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0 ue se ensina hoje na escola quando se ensina lite rutura, tendo como premissa que, quando dizemos ‘literatura’, estamos pensando no texto literério e nfo em putra coisa — como simulacros, resumos, histéria de literatura, estilos de época, conjunto de obras ete? 0 que se ensinaria se de fato se “ensinasse literatura? Nas dltimas quatro décadas, tem havido intensa dis ceussio sobre literatura e educagao e uma critica fer renha as priticas escolares dle (nfo)leitura literdrias, Ao contrario do ensino de lingua — que, aos poueos, vai se renevando — a literatura na escola resste as sudangas e se vé relegada a lugar secundrio e sem orga na formago das criancas, dos adolescentes e dos Jovens, Com o refinamento das novas tecnologias & a adestio dos es as, reforgam-se algumas queremos em relagto as prétcasescolmew tienes 2 iteratura? ‘Que rlitancas sto necessras? E possvel (eas: € desejével) potencalzar a Ii- feratura ra forage de clang ejovens, pela via lucaconal? ‘Como pensar as relagoes entre literatura e escola ‘em tempos como os nossos? LEITURA DE LITERATURA NA ESCOLA Maria Amélia Dalvi Neide Luzia de Rezende Rita Jover-Faleiros [orgs.] Eee: Marcos Malono Chrnereaco cia: Anda Cuticle. ee Karina Mota Caso Eonona: Ana Sta Zils Unisinos) ‘Angela Palva Donsio {FP} Caos Albert Faraco (UFPR) Egon de Olvera Rangel PUCSPL {Given Mae ue Ove FSC, oo) Henrique Monteagudo Universidade de Santiago de Compote navi Rajagopal Unies) Mareos Bagno Un aia Marta Perera Schere (UES) Rachel Gazal de Andrade PUCSP Roxane Rojo (UNICAMP) Salma Tannus Mucha PUCSP] Stella Waris Boron icard [8] ‘or-sas. cacao nA FUE SIhoATO cL oS ETORS DE LS, RS etude eta nec Mari Ara Dab Nee Las esd ts over Flos org sto Pal, SP Pas. 2013 Bem stg deensvo|, |. Utara bates een 2 Loser abi Mara Ani. Reade, Nie La de Joel, wae 20 Dieitosresanadoe Pardbota Editorial ua Dr MéoVicente, 394-pkranga ‘04270000 Sie Pale SP pb 11] 061-9262 | 506-8075 fc (11] 2569-263 home page: www parabolaedtorialcombt ‘email prabolagparabotaedtoralcom.br ‘ados a dretorrsevad Neha part deta eve pode se ‘eprduris a tanita po quar foma elu que es {eewnia oe mecca, nuns tein» gre) 0 a8 fem oles ou tance de dam pr pret tole Edons \sen976-95-7934-0662 ‘do texte Maria Amba Os Neide Lunia ce Rezende & its Jover Faleos, 201, ‘da eo Padbola Eto, do Paulo, junho de 2013. Tenho um grande respeito, ¢ principalmente um grande cart inho, pelo oficio de professor e por isso mesmo me reconforta saber que eles também slo vitimas de um sistema de ensino ‘que os induz a dizer besteiras. ...] Lembro-me de um profes- sor de literatura do colégio, um homem modesto e prudente, que nos conduzia pelo labirinto dos bons livos sem interpre~ tages rebuscadas. Esse método possibilitava a seus alunos uma participacao mais pessoal e livre no milagre da poesia GABRIEL GARCIA MARQUEZ © Oo © © Capitulo 3 A leitura literaria como experiéncia Marcin Casrat. 04 Siva Para Elena Quintana lépides... Que importa se depois de sud —tenha “ela” partido, catado, mudado, sumido, exquecide, sua vida que foi s6 tua e, esta, ela det para ninguér, @ certos momentos que, ‘20 contrério do que pensas, fazem parte de tua vida presante endo do teu passado. E abrem-seno tou sorriso mesmo quando, deslembrado deles, Ab, nem qu Wise catalda So 8 Do que nao consegue ser olvidado ‘A experiéncia pode ser pensada como os acontecimentos que vivenciamos, os lugares pelos quais passamos em tempos remotos, os espacos que habitamos no tempo presente, Toda- via, creio que 0 conceito deva ser refletido, ele proprio, em sua historicidade. A experiéncia de vida na passagem do século XIX ao XX difere em grande medida da experiéncia que nos consti- tui nas primeiras décadas do século XXI; 