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O conto “Sem olhos” Machado de Assis, foi publicado originalmente em 1876

no Jornal das Famílias, editado por Garnier (NR). No texto o escritor usa a técnica da
narrativa em moldura, onde se insere dentro de uma história inicial, uma outra história.
Para Renata Philippov (2018) as situações de desespero e infortúnio que marca o conto
“Sem Olhos” estão dentro reconfiguração feita por Machado a partir de uma estética
gótica. É possível identificar em alguns dos seus contos a presenças de cenários que são
sombrios, claustrofóbicos, onde o medo predomina de maneira desenfreada. Contudo, o
gótico clássico, na obra do autor é trocado por um cenário brasileiro, Rio de Janeiro,
século XX, ao invés dos castelos, masmorras e as criaturas maléficas. Os eventos
ocorrem dentro de uma espacialidade gótica, mas adaptada ao contexto que Machado
viveu. Os fantasmas reais dão lugar a uma imaginação aterrorizada e perturba em si
mesma. Ao invés de casas mal assombradas, segundo a autora, temos em “Sem Olhos”,
espaços mal assombrados. A narrativa do horror produz o medo, que é frutos das
sensações relacionadas a morte.
A narrativa inicia-se em um evento comum, o casal Vasconcelos recebia quatro
amigos para um chá e bate-papos: Bento Soares, sua mulher Maria do Céu, o bacharel
Antunes e o desembargador Cruz. A princípio falam de banalidades, fatos que não terão
relevância para a segunda história, mas logo a conversa tomará um novo rumo o
sobrenatural: almas do outro mundo, bruxas, lobisomem e das abusões dos índios,
passará a ser o tema da conversa. O assunto dividiu opiniões. O desembargador Cruz
revela temer assombrações e narra – por insistência dos amigos – um episódio que lhe
acontecera na juventude
Na segunda narrativa, rememorada pelo desembargador Cruz, ele conta que
quando era um jovem estudante de direito, em São Paulo, costumava passar férias no
Rio de Janeiro e, por isso, decidiu mudar-se para um andar de uma casa na rua da
Misericórdia, lá conheceu um vizinho, Damasceno Rodrigues, um idoso com uma
aparência decadente, sofrida, espectral.
O narrador chegou a acreditar que o vizinho fosse um louco. Ainda que, a
princípio, a contragosto, ele acabou se aproximando do vizinho e este em seu leito de
morte o confidencia uma história terrível e monstruosa. A trágica história da senhora
Lucinda, uma linda mulher, casada com um homem, taciturno e ciumento. Damasceno
lamentada o sofrimento de Lucinda. Um dia, em visita ao casal, ele encontra Lucinda
em troca olhares afetuosos, o marido, que presenciou a cena, fica enfurecido, e o medo e
pavor sentidos pela esposa a faz perder os sentidos. Damasceno ainda tenta em vão se
defender, mas suas palavras são ignoradas e ele se retira. Tempos depois, volta ao
engenho em Jeremoabo, interior da Bahia, para confirmar as terríveis notícias que
envolviam o nome de Lucinda, as quais diziam que havia morrido, só não se sabia se
assassinada ou por suicídio. Chegando lá, ele descobre que ela está viva, embora tenha
sido castigada. O marido diz a Damasceno: "Vê, disse ele, só lhe castiguei os olhos".
(Assis, p.) Ela teve os olhos queimados, o marido vazara os seus olhos com ferro
quente, porque cometera o crime de olhar para o desembargador Cruz. “Os olhos
delinquiram, os olhos pagaram!” (Assis, p.)
O senhor Damasceno entregou a Cruz uma caixinha com documentos e uma foto
da suposta mulher que teve os olhos queimados para ele queimar. Em meio ao horror
que sentiu diante daquele relato o narrador e o seu vizinho viram a figura espectral da
mulher: De pé, junto à parede, vi uma mulher lívida, a mesma do retrato, com os
cabelos soltos, e os olhos... Os olhos, esses eram duas cavidades vazias e
ensanguentadas. (Assis, p.). Dias depois, o jovem Cruz descobre fatos sobre a vida do
vizinho que impossibilitam que a história seja verídica e que a mulher da foto era
sobrinha dele, mas os mistérios do sobrenatural permanecem: como explicar a visão
que ele e o senhor Damasceno tiveram?
Voltando ao presente da narrativa, sala do casal Vasconcelos, todos atribuem a
visão ao estresse vivido pelo jovem, mas Maria do Céu e o bacharel Antunes, flertavam
durante o chá se mostram incomodados com o fim trágico de Lucinda. Ela baixa os
olhos e se mostra desconcertada e o bacharel vai à janela à procura de ar fresco.
Em alguns momentos o narrador dá indícios da postura indecorosa de Maria do
Céu e Antunes. Maria do Céu desdenhou do medo de Cruz do sobrenatural e disse não
ter medo de nada e nem de ninguém. Teria o nosso narrador contado aquela para dá uma
lição de moral nela? Ele mostra que não há limites para a monstruosidade humana
quando esse está cego pelo ciúme, pela paixão e pelos violaram dos valores Morais.
Maria do Céu agora percebe que teme a morte e como disse Delumeau, o medo é
fundamentalmente em relação a morte.
O medo produzido pela imaginação do sujeito, segundo Julio Françai (2011) o
faz projetar o “eu morto”, essa o faz sofrer, a identificação do leitor e personagem se
assemelha com os mecanismos ficcionais. Segundo a autora nesse caso: “O monstro
representaria uma ameaça física e uma perturbação da ordem natural” (FRANÇAI,
2011, s.p.). O fragmento a seguir nos ajuda a compreender a perspectiva de literatura do
medo, que amplia a abrangência da categoria terror, pois naquela é recorrente a
presença de monstruosidades morais. Complementa dizendo ainda que:

O monstro é, diversas vezes, uma das encarnações das ameaças


representadas pelos “outros” homens, sobretudo por aqueles que
transgridem limites morais. Por essa razão, um complemento á
fundamentação teórica para o estudo dos monstros na literatura
brasileira fez-se necessária (FRANÇAI, 2011, s.p.).

A autora ainda que: “Ao reforçar códigos culturais, o monstro é um agente da ordem,
delimitando os comportamentos proibidos” (FRANÇAI, 2011, s.p.). É que percebemos
quando Maria do céu é colocada frente a frente com sua violação moral, ela disfarça,
mas sabe que flertar com um homem na frente do marido e de testemunhas é um risco
muito grande. A sociedade tem se mostrado cada vez mais impiedosa com àqueles que
se desviam das condutas morais, principalmente com as mulheres que mancham o
sagrado matrimônio. A maioria delas acabam pagando com a vida, tendo ou não
cometido adultério. Tanto ela quanto o bacharel Antunes sentem o arrepio do medo, da
punição e da morte.

Nota de rodapé - Baptiste-Louis Garnier chegou ao Brasil em 1844, aqui fundou a


Livraria Garnier, que dirigiu até sua morte em 1893. A livraria publicar, entre outros,
o Jornal das Famílias, periódico no qual Machado publicou vários textos.

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