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O Crime de Dano

Sumário. Com o intuito de prevenir e reprovar a ação de


sujeitos refratários à boa ordem social e à garantia do direito de
propriedade, o legislador — à maneira do médico que propina
remédio amargo para mazela renitente — estabeleceu penas
aos que praticam dano, crime em que incorrem vândalos,
pichadores, grafiteiros, etc. Em guarda, pois!

I. O abuso de direito de manifestação (e melhor diria


insensatez) imprimiu, pouco há, a marca do vandalismo em
dois patrimônios ou bens públicos: o monumento a Borba
Gato, na capital do Estado de São Paulo, e o prédio do
Ministério da Agricultura, em Brasília (fotos ns. 1 e 2).

Não é para aqui atear o archote da crítica acerca dos


méritos artísticos e das razões de ordem histórica que
presidiram à ereção da colossal estátua do bandeirante Manuel
Borba Gato (ao aviso de alguns ofensiva do bom gosto e do
senso estético).

A questão é objetiva e de fato: a mão profana, que lhe


deitou fogo, perpetrou, em tese, ato ilícito penal.

Em verdade, “destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia”,


reza o Código Penal que configura o crime de dano (art. 163).

Os verbos do tipo, na lição de Damásio E. de Jesus,


significam:

I- destruir – demolir, desfazer o objeto material;

II - inutilizar – torná-lo imprestável, inútil, ainda que


parcialmente;
2

III - deteriorar – arruiná-lo, estragá-lo, causando-lhe


modificação para pior(1).

Incorre, pois, no caso da lei o preso que empreende fuga


com dano do patrimônio público (ainda que seja o amor da
liberdade expressão incoercível do espírito humano).

Também comete o crime de dano o sujeito que, em ato


de cru vandalismo, picha prédio, inutilizando-lhe a pintura e
deteriorando-o(2).

Mas, nos casos de insignificante a lesão ao bem jurídico


protegido e mínimo o grau de cesurabilidade da conduta do
agente, pode o Magistrado, com prudente arbítrio, deixar de
aplicar-lhe pena (e até mesmo pôr termo à “persecutio criminis”).
É que, nas ações humanas, o Direito Penal somente deve
intervir como providência “ultima ratio”.

II. No intento de proteger os bens públicos (e particulares)


da ação nefasta de indivíduos de má indole e refratários à
disciplina social e aos bons costumes, preveniu e reprimiu o
legislador tais infratores, cominando-lhes adequada sanção.

A Justiça Penal, empenhada sempre em dar a cada um o


que merece, não se tem demitido deste árduo e imperioso
ofício, como o ilustram os acórdãos adiante reproduzidos, do
Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo:
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PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL


D ÉCIMA Q UINTA C ÂMARA

Apelação Criminal nº 1.279.311/5


Comarca: Araraquara
Apelante: TAS
Apelado: Ministério Público

Voto nº 3412
Relator

– O crime de dano não requer dolo


específico, senão genérico, que se
resume à simples voluntariedade de
inutilizar ou destruir coisa alheia
(art. 163 do Cód. Penal).

– Tratando-se de bem de uso comum


da coletividade, não é lícito ao
particular, ainda nos assomos de
cólera e sob o efeito de embriaguez
voluntária, danificar aparelho
telefônico (“orelhão”). A preservação
do patrimônio público deve ser
apanágio de todo cidadão.
4

– A substituição de pena corporal


por multa é desaconselhável se não
atende aos princípios que lhe devem
reger a aplicação: necessidade e
suficiência da reprovação e
prevenção do crime e edificação
das pessoas na observância da lei.

1. Inconformado com a r. sentença que proferiu o MM.


Juízo de Direito da 2a. Vara Criminal da Comarca de
Araraquara, condenando-o à pena de 6 meses de detenção e 10
dias-multa, substituída a pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos (prestação de serviços à comunidade),
por infração do art. 163, parág. único, nº III, do Código Penal,
interpôs recurso para este Egrégio Tribunal, com o escopo de
reformá-la, TAS.

Em seu arrazoado recursal, afirma que o fato que lhe foi


imputado praticara-o sem dolo; pelo que, merecia absolvido.

Acrescenta que, no dia em que danificara o telefone


público, estava embriagado.