0 ritmo do tempo ace~ erado e fragmentado; a organizagao dos espagos impréprios ao siléncio; excesso de informagao que nos atordoa; uma sensa- ‘go de sentir as nossas herangas como “um fora do tempo”, tal como lembrado pelo poeta Mario Quintana, Este capitulo esté organizado nessa perspectiva, para re- fletir sobre a Jeitura como experiéncia no curso do tempo, aqui lo que nos afeta por meio dos sentidos passados, das sensagdes do presente, incluindo as que sonhamos em projegBes para o futuro e que, por isso mesmo, no conseguem ser olvidadas. Em ensaio emblemético de 1933, “Experiéncia e pobreza’, Walter Benjamin (1982-1940) refletiria sobre 0 conceito de ma- neira instigante. Ele sublinha no texto a pobreza dos homens que retornaram da primeira guerra mundial emudecidos, de- pauperados de experiéncia comunicvel. E mais, de modo a questionar a répida substituigao da tradigao pela emergéncia de uma sociedade fundada nos meios técnicos, nas invengdes, convoca arquitetos, pintores, escritores, para realizar a tarefa de lembrar. Rememora, ento, a tradigao cultural acompanha- do de James Sydney Ensor, pintor belga; Paul Klee, pintor suf- 0; Adolf Loos, arquiteto austrfaco; Paul Scheerbart, escritor aleméo; Jules Verne, escritor francés; Le Corbusier, arquiteto suigo, apenas para citar alguns deles, como se mirdssemos um caleidose6pio de miiltiplas nacionalidades. Com os intelectuais, ea partir da produg&o cultural por eles criada na experiéncia possivel do periodo entreguerras, 0 filésofo alemao refletiria sobre a contradigao dos anos 1930, época marcada por um tre- mendo desenvolvimento tecnolégico, mas cuja pobreza cultural deixava tragos inexordveis na humanidade. A pobreza da experiéncia, por essa chave de Benjamin, nos auxilla a obsorvar a atual modernidade, designada por alguns estudiosos do pés-modernidade, de maneira cautelosa, pois, nao raro, paira o deslumbramento desmedido em relagao as novidades tanto quanto os perigos do esquecimento das hist6- rias que nos constituiram. Ainda segundo os comentarios de Benjamin, note-se naquele ensaio a experiéncia mediada pelas diversas formas de expresso cultural, incluindo-se a narrati- va, a escritura, a literatura, expressées culturais muito caras a esta exposigaéo. Leitura literéria: ingrata criatura? ‘Ah, nem quelras saber © quanto Devos ingratacratura, (Maria Quintana) | A experiéncia da humanidade por meio do material lite- rério ganha forma pelo menos desde a antiguidade clissica. A narrativa, como se sabe, nao tem uma origem exata, consistin- do on dimensao estruturante da condigéo humana. Herdamos © mito, a poesia, o drama, as narrativas heroicas, que foram se multiplicando em géneros identificdveis porque recorrentemen- tenarrados e escritos, constituindo-se em matéria da meméria. Para refletir sobre o lugar ocupado pela literatura na for- magao dos nossos sentidos mnemdnicos, sobre as préticas da leitura ao longo da histéria que dizem respeito a esse campo, caberia, talvez, um exercfcio de convocar narrativas memo- rialisticas. Nos limites deste estudo, todavia, seleciono as pri- meiras experiéncias com a leitura literéria rememeradas por Mica Carlet ta Graciliano Ramos em seu romance autobiogréfico Inféincia. Sio arquivos da meméria, que falam da experiéncia e, por essa condigo, podem iluminar a criatura de que tratamos nesta exposigao, quic, com imensa gratidao. As primeiras experiéncias com a leitura literéria assina- lam um meio privilegiado de conhecimento entre 0 sujeito e o mundo. Em ensaio emblematico, 0 critico Antonio Candido (1972) ressaltaria a potencialidade que guarda a literatura de confirmar no homem a sua condigao de sujeito. Por apropriar- -se da linguagem, o homem é capaz de inventar para além dos usos cotidianos da