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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUCSP

Antonieta Heyden Megale

“Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes


em suas vidas entre línguas

MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E


ESTUDOS DA LINGUAGEM

São Paulo
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUCSP

Antonieta Heyden Megale

“Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em


suas vidas entre línguas

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora como exigência parcial
para obtenção do título de Mestre
em Linguística Aplicada e Estudos
da Linguagem pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
sob a orientação da Profa. Dra.
Maria Antonieta Alba Celani.

São Paulo
2012
BANCA EXAMINADORA

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FICHA CATALOGRÁFICA

MEGALE, Antonieta Heyden. “Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de
sujeitos fal(t)antes em suas vidas entre línguas. São Paulo: 187 p., 2012.

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Área de Concentração: Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem,


Bilinguismo, Identidade, Análise de Discurso de Linha Francesa,
Representações Sociais.

Orientadora: Professora Doutora Maria Antonieta Alba Celani.

Autorizo, para fins acadêmicos ou científicos, a reprodução total ou


parcial desta dissertação, por processos fotocopiadores ou eletrônicos,
desde que citada a fonte.
Hoc est corpus meum

Este é o meu corpo. Minhas substâncias: fantasias, humor, poesia,


estórias, fragmentos de conhecimento, imagens, cenas e
memórias... Não desejo que você simplesmente entenda o que
escrevo. Entender é um ato racional. O que eu desejo é que o meu
texto seja comido antropofagicamente.1

1 ALVES, Rubem. Variações sobre o prazer. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. p.40.
APRECIAMENTO EM QUATRO ATOS
Acredito que amor não se deva agradecer, mas sim apreciar. Por todo amor
recebido que se materializou em gestos, quero expressar tudo que apreciei.

DE ANTES DO COMEÇO

Cheguei ao fim. Já é madrugada. Sempre idealizei terminar assuntos


importantes vendo o sol nascer: ideia romântica que sugere o início de uma
nova fase. E aqui estou, esperando o momento mágico que um dia idealizei.
Janela aberta, vento no rosto, o barulho desta cidade que também não dorme.
É... Não há mágica, ou talvez, todo este percurso seja repleto de mágica, o que
faz com que agora eu não veja a magia esperada em ação. Porém, se por um
lado, falta a mágica idealizada, por outro, não me faltam lembranças. E
lembrei-me de minhas primeiras idas à PUC e do desejo enorme de fazer e
experimentar coisas novas que, talvez, só fossem possíveis acontecer desta
forma. Era final de 2009. Tudo era uma grande imensidão de desconhecido e
demorei a entender o funcionamento daquela nova história que começava. Meu
primeiro contato com a PUC foi por meio de um convite do professor Marcello
Marcelino, que além de ter muita importância nesta história, com sua
generosidade enorme, proporcionou-me novas e ricas possibilidades que em
muito ampliaram minha visão de mundo. Marcello me convidou a fazer parte do
Grupo de Estudos de Educação Bilíngue da PUC (GEEB) e foi nesse grupo
que esta história teve início. Foi lá também que conheci uma pessoa
fundamental em minha trajetória, a professora Fernanda Liberali, que, com sua
generosidade imensa, proporcionou-me inúmeras oportunidades ao longo
destes dois anos e, com isso, fez-me crer que eu era melhor do que acreditava,
e acreditando ser melhor do que era, algumas vezes o fui. Pouquíssimas
pessoas no mundo têm esse poder de nos tornar melhor. E foi assim que
cheguei à PUC, como chegam as pessoas de sorte: cercada de duas pessoas
marcantes e inesquecíveis neste processo. Dali em diante, seriam pessoas que
guardaria com carinho no coração.
DO COMEÇO

