e entidades
vinculadas foram ocupadas em todo o Brasil. Emergiram protestos, abaixo-assinado
e manifestações nacionais e internacionais. Temer decidiu, então, um mês mais
tarde, recriar o MinC, nomeando Marcelo Calero como Ministro37.

O novo ministro da Cultura, 33 anos, diplomata e advogado, era então


secretário municipal de cultura do Rio de Janeiro do governo de Eduardo Paes (PMDB),
quando foi convidado por Temer para o Ministério. Calero chegou a se candidatar a
deputado federal em 2010 no Rio de Janeiro pelo PSDB, endossando a campanha
de José Serra à Presidência, tendo conseguido apenas 2.252 votos. Após cerca de
seis meses, Marcelo Calero pediu demissão do MinC, acusando o então ministro da
Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, de tê-lo pressionado a liberar a
construção de um arranha-céu em Salvador em uma área tombada pelo Iphan,
aonde Geddel havia comprado um apartamento. Geddel caiu seis dias depois. Para
o lugar de Calero, foi anunciado o presidente nacional do PPS, o deputado federal
Roberto Freire. O pernambucano Freire nunca assumiu cargos (nem mesmo de
segundo escalão) nas gestões que seu próprio partido apoiou, como as dos
governos paulistas. O MinC, por sua vez, segue o seu curso de sucessivas
instabilidades governamentais.

Hoje a estrutura regimental do Ministério é composta por três órgãos de


assistência direta e imediata ao Ministro de Estado. São eles o Gabinete, a
Secretaria Executiva e a Consultoria Jurídica. O alicerce do MinC também é formado
por seis secretarias, órgãos colegiados, sete entidades vinculadas e representações

37 Antes de indicação de Calero, a intenção do presidente em exercício, Michel Temer, era nomear uma
mulher para dirigir a área cultural e, assim, responder às críticas de um governo exclusivamente
comandado por homens (brancos), mas nenhuma delas aceitou o cargo. A atriz Bruna Lombardi, a
jornalista e apresentadora Marília Gabriela, a antropóloga Cláudia Leitão, a consultora de projetos
culturais da FGV Eliane Costa e a cantora Daniela Mercury negaram o convite para administrar o
setor cultural.
179

regionais (MINC, 2015). Contudo, as dificuldades práticas em torno da cultura


enquanto objeto e sujeito de políticas públicas passa pela própria estrutura
organizacional do Estado quando se trata de recursos humanos para realizar o
processamento dos circuitos de ação. Os dados da Diretoria de Gestão Estratégica
do MinC, retrata que a força de trabalho do Ministério é composta por apenas 18,7%
de pessoal permanente. Os outros se distribuem entre sem vínculo, terceirizados,
consultores, requisitados e estagiários. A tabela abaixo, extraída de estudo realizado
pelo IPEA (2014, p. 55), sintetiza a evolução desses dados entre os anos de 2006-
2009.

Tabela 3 - Força de trabalho do MinC | Brasil 2006-2009

Variação
Força de trabalho 2006 2007 2008 2009
2 % 2 % 2 % 3 % 2006/200
SCC/tipo de vínculo
9
Ativo permanente e
14,3 14,7 14,6 18,7
exercício descentralizado 9 11 12 14 55,6
% % % %
de carreira
Sem vínculo 4 6,3% 6 8,0% 8 9,8% 7 9,3% 75,0
Terceirizados (patrimonial 23,8 21,3 22,0 21,3
15 16 18 16 6,7
e ICP) % % % %
Consultores de
20,6 21,3 22,0 18,7
organismos nacionais e 13 16 18 14 7,7
% % % %
internacionais
Requisitados, em 28,6 28,0 24,4 28,0
18 21 20 21 16,7
exercício % % % %
Estagiários 4 6,3% 5 6,7% 6 7,3% 4 5,3% -
100 100 100 100
Total 63 75 82 75 19,0
% % % %

Forte e Elaboração: IPEA, 2014, p. 23.

Especialmente no âmbito musical, a pesquisadora Karina Poli (2014, p. 6)


elucida que a gestão do setor na esfera federal está centralizada na FUNARTE e
divide-se em música popular e erudita. O quadro de pessoal total é de seis
funcionários para realizar a gestão e todo trabalho administrativo que envolve as
demandas musicais do país.
180

Enquanto as tentativas de fortalecimento institucional do Estado


encontram interrupções, limites e dificuldades de realização prática, a supremacia da
escolha política liberal nas políticas públicas culturais prevalece e pode ser
evidenciada nas cifras disponibilizadas. Em 2002, por exemplo, dos recursos
aplicados em cultura por meio das leis de incentivo, 73,4% foram recursos públicos
da renúncia fiscal via Mecenato. Já os gastos governamentais diretos com a cultura
nas esferas federal, estadual e municipal totalizam 0,3% do total das despesas
consolidadas da administração pública (CALABRE, 2009, p. 21).

Para Marilena Chauí (2006) a privatização da gestão da cultura fica mais


clara, por exemplo, quando se destina 300 milhões ao Fundo Nacional de Cultura e
um bilhão e 300 milhões para a renúncia fiscal – que também é dinheiro público,
mas destinado a atender interesses privados (CHAUÍ, 2006, p. 47). É como se o
governo sacrificasse uma massa de dinheiro público capaz de ser empregada
diretamente por suas instituições culturais para agir indiretamente, deixando às
empresas a decisão do que financiar. Em outras palavras, seria como sacrificar
receita pública convertendo-a em reforço do orçamento publicitário das empresas. A
tabela abaixo de elaboração própria com informações extraídas do IBGE (2013)
acompanha a evolução dos investimentos indiretos do Estado via renúncia fiscal no
período de 2008-2011.

Tabela 4 - Evolução do investimento em Mecenato | Brasil 2008-2011,R$


181

Fonte: IBGE, 2013, p. 23.

Na análise dos investimentos com renúncia fiscal realizada no âmbito da


música, Karina Poli (2014, p. 7) destaca a importância do setor musical que no ano
de 2013, por exemplo foi o segundo maior segmento cultural investido pelas
empresas privadas (21,33% do total dos investimentos), só perdendo para artes
cênicas.

Para explicar o mecanismo de funcionamento do Mecenato, Juliana Coli


(2006, p. 266) elucida que as leis de incentivos fiscais acabam por privilegiar
duplamente o capital privado: primeiro, pela própria concessão dos benefícios que a
empresa obtém com a isenção dos impostos e, segundo, porque converte em
retorno produtivo, como valor agregado, o que antigamente poderia ser considerado
um investimento improdutivo, pelas novas estratégias de marca das empresas com o
marketing cultural.

Na lógica do Mecenato o envolvimento do setor corporativo nas questões


culturais é otimizado tanto para estratégias de rentabilidade financeira, quanto para
marketing de responsabilidade sociocultural. Entre as atuais estratégias das
empresas, o marketing cultural representa uma forma de interação com os
consumidores, cuja razão de ser econômica não se limita à venda do produto, mas à
própria produção de subjetividade, enquanto forma de adesão ideológica. Nessa
direção, o patrocínio corporativo tem também como objetivo o ganho simbólico, ou
de imagem, que a associação a um evento de prestígio pode oferecer às
corporações e suas marcas38.

Na verdade, a pesquisadora Clarissa Diniz (2011, p. 33) explica que o


“capitalismo ético” aponta para a ideia do “cada um deve fazer o seu papel” e parte
do princípio de que se estaria vivendo uma crise conjuntural (e não estrutural)
econômica e social. A partir da premissa que considera o Estado incapaz para lidar

38A propósito, sabe-se que há ramos de negócios para os quais é mais aguda a necessidade de
reparar a imagem ou de reforçá-la positivamente por meio do marketing cultural: é o caso das
bebidas alcoólicas, tabaco e petroquímica, em sua ameaça à saúde humana e ao meio ambiente; ou
o caso dos bancos que trabalham uma mercadoria comum (dinheiro) e só podem se demarcar na
mente do público em termos da associação de seu nome com cultura, esporte e beneficência, por
exemplo.
182

com as dimensões dessa crise, se aposta na iniciativa privada. O que ocorre com a
questão sociocultural, enquanto território mais intensamente habitado pelo
empresariado, é a superação da dimensão “problema social” para tornar-se,
claramente, um campo de disputa de estratégia comercial entre as empresas. Nesse
sentido, a pesquisadora (DINIZ, 2011, p. 33) explica que a Lei Rouanet permite que
a empresa patrocinadora abata mais do imposto devido do que seu próprio
investimento em cultura. O exemplo que segue destrincha esse mecanismo.