lingua, imaginar situagdes jamais vivencia- das, transferir-se para os papéis representados pelos persona- gens, além de outras dimensdes préprias do fazer literdrio e de sua recepgao. Infancia, de Graciliano Ramos, foi publicado pela primeira vez em 1945, em uma colegao da Livraria José Olympio Editora, intitulada Memérias, Didrios, Confissées'. Graciliano Ramos, ao recuperar fragmentos do perfodo de sua infancia, enfatizaria a compreenséo de si mesmo, daquele contexto social no interior de Alagoas, na passagem do século XIX ao XX, em que viveu. Corroborades por notfeias biogréfi- cas, os dados colhidos no livro indicam que 0 autor nasceu em Quebrangulo (Alagoas), em 1892, ¢ no perfodo da infancia para fa adolescéncia, muda-se sucessivamente, para Buique (Per- nambuco), Vigosa (Alagoas), Macelé e retorna a Vigosa. As me- mérias registradas em Infancia referem-se, aproximadamente, a0 perfodo de 1892 a 1906 —a infancia e o inicio da puberdade do escritor. + Algumas dessas reflexdes foram formuladss em minha tese de doutoredo, ddafendide no IEL/UNICAMP em 2004 e publicada posteriormente ern Mércia Cabral da Silva. Uma histria da formaco do leitor no Brasil. Rio de Janeiro: AUER), 2009. Experiéncia com a literatura: mediagao da familia e da vida social Por meio de um narrador construfdo em 1* pessoa, acom- panha-se a trajetéria da crianga narrada nas paginas de Infiin- cia que, apés ter percorrido diversas escolas, sem que houvesse aprendido a ler, recorre 4 mediagéo de um membro da familia — a prima Emilia — com o intuito de aproximar-se da prosa literéria: Era necessério que a priminha lesse comigo © romance e me auniliasse na decifracao dele. Emilia respondeu com uma per- gunta que me espantou. Por que ndo me arriscaria a tentar a leitura sozinho? Longamente Ihe expus a minha fraqueza mental, a impossibilidade de compreender as palavras dif. ceis, sobretudo na ordem terrivel em que se juntavam [...) Emilia combateu @ minha convicgéo, falou-me dos astréno- mos, individuos que liam no céu, percebiam tudo quanto ha no e&u [...). E tomei coragem, fui esconder-me no quintal, ‘com os lobos, o homem, a mulher, os pequenos, a tempesta- de na floresta, a cabana do lenhador. Reli as folhas percorridas. E as partes que esclareciam derra- mavam escassa luz sobre os pontos obscures. Personagens diminutas cresciam, vagarosamente me penetravam a inteli- géncia espessa, vagarosamente (Ramos, 1993: 190- 191) £ possivel observar no fragmento acima alguns aspectos fundamentais relativos as primeiras experiéncias com a leitura literéria, Em um primeiro plano, tem-se a qualidade da me- diagdo exercida pela prima Emflia. Diante de um leitor inex- periente, leva-o a realizar associagdes entre os elementos da natureza examinados pelos astrdnomos no céu e as possiveis dificuldades verificadas pelo leitor, ao entrar em contato pela primeira vez com os elementos préprios da escrita literdria: “Emilia combateu a minha convicgdo, falou-me dos astréno- mos, individuos que liam no eéu, percebiam tudo quanto hé no i 3 & cou, [1 E tomet coragem, fui esconder-me no quintal, com os Tobos, o homem, a mulher, 0s pequonos, a tempestade na flo- rosta, a cabana do lenhador” (Ramos, 1993: 190-191). A quali- dade da mediag&o entre o leitor em seus primeiros ensaios com a matéria literdria constitui-se, assim, aspecto fundamental a ser considerado ao longo desse processo. De outra parte, convém atentar para os elementos préprios da literatura, como a construgao dos personagens, a possibi- lidade de estimular a imaginac&o por meio da transfiguragao da realidade em matéria literdria, indices capazes de provocar ‘a curiosidade e a motivagdo para a leitura por parte de quem. ainda nao desenvolveu a experiéncia necesséria. Essas dimen- sees, dentre