Pleiteia, destarte, absolvição ou aplicação de pena de


multa somente (fls. 74/78).

A douta Promotoria de Justiça respondeu ao recurso,


refutando-lhe os argumentos; de igual passo, propugnou a
manutenção da r. sentença de Primeiro Grau (fls. 80/83).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em esmerado


e escorreito parecer do Dr. José Eduardo Diniz Rosa, opina
pelo improvimento da apelação (fls. 90/94).

É o relatório.
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2. A Justiça Pública meteu em processo o réu porque, aos


9 de março de 2000, na Rua Deputado Emílio Carlos (Vila
Melhado), na bela cidade de Araraquara, danificou um
aparelho telefônico público (“orelhão”), de propriedade da
Telefônica, concessionária de serviços públicos.

Reza a denúncia que policiais militares foram solicitados


para atender a uma ocorrência de dano.

Constava que certo indivíduo, como não lograsse


completar uma ligação, acabara por seccionar o fone, mediante
uso de força muscular.

De posse das características do autor do fato, a Polícia


entrou a diligenciar e deteve-o nas adjacências.

Instaurada a persecução criminal, transcorreu o


processo na forma da lei; ao cabo, a r. sentença de fls. 66/68,
julgando procedente a denúncia, condenou o réu, o qual,
jurando inocência, comparece perante esta Segunda Instância,
sonhando com absolvição.

3. A despeito dos bons esforços de seu ilustre patrono,


não há atender à pretensão do réu, visto que o incrimina o
conjunto probatório.

Na real verdade, em seu interrogatório judicial, admitiu


o réu, por miúdo, a autoria do fato criminoso. Esclareceu que
tentava comunicar-se por telefone com a ex-mulher, porém
não o conseguia. Irritado, dera com o monofone contra o
gancho, quebrando-o (fl. 45).

É certo que afirmara não era sua intenção danificar o


aparelho, ajuntando que estava embriagado.

A versão escusatória, no entanto, não merece acolhida.


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A razão é que apenas a embriaguez completa,


proveniente de caso fortuito ou força maior, elide a
imputabilidade penal, consoante a fórmula do art. 28 do Código
Penal.

A lição de Damásio E. de Jesus faz muito ao intento:

“Se o sujeito comete uma infração penal sob o efeito de


embriaguez, voluntária ou culposa, não há exclusão da
imputabilidade e, por consequência, não fica excluída a
culpabilidade. Ele responde pelo crime” (Código Penal Anotado,
9a. ed., p. 118).

Por outra parte, o crime de dano não requer dolo


específico, senão genérico; este se traduz, como o ressaltou o
abalizado parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, “na simples
voluntariedade de causar dano à propriedade alheia”.

Esta, com efeito, é a licão dos mais reputados autores:

“O resultado de dano é, neste crime, inseparável do evento. Se há


vontade e consciência de destruir, inutilizar ou deteriorar, há,
evidentemente, vontade de causar dano e, pois, de prejudicar. O
que pode ocorrer é o concurso de outros fins que, se não mudam
o título do crime, são irrelevantes… Não se exige, portanto, um
específico animus nocendi” (Heleno Cláudio Fragoso, Lições
de Direito Penal, Parte Especial, 1980, vol. II, pp. 26-27).

Comprovada a materialidade do fato (fls. 36/40) e


liquidada a culpa do réu, era sua condenação imperativo de
justiça.

Tratando-se de bem de uso comum da coletividade, não


é lícito ao particular, ainda nos assomos de cólera ou sob o
efeito de embriaguez voluntária, danificar aparelho telefônico;
o respeito ao patrimônio público deve ser apanágio de todo
cidadão.
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A pena foi imposta segundo craveira módica: a mínima,


substituída por prestação de serviços à comunidade.

O pedido de substituição da pena corporal por multa


não atenderia ao princípio que lhe deve reger a aplicação:
prevenir novos delitos, expiar a falta cometida e edificar as
pessoas na observância da lei.

Mantenho, por isso, ante os bons fundamentos em que


assenta, a r. sentença proferida pelo distinto e culto Juiz
Dr. Marcos Antonio Corrêa da Silva.