Com base também nas suas ações de ‘contribuição social e cultural’,


a marca do Itaú S.A consolidou-se em 2011 como a mais valiosa do
Brasil, num total de R$ 24,3 bilhões, enquanto, no ano de 2010
investiu de recursos próprios R$ 59.266.000,00 (59 milhões) em
cultura, o equivalente a 0,11% de sua receita líquida naquele ano.
Não é diretamente, senão através, de tributação, como por meio da
Lei Rouanet, que o Itaú S.A investe significativamente na ‘questão
social’ havendo, em 2010, investido R$ 10.299.997.000,00 (10
bilhões) para todas as áreas das contribuições sociais, o equivalente
a 19,10% de sua receita líquida. Considerando os 0,11% de
investimento direto em cultura da corporação naquele ano, pergunto-
me o quanto, por sua vez, não deve ter colaborado a cultura (e,
portanto, a arte) para construir, através dos 19,10% de investimento
via tributação, para o atual valor bilionário da marca, 18% superior ao
de 2010. Restringindo-me a ficar em um dos braços das atividades
culturais e sociais do conglomerado, somente no Itaú Cultural foram
investidos, através da Lei Rouanet, R$ 26,978 milhões (segundo
informações cedidas pela instituição, outros R$ 17,836 milhões foram
investidos diretamente pelo Itaú Unibanco), havendo sido realizadas,
em 2010, 456 atividades, recebidos quase 300.000 visitantes,
distribuídos 25.673 produtos culturais e assinados contratos com 111
TVs (DINIZ, 2011, p. 38)

A pesquisadora taiwanesa Chin-Tao Wu (2006) analisa o processo que


fez da arte um grande negócio para as corporações. A autora (WU, 2006, p. 23)
explica a tendência de privatização da cultura, a partir da intervenção corporativa
nas artes na década de 1980 na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, década em
que, mais do que em qualquer outra, se assistiu a utilização do poder corporativo na
participação ativa da arena cultural. A entrada das companhias na arena cultural só
se tornou possível graças à substancial acumulação de capital econômico, além do
forte aparato de governabilidade. Depois da chegada de Ronald Reagan e Margaret
Thatcher ao poder, em 1981 e 1979, respectivamente, os dois conduziram seus
183

mandatos sob a dupla bandeira da redução dos gastos públicos e da expansão do


setor privado, o que se estendeu à vida cultural dos dois países. Os cortes
orçamentários vieram juntos com incentivos fiscais e influência política suficientes
para atrair dinheiro privado para área.

As estratégias de ações do thatcherismo e do reaganismo estabeleceram


os paradigmas de gestão neoliberal na cultura, por meio do duplo movimento que
endosssa a iniciativa privada e retrai o investimento direto do poder público.
Proliferam-se os centros culturais mantidos por entidades financeiras. Para quem
trabalha no setor, não há, inicialmente, um mal nessa lógica. Segundo Ana Carla
Reis (2007, p. 67), o envolvimento das empresas requer um comprometimento
muitas vezes mais complexo do que a posição de ser contra, na medida em que
existe, para a autora (REIS, 2007, p. 34), a possibilidade de diferentes formas de
participação privada (filantropa, oportunista, comercial, desenvolvedora). O problema
acontece, contudo, quando a sinergia Estado / Mercado caminha na arriscada e
quase sempre iminente direção de descomprometimento do Estado.

Enquanto o Estado prescinde de sua atuação direta para descentralizar e


democratizar os projetos culturais, o Mecenato, pela lógica do mercado, centraliza
os recursos nos principais centros do país, áreas de interesse do marketing cultural
das empresas, cuja visibilidade e retorno comercial é mais provável. Segundo o
MinC (2012, p. 2), em 2010, 78% da captação dos recursos aprovados pelo
Ministério dirigiram-se a projetos da região Sudeste. Além disso, a Lei Rouanet
promove investimento bastante criticados, como ocorreu no Rock in Rio 2011, cuja
produção o MinC autorizou a destinação de R$ 12,3 milhões (RIZZO, 2011, p. 1)39.
Nesse sentido, quando o Estado se retrai naquilo que é em favor de interesses

39 A jornalista Alana Rizzo (2011, p. 1) relata que o do Rock in Rio é alvo de diligências desde agosto
de 2011. A equipe técnica da pasta encontrou irregularidades no projeto inicial, apresentado pela
empresa Dream Factory Comunicação e Eventos Ltda. No entanto, a captação de R$ 4,5 milhões foi
autorizada em 29 de outubro do ano passado. Os produtores conseguiram apoio de quatro
companhias privadas, além da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, um dos maiores
contribuintes, com R$ 1,2 milhão. Na Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), o parecer
ressalta outra irregularidade: a de que os projetos não apresentavam informações suficientes sobre a
proposta. A CNIC apontava que grande parte do orçamento estava destinada à estrutura do evento,
incluindo lojas, bares, restaurantes e entretenimento, e não às atividades culturais. Os conselheiros
também alertaram que a proposta não apresentava todos os custos do Rock in Rio e incluía
despesas proibidas como passagens de primeira classe e refeições para pessoas que não estavam
diretamente ligadas à produção do evento.
184

públicos, avançam interesses de mercado, que são corporativistas e, portanto, de


benefício restrito.

Do ponto de vista jurídico, embora as regulamentações brasileiras


apontem para a valorização do discurso da cultura (a atual Constituição Federal
anuncia a importância da cultura, definindo o papel do Estado em sua gestão, de
forma a garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, além de apoiar e
incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais), ao procurar
estimular o setor cultural majoritariamente por meio de leis de incentivo fiscal ao
patrocínio privado, transfere-se de forma principal para as empresas uma obrigação
genuinamente estatal. Nesse contexto, Marilena Chauí (2006, p. 52) conclui que a
política pública cultural no Brasil, naquilo que implica deliberação, escolhas e
prioridades, é propriedade das empresas e suas gerências de marketing.

Símbolo do Estado mínimo, a Lei Rouanet vinha sendo repensada pelo


MinC. Em uma série de encontros denominado “Diálogos culturais”, em 2008, o
então Ministro Juca Ferreira apresentou à sociedade civil as justificativas para
reformulação legislativa, apontando as distorções do modelo de financiamento atual,
assim como propostas de mudanças. O relatório do Minc (2015) concluiu que o modelo
atual exclui a viabilidade dos projetos sem retorno de marketing, não fortalecem a
sustentabilidade do mercado cultural, inibe a percepção de que os recursos são
públicos e não promove a democratização do acesso aos bens culturais.

O Projeto de Lei nº 6.722/2010 (ProCultura) pretendia ser o novo marco


regulatório que substituiria a Lei Rouanet. Discutido em várias conferências pelo país, o
Procultura fortalece o incentivo Estatal direto via Fundo Nacional de Cultura. O Projeto,
que também prevê a regionalização dos recursos, foi aprovado na Câmara dos
Deputados com alterações ao texto originalmente apresentado e aguarda votação no
Senado Federal. Em entrevistas (GRUMAN, 2015, p. 2) Juca Ferreira, grande
entusiasta do ProCultura, se defende do argumento de dirigismo cultural no setor,
afirmando que não é contrário à renúncia fiscal, mas à sua predominância enquanto
forma de incentivo. O ex-ministro entende que a lógica deve ser invertida e o Estado
deve ser o principal incentivador das atividades artísticas no país. Atualmente, é
provável que o ProCultura não seja impulsionado no Senado, tendo em vista os
indicativos políticos do presidente da república Michel Temer.
185

Por fim, um dos maiores entraves do MinC na efetividade de suas


demandas é o seu baixo orçamento. A propósito da viabilização da atuação direta do
Estado na cultura, salienta-se também que desde 2003 tramita no Congresso
Nacional a Proposta de Emenda Constitucional 150. A PEC 150 prevê o repasse
anual de 2% do orçamento federal, 1,5% do orçamento dos estados e do Distrito
Federal e 1% do orçamento dos municípios para a cultura. É importante destacar
também que tramita no Congresso Nacional a Lei nº 4.281/2012 que institui o Bolsa-
artista. Trata-se de financiamento de formação e aperfeiçoamento para artistas
amadores e profissionais pelo período de um ano. Contudo, e da mesma forma que
acontece com o ProCultura, é provável que tais Projetos não sejam impulsionados haja
vista a atual gestão cultural do país.

No atual contexto político, a PEC 241, que congela o orçamento do


governo federal por vinte anos, deve impactar diretamente na área cultural, com
significativa redução de investimentos. O que nem todo mundo se deu conta ainda é
que na área cultural, a PEC será ainda mais devastadora. Isso porque,
diferentemente da saúde e educação, que possuem pisos orçamentários
obrigatórios previstos na Constituição, a cultura não tem essa garantia e, com isso,
pode perder até 90% dos seus recursos em apenas cinco anos. A projeção foi
apresentada pelo ex-secretário-executivo do MinC, João Brant (2016, p. 1).