outras, costumam favorecer uma aproximagéo da loitura literéria, com a possibilidade de abertura para espagos de formacio promissores. Nao se pode esquecer também que, naquele contexto re- memorado, a literatura constituia-se dimensio formadora por utras razfes: de umn lado, porque permitia a crianga conhecer ‘98 conceitos geograficos, tragando analogias com as aventuras dos herdis de capa e espada; o que conferia visualidade aos conceitos, evitando a repetigdo enfadonha dos nomes dos rios e das capitais: (Os meus colegas se afastavam de mim, declamavam as capi- tals, 0s ris de Europa, Eu mascava os prolegémenos: vinte @ ‘quatro horas, trezentos e sessenta e cinco dias, raga branca, raga negra. Quando tomei pé da Europa, eles exploravarn sutras partes do mundo, Surdo as explicagBes do mestre, Siheio aos remoques dos garotos, embrenhava-me na leitu- fa do precioso fasciculo, escondido entre as folhas de um ‘hrlas. As vezes procurava na carta os lugares que 0 ladrdo terrvel percorrera, E 0 mapa crescia, povoava-se,riscava-se de estradas por onde redavam cabecas e diligéncias (Ramos, 1993: 214) Por outro Angulo, trata-se de material formador que Ihe permitia exercitar a imaginagéo criadora, “procurando os la- drdes terriveis no mapa’, visitando cidades nunca antes percor- ridas, possibilitando imaginar realidades fora do seu préprio cfreulo de experiéncia. Conheci desse jeito varias cidades, vivi nelas, enquanto os ppequenos em redor se esaoelavam, num barulho de feira. O rumor no me atingla. Em vao me falavam. Sacudido, sobres- saltava-me, as ideias ausentes, como se me arrancassem do sono, Olhavam-me estupefato, devagar me inteireva da reali- dade (Ramos, 1993: 214) As relagoes entre a arte e a imaginagao criadora no perfo- do da infancia tem merecido a atenco dos estudiosos. Vygotsky 2987) jé afirmava que a dicotomia entro fantasia e realidade prépria do senso comum mostra-se infrutifera, uma vez que a fantasia como resultado do exercicio a partir da imaginagdo criadora nao significa fuga da realidade. Ao contrério, no cam- po das manifestagdes artisticas, revela um modo qualitativa- mente diferenciado de se penetrar no real. _Acompanhando-se 0 movimento do narrador em Infincia, assiste-se a outra forma de mediagdo entre a crianga e a litera tura, Trata-se da modiag&o entre o narrador o o tabelido Joro- nimo Barreto, um dos poucos possuidores de biblioteca parti- cular descritos no romance: Dirigi-me a casa, subi a calada, retardei o passo, como de costume, diante des procurasdes e piiblicas-formas. E bat 3 porta, Um minuto depois estava na sala, explicando meu infortinio, solicitande o empréstimo de uma daquelas ma- ravilhas |...]. Foi uma inexplicdvel desaparico da timidez, quase desaparigao de mim mesmo. Expressei-me claro, exibi 08 gadanhos limpos, assegurei que no dobraria as folhas, no as estragaria com saliva. [..] Jerénimo abriu a estante, crn emparincs a Z 58 centregou-me sorrindo © Guarani, convidou-me a volta, fran- queou-me as colegdes todes, Retirei-me enlevado, vesti em papel de embrulho a percal na vermelha, entretive-me com d, Antonio de Mariz, Ceca Peri, fidalgos, aventureiros, o Paquequer. Certas expresses me recordaram a seleta e a linguagem de meu pai em lan- ces de entusiasmo. Vi o retrato de José de Alencar, barbado, semelhante a0 Bardo de Macaibas, ¢ achei notavel os dois usarer uma prosa fofa (Ramos, 1993: 212-213), Note-se a referéncla a leitura de um cldssico® da literatu- ra brasileira, 0 leitor, nesse cenario, com bastante autonomia, afastava as dificuldades diante da linguagem elaborada, diver- tindo-se, inclusive, com os tipos criados por José de Alencar: “d. Antonio de Mariz, Cecilia, Peri, fidalgos, os aventureiros”. Além disso, as expressées mais complexas e de