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SOCIOPOLÍTICA DA SAÚDE: A importância do SUS em época de instabilidade

© 2020 Copyright by Izabelle Mont’Alverne Napoleão Albuquerque


e Percy Antonio Galimbertti (Orgs.)

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Universidade Estadual Vale do Acaraú
Sistema de Bibliotecas
Bibliotecário: Francisco Ramos Madeiro Neto - CRB 3/1374

A345s Albuquerque, Izabelle Mont’Alverne Napoleão


Sociopolítica da saúde: a importância do SUS em época de
instabilidade. [recurso eletrônico] / Izabelle Mont’alverne Napoleão
Albuquerque; Percy Antonio Galimbertti.
(orgs.) – Sobral, 2021.
364 p.
E-Book: PDF: 5000 kbytes
ISBN: 978-65-87115-09-2

1. Sociopolítica. 2. SUS. 3. Saúde. I. Galimbertti, Percy A. II. Título.

CDD: 610
PREFÁCIO

SAÚDE E SOCIEDADE: UMA PERMANENTE CONSTRUÇÃO


EM BUSCA DA JUSTIÇA SOCIAL E EQUIDADE

Ao receber o convite para escrever o Prefácio do Livro Saúde e


Sociedade, produto do II Congresso Internacional Saúde e Sociedade
que foi sediado no município de Sobral, refleti de maneira afetuosa todo
o processo de construção e comprometimento do município de Sobral
com o desenvolvimento e defesa de Políticas Públicas promotoras de
justiça social e equidade.
Atualmente, vivenciamos um período de adversidades, com
destaque para o atual desafio do enfrentamento da pandemia da
COVID-19. No entanto, o avanço dessas políticas de desenvolvimento
local e o compromisso de gestão, no campo da saúde, têm impactado
na capacidade de transformar a realidade e avançar na construção de
uma sociedade mais justa e um sistema de saúde mais qualificado e
equânime.
Sobral apresenta importantes iniciativas de investimento e
desenvolvimento de um sistema de saúde que busca garantir a saúde
como um direito de todos. Dentre elas, destaca-se a expressiva redução
da Mortalidade Infantil, fruto de significativas mudanças político-
administrativas que tiveram como marco referencial o ano de 1997. A
partir de então, foram feitos investimentos estruturais e organizacionais,
que desencadearam ao longo de mais de 20 anos um sistema local
comprometido com o desenvolvimento de políticas públicas, com
enfoque na qualidade de vida da população de Sobral e de 55 cidades
que têm esse município como referência para o cuidado em saúde
regionalizado.
Deste modo, conseguimos fortalecer a Rede de Atenção à
Saúde no município, tendo a Atenção Primária à Saúde (APS) como
coordenadora do cuidado. Ao longo dos últimos anos conseguimos
ampliar o número de equipes de Estratégia Saúde da Família, bem
como qualificar a estrutura das Unidades Básicas de Saúde e o trabalho
dos gerentes.
Todo este investimento na APS foi fundamental no momento
desafiador de enfrentamento da pandemia da COVID-19, uma vez
que o município conseguiu acompanhar cada pessoa com suspeita ou
confirmação da doença, por meio da capilaridade das Unidades Básicas
de Saúde, do encontro semanal de compartilhamento e cogestão com
os gerentes da APS e de importantes estratégias de monitoramento,
vigilância e cuidado.
Além disso, o município conseguiu estruturar e colocar em
funcionamento dois hospitais que atuaram intensamente no cuidado
de pacientes com COVID 19, de Sobral e de 55 municípios da
macrorregião norte do estado do Ceará.
Este período demonstrou a capacidade de resposta à pandemia
por meio do compromisso e investimentos no Sistema Local de Saúde de
Sobral - CE, bem como do trabalho em parceria com as universidades,
indústrias, comércio, entre outros. Demonstrou, ainda, que precisamos
acreditar no Sistema Único de Saúde (SUS) e defendê-lo de projetos
políticos que buscam desmontar a saúde pública em todos os níveis.
Nesse contexto, precisamos promover a permanente construção
e defesa de políticas públicas que promovam a justiça social e a
equidade. Este livro materializa o encontro de diversos pesquisadores,
trabalhadores do SUS e estudantes, tendo como alicerce a democracia e
os desafios contemporâneos na Saúde e Sociedade.
Esta produção é um potente produto do II Congresso
Internacional Saúde e Sociedade, sediado em Sobral – CE, no ano de
2019. Nele, busca-se agregar reflexões acerca da Promoção da Saúde,
Integralidade no cuidado e Desenvolvimento Sustentável; Gestão de
Políticas Públicas em saúde; Atenção Psicossocial; Educação, formação
e ensino na saúde e a avaliação de programas de Pós-graduação stricto
sensu.
Este livro é um convite para a construção de um diálogo
intersetorial e transformador, que mobiliza mentes e corações, no
desenvolvimento de políticas públicas coerentes com os atuais desafios
da sociedade.