Em nota técnica publicada recentemente, Brant (2016), que foi secretário-


executivo do ministério na gestão Dilma Rousseff até abril de 2016, explica que com
a queda de quase 90% do orçamento voltado para as ações culturais, na prática,
todas as ações do MinC serão paralisadas. Isso inclui editais de pontos de cultura,
ações voltadas à cultura negra, obras de patrimônio cultural e exposições de
museus, financiamentos não-retornáveis do Fundo Setorial do Audiovisual, além de
ações de digitalização da Biblioteca Nacional, bolsas da Fundação Casa de Rui
Barbosa e todas as ações financiadas pelo FNC. Com isso, a tendência é o
fechamento de unidades inteiras vinculadas ao ministério ou até mesmo a
transferência da gestão para a iniciativa privada (BRANT, 2016, p. 1).

VI.II A era dos projetos


186

Enquanto o Estado realiza a sua escolha política pelo conceito neoliberal


na gestão cultural, na predominância dos incentivos fiscais via Lei Rouanet, os
editais se caracterizam pela tecnocracia e complexidade. Acentua-se o crescimento
do mercado de projetos e gestores especializados em editais. Há casos
emblemáticos de espetáculos e artistas famosos que recebem montantes milionários
para desenvolver suas produções40. Ao mesmo tempo em que o mercado de editais
corrobora para o privilégio de nomes que já possuem condições econômicas,
projeção artística e inserção no meio burocrático cultural, por outro lado, há uma
série de restrições e condições que chegam a inviabilizar pequenos projetos.

Dos 11 artistas que compõem a amostra desta pesquisa, 11 deles


recebem ou já receberam algum tipo de subvenção pública federal, estadual ou
municipal, direta ou indireta – seja para a gravação de CDs, seja para a realização
de shows. Desses artistas que conseguiram capar recursos via editais públicos
quase todos eles escrevem os próprios projetos, destacam a importância e
imprescindibilidade desse tipo de recurso para a viabilidade dos seus trabalhos,
assim como criticam e defendem a ampliação desse tipo de mecanismo.

Alessandra Leão (2/9/2014) contou com subsídios públicos em seus três


CDs, sendo um estadual, um municipal e um federal. A artista pernambucana, que
cursou produção fonográfica, afirma que tem procurado caminhos para não
depender tanto do poder público, mas reconhece a dificuldade disso, sobretudo em
um contexto em que não se consegue “fazer bilheteria”, como é o caso de Recife.
De forma semelhante, Marcia Castro (5/5/2015) relata que já teve vários projetos
financiados por verbas públicas, a partir dos programas de incentivo federais e
estaduais. Em todos os casos, Marcia quem escreveu pessoalmente os projetos.
Para a cantora, só ela mesma, como artista, pode dar conta do que artisticamente
vai acontecer.

40 Em 2006 o grupo canadense Cirque du Soleil obteve autorização para captar R$ 9,4 milhões em
sua apresentação no Brasil, cujos ingressos chegaram até R$ 370. Em outro exemplo, a peça da
Broadway Família Addams recebeu autorização para captar R$ 13 milhões via renúncia fiscal – o
faturamento da peça chegou a R$ 9 milhões. Cinco vezes mais do que a Região Norte recebeu em
2011 a título de financiamento cultural (GARCIA, 2015, p. 12).
187

Como é que alguém pode falar de um trabalho meu? A não ser que
viesse um jornalista, fizesse uma entrevista comigo pra desenvolver
um texto, coisa que não existe, não existe dinheiro pra isso... Pelo
menos na minha produção não tem. Então eu acabo mesmo
escrevendo minha ideia artística. E acho gostoso também. Porque a
partir do momento que eu escrevo, eu penso sobre o que eu quero
fazer. E na medida em que eu penso eu vou também aprimorando
um pouco aquele trabalho. É um processo de construção pra mim,
não só burocrático (CASTRO, 5/5/2015).

Quanto às críticas dos mecanismos de editais públicos, Alessandra Leão


comenta as limitações da lógica do edital que paga a produção, mas não se
preocupa com a ponta final da cadeia, quer dizer, a circulação: “Que investimento de
dinheiro público é esse que você grava e o disco fica em casa parado? Porque a
pessoa não tem a estrutura pra fazer girar aquilo depois”, explica a cantora e
produtora (LEÃO, 2/9/2014). Para Missionário José (2/9/2015), músico que apenas
aprovou um edital público, os mecanismos de financiamento estatal precisam ser
rediscutidos e repensados para uma “coisa mais duradoura e eficiente”. O maior
problema e injustiça da Lei Rouanet, para ele, é o fato do artista ser responsável por
captar o dinheiro junto às marcas.

Entre o Mombojó e a Maria Bethânia qualquer marca que tenha o


mínimo de sensatez vai apostar na Maria Bethânia. Então, você ter o
mesmo edital nessas duas situações é injusto. Então, são níveis que
precisam ser especificados. Mas é muito difícil. Como você vai dividir
isso? Por tempo de banda? Por idade? Se for idade já é bom pra
mim (risos). Discos vendidos? Como você seleciona? (JOSÉ,
2/9/2015)

Pensando nesses critérios para os editais públicos, Caio Lima (4/3/2016)


entende que algumas bandas necessitam de um aporte financeiro para que possa
existir com alguma condição de sustentabilidade, tendo em vista as dificuldades
mercadológicas. No mesmo sentido, o músico Marcelo Segreto (14/4/2015) afirma
que o ideal seria que sua banda estivesse suficientemente inserida no mercado para
que não fosse preciso recorrer aos incentivos públicos. No entanto, isso ainda não é
uma realidade para ele, de forma que a Filarmônica de Pasárgada não tem, por
exemplo, dinheiro para gravar os seus discos, “diferentes de outras bandas
188

independentes”. Por tudo isso Marcelo infere que bandas “desse tipo” deveriam ter
prioridades de financiamento. Observam-se, nessa fala, dois pontos bastante
importantes. Primeiro, a necessidade de distinção ou critérios de independência.
Segundo, a de que o financiamento público não deve anular a
independência/autonomia, mas a viabilizar.

Dos músicos que afirmaram nunca ter recebido qualquer tipo de incentivo
público a maioria deles entende que o tipo de música que faz não é interessante
para as empresas bancarem via Mecenato, por exemplo, o que influencia
diretamente nas tentativas mal sucedidas de financiamento estatal indireto. Nesse
sentido, Romulo Fróes (30/4/2015) afirma que talvez o edital não seja pra ele
mesmo, da forma com que foi feita as leis de financiamento. Talvez os
patrocinadores “tenham outro tipo de coisa na cabeça”, explica. Ele acha que um
governo “teria que dá conta mesmo de uma música de invenção porque a música do
entretenimento já está tudo certo. Os caras tem avião, os caras tem agronegócio
bancando eles, tá tudo bem. Agora, o sujeito que faz um disco que se chama
Barulho Feio tem mais dificuldade mesmo”, afirma. Romulo também critica as
recentes ideias de que eles são bancados pela Lei Rouanet, uma vez que ele
mesmo nunca conseguiu um financiamento via tal mecanismo.

Quando se trata de financiamento estatal direto, a frequência de subsídio


ainda é menor, embora com diferenças regionais. Enquanto São Paulo conta com
maiores recursos da Lei Rouanet, com maior quantidade de espaços culturais de
bancos e telefonia, além de um mercado independente mais estruturado, em Recife
o índice de investimento público municipal é mais elevado, chegando, na gestão do
PT, ao recomendado pela UNESCO de 2%. De acordo com a pesquisa do IBGE
(PREFEITURA DO RECIFE, 2008), tendo como ano base 2005, o orçamento da
cultura da Prefeitura do Recife, correspondeu a 3,3% do orçamento geral do
município, ficando em primeiro lugar das capitais brasileiras em investimento público
municipal, resultado que se repetiu em outros anos41. O avanço recifense na matéria

41 O cenário é positivo no que concerne à proliferação das atividades artísticas. Segundo o Plano
Municipal de Cultura da cidade (PREFEITURA DO RECIFE, 2008) nos últimos dois anos, mais de
82% dos municípios pernambucanos realizaram algum festival ou mostra artístico-cultural. Sendo que
em 71 municípios, esses festivais foram de música. Entre os principais eventos musicais realizados
anualmente no Recife, destacam-se: o Carnaval Multicultural do Recife e de Olinda, o Porto Musical,
a Feira Música Brasil, o Abril pro Rock, o São João Multicultural, a Mostra Internacional de Música em
Olinda (MIMO), o Coquetel Molotov, o Festival PE Nação Cultural, o Acordes para o Museu e o
189

de investimento público cultural pode ser notado na iniciativa de 2009 quando a


cidade foi um das primeiras do país a formular o Plano Municipal de Cultura (2009-
2019)42.

Entretanto, nos últimos anos da gestão do PSB no Estado, os


investimentos diretos diminuíram e os equipamentos públicos destinados à cultura
foram sistematicamente sucateados. Em uma região majoritariamente composta por
uma população de baixo poder aquisitivo, a oferta de bens culturais – especialmente
da música – depende de modo mais estreito de eventos apoiados e custeados pelos
governos estaduais e municipais. Os grandes eventos são os que costumam
movimentar a maior parte das verbas públicas. Esse sistema de financiamento está
baseado numa espécie de troca simbólica bastante evidente entre a classe política e
os setores artísticos.