4. Pelo exposto, nego provimento ao recurso.

São Paulo, 1º de novembro de 2001

Carlos Biasotti
Relator
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PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL


D ÉCIMA Q UINTA C ÂMARA

Apelação Criminal nº 1.209.491/2


Comarca: Avaré
Apelante: MSP
Apelado: Ministério Público

Voto nº 2438
Relator

– “A confissão livre é, sem contradição, a


prova mais peremptória, aquela que
esclarece, convence e satisfaz, no mais
alto grau, a consciência do Juiz: omnium
probationum maxima” (Cons. Vicente
Alves de Paula Pessoa, Código do
Processo Criminal, 1882, p. 157).

– Expressão incoercível do instinto


humano, o amor da liberdade elide
o caráter de ilicitude penal da fuga
do preso, exceto se empreendida
mediante violência contra pessoa
ou com dano do patrimônio
público (arts. 352 e 163 do Cód.
Penal).
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– Tratando-se de pena de curta


duração, não é defeso ao
Magistrado conceder ao condenado
reincidente o benefício do regime
semiaberto, se mais compatível
com o critério de suficiência para a
reprovabilidade e prevenção de
novas infrações (art. 33, § 2º, letra c,
do Cód. Penal).

1. Da r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito da 1a.


Vara da Comarca de Avaré, condenando-o a cumprir, sob o
regime fechado, a pena de 9 meses de detenção, além de 15
dias-multa, por infração do art. 163, parág. único, nº III, do Código
Penal, apela MSP para este Egrégio Tribunal, com o intuito de
reformá-la.

Nas razões que lhe apresentou dedicado e culto patrono,


alega não procedeu com dolo, visto que não lhe estava no
ânimo destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia; tão só o
movia o intuito de recobrar a liberdade, o que não constitui
crime.

Pelo que, pleiteia à colenda Câmara digne-se prover-lhe o


recurso para o efeito de absolvê-lo (fls. 324/328).

Apresentou contrarrazões o douto representante do


Ministério Público: contrapôs sólidos argumentos à pretensão
da nobre Defesa e propugnou a manutenção da r. sentença de
Primeiro Grau (fls. 330/332).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em sólido,


incisivo e criterioso parecer da Dra. Eloisa de Sousa Arruda,
opina pelo improvimento do recurso (fls. 350/352).

É o relatório.
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2. Foi denunciado o réu porque, no dia 20 de fevereiro de


1997, pelas 2h, na Penitenciária Dr. Luciano de Campos, em
Avaré, procedendo em concurso e com unidade de propósitos
com outro indivíduo, destruiu as barras de ferro da janela da
cela, danificando o patrimônio do Estado.

Rezam os autos que o réu e seu comparsa estavam


recolhidos naquele estabelecimento prisional e, na referida
data, serraram as barras de ferro de uma das celas,
destruindo-as.

Instaurada a persecução criminal, foi o réu, ao cabo,


condenado pela r. sentença de fls. 299/303.

Descontente, com a solução do pleito, espera que esta


colenda Corte de Justiça lhe atenda ao apelo, absolvendo-o.

3. Da materialidade e autoria do fato imputado ao réu há


prova eloquente nos autos: o laudo pericial atesta a veracidade
da alegação da denúncia, isto é, que a grade metálica de
proteção da cela, onde se encontrava recolhido o apelante,
foi serrada (fl. 47).

As fotografias que ilustram o laudo pericial


demonstram-no seguramente (fls. 49/51).

A autoria confessou-a o apelante, acima de todo o


engano: “(…) ajudou a serrar a barra de ferro da cela” (fl. 186 v.).

À vista da conclusão técnica irrefutável e da confissão


do réu, que se tem pela rainha das provas, foi a certeza que
serviu de base à prolação do edito condenatório.
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Com efeito, segundo a Doutrina clássica, a confissão


prestada em Juízo tem força absoluta:

“Ora, a confissão livre é, sem contradição, a prova mais


peremptória, aquela que esclarece, convence e satisfaz, no mais
alto grau, a consciência do Juiz: omnium probationum maxima”
(Cons. Vicente Alves de Paula Pessoa, Código do Processo
Criminal, 1882, p. 157).