Ivo Ferreira Gomes


Prefeito de Sobral - CE
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EIXO III
SAÚDE E SOCIEDADE NA
EDUCAÇÃO

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SOCIOPOLÍTICA DA SAÚDE: A importância do sus em épocas de instabilidade

CAPÍTULO 12

FORMAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE:


INTEGRIDADE, EQUIDADE E DIVERSIDADE, ASPECTOS
DO FAZER NO ENSINO DA SAÚDE

Ricardo Burg Ceccim

INTRODUÇÃO

Convidado a participar do II Congresso Internacional Saúde


e Sociedade, atividade científica que transcorre no município de
Sobral, estado do Ceará, desde 2017, fui integrante da mesa redonda
“Educação, formação e ensino na saúde: dilemas e possibilidades”.
O Congresso é uma promoção do Programa de Pós-Graduação em
Saúde da Família, da Universidade Federal do Ceará, Campus Sobral;
Universidade Estadual do Vale do Acaraú e Escola de Saúde Pública de
Sobral. Com proposta bienal, a primeira edição transcorreu em 2017
e a segunda em 2019, sob a chamada “Saúde e Sociedade: democracia
e desafios contemporâneos”. Recebo o convite para a minha área de
estudos e investigações, a área da Educação e Ensino da Saúde, sob a
consigna “dilemas e possiblidades”. Acolhi a consigna, então, sob três
substâncias de pensamento: integridade, equidade e diversidade. Tais
substâncias deveriam instaurar uma base de situação e, desde aí, uma
aceleração centrípeta que desenhasse círculos com a tensão centrífuga
do movimento circular. A aceleração centrípeta faz girar e uma tensão
centrífuga faz vibrar esses limites, provocando resistência e sensação.
Percebi assim a ilustração do congresso, corpos executando um

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movimento circular, submetidos a uma força centrípeta que encontra


a tensão centrífuga e desenha corpos em uma coreografia de círculos
(Figura 1).

Figura 1: Congresso Internacional Saúde e Sociedade (CISS), Sobral,


2017 e 2019.

Fonte: CISS, 2017; 2019.

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SOCIOPOLÍTICA DA SAÚDE: A importância do sus em épocas de instabilidade

Formulei a “integridade” como ponto, a “equidade” como força


centrípeta e a “diversidade” como tensão centrífuga. Trata-se de um
“como eu vi”, não como foi apresentada, prevista ou sugerida a imagem
dos Congressos, pois desconheço o percurso de seu design. Contudo,
leitor de Virgínia Kastrup, lembro que a pesquisadora nos mostra que
“o aprendizado assume a forma de um círculo, em que o movimento é
o de reincidir, retornar, renovar, reinventar, reiterar, recomeçar”. Para a
psicóloga da cognição, “em última análise, a lógica circular do aprender
aponta para o inacabamento do processo”. Apresentando o aprendizado
como jamais concluído e sempre aberto para um novo aprendizado,
afirma que “ele é contínuo e permanente, não se fechando numa solução
e não se totalizando em sua atualização, precisando, por isso, ser sempre
reativado” (KASTRUP, 2005. p. 1279-1280).
Com a imagem dos círculos de aceleração centrípeta e tensão
centrífuga, há uma torção muito importante na fórmula clássica de que
aprender é resolver problemas, em que a aprendizagem é o processo de
encontrar respostas aos problemas, ou o aprendizado é a aquisição de um
saber. O aprender não é um processo subjetivo de compreensão de uma
situação ou cumulativo (embora o saber possa sê-lo, a aprendizagem não
o é), é um processo de produção de subjetividade. Então, “Educação,
formação e ensino na saúde: dilemas e possibilidades?” Que processos
subjetivos, cognitivos e afetivos jogariam nessa cena? Em uma tentativa
de colocar em análise dilemas e possibilidades, escolhi três elementos de
pensamento: integridade, equidade e diversidade.

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INTEGRIDADE: CORPO, SUBJETIVIDADE E SALVAGUARDA


DOS DIREITOS HUMANOS

Integridade é o conceito que reporta duas competências: ética


e técnica. É a regulação da formação daqueles, cuja tomada de decisão,
autônoma e individual, pode acarretar dano à integridade física, subjetiva
e moral do outro ou cuja ausência em territórios de vida pode acarretar
negligência e abandono de intervenção em fatores de determinação de
enfermidades físicas e psíquicas ou da integridade e dignidade humana.
Independente do papel que todas as profissões possuem em maior ou
menor grau nessas condições, há profissionais com alto poder legal,
moral e hierárquico sobre a cadeia de tomada de decisões relativas
à integridade física, subjetiva e moral do outro, não podendo ser
formados apenas sob as regras de mercado ou do poder econômico para
ascender ao título de autorização do exercício profissional. Sobre esse
ponto, o Estado Constitucional Brasileiro, como registrado a seguir,
elencou duas áreas específicas de tradução da proteção à integridade
física, subjetiva e moral e dignidade humana: a proteção do corpo e da
subjetividade e a salvaguarda dos direitos humanos.
Quanto à proteção do corpo e da subjetividade, a regulação
da abertura de escolas médicas; quanto à proteção da salvaguarda dos
direitos humanos, a regulação da abertura de escolas de direito. Assim
começa a primeira formulação social do Brasil no campo da proteção
humana, no tocante à regulação da formação: o aspecto da integridade
do outro, frágil e vulnerável ante um exercício profissional, cuja alta
capacidade de intervenção é legalmente protegida. A proteção do corpo
e da subjetividade foi redimensionada com a compreensão do papel
da odontologia no corpo humano, na prescrição de medicamentos, no