inicio tio temidas foram clevadas & condig&o de prosa fofa; ganhavam, portanto, estatuto notdvel na visio do leitor, dessa vez mais experiente. Por outro lado, merece observacao 0 acesso a um acervo He terdrio amplo, necessério & construgdo da experiéneia a partir da literatura. Lé-se no fragmento: no lugar da dosagem relacio- nada & complexidade do texto por parte do adulto — expressa muitas vezes em leituras faceis pensadas em funcao de faixas etdrias definidas, seria proveitoso convidar o leitor a indicar, ele préprio, as leituras e temas que mais Ihe provocam curio~ sidade e interesse. 0 personagem Jerénimo Barreto pode ser considerado, portanto, um mestre proficiente em assuntos re- lacionados a préticas de leitura de natureza literéria. 2 O limo cléssico & aqui referido em uma das acepgdes que lhe atribuitalo Calvi 110 (1996) —3 lu da experiéncia e da formacao. “Os liv cléssicos so aqueles livros que chegem até nés trazendo consigo as marcas das leituras que precede ram a nossa e ats de si os tragos que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram” (Calvino, 1998: 25). Outra forma de mediagio a ser lombrada diz respeito & vida em sociedade. No romance, pode-se acompanhar a im- portancia da vida social em diversas passagens. Destacam-se, em particular, a leitura de romances ¢ as reunides conduzidas pelo literato e ajudante do correio Mario Venancio, lembradas em depoimentos do autor: “Os individuos que me conduziram 1 esse vicio foram o tabeliao Jerdnimo Barreto e o agente de correio Mério Vendncio, grande admirador de Coelho Neto também literato” (Silveira, 1939: 8) Aquela época foi também a fase da fundagao de uma socie- dade teatral em Vigosa, que, por influéncia e ajuda financeira de um senhor de engenho, major Pedro Silva, foi instalada em frente a cadeia e passou a ser chamada Escola Dramética Pedro Silva. 0 narrador de Infancia relata, com fineza de detalhes, 0 movimento que a cidade conheceu: Ladtitharam, rebocaram e caiaram 0 prédio; erqueram o pal: 0, os cendrios da floresta, do palicio e da choupana; Joa quim Correntao esmerou-se no pano de boca, vistoso, com trés deusas peitudas. E, depois de numerosos ensaios, leva: ram & cena O Plebeu, que arrancou légrimas da plateia (Ra mos, 1993: 225}, Mario Vendncio, grande apreciador da arte dramética, sur- ge na cidade em meio a inauguragio do novo empreendimento cultural e anunciando novidades para os jovens da cidade: a fundagao de um periddico, que resultou em 0 Dilticulo, jornal da juventude, e as reunides em sociedades literérias, Marilf Ramos (1979), em estudo sobre aspectos biogréficos ¢ literdrios relativos ao irméo, Graciliano Ramos, afirma ter Graciliano 12 anos de idade quando fundou, junto com o primo Cicero Vasconcelos, 0 jornal 0 Diliculo. Mie cab da Si 8 © primeiro namero do periédico data de 24 de junho de 4904 ¢ péde ser recuperado por meio do estudo mencionado. Diagramado em duas colunas e constituindo-se de quatro pégi- nas, seguem-se ao editorial contos e poemas: 0 conto Pequeno pedinte, de autoria de Graciliano Ramos, o conto Pegueno ndu- Frago, escrito por Cicero Vasconcelos, o poema Enfim, de Alber- to de Oliveira. Além das manifestagées literérias, registravam- “se charadas ¢ noticias sobre 0s acontecimentos sociais @ cul- turais da cidade. Note-se que o jornal 0 Diliiculo 6 capaz de informar relatt- yamente ao papel de uma imprensa desse tipo & época: expres- so de inclinagdes literérias, incentivo 4 sociabilidade, obra de entretenimento. Aliado de peso na formagao cultural dos jovens. Mario Vendncio, idealizador de t&o interessante periddico, conforme relata 0 narrador de Infancia, foi sem demora reco- heeido como literato, grande aprectador de teatro ¢ com amplo dominio da vida de escritores e escolas