Nos últimos anos, a afirmativa de que o mercado da música no nordeste é


fortemente dependente do financiamento público tem sido bastante relativizada. Isso
porque o principal fundo governamental de financiamento cultural, o Funcultura
(cujos recursos são oriundos parcialmente dos cofres estaduais e da estatal de
energia elétrica do estado, a Celpe) tem minguado seus incentivos. O investimento
do Estado na disponibilização de música gratuita para a população é prerrogativa
constitucional de sua atuação na área cultura e dificilmente pode ser criticado. Essa
atuação precisa sim se direcionar a promoção da diversidade de ofertas, apoiando
setores alijados da produção e circulação mercantil. Mas o que tem ocorrido, na
prática, é muitos casos de trocas eleitoreiras, burocratização do processo e falta de
critérios, o que faz com que poucos artistas cheguem a captar recursos por essa via.
Nesse sentido, a fala de Catarina Lins do Aragão é emblemática:

Olha, se você foge um pouco dessa linguagem que eu chamo até de


bumba-meu-ovo, você não tem acesso. Eu tentei oito editais do

Festival Rec Beat. Segundo levantamento feito por Fabio Cabral (proprietário da loja e selo Passa
Disco, especializada em música pernambucana), no ano de 2014, os músicos que moram no Estado
de Pernambuco lançaram 215 títulos (entre CDs, DVDs, LPs e álbuns virtuais) (OUTROS CRÍTICOS,
2015, p. 1).
42 Enquanto projeto estratégico de gestão, os princípios básicos que orientam suas ações atentam

para a pluralidade, a participação e a valorização da cultura local. Segundo o Plano (PREFETURA


DO RECIFE, 2008, p. 28), uma das diretrizes para que Recife desponte como “capital multicultural” é
a valorização da diversidade e o fortalecimento da democracia cultural, por meio do fortalecimento
dos artistas e grupos locais. No processo de incentivo à cultura, a gestão de trabalho, renda e direitos
dos trabalhadores-artistas é um das diretrizes gerais do Plano Municipal da Cultura do Recife.
190

Funcultura até agora e não consegui me enquadrar em nenhum. O


poder público aqui explora a cultura popular de maneira muito
folclórica e eu acho muito maquiavélico porque ao mesmo que nós
somos o cartão postal nós somos negligenciados. Porque a cultura
popular ela é a forma principal de identificação de um povo. Mas a
burguesia a trata como folclore. Meu trabalho tem mais respaldo
fora... Aqui eu passo muito tempo sem tocar [...] É complicado... Às
vezes eu entro até em crise identidade, sabe? Porque você demanda
tanta energia pra fazer um projeto... O ano passado mesmo eu
cheguei a pontuar 8,4, uma nota ótima, mas aí... É uma coisa
totalmente eleitoreira. Não há uma coerência, um critério, uma
idoneidade... (ARAGÃO, 13/8/2014).

Sobre os gargalos do financiamento público direto em Pernambuco, a


cantora Isaar (25/2/2016) questiona também os problemas de uma dependência do
poder público, na medida em que a política cultural não pensa em promover ações
do mercado musical se auto sustentar, integrando demandas de financiamento com
fortalecimento dos meios de comunicação, por exemplo. Isaar considera importante
e necessário a função do Estado de oferecer subsídios pra o mercado da cultura,
mas isso deve ser melhor articulado em termos fomento à longo prazo. Em suas
palavras:

Não adianta você me dar dinheiro assim sem pensar em como eu


vou fomentar o mercado ao final. Já que o Estado é o cara que tem a
posse da grana, ele tem que pensar nisso também. A gente precisa
de jornalistas e do meio de comunicação a favor de uma cultura. E
que cultura é essa que o Estado tá pensando? Então, eu me
preocupo com isso. Por exemplo: eu fui pra um maracatu rural em
Goiana (interior do Estado) fazer uma participação no show de
Maciel Salu. No outro dia eu escutei umas meninas lá falando assim
‘eu adorei o show, mas não lembro direito do nome do cara’. E se
hoje tu perguntar pra elas, aí é que elas não vão lembrar mesmo.
Então, por que não ter rádios que toquem mais essa pessoa? Porque
o palco é a Prefeitura que tá bancando, a rádio é da Prefeitura.
Então, a Prefeitura tem que ter mais programas de rádios. Tá tudo
interligado. Então, tem que pensar interligado, porque evento é
evento e passa... Então, ah, você quer que o governo te dê sessenta
mil reais pra uma turnê? Quero, claro que eu quero! Mas, assim, eu
quero mais do que isso. Se ele só tiver sessenta mil reais pra me dar,
tudo bem, mas eu preferia que ele tivesse trinta e que tivesse um
desdobramento melhor desse disco ou desse show, sabe? Isso
significa uma preocupação com os meios de comunicação...
(FRANÇA, 25/2/2016).
191

À revelia do Estado, por outro lado, cinco artistas independentes citaram o


recebimento de apoio direto privado em alguma das etapas de produção e/ou
circulação dos seus trabalhos. Esses apoios são desde contratos para a divulgação
de marcas em shows, até o estabelecimento de parcerias diversas com
fornecedores de produtos ― de instrumentos musicais a roupas e tênis, como cita o
músico Rico Dalassam. Finalmente, observa-se a possibilidade de financiamento
colaborativo ou crowdfunding. Trata-se da cooperação na arrecadação de recursos,
tanto financeiros quanto estruturais, e ocorre geralmente por meio da internet. Dos
artistas entrevistados apenas dois afirmaram conseguir recursos por esse meio, Tatá
Aeroplano e Marcelo Segreto43.

Tatá Aeroplano (30/4/2015) explica que realizou um financiamento


colaborativo para o seu primeiro disco e que isso lhe ajudou muito porque foi quando
criou a “conta-disco” para melhor planejamento e controle de seus gastos. Com o
financiamento coletivo, Otávio conseguiu o montante de R$ 12.000.00, lançou o
primeiro disco em CD e vinil e junto com uma parte dos shows e discotecagem já
alavancou a gravação do seu segundo disco. Apesar de destacar o grande trabalho
de administrar um financiamento deste tipo, Otávio acha que valeu a pena porque
deu partida e, como consequência, girou sua economia.

De acordo com as entrevistas realizadas nesta pesquisa é possível


concluir que a proposição neoliberal que coloca a cultura como um bom negócio
trouxe significativa redução de políticas públicas voltadas ao setor e apresentou
como modelo para o desenvolvimento da cultura a participação de empresas 44 por

43 Qualquer pessoa que tenha uma ideia de projeto pode cadastrá-la em um site de financiamento
coletivo, estipular uma quantia de dinheiro exigida para viabilizá-la e um prazo para a verba ser
arrecada. Embora na Europa e nos Estados Unidos esse tipo de atividade venha se tornando comum,
no Brasil o financiamento colaborativo ainda se desenvolve de forma tímida e está extremamente
longe de se constituir uma realidade palpável para a maioria dos artistas independentes. No site mais
conhecido no Brasil especializado em crowdfunding para música, o embolacha.com.br, até 2016, 15
projetos tinham sido realizados com sucesso, enquanto outros 5 estavam em andamento. Já no site
catarse.com, destacado por trabalhar com diversas linguagens de financiamento colaborativo, até
2006 havia 184 projetos em andamento, dos quais 27 eram de músicas (setor que só perde para o
cinema e vídeo com 38 projetos).
44 Quando se trata de constatar a atuação corporativa no trabalho artístico, destaca-se sua influência

em todas as fases da cadeia econômica, desde os editais de financiamento que atuam sobre a
produção e disseminação das atividades, até o patrocínio de festivais e os prêmios empresariais. São
indicativos do avanço dessa lógica os principais festivais de música hoje, como, por exemplo, Music
Festival Red bull, Natura Musical, Jack Daniel´s Festival, Oi Música, Tim Festival e Vivo Music
192

meio da lógica de patrocínio com contrapartidas fiscais. Nesse contexto, a discussão


sobre políticas públicas diretas e direito à cultura resta prejudicada. A própria
inserção dos artistas em discussões sobre políticas de incentivo e suas crenças nos
órgãos de representações são de baixa intensidade.

Quando perguntados sobre a integração em algum movimento ou fórum


de discussão que debata a política cultural municipal, estadual ou federal acentuam-
se, de forma geral, as críticas dos músicos quanto às políticas de incentivo, ao
mesmo tempo em que se observa uma dispersão política nesse tipo de demanda.
Isso porque a maior parte dos entrevistados afirma que procura se manter longe de
conflitos nesse sentido, até para que não haja represálias de não concessão de
incentivos. Tiago Andrade (21/7/2014), por exemplo, reconhece que anda bem
afastado dessas discussões: “Eu já quebrei muito a cara e procuro não levantar
bandeira. Tenho muito medo de levantar essas bandeiras porque corre o risco de
ser mal interpretado”.