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SOCIOPOLÍTICA DA SAÚDE: A importância do sus em épocas de instabilidade

diagnóstico e na terapêutica de doenças, assim como da psicologia nos


processos de subjetivação, cognição, psicotécnica e psicodiagnóstico.
A inclusão da enfermagem foi decorrente do protocolo argumentativo
do Ministério da Saúde, relativo ao lugar da carreira em enfermagem:
composição da equipe mínima em qualquer serviço de saúde; gestão da
ação de enfermagem nas 24 horas de serviços de saúde, com liderança
objetiva de grupos profissionais do nível médio (que atuam em serviços
e domicílios); atuação em todos os perfis de porta de entrada de serviços
de saúde, inclusive com exercício da classificação de risco; atuação
independente e autônoma em serviços de obstetrícia e puericultura;
prescrição de medicamentos em programas de saúde pública; exercício
da tomada de decisão em cadeia, envolvendo decisão clínica em situações
de urgência, domicílio, ambulatório e internação, além de enfermarias
instaladas nos mais diversos ambientes de coletivos humanos.
Na década de 1960, entram em funcionamento muitos
hospitais-escola e ocorre a primeira grande explosão de abertura de
novas escolas médicas no Brasil: de 31 escolas em 1962 para 73 em 1972
(BARBOSA NETO, 2008). A abertura de escolas exigia a abertura de
novos hospitais-escola, ainda mais sob o domínio das recomendações
de a cada escola médica um respectivo hospital-escola. O Decreto nº
63.341, de 1º de outubro de 1968, dispôs, então, que não haveria a
construção de novos hospitais universitários, mas convênios para a
introdução de hospitais de ensino. A ideia era de que as universidades
conveniassem com os hospitais da previdência e hospitais filantrópicos
a geração de hospitais de ensino, não mais universitários.
O Grupo Setorial de Saúde do Ministério da Educação, gerente
do Projeto da Área de Saúde, organizou, para o período 1974-1978
(BRASIL, 1979), informações para os cursos de Enfermagem, Farmácia,

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Medicina, Nutrição e Odontologia, gerando dois documentos: um


reunindo Enfermagem, Medicina e Odontologia e outro específico para
o ensino médico. Os documentos sugeriam a necessidade de avaliar a
associação entre ensino e serviço, a disponibilidade de serviços e leitos, a
existência de demanda por formação, conforme a relação entre número
de profissionais e tamanho da população. Era preciso saber se havia
demanda social por mais escolas. Para o ensino médico era preciso
considerar os internatos médicos e o treinamento prático para o qual se
exigia a disponibilidade de leitos hospitalares. Não poderia haver mais
escolas ou mais vagas sem garantia do treinamento prático em hospitais
universitários ou de ensino. A qualidade da formação médica estaria
associada à disponibilidade de leitos para o adequado treinamento.
Hoje, a Lei Orgânica da Saúde (Lei Federal n° 8.080, de 19 de setembro
de 1990) prescreve que “os serviços públicos que integram o Sistema
Único de Saúde constituem campo de prática para ensino e pesquisa,
mediante normas específicas, elaboradas conjuntamente com o sistema
educacional” (Art. 27, Parágrafo Único).
O conceito de integridade física, subjetiva e moral implica
a noção de alguma norma claramente definida. Uma norma é
a integridade estrutural e funcional do corpo humano, outra é
integridade do psiquismo e da competência cognitiva. Assim, à questão
– o que é integridade? – pode-se responder em termos anatômicos,
fisiológicos, comportamentais e de domínio dos signos linguísticos.
A resposta, entretanto, é difícil de ser obtida, qualquer que seja a
norma. Ainda assim, uma resposta deve ser estabelecida, tanto em
termos anatomofisiológicos, como psicossociais e linguísticos, além
da consideração aos aspectos éticos e legais. Portanto, quando falamos
em integridade física, subjetiva e moral, a norma à qual um desvio é