Oficialmente esta história teve seu início no ano de 2010 com o esperado
encontro com minha orientadora – Antonieta Celani. Estranho encontrar
alguém que a gente já ouviu falar tanto... Parece até que a gente já conhece a
pessoa, embora essa pessoa não tenha a menor ideia de quem somos –
relação estranha essa... Relação que foi sendo construída, entre silêncios,
sorrisos e dúvidas. Dentre as qualidades que aprecio, uma das principais e rara
é a capacidade que poucas pessoas têm de acreditar uma nas outras e minha
orientadora-xará nunca hesitou em acreditar em mim (ou pelo menos nunca
deu indícios de qualquer descrença). Primeiro, quis mudar meu tema de
pesquisa. Depois, a escola na qual a pesquisa aconteceria não mais permitiu
que isso ocorresse e, assim, tive de mudar novamente. E então, encantada
com tudo que aprendia, quis transformar o pouco que tinha. Antonieta sorria,
procurava entender ou apenas acreditava... Essa lição eu levo comigo, essa
capacidade de acreditar na capacidade do outro. Nunca vou esquecer os
momentos compartilhados com alguém tão importante... Lembro-me dos
gestos de encorajamento e principalmente da generosidade com a qual fui
tratada nestes dois anos. Minha querida orientadora fez com que este percurso
fosse cheio de descobertas agradáveis. Minha gratidão vai muito além dos
limites desta pesquisa.
Ainda em 2010, conheci o restante do grupo: Rogério, Cynthia, Priscila,
Francisco, Eliane, Luciana, Luzia, Neiva, Paulo e Paula. Colegas de mestrado
e de pesquisa que começaram a fazer parte do meu cotidiano na PUC. Com
cada um deles cresci e aprendi. E sorri tanto com eles. Na PUC, ainda, conheci
duas amigas que serão permanentemente importantes para minha vida: Eva e
Camila. Amizades construídas no mestrado que levarei para sempre: as
viagens, a cumplicidade, as dúvidas... Minha gratidão pelo companheirismo
dessas amigas é imensa. Também fundamentais neste caminho, foram os
professores: Mara, Toni, Maximina, Fernanda e Ciampa – pessoas que
ampliaram minha visão de mundo. Ainda no processo de pesquisa, conheci
muitas pessoas que me abriram portas para conseguir aplicar os questionários
necessários. Aprecio a generosidade de todos. Como também aprecio a
disponibilidade de todos os participantes desta pesquisa.

DO MEIO DE TUDO

O ano de 2011 foi um ano inesquecível, por tudo o que vivi. E duas pessoas
inicialmente: Marcello e Fernanda foram novamente fundamentais nesta
história. Marcello deu-me a oportunidade ímpar de ocupar um lugar que já foi
dele na coordenação de um colégio – confiança essa que não sei se, algum
dia, conseguirei retribuir. Foi, neste colégio, que várias questões identitárias
afloraram e muitas das reflexões deste trabalho são frutos desta vivência.
Nesse ano, também, motivada pela professora Fernanda, participei de
congressos nacionais e internacionais, escrevi artigos e aprendi que não basta
fazer mestrado, tem de viver o mestrado. Conheci também uma amiga que
levarei para sempre: Selma Moura, doutoranda da UNICAMP. Amiga de
congressos, confissões e devaneios. Além disso, não poderia aqui, de maneira
alguma, deixar de expressar textualmente o quanto apreciei a colaboração
efetiva em meu exame de qualificação e a disponibilidade em acompanhar meu
trabalho dos professores Orlando Vian Junior e Mara Sofia Zanotto.

DO INÍCIO DO FIM

É, neste momento que o sol começa a nascer, que me lembro


fundamentalmente de minha família e de meus amigos mais próximos. Todos
eles. O que seria de mim sem a presença e influência deles em minha vida… A
generosidade, o amor, a troca, a crença, tudo isso junto, dão-me as alegrias
maiores deste mundo. De muitas formas, eles estão vivos neste trabalho.
Aprecio tudo que meus pais me proporcionaram: ensinamentos, vivências e
oportunidades diversas. E meus irmãos, presenças constantes em toda a
minha vida, companheiros na diversão e nos desentendimentos. Alexandre,
meu amigo de toda uma vida, não há como agradecer seu incentivo, sua leitura
cuidadosa de meu trabalho, sua amizade sem fim. Rosana, que tão
prontamente se voluntariou à leitura desta dissertação. Meu marido, lindo, que
me acompanha e, mesmo sem entender, aceita minhas ausências, meu
silêncio, minha busca...
Aqui começa o início deste fim.
“Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em suas
vidas entre línguas