De forma semelhante, a declaração de Alessandra Leão merece destaque


por problematizar o tipo de reflexão proposta pela maioria dos coletivos que pensam
a cultura no Estado de Pernambuco. A cantora e compositora afirma que já se
envolveu em comissões setoriais, já fundou uma cooperativa, mas que desencantou
desses processos políticos. “Porque fica um pensamento de ‘a cooperativa é só pra
passar nota’... É um pensamento muito micro... Um pensamento do seu umbigo”.
Alessandra afirma que o fato de um grupo de músicos conseguir trabalhar no
carnaval, por exemplo, não quer dizer que o cenário seja bom. Afinal o que fica
depois do carnaval? Isso estruturou o mercado? As orquestras de frevo e os blocos
têm atividades o resto do ano? pergunta Alessandra (LEÃO, 2/9/2014).

E também que disparidade é essa? Precisa que eu tenha direito a


um camarim minimamente decente e o maracatu receba de lanche
meio pão com queijo? Porque essa é a realidade! Precisa ser assim?
Aí eu não vejo essa reflexão nos coletivos cults da cidade! Eu não
vejo essa reflexão entre a gente! Eu não vejo esse incômodo na
verdade. De você vê o outro nessas condições e achar que tá tudo
bem porque você tá fazendo dois, três shows no carnaval esse ano...
E você depois pode tocar fora daqui durante o ano, ir pra São Paulo,

Festival. Já nos prêmios de destaque empresarial da música citam-se o Prêmio da Música Brasileira,
patrocinado pela Vale do Rio Doce; o Prêmio Shell de Música; e o Prêmio Multishow de Música
Brasileira, este último vinculado às Organizações Globo.
193

pro Rio... você se mantém e pronto. [...] Então hoje eu não acredito
mais nesse coletivo, nessa cena como um bloco ou como um grupo
que tenha uma decisão... (LEÃO, 2/9/2014)

O músico Romulo Fróes (30/4/2015), por sua vez, mesmo achando que é
preciso repensar as instituições e a própria noção de independência nas políticas
públicas culturais, afirma ter “uma certa preguiça” de participar de movimentos e
encontros políticos a que é constantemente chamado.

Eu tenho um pouco de preguiça porque eu acho que demanda uma


coisa muito grande de você, você tem que tá ligado, você tem que
virar um cara político mesmo, virar sua vida pra isso, e articulação e
num sei quê... E eu quero fazer meus discos, sabe? Eu quero é
gravar meus discos. Dou todo apoio, acompanho, quando precisa
muito eu vou lá e tô junto, mas o acompanhamento mesmo... tem
gente muito mais capacitada do que eu fazendo, tá sendo feito. E eu
acho muito importante, tem muita gente legal tentando repensar o
meio da música de novo. Da minha parte o que eu faço pra contribuir
com isso é continuar lançando discos (FRÓES, 30/4/2015).

A oposição entre arte e política que é evidente da fala de Romulo Froés


também é encontrada no depoimento de outros músicos. Isaar acredita que a
política cultural precisa melhorar mas, ao mesmo tempo, afirma que não vai tomar à
frente do Sindicato, assim como não cobra que nenhum músico tome à frente,
porque “eu escolhi cantar, entendeu?”. A cantora e compositora complementa: “Tem
gente que faz: ‘ah, os músicos são desorganizados’. Por que a gente não se
organiza? Mas isso demanda uma outra lógica. Eu acho importante... teve uma
época que teve gente querendo participar do Sindicato e eu: ‘vamo lá; vai nessa; tô
aí’; se precisar que eu assine, eu assino! Mas, poxa, assim, de levantar a bandeira,
eu não tenho esse feeling” (FRANÇA, 25/2/2016).

Em contrapartida, outros artistas entrevistados afirmam fazer questão de


se inserir nos debates acerca da política cultural. Anna Tréa é parte de um coletivo
de músicos em São Paulo, chamado “Rejunte”, o qual discute maneiras de ocupar a
cidade de forma cultural e criando um diálogo com o poder público. O
pernambucano Gilú Amaral, por seu turno, participa de um fórum de música em
194

Recife e acha que a sua geração precisa se engajar nas discussões acerca da
política cultural, em sindicatos, estipular cachês, condições de trabalho, cobrar
transparência, eficiência e atualizações na arrecadação e distribuição de direitos
autorais.

Quando se trata de avaliar os órgãos de representação, embora a


totalidade dos entrevistados esteja escrita na OMB, todos eles criticam o modo de
funcionamento da instituição. Os músicos entendem que a OMB foi criada com a
finalidade de exercer a seleção, disciplina, a defesa e a fiscalização do exercício da
profissão do músico, mas apenas exerce a última finalidade. A função de defesa da
classe musical, talvez a mais importante, não é praticada. Nesse sentido, Anna Tréa
afirma que não consegue entender em que parte está a sua proteção 45. “Como é
que a OMB me resguarda? Eu trabalho pela sociedade. Me dedico tanto à
sociedade e me sinto, sempre, tão insegura. Trabalho muito! Mas tenho a
consciência de que se eu quebrar o pé, se alguma coisa acontecer, eu tô frita por
um tempo né?” (TRÉA, 12/2/2016).

Os depoimentos abaixo reiteram os questionamentos acerca das funções


da OMB, sobretudo de proteção e salvaguarda da categoria, assim como a
obrigatoriedade dos registros na Ordem para o exercício profissional. Observam-se,
especialmente nos últimos anos, inúmeros processos contra essa instituição. Em
vários Tribunais a obrigatoriedade da inscrição na OMB para realização da atividade
musical vem sendo questionada e dispensada46. Dos 22 artistas entrevistados, oito
deles possuem liminar para não ser preciso usar a OMB na prática profissional.

45 A propósito de causas trabalhistas promovidas pelos músicos pesquisados por Juliana Coli contra a
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, é importante destacar que, segundo os entrevistados
por Coli (2006, p. 204), a OMB tem se mostrado absolutamente negligente na proteção e
representação de sua categoria.
46 No site <<http://p2.forumforfree.com/196>> que promove a discussão onde se questiona a utilidade

e a necessidade da OMB foi publicada a seguinte ementa de julgamento sobre a obrigatoriedade de


registro profissional para o exercício da função de músico do Tribunal Federal da 4ª Região: “1. A
Constituição Federal de 1988 garante o direito à livre expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (Art. 5º, IX); 2. É consabido
que a atividade artística, mormente a musical, não depende de qualificação legalmente exigida,
mesmo quando exercida em caráter profissional, em virtude do seu exercício ser desprovido de
potencial lesivo à sociedade, não acarretando qualquer prejuízo a direito de outrem; 3. Descabida a
obrigatoriedade, para que o músico profissional possa apresentar-se publicamente, da inscrição no
Conselho Regional da Ordem dos Músicos do Brasil, contida no Art. 16 da Lei 3.857/60; 4. Apelação
provida. (TRF 4ª R. – MAS 2002.72.00.003550-9 – 1ª T. – Rel. Des. Fed. Wellington M. de Almeida –
DJU 04.05.2005)”.
195

Pra mim a OMB não tem função nenhuma. Um órgão como a OMB
teria uma importância grande se tivesse uma aposentadoria, se
tivesse desconto nos equipamentos, nos instrumentos, plano de
saúde... Você só tem ônus, você não tem bônus nenhum
(ANDRADE, 21/7/2014).

A OMB... Nossa, como é difícil de avaliar aquilo dali, viu? A OMB é


um negócio que não precisava. Não precisava não... A OMB no
fundamento dela, talvez na constituição dela, nas regras que tão ali,
no regimento... Talvez funcionasse bem melhor. Pra quê existe
OMB? Por que OMB? Alguém me dê uma justificativa concreta... Por
que eu pago a OMB todo ano? Que retorno é esse? E hoje na
verdade a único lugar que eu vejo pedir a OMB é o SESC-SP. Mais
nenhum no Brasil... Até agora ninguém me pede OMB, nunca me
pediu em canto nenhum. Então eu acho que é um caminho que vai
chegar... Um momento que a gente vai conseguir se organizar e todo
mundo tem liminar... (LEÃO, 2/9/2014).