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SOCIOPOLÍTICA DA SAÚDE: A importância do sus em épocas de instabilidade

comparado é relativa a um padrão aceito como bem-estar biopsicossocial


ou saudável. Contudo, quando se trata de corrigir o “desvio” por meio
de medidas padronizadas, espera-se a intervenção profissional técnica,
isenta de discriminações, preconceitos, pré-julgamentos e prejuízos
éticos, resultante de adequado treinamento na profissão.
A conduta profissional técnica (e supostamente isenta) leva
a um diagnóstico e a uma prescrição. Tal diagnóstico determina um
conjunto de práticas a adotar pela própria pessoa, pelos colegas, pelos
profissionais da equipe de integralização de cuidados, pelos familiares
ou amigos; e pode determinar também a geração de normas jurídicas
(coisas do tipo internação compulsória, obrigação de educação especial,
retirada da guarda paterna, identificação odontolegal, enfermagem
forense). Quem decide se alguém não vai bem, não está saudável e deve
ser tratado ou cuidado, não pode ser mal formado, insuficientemente
formado ou formado sem acesso aos adequados e suficientes cenários de
prática ao exercício profissional, à reflexão e ao confronto de condutas
morais. Cada diagnóstico e cada conduta faz mover este ou aquele
modo, faz mover-se deste ou daquele modo a pessoa, os parentes, as
autoridades legais, os serviços de saúde, as escolas, a sociedade em geral.
A entrada do diagnóstico e da prescrição pode ser demandada pela
própria pessoa, como por outros (indivíduos, coletivos e instituições).
Os profissionais podem ser agentes da pessoa, dos familiares, da escola,
do serviço militar, de uma empresa, da corte judiciária, das regras e
valores de sua profissão, etc. O profissional não poderia e não deveria
ficar alheio à pessoa que atende ou observa. A simples tradução de um
sintoma em sinal implica uma comparação com um padrão e a decisão
de uma ação a ser assumida ou prescrita.

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De modo geral, o profissional que diagnostica e prescreve renega


os aspectos morais envolvidos nos tratamentos ou cuidados que propõe,
assumindo-os como conceitos, intervenções e condutas isentas, mas
isso é já um perfil da sua formação. É preciso inquirir sobre conteúdos
do ensino, experiências de aprendizagem, métodos de avaliação, quadro
teórico referencial, cenários de aprendizagem, territórios de prática,
estratégias de convivência e circulação, dispositivos de confrontação e
rearranjo de lugares de saber, inserções e compromissos locorregionais,
interações ensino-serviço, interações intersetoriais, etc., assim como
perscrutar relatórios de estágio curricular, trabalhos de conclusão de
curso, portfólios de percurso, etc., se queremos regular uma formação
com o aspecto da integridade.

EQUIDADE: DE CADA UM E A CADA UM, CONFORME


SUAS CAPACIDADES E NECESSIDADES

Popularizada por Karl Marx1, como um suposto da sociedade


igualitária e sem exploração, presente nos projetos de sociedade ou
organizacionais segundo a autogestão, eixo nas propostas de economia
solidária e suposto nas propostas de inteligência coletiva, segundo
as árvores de conhecimento ou a máquina universo propostas por
Pierre Lévy2, onde criação, cognição e cultura informam o futuro do

1 Ofereço como indicação a obra MARX, Karl. Crítica do Programa Gotha. São Pau-
lo: Boitempo, 2012. (Coleção Marx & Engels)
2 Ofereço como indicações as obras: LÉVY, Pierre; AUTHIER, Michel. As árvores
de conhecimentos. 2. ed. São Paulo: Escuta, 2000. LÈVY, Pierre. A máquina universo:
criação, cognição e cultura informática. Porto Alegre: Artmed, 1998. LÉVY, Pierre.
Inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 3. Ed. São Paulo: Loyola,
2000.

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SOCIOPOLÍTICA DA SAÚDE: A importância do sus em épocas de instabilidade

pensamento, a máxima “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada


qual, segundo suas necessidades” traduz fortemente a ideia de equidade,
oferecendo-lhe uma imagem mais precisa que a de seu uso para explicar
a igualdade, quando em causa a construção do acesso, acolhimento,
vínculo, responsabilização, resolutividade e desenvolvimento da
autonomia do usuário (MERHY, 2006). Uma máxima presente no setor
da saúde aponta que os indivíduos são diferentes e, portanto, merecem
tratamento diferenciado, consentâneo com as suas vulnerabilidades.
A Lei Orgânica da Saúde prescreve, dentre 14 princípios e
diretrizes: universalidade de acesso (citando serviços de saúde em
todos os níveis de assistência); integralidade da assistência (citando
o conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e
curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos
os níveis de complexidade do sistema); preservação da autonomia das
pessoas (citando a defesa de sua integridade física e moral); igualdade
da assistência à saúde (citando que sem preconceitos ou privilégios de
qualquer espécie); e direito à informação sobre sua saúde às pessoas
assistidas, o que confere distinção entre igualdade e equidade,
qualificando a singularidade (e necessidade de singularização) presentes
na equidade, em que pesem o acesso universal, a atenção integral, a
autonomia quanto à sua integridade, a igualdade ou a não discriminação
e o direito à informação.
Entendo que, se a equidade trata de uma sociedade igualitária,
trata, também, de um mundo libertário. A igualdade é ponto de
partida para uma sociedade democrática, onde os direitos não são
apenas de um Estado democrático de direito, mas de uma sociedade
dos direitos, do direito a ter direito. Uma máxima dos movimentos das
pessoas com deficiência se soma: “Nada sobre nós, sem nós”, cunhado

