A estória transcrita
O que mais caracteriza essa aparição da voz indígena na escrita é a forma dada
a essa voz. Muitos desses textos acabam sendo recriações (por autores não
indígenas) de narrativas orais com graus variados de consciência, por parte de
seus autores, das diferenças radicais entre a forma escrita e a forma original
oral de uma narrativa. Para entender melhor esse processo de registrar
narrativas orais no papel, é importante entender os conceitos de
performatividade da narrativa oral, o conceito de autoria, de tempo mítico e o
conceito da padronização ou homogeneização.
1
Uma versão anterior, deste texto foi publicada em Perspectivas da literatura ameríndia no Brasil,
Estados Unidos e Canadá. (org.) Eloína Santos. Feira de Santana: UEFS, 2003.
Performatividade
Dessa forma, ao dizer que está apenas escrevendo uma narrativa indígena, e
escritor na verdade acaba transformando algo oral com características próprias
em algo escrito com características muito diferentes, muitas vezes reduzindo a
narrativa oral a apenas um enredo. Assim o escritor desse ‘enredo’ acaba na
verdade se tornando o autor da narrativa, agora escrita, que nunca chegou a ser
contada (apresentada) oralmente. Assim, a performatividade da tradição oral
que permeia a narrativa oral original, se perde totalmente, fazendo com que
aquilo que nasceu como processo oral ou performance se torne um mero
produto escrito.
Autoria
Apesar desse conceito de o contador não ser o ‘criador’ (autor) mas apenas o
‘repetidor’ da narrativa tradicional pertencente à comunidade, na verdade ao
seguir as regras da performatividade, interagindo com a platéia e lançando
mão das várias técnicas de narrar, de acordo com as reações de sua platéia, o
contador acaba usando essas técnicas de uma forma personalizada, para dar
vida á narrativa. A comunidade por sua vez, apesar de apreciar as habilidades
pessoais do contador, ainda assim considera que a narrativa contada não é
propriedade do contador, mas sim da comunidade. O autor da narrativa, nessa
visão, é a comunidade e não o contador individual. O exemplo de tal visão é a
manifestação dos escritores indígenas do Brasil em sua Carta da Kari-Oca de
2004 :
“Os conhecimentos de nossos avós foram deixados para nossos netos de forma oral como uma teia que une o
passado ao futuro. Esta fórmula pedagógica tem sustentado o céu no seu lugar e mantido os rios e as
montanhas como companheiros de caminhada para nossos povos. Tais conhecimentos, em forma de narrativas
- chamado mitos pelo ocidente - foram sendo apropriados por pesquisadores, missionários, aventureiros,
viajantes que não levaram em consideração a autoria coletiva e divulgaram estas histórias não se preocupando
com os seus verdadeiros donos”.
2
DaMatta, R. 1987 Relativizando: uma introdução á antropologia social, Rocco, Rio de Janeiro
3
Sullivan, L. E. 1988 Icanchus Drum; an orientation to meaning in South American religions,
Macmillan, New York
autoria individual, contando sobre algo existente hoje, se remete ao plano do
‘presente atual’, do ‘hoje-em-dia’ da historicidade.
Quando uma ‘transcrição’ de uma narrativa oral é publicada por escrito, dando
crédito ao contador como autor dela, conforme regem as regras da cultura
escrita, as normas da tradição oral de autoria coletiva são imediatamente
violadas5; para evitar isso, muitas publicações recentes de narrativas indígenas
identificam os nomes dos narradores, mas, infelizmente numa cultura escrita
como a nossa, a diferença entre narrador e autor acaba se confundindo.
“ O Dia6
4
Gallois, D. 1994 Mairi Revisitada a reintegração da fortaleza de Macapá na tradição oral dos
Waiãpi, NHII USP, São Paulo
5
Veja por exemplo as “transcrições” (conforme definimos acima) traduzidas e publicadas por Betty
Mindlin.Tuparis e Tarupás (1993, Editora Brasiliense, São Paulo) e compare com as “transcrições” de
Sereburã e outros Wamrêmé Za’ra Nossa Palavra (1998 Editora Senac, São Paulo) com uma preocupação
maior em reter no texto escrito mais características da narrativa oral.
6
De Mindlin 1993 Tuparis e Tarupás. Coletada e publicada pela antropóloga, note o destaque dado
ao narrador nomeado.
Antigamente, não existia o dia. Conta-se que na casa de Waledjat era sempre escuro, nunca
amanhecia. Existia o sol, mas não passava o claro para cá” .
HISTÓRIA DA ANTA7
Padronização
7
De Sereburã e outros 1998 Wamrêmé Za’ra Nossa Palavra. Note as repetições e os sons típicos
de uma narrativa oral, onde o narrador procura dramatizar e dar vida á narrativa.
8
Veja por exemplo as narrativas publicadas por Ciça Fittipaldi A Árvore do mundo e outros feitos
de Macunaíma(1988), e Subida pro Céu (1986) Melhoramentos, São Paulo.
A História Reescrita
9
Veja por exemplo o relato de Levi Strauss em Tristes Trópicos (1957) descrevendo a apreensão da
escrita como instrumento mágico de poder sobre os outros por parte de um chefe Nambikwara
10
De Eu sou índio por Norberto Sales Têner, em O Jacaré Serviu de Ponte, CPI do Acre 1984
O índio também é gente.