Em relação aos órgãos de representação de direitos autorais e os que lhe


são conexos, as entrevistas reiteraram estudo próprio (CERQUEIRA, 2013) que
concluiu que tais mecanismos não fazem parte dos rendimentos dos músicos a
ponto de serem tidos como paradigmas remuneratórios. De forma consensual as
críticas ao ECAD e a UBC tocam principalmente na falta de transparência na
distribuição dos recursos: “O ECAD dá pouca satisfação sobre quanto é arrecado e
como são distribuídos os recursos”, resume Felipe Cordeiro (14/4/2015). O que se
perde no caminho dessa arrecadação e distribuição é a grande questão levantada
pelos músicos que não defendem a extinção do ECAD, por exemplo, mas a revisão
de seus mecanismos de funcionamento. Nesse sentido, Romulo Fróes (30/4/2015)
entende que é preciso ter instituições, mas que também é preciso repensar as
instituições. Ele não é contra o ECAD, afinal “é o ECAD que me dá uma grana.
Pouca e de vez em quando”, afirma, mas é absolutamente a favor de repensar o
órgão.

VI.III Independência e políticas públicas

Em um contexto no qual o Estado se isenta progressivamente do seu


papel de garantidor de direitos, o mercado é oferecido como uma instância substituta
196

para a cidadania. Tornar-se empreendedor cultural passar a significar a integração


individual ao mercado. Essa integração é realizada de forma bastante desigual,
principalmente se for levada em conta as especificidades dos interesses
empresariais. Esses mecanismos de financiamento, por sua vez, frequentemente
são colocados de forma insuspeita, sob a justificativa de uma gestão pública eficaz.
A ausência do debate sobre as causas de desigualdades nas políticas culturais,
contudo, remete a uma larga e difícil agenda cultural e política.

Nesse contexto, para que as políticas públicas culturais possam se


contrapor à hegemonia neoliberal e seus efeitos de aprofundamento das
desigualdades, de consolidação do mercado e do interesse privado, torna-se
essencial uma reflexão acerca da partilha efetiva dos recursos e dos poderes, de
forma a propiciar a participação política dos grupos tradicionalmente considerados
objeto do desenvolvimento que devem tornar-se sujeito desse processo. Nessa
dinâmica, embora as novas tecnologias engendrarem novas sociabilidades,
alterando a correlação de forças no processo de comunicação, tão importante
quanto considerar a complexidade da era digital é sustentar a existência de políticas
públicas capazes de evitar monopólios.

Quando se analisa o mercado de música no Brasil, são observados


diferentes arranjos sobre os quais pode ser identificado o emblema do artista
“independente” na economia contemporânea, sendo as mais comuns aquela que
exclui o capital internacional e a que define a independência a partir da autonomia
econômica em relação ao Estado, ao adotar sistemas de financiamento alternativo
que não as leis de incentivo público. Desses arranjos, contudo, qual pode ser tido
como critério de política pública, no sentido de descentralizar a produção e a
distribuição dos recursos culturais? O primeiro critério faz sentido em uma
econômica estadunidense, tendo pouca relação com as distinções do mercado
nacional. O segundo critério, por sua vez, e conforme enfatizado por muitos dos
entrevistados, seria o ideal para um produto com grande apelo comercial, mas que
não configura a realidade dos músicos independentes. Além disso, segundo Yuri
Rabid (13/7/2014) “O independente vai significar ser sempre aquele à margem do
dinheiro público? Mas que conveniente para as políticas públicas...”.
197

Excluindo o capital internacional, cumpre realizar as especificações do


mercado nacional. Evidentemente é possível identificar grandes gravadoras
nacionais, assim como pequenos e médios produtores que atuam de forma
terceirizada, estabelecendo parcerias com gravadoras nacionais de grande porte e
majors. E, finalmente, produtores autônomos, que realizam todos os processos de
produção, distribuição e promoção. O pressuposto conceitual desta pesquisa parte
dessa última definição por entender que apenas com prioridades de recursos para
esse tipo novo de independência é possível realizar a descentralização dos recursos
culturais, a partir de critérios claramente definidos.

Ao estabelecer uma tipologia tão detalhada para os independentes não


se busca nublar o complexo universo das economias musicais contemporâneas e
seus diversos arranjos, engessando uma realidade que é fluida. Mas, sim, apostar
em uma redefinição de fronteiras e na criação de uma tipologia útil às políticas
públicas. Porque se o independente não depende mais de um atravessador, ele
continua dependendo de várias estruturas, sobretudo econômicas e políticas que se
sobrepõem no atual modelo de indústrias culturais, rearranjando hierarquias. Nessa
direção, é preciso revalorizar o Estado como suporte de políticas públicas culturais
democráticas. As frentes do Estado na gestão nacional da cultural passam, então,
pela atribuição de responsabilidades típicas, das quais se inclui o incentivo direito e
de forma principal aos artistas que realizam todos os processos de trabalho de forma
independente ou autônoma.
198

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da pesquisa realizada é possível concluir algumas premissas


gerais. A primeira delas é que a atividade musical independente, apesar de
apresentar particularidades analíticas, constitui um âmbito privilegiado para abordar
os processos de reestruturações produtivas do capital e as configurações do
trabalho artístico. A ideia de independência na música é fortemente ligada ao
desenvolvimento dos processos produtivos e distributivos e as tecnologias da
informação e da comunicação. Esses processos não são uma novidade. A
historicidade da indústria fonográfica brasileira aponta os marcos do caminho que
nas últimas décadas trouxe à tona o perfil de músico-mediador entre arte e técnica.
São fortalecidas e diversificadas as cenas autônomas dos mais variados estilos
musicais, sem que todas elas sejam consideradas independentes pela mídia e
festivais especializados.

Na esteira do mercado e da economia fonográfica, duas grandes fases do


movimento de reorganização da indústria da música brasileira, convivem ainda hoje.
A primeira, entre 1980 e 1990, realiza a terceirização produtiva. Os músicos passam
a atuar de forma autônoma em relação à produção, especificamente. Sob sua
responsabilidade está a minimização dos riscos e custos assumidos pelas grandes
gravadoras, assim como o papel de descobrir “talentos”. Intensificam-se os contratos
apenas de distribuição com as majors, consolidando relações de
complementariedade. A partir dos anos 2000 a mesma tecnologia que assegura a
reorganização da produção traz a dificuldade de controle das grandes gravadoras na
concentração da distribuição. Acentua-se um tipo de independência e/ou autonomia
de toda a cadeia produtiva da música assente no tripé produção – distribuição –
consumo/promoção.

A partir dessas constatações e no intuito de entender a vivência do


trabalho artístico nesse contexto, foram definidas as características que uniram os
músicos entrevistados: viver exclusivamente ou prioritariamente de música; realizar
os processos de produção – distribuição – consumo/promoção de forma autônoma
às gravadoras/distribuidoras, ou seja, sem intermediários; consagração em mídias e
199

festivais especializados que se denominam “independentes”. Mesmo com essa


orientação de seleção observou-se uma grande variação na própria narrativa dos
artistas quanto aos aspectos distintivos do que seria um músico independente hoje.
São as principais: a) oposição às majors (independente de capital internacional); b)
financiamento não estatal (independente de financiamento público); c) aura cult
(independente de estética massiva ou de mídias tradicionais). O ponto de
intersecção de todos eles se encontra, de forma geral, na autonomia econômica e
na autogestão da carreira que desembocam no empresariamento de si mesmo.

A partir do segundo capítulo é possível analisar as ideias que


configuraram o “gênio criador” para observar que os mecanismos que fazem
aparecer ou celebrar “talentos” estão relacionados às estruturas familiares
financeiras e/ou artísticas, assim como raça, gênero, idade, região e formação.
Compreender interseccionalidades entre classe, raça e gênero no universo do
trabalho artístico ajudou a entender as diferentes trajetórias narradas. Na amostra
desta pesquisa, em termos de estratificação de classe, a maioria dos entrevistados
se declararam privilegiados em termos econômicos e/ou estão inseridos em famílias
de históricos artísticos. Dos 22 artistas, 15 são homens (dos quais três se declaram
negros) e sete são mulheres (das quais quatro se declaram negras - três são mães).
Têm, em sua maioria, menos de 40 anos, estão predominantemente em São Paulo e
se inscrevem no ensino superior (completo ou incompleto), quase sempre
relacionado à área musical ou artística em geral. Além disso, os resultados apontam
para um baixo nível de filiação sindical e/ou de organizações políticas.

O fato da amostra desta pesquisa, assim estruturada, ser parte da “nova


cena independente brasileira”, suscitaram muitas questões ao longo das entrevistas
e reiteraram correlações entre classe, raça e gênero enquanto componentes de uma
totalidade que definem espaços, posições e práticas sociais de homens e mulheres
no mercado de trabalho artístico. Nas diferentes trajetórias alcançadas, uma
condição aparece compartilhada por grande parte dos músicos: a dificuldade de
construir uma identidade profissional e a procura de trabalho no campo artístico.
Contudo, para os homens brancos e de família economicamente estáveis e/ou
artística, a dificuldade em se assumir músico se presenta de forma mais sutil em
suas narrativas. São os artistas negros que mais destacam a dificuldade em se
assumir artista e de lidar com as inseguranças dessa profissão, porque são também
200

a maior parte da amostra que não vem de família privilegiada, ao mesmo tempo em
que são os que mais contam com formação superior na área artística e fora dela.