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na Conferência Mundial sobre Ações e Estratégias para Educação,


Prevenção e Integração, em 1981: “que a plena participação das pessoas
com deficiência e suas associações em todas as decisões e ações a elas
pertinentes seja assegurada”. De lema presente na agenda das entidades
de representação das pessoas com deficiência na luta por direitos de
inclusão, a máxima passou à enunciação de diversos movimentos e
práticas de luta por direitos, na construção de políticas de equidade.
Sassaki (2007) explica que “nada” se refere a nenhum resultado (lei,
política pública, programa, serviço, projeto, campanha, financiamento,
edificação, aparelho, equipamento, utensílio, sistema, estratégia ou
benefício, entre outras) “sobre nós”, isto é, que diga respeito às pessoas
sob determinado perfil de vida/vivência (pessoas com deficiência, por
exemplo), seguido por uma vírgula com função de elipsar uma locução
verbal, no caso, substituindo a expressão “haverá de ser gerado”, ou seja,
nada sobre nós haverá de ser gerado “sem nós”, portanto, nada poderá
ser gerado a um grupo de direitos sem a plena participação do próprio
grupo implicado. O que, nos termos do Sistema Único de Saúde, tem
lugar na diretriz constitucional ao setor da saúde de “participação da
comunidade” (Constituição Federal, Art. 198, Inciso 3).
Nos termos do Sistema Único de Saúde, a autoridade
sanitária não pode (não poderia/não deveria) fazer-se sem o processo
conversacional da participação da comunidade, também o processo
de controle da sociedade na tomada de decisão sobre os rumos e
orientações do sistema sanitário nacional. A participação dos usuários
é uma forma de ampliar sua autonomia e capacidade na construção do
cuidado à sua saúde, ampliar a escuta dos profissionais aos sentidos,
significados e explicações de usuários, famílias, grupos de exclusão e
coletivos organizados. A participação comunitária é uma forma de

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SOCIOPOLÍTICA DA SAÚDE: A importância do sus em épocas de instabilidade

envolver as pessoas e a coletividade na organização e orientação dos


serviços de saúde, assim como no enfrentamento dos determinantes
e condicionantes da saúde. A formação profissional precisa prever e
ativar a valorização da participação social, o fomento à autonomia e
o protagonismo dos diferentes usuários das ações e serviços de saúde
implicados na produção de saúde.
A participação, individual ou coletiva, mediante presença,
composição colegiada, discussão plenária ou grupos de debate ou
qualquer meio de comunicação, deverá ocorrer em todas as etapas
do processo de geração das respostas dos profissionais, da gestão ou
das políticas. As principais etapas são: a elaboração, o refinamento,
o acabamento, a implementação, o monitoramento, a avaliação e o
contínuo aperfeiçoamento. A equidade traz demandas de educação
e formação no setor da saúde que dialoga com realidades e envolve
os trabalhadores em práticas de discussão e trocas interativas, se abre
à construção de caminhos vivos e inovadores, constrói possibilidades
de qualificação do encontro com a população e maior conforto ou
satisfação dos trabalhadores com o trabalho. Há necessidade de defender
a manutenção dos conceitos, modalidades, práticas e princípios
pedagógicos da educação permanente em saúde no ensino de graduação
e no ensino das residências em saúde, na integração ensino-serviço-
comunidade, nas interações universidade-sociedade, nas interações
acadêmicas com as redes de saúde, social e de educação e mobilização
social. A educação permanente em saúde é o processo gerador de
pensamentos e culturas da ação no setor sanitário, acontecendo no dia
a dia do trabalho, como parte da gestão do trabalho e das relações e
processos do trabalho (SANTOS; CECCIM, 2019).

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Izabelle Mont’Alverne Napoleão Albuquerque | Percy A. Galimbertti

Nesse movimento se firma a necessidade de escapar do desenho


hospital-escola para pensar a rede SUS-escola; dos hospitais universitários
ao conjunto dos serviços públicos que integram o Sistema Único de
Saúde como campo de prática para o ensino e a pesquisa; da assistência
médica para o trabalho em equipe multiprofissional e interdisciplinar
em todos os âmbitos da atenção; do diagnóstico e tratamento de
doenças à proteção da saúde e qualidade de vida. A imagem dos círculos
não é uma imagem fixa, mas de movimento, círculos que giram, rodam,
cirandam, passeiam, brincam. É necessário que se abra uma agenda
de estudos-em-serviço para que se pense efetivamente na equidade
que levamos à efeito. As ênfases metodológicas envolvem práticas
de ensino e práticas de trabalho. As práticas de ensino podem ser as
metodologias ativas em ensino-aprendizagem, a presença de estudantes
e professores na rede SUS, as residências integradas/multiprofissionais
em saúde, os programas de educação pelo trabalho e mesmo os grupos
de estudo ativados no trabalho em projetos de pesquisa-intervenção ou
pesquisa-formação. As práticas de trabalho envolvem desafios como
a humanização, a segurança do paciente, a interprofissionalidade,
as relações trabalhador-usuário, a criação de Núcleos de Educação
Permanente em Saúde em serviços e sistemas de saúde, a composição
de linhas do cuidado e mesmo a montagem de redes intersetoriais.
É preciso afirmar que as diferenças de ocorrência de doenças,
aderência a tratamentos e eventos relativos à saúde são mediadas social
e simbolicamente, são portadoras de afetos e sentimentos e possuem
interpretações singulares onde ofertas de escuta, cuidado e tratamento
fazem concatenamento, entrelaçamento, tessitura, levando à submissão,
ao ajustamento ou à disruptura de padrões, explicações e zonas de
conforto. Desse modo, o contato profissionais-usuários enseja interações