literérias, De tal modo, fra comum a reunidio dos membros da Escola Dramética Pedro Silva, os da Instrutora Vigosense, de que tomavam parte Gra- ‘iliano Ramos, o primo Cicero Vasconcelos ¢ Mario Vendncio, como bem lembram dados biogréficos sobre o escritor, coleta~ dos por Moacir Sant’ana (1992) 6 sua irma, Marilf Ramos (1979). FE curioso notar a reagéo inicial do pequeno leitor com respeito as ideias literdrias conduzidas por Mério Venancio e seu grupo: {J entrava na sala, enxugando os dedos longos, sentava- ‘Se 8 mesa coberta de jornais, cartas, almofadas e carimbos, perto da estante: =O naturalism, Perplexo, eu examinava as pessoas em redor, procureva dis- tinguir nelas 0 efeito da arenga dificil. Estariam compreen- dendo? As vezes me assustavam discussées embrulhadas: rapazes silenciosos animavam-se, discorriam com exagero édio, religiosamente. Isso me dava tontura e enjoo. Uma idefa clara me surgia: os romances agradéveis eram bugigan- gas. Em troca, exibiam-me insipidez e obscuridade. Ali é que estava a beleza, especialmente na prosa de Coelho Neto (Ra- mos, 1993: 227) Depreendem-se do fragmento elementos ilustrativos do grande esforgo, por parte do leitor em formagao, para acom- panhar as novidades intelectuais. Por um lado, as discussées sobre o Naturalismo nao faziam sentido porque ainda distan- ciadas do sua capacidade de compreensao. Por outro, a énfa- se na dofesa das ideias também soava como atitude estranha, pois se assemelhava as desavengas, atitudes antes vivenciadas no meio familiar, Provavelmente, as nogdes eram emitidas em ‘voz alta, em tom que Ihe causava desconfianga e receio. Havia, além disso, uma nogdo que Ihe parecia clara: os romances com os herdis de capa e espada, que tanto admirava, tinham menor valor do que a fiegdo desconhecida. ‘Todavia, por mais que aquele novo ambiente Ihe causas- se “tontura e enjoo”, aponta-se para a perspectiva da apren- dizagem de conceitos novos, a possibilidade de se aproximar “da literatura encrencada’, que de alguma forma devia atraf-lo. Verifica-so, portanto, que o pequeno leitor resistia: Nao me importavam a beleza: queria distrairme com aventu- ras, duelos, viagens, questdes em que os bons triunfavam e os malvados acabavam presos ou mortos. Incapaz de revelar a preferéncia, resignei-me e aguentel as Baladihas, o Romancei- 0, outros aparatos elogiados, que me revolveram o estémago. Cochilei em cima deles, devolvi-os receando que me forgas- sem comenté-los. Para rim eram chinfrins, mas esta opiniao contrariava a experiéncia alheia. Julguei-me insuficiente, calei- -me, engoli bocejos. Enquanto o dono da casa explanava a literatura encrencade, esforce-me por entendé-la. Senti medo 4 ice cabaldaSia B Se de une autoridade Ramos, 1972 227 Importa assinalar que, por mais estimulante que fosse 0 ambiente, ¢ a hipétese segue nessa direcao, havia dificuldades ha apreensio dos conceitos literdrios que eram construfdos Mas, em meio a vacilagdes, cochilos e tonturas, 0 pequeno lei- tor seguia adiante: tuncionstio postal facitou-me @ correspondéncia com Raa ertve catélogos de Garier e de Francisco Ales, trex cortas, recebi faturas e pacotes. Ndo possuindo re- cares, habituerme a furtar mioedas na loje, quardé-las num frasco bojudo ocut sob fronhas etoalhes no compartments caper da cdmoda. Entre niques epratas surgiram ofulas aerchi as prateleiras da estante larga, presente de aniver- sic (Rarnos, 1993: 228) Mario Venancio nao apenas expunha nogdes sobre tendén- cias literdrias e estilos de seus autores favoritos: Coelho Neto, ‘Adolfo Caminha, dentre outros. Estima-se que, se nao fossem suas indicagdes de catélogos de livrarias distantes, 0 peque- no leitor encontraria obstdculos para adquirir os materials de Ieitura, haja vista a dificuldade