Nesse contexto, Angela Davis (2016, p. 12) já afirmava “é preciso


compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa classe. E
gênero informa a classe”. Nas narrativas das mulheres observaram-se os
cruzamentos de uma dupla existência: ser mulher e ser artista. Assim, Alessandra
Leão, por exemplo, quando se tornou mãe, interrompeu seu trabalho como cantora
(seu marido, que também artista, continuou). Juçara Marçal, por sua vez, por ser
mulher, artista, negra e não vir de família economicamente estável, aos 52 anos no
momento da entrevista, constitui o emblema da intersecionalidade desta pesquisa.
Sua trajetória é permeada pela negação da insegurança que representa a vida
artística e a busca da estabilidade econômica, por meio de um alto grau de formação
acadêmica.

Dessa maneira, embora seja constatada uma variação mais ou menos


homogênea em termos de classe, formação, gênero, etnia, região e idade na
caracterização do independente conforme categorizado pela mídia e festivais
especializados (e seu atributo cult), heterogeneidades e dissidências também fazem
parte de boa parte da amostra, de forma que o cruzamento desses dados revelam
importantes aspectos do trabalho artístico. No caso desta pesquisa, o independente
se dá por meio de um perfil jovem, de estrato de classe privilegiado, masculino,
branco, geograficamente localizado e com nível de escolaridade elevada em relação
ao restante da população. Quando se trata das trajetórias das famílias não
privilegiadas, negras e/ou de artistas mulheres as dificuldades, percalços e
descréditos da atividade artística se sobrepõem e se desdobram, demandando,
frequentemente, mais trabalho e mais formação.

As condições estruturais que informam o retrato sociológico do artista


expõem o movimento de emergência da cultura e de suas atividades, no contexto de
uma “nova economia”, hipoteticamente centrada no imaterial. É possível perceber
como a superestimação do poder da técnica comparece com força no debate
contemporâneo do trabalho imaterial. Ainda que as teorizações neomarxistas sobre
trabalho imaterial informem importantes dimensões da reestruturação produtiva e as
mutabilidades do capitalismo contemporâneo, pouco acrescenta na análise das
201

condições do trabalho artístico. Afinal, a noção de imaterialidade pode estar


impressa na exterioridade de produtos e serviços, mas nada esclarecem sobre as
particularidades da lógica material de sua realização. Além disso, a tecnologia
comunicativa altera modos de atividades, mas não pode ser tida como processos
sociais centrais na análise do trabalho, uma vez que, por si só, não elucidam e nem
determinam a especificidade do trabalho artístico.

Por isso, a ênfase desta pesquisa recai sobre o esforço teórico em


aprofundar os sentidos do trabalho artístico, para além das teorias neomarxistas que
focam na centralidade do imaterial, mas, sim, a partir do arcabouço analítico
marxiano do trabalho. No âmbito da reestruturação produtiva tal esforço se traduz na
tentativa de compreender as novas estratégias de racionalização do capital que não
se explicam (somente) por seu resultado imaterial, mas por sua produtividade,
reflexo das condições objetivas e materiais de sua realização. Diante dos paradoxos
da atividade artística é possível perceber que, menos do que qualquer outro campo
de atividade, o campo da arte não é uma exceção às leis do mundo político e
econômico. Na verdade, as análises sobre trabalho artístico representam e
reconfiguram com mais intensidade muitas das ambiguidades presentes no mundo
do trabalho contemporâneo.

As especificidades desse tipo de atividade, frequentemente relacionadas


a termos como criatividade e autonomia, se traduzem em múltiplas facetas de
precarização, tendo em vista o seu caráter de protótipo de insegurança, incerteza,
flexibilidade, informalidade, heterogeneidade e polivalência no mercado de trabalho.
Nesse contexto e diante das narrativas dos músicos entrevistados, falas de
autolouvor e de valorização se misturam ao reconhecimento das consequências de
processos estruturais. Constata-se que, muitas vezes, os artistas se sentem
“diferenciados” de outros trabalhadores, mesmo afirmando condições de
precariedade, enquanto produto de um contexto contraditório.

Nos relatos dos músicos é possível identificar, tanto as seduções da


independência no mercado de trabalho não tradicional (valorização da autonomia,
da responsabilidade, da criatividade), quanto as ameaças da efemeridade dessa
atividade (banalização remuneratória e respectivos riscos), em um ambiente de
grande fragmentação do trabalho, variabilidade e especialização crescente das
202

competências exigidas. Por um lado, a atividade artística assenta-se no alto grau de


envolvimento dos meios pessoais (esforço, energia, conhecimento) e coletivos
(equipamentos, financiamentos, trocas entre pares). Por outro lado, os meios de
criatividade não podem ser mobilizados a não ser ao preço de uma intensidade do
esforço e motivação. Nesse contexto, é preciso destacar, ainda, um conjunto de
gratificações não monetárias – gratificações psicológicas e sociais, fraca rotinização
de tarefas etc. – que promete compensar provisória ou duradouramente ganhos
insuficientes em dinheiro.

A pesquisa constata que, embora a internet seja o meio mais usado pelos
músicos que se compreendem como independentes para distribuírem e promoverem
suas músicas, não há uma dispensabilidade dos meios tradicionais – rádio e TV – na
dinâmica dos seus trabalhos. Pelo contrário, além dos limites da internet em relação
à remuneração do músico e alcance de público, há uma enorme lacuna no gargalo
da distribuição, fortemente monopolizada por uma indústria não mais fonográfica,
mas da música, a qual não está propriamente em crise, mas que reconfigura o
tempo todo o seu poder de articulação no sentido de manter e fortalecer os seus
oligopólios.

No que toca a distribuição e promoção, embora brechas se abram e se


alarguem para atuações autônomas, o mercado musical permanece bastante
concentrado nas mãos de poucas empresas. A reorganização permanente das
indústrias do entretenimento retrata que hoje, mesmo com o aumento do número de
músicos independentes, apenas cinco conglomerados ficam com mais de dois
terços de todo o faturamento do mercado da música. Em paralelo a esse poder de
adaptação da indústria que renova os seus mecanismos de concentração, surgem e
resistem espaços de mobilização alternativos e/ou independentes que sugerem todo
um campo de atuação do poder público na divulgação da cultura, que extrapole os
circuitos da internet.

O desenvolvimento das tecnologias da comunicação e da informação ao


mesmo tempo em que reconfigura a mediação da arte e técnica também reajusta a
comunicação entre artista e público. Nesse sentido, a amostra desta pesquisa
também revela outro dado importante do campo musical brasileiro: o caráter cult das
produções frequentemente denominadas de independentes pela mídia e espaços de
203

consagração. Na verdade, na conceituação que parte da autonomia econômica


poderiam se incluir fenômenos musicais populares, como o tecnobrega, o rap ou o
funk, por exemplo, já que são produzidos fora das estruturas das grandes
gravadoras. No entanto, a definição do que faz parte ou não de uma cena
independente é relacionada a critérios (também) estéticos. Isso indica que na
conceituação dos independentes estão em jogos agentes de um universo simbólico
muito determinado, tanto produtor quanto receptor. A propósito, destaca-se o lugar
de fala da própria pesquisadora, branca, mulher e de classe média.

Noções como sujeito criativo, autonomia e independência se


reconceitualizam sob a lógica do livre mercado, em um cenário construído por
paródias em que a liberdade do indivíduo opera novos modelos de dominação e
exploração. O significado dessas configurações e suas ambiguidades podem ser
observadas pelo cotidiano de trabalho dos artistas-quase-firmas que realizam e
acumulam os seguimentos básicos de criação, difusão e organização. Em meio à
corrida de editais e patrocínios, o artista é chamado a comportar-se como
empresário da sua própria carreira, um portfólio worker.

A situação de precarização do artista que se vê e se entende como


empresário significa não apenas gravar suas músicas, procurar fazer muitos shows e
estar ativo no circuito considerado independente. Na nova cadeia da música, o
artista é o responsável por pensar como um empresário, no sentido de articular as
possibilidades de sua carreira artística diante da demanda colocada pelos mercados
em desenvolvimento. “Tocar o negócio” significa, portanto, habilidades de
relacionamento, comunicação e organização. Contato com contratantes, envio de
material para imprensa, alimentação de redes sociais, administração do caixa,
planejamento e avaliação dos resultados alcançados são exemplos das novas
frentes de atuação do músico independente hoje, o qual assume a execução, a
comercialização e o gerenciamento da sua própria carreira.