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SOCIOPOLÍTICA DA SAÚDE: A importância do sus em épocas de instabilidade

sociais e subjetivas que colocam em análise diferenças biológicas,


distinções sociais e iniquidades sociais. Por esse motivo, a saúde
coletiva brasileira formulou o conceito de Projeto Terapêutico Singular
(OLIVEIRA, 2007), onde as interações e intervenções deixariam
de se fazer pelas díades clássicas doença-tratamento, diagnóstico-
prescrição ou queixa-conduta para delinear planos compartilhados de
acompanhamento longitudinal e construção de situações concretas de
interação entre aquele que cuida / trata / escuta e aquele que é escutado
/ tratado / cuidado.
O reconhecimento da saúde como direito de todos, sob um
quadro de desigualdades sociais e diante da diversidade humana,
revela a necessidade de uma disponibilidade de quadros profissionais
multiprofissionais em ação interdisciplinar e interprofissional. Tais
reconhecimentos indicam que não se tratará jamais de priorizar ou
focalizar necessidades, mas efetivamente construir projetos institucionais
de acolhimento, acompanhamento e inclusão e projetos cuidadores
sensíveis à diversidade, à desigualdade e às necessidades terapêuticas.
Para que profissionais e equipes sejam capazes de localizar os padrões
terapêuticos aceitáveis em cada caso, um processo formativo precisa
contemplar esse projeto pedagógico de exposições, discussões, afecções
e, portanto, subjetivação. Equipes, serviços e políticas precisam interagir
com as expectativas dos diversos modos de vida dos diferentes grupos
sociais e encetar ou ensejar ações originais.

DIVERSIDADE: O COMUM E A MULTIDÃO

Comecei o texto com o ponto: integridade. Integridade física


e psíquica, do corpo e da subjetividade. Passei ao social, à participação

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Izabelle Mont’Alverne Napoleão Albuquerque | Percy A. Galimbertti

e à inclusão. De alguma forma, coloquei o corpo e o coletivo, talvez


uma perspectiva de corpo organismo, que chega aos serviços de saúde
com demandas de doenças e agravos, e uma condição de coletivo que
implica luta por viver, ser, existir. Então um corpo suposto e corpos
em luta. Os corpos em luta são os corpos da diversidade que precisam
afirmar sua diversidade para poder existir e experimentar o prazer
de singularizar-se. Quando interpretamos um estado, construímos
um projeto terapêutico, compartilhamos um plano, acolhemos uma
existência, produzimos um comum; quando nos identificamos em uma
luta por direitos, produzimos um comum; quando nos organizamos em
movimento social, produzimos um comum, mas essas “comunidades”
não esgotam a diversidade e nem podem encerrá-la. É por isso que
saímos da dispersão ao comum, mas desde o comum, retornamos à
multidão, e nela toda a diversidade está e, então, podemos forjar outro
comum, novas comunidades, diversas (e mais ricas) das anteriores. As
comunidades, entrando na multidão, perdem seus contornos originais e
vão se recontornando, produzindo novas comunidades sempre diversas
das anteriores. Esse movimento se afina com a arte design trazida à
introdução deste texto. Lembro, então, de Bárbara Szaniecki, que é
designer, e recupera o conceito de “multidão” em Michael Hardt e Toni
Negri3 para afirmar que “o que a carne da multidão produz é comum
numa relação expansiva em espiral na medida e desmedida em que
o que compartilhamos e produzimos hoje serve de base para o que
produziremos e compartilharemos amanhã”.
Dois tópicos se conectam aqui: entrar/reentrar na multidão
(afetar e deixar-se afetar) e produzir a multidão (convocar as afecções).

3 Ofereço a indicação de HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e


democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.