Antonieta Heyden Megale

RESUMO

No Brasil, são faladas mais de 200 línguas. Somando-se a isso, não se pode
ignorar os impactos da globalização que, como argumentam McGrew e Held
(1992), conectam comunidades em novas combinações de espaço-tempo,
tornando o mundo mais interconectado. Outro fator desencadeante do
interesse por línguas estrangeiras no Brasil foi a ascensão econômica da
classe C, o que representa mais de 90 milhões de brasileiros com acesso à
educação e ao mercado de trabalho. Com isso, a procura por escolas de
idiomas aumentou consideravelmente, assim como o número de brasileiros que
tem a possibilidade de estudar no exterior ou que opta por colégios
internacionais ou bilíngues. Frente a estes dados, o objetivo deste trabalho é o
de estudar o funcionamento da linguagem na constituição da subjetividade dos
sujeitos, apontando deslocamentos identitários nos discursos de falantes de
inglês e português. Para tanto, analiso recortes discursivos selecionados entre
as respostas a um questionário de indivíduos bilíngues – simultâneos e
sequenciais, a fim de mostrar a irrupção de discursos em torno da identidade.
Proponho uma interpretação discursiva destes recortes apoiada teoricamente
na Análise de Discurso de linha francesa, com contribuições teóricas da
psicanálise, de autores e de teóricos da identidade como Hall (2005), Norton
(1995), Bauman (2005) e Ciampa (1984; 1990; 2004). Dentro deste quadro
teórico, adoto a noção de sujeito como cindido, heterogêneo, atravessado pelo
inconsciente e constituído no e pelo olhar do outro (LACAN, 1966/1998).
Assim, a identidade é aqui entendida (i) como tendo sua existência no
imaginário do sujeito, que, de acordo com Coracini (2007), constrói-se nos e
pelos discursos imbricados que o constituem, o discurso da ciência, do
colonizado e da mídia e (ii) como um processo de metamorfose a partir de uma
identidade que é sempre pressuposta (CIAMPA, 1984). A análise dos dados
sugere que há diversas maneiras de se viver entre línguas, mas que é
impossível negar que saber mais de uma língua imprime, como afirma Coracini
(2007), marcas indeléveis à subjetividade que se (re)constrói a todo o
momento.

Palavras-chave: bilinguismo, sujeito bilíngue, identidade, análise de discurso.


“I am, I was, I am not anymore”: Living in inter-languages spaces

Antonieta Heyden Megale

ABSTRACT

There are over 200 languages spoken in Brazil. Moreover, one cannot ignore
the impact of globalization. As McGrew and Held (1992) argue, it connects
communities in new combinations of time-space, making the world more
interconnected. Another triggering factor of the interest in foreign languages in
Brazil was the economic rise of low income classes, which represent more than
90 million Brazilians with access to education and the labor market. Thus, the
search for language schools has increased considerably, as well as the number
of Brazilians who have the possibility to study abroad or who opt for bilingual or
international schools. Faced with this data, the objective of this research is to
study the functioning of language in the constitution of the subjectivity of
individuals, pointing to identity shifts in the discourse of speakers of English and
Portuguese. The corpus was gathered from questionnaires answered by
simultaneous and sequential bilingual individuals. As to the analysis of the
corpus a transdiciplinary approach is adopted. It includes concepts from French
discourse analysis with theoretical contributions from psychoanalysis, as well as
authors who study identity such as Hall (2005), Norton (1995), Bauman (2005)
and Ciampa (1984, 1990, 2004). Thus, identity is here understood (i) as having
its existence in the imagination of the subject which according to Coracini
(2007) is built through and by overlapped discourses which constitute the
subject; the discourse of science, of the colonized and of the media and (ii ) as
a process of metamorphosis from an identity that is always assumed (Ciampa,
1984). The analysis of data suggests that there are different ways of living
between languages, but it is impossible to deny that speaking more than one
language prints, as Coracini (2007) states, indelible marks on the subjects’
identities which are (re) built all the time.

Keywords: bilingualism, bilingual subject, identity, discourse analysis.


SUMÁRIO

NOTAS DE UM PERCURSO PESSOAL 17

PRIMEIRA PARTE – DO ENREDO TEÓRICO 27

O PERCURSO ESCOLHIDO 32

1.1 Análise de Discurso de Linha Francesa 34


1.1.1 Discurso 38
1.1.2 Ideologia 39
1.1.3 Sujeito discursivo 41

45
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
2.1 Representações sociais 47

2.2 Ancoragem 50

2.3 Objetivação 52

2.4 Núcleo central e sistema periférico 53

2.5 Representações sociais, ideologia e AD francesa: breve diálogo 55

IDENTIDADES 57
3.1 O conceito de identidade empregado 60
3.2 Estigma e preconceito 65

VIDA ENTRE LÍNGUAS 72


4.1 O que é esta língua dita materna? 74
4.2 O que é esta língua dita estrangeira? 77
4.3 Algumas considerações sobre a noção de bilinguismo e bilingualidade 79
SEGUNDA PARTE – DO QUE SE DESCOBRIU NO CAMINHO 90