A noção de empreendedorismo não deteriora a hegemonia do capital na


produção e circulação cultural, senão a revitaliza, sob a aparência de se manter
longe dela, no marco de um capitalismo que apela para noções de criatividade,
inovação e autonomia. Essas noções tem alimentado a ideia do músico enquanto
administrador e também patrocinador do seu próprio trabalho. A apelação para
204

essas ideias se alojam de forma central nas indústrias culturais e/ou criativas e
assistem a um avanço do capital sob o trabalho de forma sofisticada e sem
precedentes. Nesse contexto, a constituição do trabalhador da cultura como
empreendedor faz parte da invizibilização do conflito entre capital e trabalho, cujo
caráter laboral se dilui simbolicamente, constituindo o artista independente um
precário de luxo por excelência ou, ainda, parte de uma precari-burguesia
contemporânea.

O perfil empreendedor nas atividades artísticas também informam


importantes aspectos da regionalização da produção considerada independente
hoje. Dos 22 músicos entrevistados, 12 mantêm residência em São Paulo, dos quais
apenas cinco são originalmente paulistanos. Diante das narrativas dos artistas
entrevistados, muitos fatores podem ser citados para informar as especificidades
regionais. Essas especificidades, por sua vez, não indicam uma oposição, mas
muitas vezes uma relação de complementariedade, sobretudo quando observados
os trânsitos artísticos migratórios. Enquanto Recife se caracteriza pelos
investimentos municipais e estaduais diretos (os quais diminuem a cada ano e se
concentram no ciclo de festas), São Paulo se destaca pela predominância dos
investimentos federais na forma de Mecenato e pelo domínio de pesquisas acerca
da produção e gestão cultural.

Além disso, em São Paulo, as especificidades mercadológicas contribuem


para a afirmação de oportunidades especialmente privilegiadas no que se refere ao
desenvolvimento, sustentabilidade e repercussão de trabalhos musicais
independentes. Na fala dos artistas entrevistados podem-se resumir os seguintes
fatores: a) significativo circuito de casas noturnas e espaços de shows voltados a
públicos segmentados interessados nas propostas de músicos independentes; b)
conjunto importante de equipamentos e instituições culturais, entre os quais destaca-
se o SESC; c) canais tradicionais de mídias sediados na cidade, com espaços e
programas voltados à cobertura especializada desta cena, como jornais, revistas e
programas de rádio e TV; e d) concentração em uma região territorial específica da
cidade de bares, casas noturnas, estúdios, gravadoras, lojas de instrumentos,
residência de artistas, jornalistas e produtores culturais.
205

No último capítulo desta pesquisa a trajetória histórica das políticas


culturais informa a escolha da atuação neoliberal na gestão cultural no presente,
cuja predominância dos incentivos fiscais via Mecenato desenham a privatização, a
concentração e a tecnocracia dos recursos. Há três forças sociais protagonistas
nesse processo que pode ser definidas com base no trabalho da pesquisadora
taiwanesa Chin Tao Wu (2006): a sociedade política, representante do Estado, como
parte do poder político; uma parcela da sociedade civil de origem burguesa
responsável pela gestão dos equipamentos públicos, que constitui o poder
simbólico; e as empresas e grandes corporações que financiam as ações culturais
públicas por meio do mecanismo de renúncia fiscal e/ou patrocínio, representantes
do poder corporativo.

Nessa cadeia de relações, o Estado opera uma significativa redução de


gastos diretos, apresenta resultados quantitativos baseados no princípio da
competição, ao mesmo tempo em que se apressa em buscar prestígio social diante
do cidadão-cliente. Para as empresas, há a possibilidade de agir como instituições
ideologicamente eficientes, cujo status e autoridade foram cedidos pelos espaços
públicos por eles administrados. Após anos de consolidação de privatização da
cultura, em um contexto no qual o Estado se isenta progressivamente do seu papel
de garantidor de direitos, o mercado é oferecido como uma instância substituta para
a cidadania. Tornar-se empreendedor cultural passar a significar a integração
individual ao mercado. Essa integração, contudo, é realizada de forma bastante
desigual, principalmente se for levada em conta as especificidades dos interesses
empresariais. Os inúmeros depoimentos desta pesquisa evidenciam os equívocos
que ocorrem quando o Estado deixam decisões de políticas públicas nas mãos de
setores do marketing das empresas. Acentua-se o crescimento do mercado de
editais e gestores especializados, cujos projetos ficam incomodamente dependentes
do capital de relações sociais de cada agente criador ou de cada instituição
específica.

Diante desta pesquisa, é possível afirmar que os músicos considerados


independentes pela mídia e festivais especializados constituem apenas uma parte
muito restrita de um universo, relacionada, sobretudo, a uma fração de classe
dominante e privilegiada, em razão de um capital cultural específico, que também é
econômico. A grande indústria convive com essa fração de independência formada
206

por essa classe média branca de músicos autônomos, cujo contexto de retirada do
Estado tem levado a um empreendedorismo precário. Embora a imagem do artista
possa se aproximar da imagem do herói, a modernidade heroica tem se revelado
como tragédia em que o papel do artista está disponível.

Os artistas independentes dependem de muitas coisas, entre elas,


dependem dos outros independentes. Dependem, por exemplo, dos organizadores
de festivais independentes, dependem da internet, dependem dos meios tradicionais
de comunicação, dependem dos donos de pequenos e médios estúdios, dependem
de editais públicos de incentivo à cultura, dependem de sites de financiamento
coletivo, dependem de jornalistas e formadores de opinião, dependem de curadores
e programadores de casas de shows, dependem, em última instância, de um
conceito.

As possibilidades abertas pelo desenvolvimento das tecnologias da


informação e da comunicação se restringem a um universo muito específico da
produção e recepção cultural. Nesse contexto, um número reduzido de corporações
ainda assume o protagonismo mercadológico do ambiente cultural, mesmo com
inúmeros trabalhadores da cultura estruturando suas atividades de forma
independente dessas corporações. O fato da atividade cultural, cada vez mais
presente no mundo contemporâneo, não ser entendida e nem tensionada como
trabalho corrobora para a configuração do trabalho artístico como laboratório de
flexibilidade em uma economia política das incertezas, cujas representações de
independência evidenciam as práticas de precariedade. Todos esses fatores são
indicativos da necessidade de buscar e revalorizar o Estado como suporte das
políticas públicas culturais.

As frentes do Estado na gestão nacional da cultural passam, então, pela


atribuição de suas responsabilidades típicas. No que toca ao trabalho artístico,
algumas frentes se tornam mais urgentes, as quais se inclui o fomento à pesquisa
no campo do trabalho cultural; a manutenção, fortalecimento e profissionalização
dos quadros e recursos destinados à cultura; o fim dos oligopólios e monopólios de
mídia tradicionais; o incentivo direito e de forma principal aos artistas que realizam
todos os processos de trabalho de forma autônoma. Esta pesquisa aposta, em
última instância, na criação de uma tipologia de independência/autonomia útil às
207

políticas públicas. Com a prioridade de recursos para esse tipo novo de


independência é possível realizar a descentralização dos recursos e promover a
diversidade cultural, a partir de critérios nitidamente definidos, em que os direitos
culturais são integrados, necessariamente, aos direitos econômicos.
208

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Entrevistas realizadas

AEROPLANO, Tatá (Otávio). Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de


Cerqueira. São Paulo, 30/4/2015.
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AMARAL, Gilberto (Gilú). Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira.


Recife, 12/11/2014.

ANDRADE, Tiago. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira.


Recife, 21/7/2014.

ARAGÃO, Catarina Lins do. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de


Cerqueira. Recife, 13/8/2014.

CASTRO, Marcia. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira. São


Paulo, 5/5/2015.

CATATAU, Fernando. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira.


São Paulo, 10/9/2015.

CORDEIRO, Felipe. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira. São


Paulo, 14/4/2015.

DALASSAM, Rico (Ricardo Silva). Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de


Cerqueira. São Paulo, 15/6/2016.

FRANÇA, Isaar. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira. Recife,


25/2/2016.

FRÓES, Romulo. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira. São


Paulo, 30/4/2015.

GILA, Hugo. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira. Recife,


13/8/2014.

JOSÉ, Missionário (José Guilherme Lima). Entrevista concedida a Amanda P.


Coutinho de Cerqueira. São Paulo, 2/9/2015.

LEÃO, Alessandra. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira.


Recife, 2/9/2014.

LIMA, Caio. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira. Recife,


4/3/2016.

MAITA, Luisa. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira. São Paulo,


218

13/4/2015.

MARÇAL, Juçara. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira. São


Paulo, 7/5/2015.

RABID, Yuri. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira. Recife,


13/7/2014.

SEGRETO, Marcelo. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira. São


Paulo, 14/4/2015.

SILVA, Cleyton José da (Guitinho). Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de


Cerqueira. Recife, 29/2/2016.

SOUZA, Angelo (Graxa). Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira.


Recife, 26/2/2016.

TRÉA, Anna. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira. Recife,


12/2/2016.

TRUMMER, Fábio. Entrevista concedida a Amanda P. Coutinho de Cerqueira.


Recife, 6/9/2014.

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