financeira de iniclar a propria colegéo. Contudo, e apesar da sugerida dificuldade, o leitor “en- chia as prateleiras da estante larga”. Necessério, por outro Angulo, acrescentar a qualidade da mediagio exercida por Mario Vendncio as conclusbes prelimi- nares sobre as influéncias exercidas por JerOnimo Barreto 13 formagdo inictal do pequeno leitor por meio da prosa por e! designada de “encrencada” Fo jovem literato nfo exerceu pequena influéneia, Os dados analisados apontam, de um lado, para a formacio dos primei- ‘ros conceitos no que respeita a tendéncias e escolas literdrias. De outro, para a ampliagdo do universo de interesse, onde ca- biam as prosas de Coalho Neto, de Adolfo Caminha, de Alufzio de Azevedo, de Ega de Queirés, entre outros autores expressi- vos. Vé-se assim que, de fato, a recepcao da “prosa enerencada” ocorreu entre um misto de receio e admirag&o. Nao obstante, desenvolveu-se. O leitor, mais ainda. Por ultimo Alleitura de ficedo exerceu grande importancia na forma- 40 inicial do leitor descrito nas paginas de Infancia. Por um lado, enfatizou-se o papel da mediagdo de qualidade, no am- ito privado, exercido pela prima Emilia, grande motivadora no periodo inicial. Por outro, observaram-se as influéncias de natureza diversa exercidas na vida em sociedade, fosse pelo tabeliéo Jerénimo Barreto, proprietario de biblioteca particu- lar, fosse por Mario Venancio, literato e mentor intelectual do jovem em formagao, Ademais, convém assinalar que as ideias extrafdas do ro- mance analisado poderiam contribuir para a implementagao de politicas ptiblicas relacionadas & formagao do leitor tao em voga nas discussdes contemporaneas sobre leituras rarefeitas ¢ leitores pouco experientes ou mesmo ensaiar algumas possiveis respostas para as questées propostas para este debate: A litera~ tura e seu ensino: 0 que ler? Por qué? Dentre as prineipais contribuigdes observadas ao longo do estudo realizado, destacam-se: a organizagdo de espacos cul- turais de formagao, como a escola dramatica Pedro Silva; as rounides onde se liam e se discutiam conceitos relacionados & literatura, conduzidas por Mario Venancio; o exercfeio da es- crita do jornal, 0 Diliculo, desenvolvido pelos jovens da cidade de Vigosa, por meio do qual emergiam manifestagées literé- Tias e a reflexio sobre os acontecimentos culturais e sociais & i Mia Cal de g que agitavam a cidade. A leitura dos cléssicos nacionais, assim ‘como das obras relacionadas a literatura universal, também merece ser enfatizada por seu valor hist6rico e social Por iiltimo, sublinke-se que esses elementos atualizados poderiam resultar em préticas de leitura em meio as quais fossem valorizadas a experiéncia ¢ a formagio de criangas e jovens na sociedade brasileira contemporanea & luz do exerel- ‘cio da meméria. Sem olvidar a atividade de narrar, com Mario Quintana, observa-se qu Ha bens inaliendvais, hé certos momentos que, ‘Ao contrario do que pensas, Fazem parte de tua vida presente E nao do teu passado. E abrem- se no teu Sorriso mesmo quando, desiembrado deles, Estiveres sorrindo a outras coisas, ‘Ah, nem qusiras saber 0 quanto Deves & ingrata criatura A thing of beauty is a joy for ever disse, ha cento e muitos anos, um poeta Inglés que no conseguiu morrer. (Quintana, 1999: 101) Referéncias Bensanm, W. Experience and Poverty. In: Jennuncs, M. W., HOWARD, E. & ‘SmarH, G. orgs.). Selected Writings : Walter Benjamin (Volume 2: 1927- 1934), Cambridge, Mass: Harvard College, 1999: 731-735. Catvino, L. Por que ler os cldssicos. Séo Paulo: Companhia das Letras, 198. Candido, A. Ficedo e confissio: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1999. ___ Aliteratura e a formago no homem. In: Ciéncia e cultura. 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