4. Ainda que próprio do homem o anseio de liberdade —


“Sempre a liberdade… Algo haverá mais importante do que ela? Tenho
para mim que dela depende a definição do homem” (Goffredo Telles
Junior, A Folha Dobrada, 1999, p. 321) —, a fuga do condenado
constitui violação de dever inerente a seu estado e falta
disciplinar grave.

O detento que — deitando a barra mais longe —


destruir o patrimônio público, mesmo que sob color de
alcançar a amplidão da liberdade, esse comete o crime previsto
no art. 163, nº III, do Código Penal (dano qualificado).

Damásio E. de Jesus, penalista de grande suposição,


discorreu do ponto nesta substância:

“O elemento subjetivo do tipo do crime de dano é simplesmente o


dolo, vontade de destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia. O
tipo não exige qualquer outro elemento subjetivo ulterior. Assim,
responde por dano qualificado o preso que danifica cela a fim de
fugir, uma vez que o motivo tendente à fuga não exclui o elemento
subjetivo próprio do crime. Dizer que o preso não comete crime
porque não tem a intenção específica de causar prejuízo ao
patrimônio público não é correto. Se o preso tem vontade e
consciência de destruir ou inutilizar a grade que o prende, tem
claramente vontade de causar dano, e, em face disso, de
prejudicar. O fim, que é alcançar a liberdade, não tem força de
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excluir o elemento subjetivo próprio do delito qualificado”


(Código Penal Anotado, 8a. ed., p. 548).

O Colendo Supremo Tribunal Federal, em ven. aresto


cuja ementa vai a seguir transcrita, proclamou que:

“Responde por dano qualificado o preso que danifica cela a fim de


fugir, uma vez que o motivo tendente à fuga não exclui o elemento
subjetivo próprio do crime.

Se o preso tem vontade e consciência de destruir ou inutilizar


a grade que o prende, tem claramente vontade de causar dano e,
em face disso, de prejudicar. O fim, que é alcançar a liberdade,
não tem força de excluir o elemento subjetivo próprio do delito
qualificado” (Rev. Tribs., vol. 731, p. 514; rel. Min. Carlos
Velloso).

Pelo mesmo estalão tem decidido este Colendo Tribunal:

“Responde pelo crime de dano qualificado o preso que danifica a


cela na tentativa de fuga, pois o elemento subjetivo desse delito
que é o dolo não fica excluído pela alegação de que a evasão tem
o fim de alcançar a liberdade” (Rev. Tribs., vol. 755, p. 661;
rel. Devienne Ferraz).

As penas foram fixadas segundo legal e justa craveira,


alguma coisa acima do mínimo, por se tratar de infrator de
quatro costados, cuja folha de antecedentes o não recomenda a
menções honrosas.

Conquanto reincidente, o regime prisional pode ser o


intermediário, havendo consideração à quantidade e a espécie
da pena (9 meses de detenção).

A reincidência, quanta é de si mesma, não obriga


à fixação do regime de extrema severidade:
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“O disposto no art. 33, § 2º, a e c, do Cód. Penal, impõe o regime


inicial fechado ao réu reincidente. Há, porém, que se atender às
particularidades do caso, sob pena de ofensa ao princípio da
individualização da pena.

É fundamental observar os requisitos objetivos e subjetivos,


mesmo quando se tratar de reincidência. Não há por que dar ao
réu que não demonstra possuir grau de culpa intensa, cuja
personalidade e conduta não revelam traços de periculosidade ou
temerabilidade social, o mesmo tratamento dado a quem é
participante de criminalidade de alta periculosidade” (STJ; REsp.
nº 196.940-DF; 6a. Turma; j. 20.4.99, v.u.; DJU 17.5.99,
p. 263).

5. Pelo exposto, dou provimento parcial ao recurso para fixar


ao apelante o regime semiaberto, mantida no mais a r.
sentença de Primeira Instância.

São Paulo, 12 de setembro de 2000

Carlos Biasotti
Relator
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(Foto 1: Estátua de Borba Gato)

(Foto 2: Prédio do Ministério da Agricultura)


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Notas

(1) Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 622; Editora Saraiva.


(2) “Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou
monumento urbano” (art. 65 da Lei nº 9.605/98: Lei do Meio
Ambiente).
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

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