Nós somos índios Caxinauás do Jordão e queremos aprender a língua de português, ler,
escrever e tirar conta para não ser roubado pelo cariu”
Quando Deus12 andava no mundo, para ver quem era bom e quem era ruim, ele encontrou
no meio da mata uma aldeia e ficou pra saber se os índios eram bons ou ruins. Então Deus
virou tamanduá que era manso e eles o levaram pra casa. O tamanduá ficou lá [...]
11
Para uma discussão desse fenômeno veja White, H.1973 Metahistory, Johns Hopkins University
Press, Baltimore
12
De Conne Pãnda Ríthioc Krenak: coisa tudo na língua krenak (1997) MEC p. 32
13
De Conne Pãnda Ríthioc Krenak: coisa tudo na língua krenak (1997) MEC p. 39
Outros livros ainda contêm narrativas ditas ficcionais e até mesmo poesias
escritas especialmente para esses livros pelos professores/autores, às vezes de
autoria coletiva, outras vezes de autoria individual, criando uma nova
modalidade de, ou talvez confundindo para sempre, o conceito de “autor”:
“ Sinto que sou índio
porque não tenho cara de branco,
meu corpo é diferente,
meu jeito de caminhar é diferente.
Meu cabelo é liso,
Não tenho muita barba
E nem pêlo enrolado no braço e na perna.
Índio tem pêlo liso no suvaco e na canela.
Somos iguais e diferentes.
Diferentes na língua, jeito e costume.
Igual no corpo, na inteligência, no respeito.
Somos todos iguais: índios, negros, brancos.”
14
De Antologia da Floresta 1997 CPI do Acre, Rio Branco p.10~11
tradição oral, cujas distinções de gênero textual são menos definidas e mais
situacionais.
15
Veja o conceito de sujeito ‘pronominal’ de Bhabha, H.K. 1995 Freedoms Basis in the
Indeterminate em Rajchman, J. (ed) The Identity in Question, Routledge, New York e o conceito de sujeito
relacional no perspectivismo indígena de Castro, E.V 2000 Cosmological Deixis and Amerindian
Perspectivism em Lambek, M. (ed) Anthropology of Religion, Blackwell, Oxford
coletivamente, levando alguns a considerá-los até como um fenômeno
novo da arte indígena16.
Na maioria das vezes, porém, sendo tutelados por pessoas de fora das
comunidades indígenas, o processo de editoração desses livros, incluindo o
tratamento gráfico final que lhes é dado, muitas vezes é controlado por
pessoas que acabam também vítimas inocentes das armadilhas que separam a
cultura oral da escrita. Como no caso dos gêneros textuais, muitas vezes esses
“editores” desconhecem o papel e o valor do texto ou elemento visual naquela
cultura indígena e, partindo de uma cultura escrita que dá primazia à palavra
escrita, acabam confundindo-se e atribuem ao texto escrito (que para algumas
comunidades indígenas apenas “ilustra” ou complementa um texto visual)
maior importância do que o texto visual17. Aliás, o diálogo elaborado entre os
textos visuais e escritos presente na nova escrita indígena ainda merece ser
estudado como um fenômeno à parte18.
16
Veja a este respeito o comentário de Meliá, B. 1989 em A Conquista da Escrita Indígena,
Iluminuras, São Paulo. p. 14
17
Veja como exemplo a re-publicação de Shenipabu Miyui pela Editora da UFMG em 2000. O livro
original foi escrito de forma multimodal pelos Kashinawá para quem o texto visual é pelo menos tão
importante quanto o texto verbal sendo que os dois tipos de texto geralmente são interligados. Na re-edição do
livro essa interligação se perde por completo.
18
Veja a este respeito o estudo de Souza, LMTM (2000) Surviving on paper: recent indigenous
writing in Brazil ABEI JOURNAL no. 2
sem grande valor literário (quando alguns desses livros encontram o caminho
para o mercado externo das livrarias nos grandes centros urbanos do país, não
é incomum encontrá-los na seção de Literatura Infantil);e finalmente canônica
porque trata-se de uma escrita que já nasce no bojo da instituição escolar, com
seus mecanismos de inclusão e exclusão curriculares que em várias culturas
formam a base para a construção, destruição ou transformação dos cânones
literários19. Não deixa de haver uma certa ironia no fato de que a escrita
indígena, produto de um setor historicamente marginalizado como sendo
‘primitivo’, já esteja formando, em menos de uma geração, seus próprios
cânones da escrita.
A Estória Escrita
19
vela a este respeito Guillory, J. (1993 ) Cultural Capital: the problem of literary canon
formation, University of Chicago Press, Chicago
20
Veja o gênero narrativo que Gallois 1993 chama de “fala para branco”; veja nota 6 acima.
21
Autor de Histórias de Índio (1997) Companhia das Letras, São Paulo.
tradição oral, e portanto de suas platéias indígenas, esses autores seguem,com
algumas exceções, a tradição escrita e seus gêneros (Souza 2001,2002)22.
22
Souza, LMTM 2001 Para uma ecologia da escrita indígena: a escrita multimodal kashinawá em
Signorini, I. (org) Investigando a relação Oral\Escrito, Mercado de letras, Campinas; Souza, LMTM 2002
As visões da anaconda: a narrativa escrita indígena no Brasil, Semear no. 7, PUCRJ
23
A tentativa de Munduruku de desfazer a imagem negativa do índio aparece timidamente num gênero
de livro/narrativa infanto-juvenil; as narrativas de Jecupé bordam o místico/mítico/esotérico (veja Oré
Awé(1992?) Phytoervas, São Paulo, A Terra dos Mil Povos (1998), Tupã Tenondé (2001) Ed. Peirópolis,
São Paulo.