TRAJETÓRIA 93
1.1 A LA e os princípios filosóficos que norteiam esta pesquisa 95
1.2 A análise de discurso de linha francesa 100
1.3 A constituição do corpus e os instrumentos de coleta 101
1.4 Os participantes da pesquisa 104
1.5 Mo(vi)mento de análise 110

ENTRE DITOS E NÃO DITOS 114

2.1 Entre o desejo da completude e a falta do sujeito 120

2.2 Entre o mito, o possível e o desejo do outro 128

2.3 Entre as diversas concepções do eu 145

2.3.1 Da importância 145

2.3.2 De quem sou 152

2.3.3 Das transformações 161

E, POR FIM, UM RECOMEÇO 165

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 174

CRÉDITOS 183

APÊNDICE 185

45

47
LISTA DE OBRAS DE ARTE

Com exceção da obra 1, Who am I? que é de autoria da fotógrafa Mushy Pea,


todas as demais obras são de autoria do artista holandês Maurits Cornelis
Escher.

Obra 1: Who am I? 1

Obra 2: Hand with Reflecting Sphere 18

Obra 3: Stair Cases 33

Obra 4: Three Worlds 46

Obra 5: Bond of Union 58

Obra 6: Tower of Babel 73

Obra 7: Relativity 94

Obra 8: Balcony 115

Obra 9, 10 e 11: Metamorphosis II 119

Obra 12: Rind 175

LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Objetivos, perguntas de pesquisa e perguntas do questionário 103
Quadro 2: Bilíngues simultâneos participantes da pesquisa 107
Quadro 3: Bilíngues sequenciais participantes da pesquisa 109
Quadro 4: Critérios para seleção dos partiipantes 116
Quadro 5: Relação das perguntas de pesquisa e das representações localizadas 117
Quadro 6 Relação das seções organizadas e das representações 118
Quadro 7 Perguntas que suscitaram as representações sobre o que é ser bilíngue 145
Quadro 8 Transformações em decorrência de ser bilíngue 161
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Common Underlying Proficiency 85

Figura 2: Bilinguismo dinâmico 87

Figura 3: Uma visão transdisciplinar para análise dos dados 98

Figura 4: Procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa 111

Figura 5: Preocupação com o sotaque – bilíngues sequenciais e simultâneos 128

Figura 6: Aulas de redução de sotaque 137

Figura 7: Curso de redução de sotaque 138

Figura 8: Curso de redução de sotaque 139

Figura 9: Material para redução de sotaque 140

Figura 10: Língua de maior importância para bilíngues simultâneos 146

Figura 11: Língua de maior importância para bilíngues sequenciais 147

Figura 12: Universidade de São Paulo tornam inglês língua oficial 150

Figura 13: Inglês: saber o idioma é cada vez mais importante 151
“It seems to me that in any other
“I had to work like a
language happiness is not so sweet, logic coal-miner in his pit
is not so clear. I am not sure that I could
believe in my neighbors as I do if I quarrying all my English
thought about them in un-English words.
I could almost say that my conviction
sentences out of a black
of immortality is bound up with the night”.
English of its promise. And as I am
attached to my prejudices, I must love Joseph Conrad, aprendeu inglês
the English Language!”. aos 20 anos, depois de aprender
polonês e francês.
Mary Antin, um judeu russo que emigrou para os
EUA em 1894.

"Spanish is my right eye, English my left; Yiddish my background and Hebrew


my conscience. Or better, each of the four represents a different set of spectacles
(nearsight, bifocal, night-reading, etc.) through which the universe is seen".

Ilan Stavans, escritor que escreve em inglês e espanhol.

"The Nazis robbed me of my


mother tongue, but the rest of
the separation, of the violent "No words in English have this power, to take me
severing of culture, was my own back home to childhood”.
choice. My writing, my intense M.J. Fitzgerald, filha do tradutor Robert Fitzgerald, que
drive to become an 'American cresceu na Itália.
Writer' had pushed me into
leaving the language of my
childhood behind, never counting "I am an orphaned writer."
the cost".
Declarou o escritor Louis Begley, ainda lamentando a
Gerda Lerner, uma escritora perda de uma língua materna, o polonês, quando sua
judia e austríaca. família se mudou para os EUA, aos 13 anos.

"For me, one language is complementary to the other, one always lacking a capacity that
the other has".