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SOCIOPOLÍTICA DA SAÚDE: A importância do sus em épocas de instabilidade

A diversidade é a introdução da diferença (do diferir), por isso, desfaz


o comum que estava se dando, exigindo um novo comum. Pode-se
retirar a aceleração centrípeta e, portanto, perder a velocidade e cair dos
círculos em evolução, em espiral, em coreografia, para a desengonçada
queda ou traçar outras superfícies conforme o ganho de velocidade, de
tensão centrífuga, de energia vibrátil, de pulsação e, principalmente,
ganho de sensação. A resistência, com o pulsátil da sensação, abre novas
subjetividades, com novos afetos e novas narrativas. Todo um mapa
poderia ser feito aqui com as lutas feministas, negras, do gordoativismo,
da neurodiversidade, do movimento LGBT+, contra o capacitismo, da
diversidade corporal, entre tantas. As pessoas, afinal, são de qualquer
etnia, raça, gênero, idade, nacionalidade, naturalidade, possuem
diferentes corporeidades e orientações sexuais, as deficiências podem
ser físicas, intelectuais, visuais, auditivas, psicossociais ou múltiplas... A
interseccionalidade veio apresentar o entretecer que decorre das marcas
da diversidade, colocando os laços identitários não mais em recortes
demarcados, mas interseccionais, o comum não cessa de se entretecer
com o diverso (HENNING, 2015).
Os ativistas dos movimentos de diversidade cumprem um
papel fundamental ante a ciência e profissão na saúde, se opondo aos
enquadres de doença, incapacidade, desvio e transtorno, rejeitando
propostas de cura ao que não requer tratamento, mas aceitação,
inclusão, ressingularização das práticas e dos serviços. Sem contato com
os estudos provenientes dos movimentos de diversidade dificilmente
se compreende a novidade científica e humana de que são portadores.
Contudo, diversos saberes já se consolidaram e precisam ser transferidos
à formação dos profissionais de saúde, conceitos já foram demarcados
o suficiente para serem estudados durante a educação profissional, tais

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Izabelle Mont’Alverne Napoleão Albuquerque | Percy A. Galimbertti

como, normalização, disciplinarização, medicalização, patologização,


medicamentalização, biopolítica, biopedagogia, higienismo,
capacitismo, fabricação da loucura, estigmatização, entre outros
(ANGELUCCI, 2015; CHRISTOFARI; FREITAS; BAPTISTA,
2015). O propósito no ensino é desafiar o que nós pensamos saber sobre
os modos de ser e viver, desafiar os nossos estereótipos e preconceitos
num ambiente positivo, onde as perguntas difíceis sejam aceitas,
esperadas e apreciadas.
Em minha exposição oral sobre os dilemas e desafios, apresentei
trechos de entrevista, letras de música, performances e o trailer de filme
com Linn da Quedraba, artista brasileira travesti, premiada no cinema
internacional, mas longe da fama de uma cantora drag queen, como
Pabllo Vittar, como sinalização à noção de diversidade (fazer ouvir as
eloquentes palavras dela mesma). Na opinião do ator Renan Moreno,
colega de Linn na época da Escola Livre de Teatro em Santo André/
SP, “as letras explícitas e a vivência transviada são os motivos mais
evidentes pra que Linn não tenha tanta projeção quanto a Pabllo”. Já o
fotógrafo Lucas Silvestre diz que Linn “toca na ferida, diz o que muita
gente não está pronta pra ouvir, joga verdades que a sociedade não está
preparada. Se a sociedade diz que viado é um xingamento, Linn escreve
Enviadescer e grita para que todos sejam MUITO viados”4. Apresentei
Linn pela parrhésía, a coragem do falar sincero e exigência de sympathĭa
(capacidade de sentir-com, de ser afetado pelos sentimentos de outrem)
ou verdadeira amizade.

4 As entrevistas de Renan Moreno e Lucas Silvestre podem ser encontradas na repor-


tagem de Larissa Santiago e Reginaldo Junior, de 09 de abril de 2018, sob o título “Por
que Linn da Quebrada não tem a mesma fama que Pabllo Vittar?” Disponível em:
https://gente.ig.com.br/cultura/2018-04-09/linn-da-quebrada-e-pabllo-vittar.html
Acesso em: 04 set. 2019.

297
SOCIOPOLÍTICA DA SAÚDE: A importância do sus em épocas de instabilidade

Conforme sumariza Saly Wellausen em “Michel Foucault:


parrhésía e cinismo”, a parrhésía não é uma mera demonstração, embora
implique em demonstrar e use suas estratégias para tal; também não
é uma retórica, pelo contrário, talvez seja seu negativo, dado que não
se utiliza de figuras de pensamento, não é uma arte do dizer; também
não é uma forma de discutir, já que não pressupõe o prevalecimento
de um discurso sobre o outro. Aprendemos com Wellausen: a parrhésía
lança a verdade na cara daquele com quem dialoga ou a quem se dirige,
de modo, quem sabe, antididático, mas atinge uma transformação do
sujeito que a pratica e daquele a quem o falar franco se dirige. Nesse
sentido, somente a amizade suportaria a parrhésía. Para Francisco Ortega
em “Amizade e Estética da Existência em Foucault”, a parrhésía e seus
sentidos de “dizer tudo”, “falar livremente” ou “liberdade de palavra”
faz-se uma noção complexa, pois representa simultaneamente virtude,
habilidade, obrigação e técnica, que deve caracterizar o indivíduo que
tem como tarefa a direção de outros indivíduos na sua constituição
como sujeito moral. Na chamada “cultura de si”, a parrhésía ocupa lugar
de destaque, uma vez que a autoconstituição como sujeito moral exige
a presença e a ajuda constante de outro indivíduo, dotado da faculdade
de parrhésía; e a figura do outro corresponde ao parrhesiasta ou aquele
no qual se deve buscar abrigo.
O pesquisador em Educação, professor Carlos Ernesto Noguera
Ramirez, na 31ª Reunião Anual da Anped, apresentou ao GT 17 –
Filosofia da Educação, o ensaio “Foucault Professor”. Em seu trabalho
sobre a face professor de Michel Foucault, mostrou a existência de
uma relação estreita entre a prática filosófica do cuidado de si, da qual
a parrhésía é um de seus elementos constituintes, desenvolvida nos
séculos I e II e a prática pedagógica. Ramirez relata que o franco falar

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Izabelle Mont’Alverne Napoleão Albuquerque | Percy A. Galimbertti

pode ser assumido como um exercício de si, como um exercício de


transformação, o que se caracterizaria como atitude pedagógica. O
procedimento didático do contato com a diversidade dessa forma na
formação profissional pode permitir aceitar ou desejar a parrhésía, onde
se experimente e desenvolva a sympathĭa, onde exista a afetação sensível.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Tentei expressar alguns dilemas e possibilidades da educação,


formação e ensino na saúde sob uma angulação da democracia e
desafios contemporâneos ante a relação saúde e sociedade, mas não o
fiz dentro de um enquadre teórico “pré-visto” quando se enseja esses
temas. Creio ter apontado a importância de “pensar” o que fazemos
desde um ponto de vista da responsabilidade (quando se tem poder
de prescrição de cuidados e de terapêuticas ao outro), da abertura aos
encontros constitutivos da decisão que tomamos em ações e serviços
de saúde (que deveria se dirigir e alcançar a todos e cada um) e da
sympathĭa e amizade para a compreensão das implicações de vida nas
práticas de cuidado e terapêuticas (a saúde não se resume a sobreviver,
mas à capacidade de emitir e absorver vida). Todos esses pontos de
vista incidem sobre a organização do ensino em saúde e seu papel de
produção de subjetividade. Fechei a exposição – na etapa ao vivo – com
a imagem de capa da dissertação de mestrado de uma aluna (orientanda)
nutricionista de formação que estudou a gordofobia e o gordoativismo,
mostrando a diversidade corporal, as biopedagogias carreadas pela
construção do conceito de epidemia da obesidade e a produção de
subjetividade que vem como educação da cultura (Figura 2).

299
SOCIOPOLÍTICA DA SAÚDE: A importância do sus em épocas de instabilidade

Figura 1 – Imagem para a capa (JERÔNIMO, 2019).

Lutar pela vida, lutar pela liberdade, livre expressão de


masculinidades e feminilidades; lutar pelo direito a ter direito, pelo
prazer de ser o que se é e dispor de saúde para ser/existir, não para
encaixar-se, ajustar-se em conceitos, fórmulas, rótulos vindos desde
fora, desde o exterior da experiência, da experimentação. Colocar
a formação em velocidade de aceleração centrípeta e experimentar
ativamente a tensão/sensibilidade centrífuga. Deixar que a convocação
centrífuga desenhe coreografias de ensinar, aprender, trabalhar, acolher,
escutar, cuidar, tratar.
Luedji Luna escreve em forma de canção que é um corpo, um
ser, que tem cor, tem corte e a história do seu lugar, que é a sua própria
embarcação, a sua própria sorte. Atravessou o mar, o sol da América
do Sul como guia, na mala de mão uma oração e um adeus. Diz que
é cada rua dessa cidade cinza, olhares brancos a fitam, há perigo nas
esquinas. Fala mais de três línguas e a palavra amor, cadê? “Je suis ici…”
(LUEDJI LUNA, 2017). Lutamos na saúde por um corpo que sente

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Izabelle Mont’Alverne Napoleão Albuquerque | Percy A. Galimbertti

e deseja? Lutamos por um corpo que experimenta e vive o querer-se?


Lutamos por um corpo que pode afirmar sua diversidade e o prazer de
singularizar-se? Qual é a disposição da educação, formação e ensino na
saúde?

REFERÊNCIAS

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desdobramentos para a educação especial. In: 37ª Reunião Nacional
da ANPEd. Florianópolis: UFSC, 2015.

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contratualização de hospitais de ensino: o caminho se faz ao andar?
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Ensino Superior (SESu). O ensino superior no Brasil – 1974-1978.
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as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do
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JERÔNIMO, A. C. O corpo real no mundo virtual: ativismo gordo


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SOCIOPOLÍTICA DA SAÚDE: A importância do sus em épocas de instabilidade

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