que tem um perfil biográfico mais completo, mas sobretudo porque Pessoa fez dele um poeta atual, modernista e vanguardista, cuja obra – mais do que a de qualquer outro dos heterónimos – tem sentido isoladamente, e independentemente daquele que ganha no contexto da encenação 5 poemodramática. As duas odes (Ode Triunfal e Ode Marítima) que publicou no Orpheu são duas das obras maiores da produção poética do Modernismo português. Na época em que foi criado, em conjunto com os outros heterónimos, a função de Campos estava portanto circunscrita a um vanguardismo europeísta mas ao mesmo tempo nacional, aproximando-se do Futurismo, no que respeita ao culto das tecnologias e da ciência moderna, 10 mas recusando, contudo, a iconoclastia estética, o combate à subjetividade e a apologia da guerra e da violência. Ao contrário dos futuristas, não rejeitava a arte nem a cultura do passado, ainda que tivesse consciência de que os novos Homeros e os novos Miltons, de que a sociedade indus- trial carecia, haviam de chegar a partir de um novo paradigma estético, também ele fruto e con- sequência dos novos tempos. 15 Foi igualmente a este heterónimo que Pessoa atribuiu a autoria de dois incisivos textos pro- gramáticos do Modernismo: no Ultimatum, que foi publicado em 1917 na revista Portugal Futu- rista, defende-se a “abolição do dogma da personalidade”, do “preconceito da individualidade” e do dogma do “objetivismo pessoal” […]. Os Apontamentos para uma estética não Aristotélica, que viram luz na revista Athena (1924-1925), contêm a proposta de uma nova estética, adaptada aos 20 tempos modernos, e por isso baseada na ideia de força em vez da aristotélica ou helénica ideia de beleza. […] O poema “Opiário” representa a época pré-modernista de Pessoa. Ficticiamente anterior às grandes odes sensacionistas, foi realmente composto vários meses depois da Ode Triunfal. Esta fase decadentista de Campos seria ainda enriquecida e completada com a escrita de alguns poe- 25 mas supostamente anteriores ao “Opiário”. Depois de concluído o ciclo das grandes odes, e sobretudo a partir de meados dos anos 20, Campos parece fugir ao controle do seu criador, transformando-se num verdadeiro alter ego exis- tencial de Pessoa. Transforma-se então, como escreveu Jacinto do Prado Coelho, no “poeta do cansaço, da abulia, do vazio, inquieto e nauseado”, parecendo contudo que o crescente senti- 30 mento de frustração lhe aguçava ainda mais a lucidez.
LOURENÇO, António Apolinário, 2009. Fernando Pessoa. Edições 70 (pp. 58-60)