Ha-yun Jung, que escreve ficção em inglês, mas recentemente retornou para seu país de origem, Coreia do Sul,
e se sente incompleta tanto em inglês quanto em coreano.

Trechos extraídos do livro “The Genius of Language: Fifteen Writers Reflect on Their
Mother Tongues”, de Steven G. Kellman (2004).
Notas de um percurso pessoal

Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que o


desejo dos outros fizeram de mim1.

1 CAMPOS, A. (Fernando Pessoa). Obra poética e em Prosa. Porto: Lello & Irmão Editores, 1986, p. 413.
17
18
INTRODUÇÃO
Notas de um percurso pessoal

Segundo o antigo costume da Universidade Charles, de Praga, o hino


nacional do país da pessoa que está recebendo o título de doutor
honoris causa é tocado durante a cerimônia de outorga. Quando
chegou minha vez de receber essa honraria, pediram-me que
escolhesse entre os hinos da Grã-Bretanha e da Polônia [...] Bem,
não me foi fácil encontrar a resposta (BAUMAN, 2005, p. 15).

Sou constituída por línguas e culturas: brasileira de família imigrante,


estudante estrangeira em um país distante, professora de língua inglesa em
uma escola judaica. (Con)vivi, esqueci, imaginei, cantei, brinquei, estudei e
trabalhei em línguas diversas que me constituem, que me fazem ser quem sou
e se revelam (ou não) no meu modo de viver, de ver, de pensar, de expressar o
mundo e de ocupar nele um espaço.
Acredito mesmo que escrever uma dissertação é buscar nas lembranças
algo que, mesmo inconscientemente, nos faz (re)fazer um percurso e deslizar
entre lembranças e esquecimentos. É buscar, “entre a palavra e a coisa”,
algumas camadas de sentidos e “muitas camadas de sonho”2. Ao fazer,
desfazer e refazer as “camadas” de minha história, muitas vozes se misturam,
histórias de meu avô acerca da guerra, lembranças de minhas aulas de
alemão, dativos, genitivos, acusativos de quem sou. Essas lembranças fazem
memória e me constituem. Ao relembrar a opção por uma carreira profissional,
um dizer de Pêcheux toma corpo, ganha presença e passa a fazer novos e
outros efeitos de sentido; pois, como o autor, me incluo no grupo dos “homens
loucos por suas línguas” (PÊCHEUX; GADET, 1981/2004, p.45). O desejo (que
move o sujeito) em descobrir: “que língua é essa?” me fez optar por este
caminho que resolvi seguir. Caminho este que me caminha.
Quando optei por meu tema de pesquisa, buscava entender questões
que, desde pequena, acompanham-me, questões que falam de quem eu sou,

2 BRITTO, P. Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.15.

19
de quem e como me sinto em ambientes que me causam estranheza e me
fazem pensar se pertenço a algum lugar, a alguma língua. Mas, como diz
Saramago: “como é que se pode não pertencer à língua que se aprendeu, à
língua com que se comunica e com que se escreve?”3.
Neste percurso me deparei com diversos depoimentos que, por vezes,
fizeram-me pensar que me revelam e que dizem de mim coisas que não
saberia dizer. Bauman (2005), parafraseado no início desta seção, ilustra com
precisão alguns dos dilemas inquietantes e das escolhas obsedantes que
tendem a fazer da identidade um tema de graves preocupações e agitadas
controvérsias. O autor narra sua decisão de, naquela situação, tocar o hino
europeu; decisão essa “excludente” e “includente”:

Referia-se a uma entidade que abraçava os dois pontos de referência


alternativos da minha identidade, mas ao mesmo tempo anulava, por
pouco relevantes ou mesmo irrelevantes, as diferenças entre ambos
e assim, também, uma possível “cisão identitária”. Tirava da pauta
uma identidade definida em termos de nacionalidade – o tipo de
identidade que me foi negado e tornado inacessível. Alguns versos
comoventes do hino europeu ajudaram: “alle Menschen werden
Brüder” [...]. A imagem da “fraternidade” é o símbolo de se tentar
alcançar o impossível: diferentes, mas os mesmos; separados, mas
inseparáveis; independentes, mas unidos (BAUMAN, 2005, p.16).

