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O judeu em Celso Lafer

Ari Marcelo Solon

Há dois tipos de judeus: o judeu platônico e o judeu kantiano. No caso do primeiro,


trata-se de um místico; no segundo caso, um racional.

Nesse sentido, o judeu em Celso Lafer é um judeu kantiano, pois sua filosofia traz
traços do neokantismo de Baden, isto é, o tridimensionalismo (fato, valor e norma) vem de
Heidelberg, afim ao relativismo de Max Weber 1, que dizia que o olimpo é habitado por vários
deuses, e não existe nenhum absoluto.

O judeu kantiano acredita no Iluminismo, na tolerância e na paz universal. Às vezes,


ainda, o judeu kantiano esquece da mística

Hermann Cohen, o fundador da outra vertente do judaísmo kantiano, da Escola de


Marburg, escreveu seu maravilhoso livro "Ethik Des Reinen Willens". Um judeu platônico, um
"velhinho" não versado em filosofia, leu o livro de Cohen e chegou para o grande filósofo da
Escola de Marburg do neokantismo. Perguntou: "Wo ist der baure aulam?" (onde está o criador
do mundo?).2 Nesse momento, Cohen chorou, e quem narra essa história é Franz Rosenzweig 3 -
em "A essência do judeu platônico" -, o judeu existencialista e ortodoxo. Existe judaísmo
platônico em Lafer?

Eu não sabia, mas aprendi, caminhando com Lafer no souk, no mercado árabe da cidade
de Granada. O chanceler, que já esteve várias vezes na cidade, não sabia chegar ao topo do
castelo. Convidou-nos a tomar um aperitivo. Como minha alma é a transmigração da alma de
um pobre mouro daquela cidade, o chanceler até o cume.

Eu, uma pessoa sem amigos, puxei assunto na única temática que sabia - cultura árabe e
o judaísmo - e dois livros que achava que só eu tinha: “España, un Enigma Histórico”, de
Claudio Sanchez-Albornoz.4

Nos dois livros referidos, debate-se quem é o padroeiro da Espanha: a judia platônica,
Santa Teresinha, a mística, ou Santiago, como o nome de seu pai, Jacó. Lafer não só conhecia

1
Cf. WEBER, Max. The Sociology of Religion. London: Methuen, 1966.
2
Cf. COHEN, Hermann. Ethik des reinen Willens. Berlin: Bruno Cassirer, 1904.
3
Cf. ROSENZWEIG, Franz. Der Stern der Erlösung. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag AG, 1988.
4
Cf. SÁNCHEZ-ALBORNOZ, Claudio. España, un enigma historico. Buenos Aires: Editorial
Sudamericana, 1956.
os livros, mas me deu uma aula sobre o judaísmo árabe. Como sou nada diplomático, perguntei:
"Como você conhece tanto cultura judaica ibérica?"

Então, citou o professor de infância, David José Perez 5. Enfatiza, ainda, que, em relação
à obra, trata-se da biografia de um hebraísta, historiador, filósofo, insigne medievalista,
incansável batalhador pelo resgate da memória judaica brasileira., o maior erudito judeu que já
habitou as terras de Santa Cruz.

Por trás desse judeu kantiano frio, como são os judeus lituanos, racionalistas, havia um
homem de coração, o mais generoso que já conheci em toda minha vida. Um segundo pai, não
só para mim, mas a todos que têm proximidade a ele. Você teria uma prova de que Lafer é um
judeu platônico? Todo dia, ele tinha que falar com a mãe, não com o pai. Seu celular, entretanto,
não estava encontrando sinal no alto da montanha, então, emprestei o meu e ele se afastou, por
um momento, e era nítido, em seu rosto, o amor do filho.

Scheler6, no livro "A Ética material" (Der Formalismus in der Ethik und die materiale
Wertethik), provou que Kant estava errado: o único que provou que Deus não existia por meios
racionais. Scheler alegou que a Ética não é formal, como em Kant, e, sim, material. E, com base
na metodologia, estabeleceu uma hierarquia de valores éticos, além de que existe uma moral
objetiva, grega, mística, cujo primeiro mandamento é "Ame sua mãe". Nesse momento,
descobri o judeu árabe que habitava no coração transbordante de Lafer.

Quem é o padroeiro da Espanha? Jacó, o pai, ou Santa Teresinha da Cruz, a mãe? É a


mãe.

Outros exemplos do judaísmo místico de Lafer: fundamenta-se em Rosenzweig, e não


os neokantianos, ao dizer que o "Pai nosso" se assemelha ao Kadish.

Dele, ganhei a coleção de Talmud, traduzida por Lazarus Goldschmidt 7, em 1888. Em


cada página, a insígnia do pai, Jacob Lafer.

Outra prova que Lafer é um judeu platônico: estava na sinagoga, assistindo um discurso
de um judeu árabe, argelino, místico, shitr. Cometi uma nova gafe e perguntei: "por que o
senhor tem sotaque francês ao falar hebraico?" Ele, como todo rabino irônico, questionou-me:
"Adivinha?" Então, falei todos os países árabes de língua francesa até que, por último percebi e
exclamei: "É da Argélia!". Passamos, então, a falar sobre Derrida, da Argélia. E, sim, o avô
desse rabino ministrava aulas de Torá ao fenomenólogo argelino.

5
Cf. FALBEL, Nachman. David José Perez: Uma Biografia. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
6
Cf. SCHELER, Max. Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik. Leipzig: Felix Meiner
Verlag, 1927.
7
Cf. LAZARUS, Goldschmidt. Der Babylonische Talmud. Berlin: S. Calvary, 1897-1935.
Eis que apresentei ao professor o filho querido do professor Lafer: "Este é um lituano,
um litvak!"

O menino retrucou: "Você não sabe. Parte da minha família é hassídica e veio da
Bessarábia."

Esclareço, ainda, que os hadissim são os judeus que se opõem à ortodoxia racionalista
lituana, são místicos e vivem o judaísmo de maneira irracional, através da dança e da música,
aliás, a música cerca toda família Lafer.

Então, entendi o professor Lafer, o kantiano com maior coração do mundo, afinal, onde
há o Banquete do Amor em Kant? Não me recordo de uma palavra de amor em Kant.

Aliás, Arendt8 é semelhante a Lafer. Há uma essência judaica, nela, de caráter religioso,
e não apenas jewishness, mas judaism, tal como o judeu kantiano enfatiza.

Como se sabe que é um judeu platônico? Fenomenologicamente.

Quando me indago sobre meus outros gurus, penso com admiração intelectual. Quando
penso em Lafer, com emoção.

Por último, é possível observarmos em sua linda obra, "O Convênio do Café de 1976",
ao tratar da reciprocidade, Lafer 9 fala em justiça e usa o conceito grego de justiça, epieikeia, e
não o conceito relativista kantiano.

8
Cf. ARENDT, Hannah. The Jewish Writings. Nova Iórque: Schocken, 2008.
9
Cf. LAFER, Celso. O Convênio do Café de 1976. São Paulo: Perspectiva, 1979.

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