O autor, em busca de identidade se vê, como muitos, diante da tarefa


intimidadora de alcançar o impossível – expressão genérica essa que implica
em “tarefas que não podem ser realizadas no tempo real, mas que serão
presumivelmente realizadas na plenitude do tempo – na infinitude” (BAUMAN,
2005, p.16).
Foi essa busca pelo impossível que me impulsionou a realizar este
trabalho. Inicialmente, coletei 98 questionários de sujeitos4 bilíngues
constituídos por línguas diversas: coreano, alemão, espanhol, sérvio, entre
outras. Reconheci muitas de minhas dúvidas, angústias e desencontros em

3 LOPES, Victor. Entrevista de José Saramago em Língua – Vidas em Português (documentário). Brasil/Portugal,
2004. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=b7cIiiHmFI8>. Acesso em: dez. 2011.

4 Este estudo tem como base teórico-metodológica a análise de discurso de linha francesa que faz uso da
denominação sujeito. O sujeito difere do indivíduo por estar em uma relação de assujeitamento e de pertencimento a
uma memória discursiva. Orlandi explica que: “o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a
língua faz sentido” (ORLANDI, 1999, p.17). A partir dessa perspectiva, emprego o termo sujeito em minhas perguntas
de pesquisa e também no decorrer desta dissertação quando o assunto tratado for discutido a partir da análise de
discurso de linha francesa.
20
suas narrativas, porém, por uma questão metodológica e temporal, detive-me
neste trabalho a sujeitos bilíngues falantes de português e inglês. Além do
mais, a língua inglesa tem uma história de imposição por razões políticas e
materiais em muitos países do terceiro mundo, o que implica na constituição
identitária de seus falantes. A partir dessa perspectiva, apoio-me em
Canagarajah (1999) para afirmar que, ao optar por aprender ou fazer uso do
inglês, esses sujeitos fazem também uma opção ideológica e social, ainda que
de modo inconsciente.
Outro motivo que me levou, neste momento, a delimitar meus sujeitos de
pesquisa desse modo, é a crescente propagação da língua inglesa no Brasil.
Observa-se, como aponta Marcelino (2009), que o crescimento do bilinguismo,
no Brasil, evidencia um desenvolvimento na educação e uma demanda
mercadológica pressionada pelos pais de alunos de escolas regulares. O autor
aponta também para o fato de que se anteriormente os pais escolhiam as
escolas para seus filhos com base na proposta de ensino e a necessidade de
se aprender outra língua era suprida por meio de institutos de idiomas,
atualmente, essa escolha é muitas vezes definida pela importância dada à
língua inglesa nas escolas regulares. Frente a esse panorama, percebe-se, no
Brasil, a disseminação das escolas bilíngues, de programas de intensificação
de língua inglesa e de escolas de idiomas.
Nessa direção, meus objetivos neste trabalho são:

1) Estudar a imbricação da língua materna e da língua estrangeira na


constituição da subjetividade de sujeitos bilíngues sequenciais e simultâneos
falantes de inglês e português.

2) Apontar deslocamentos identitários nos discursos desses sujeitos.

3) Rastrear o olhar do outro na constituição identitária desses sujeitos.

Para tanto, esta pesquisa pretende responder às seguintes perguntas:

1) Como as identidades desses sujeitos foram se (trans)formando na


sua relação com as línguas?

2) Como é a relação desses sujeitos com as línguas que os constituem?


21
3) Como esses sujeitos, ao se enunciarem, constroem imagens de si e
do Outro?

O percurso a que me proponho neste trabalho parte do pressuposto


principal de que a língua é construtora da identidade do sujeito e dos processos
discursivos, e não mero instrumento de mediação/comunicação com o mundo
externo. Atrelada a essa concepção de língua, quando abordo a questão da
identidade e da subjetividade, remeto-me a uma visão de sujeito
essencialmente histórico, ideológico e heterogêneo, interpelado pelo
inconsciente e constituído na e pela linguagem. Na esteira desses conceitos,
recorro, também, aos estudos sobre representações sociais e bilinguismo para
compreender os processos discursivos que forjam a identidade do sujeito e seu
sentimento de pertencimento ao grupo.
Sendo assim, proponho-me interpretar, à luz das teorias explicitadas
anteriormente, recortes discursivos que, por vezes, denunciam recalques,
inibições, invenções e imagens que constituem o imaginário desses sujeitos –
como eles se veem e acreditam serem vistos – construindo, como afirma
Coracini (2007), momentos de identificação que permitem a ilusão da
permanência de uma certa identidade.
Com este trabalho pretendo contribuir com os estudos sobre bilinguismo
e ensino de línguas a partir da discussão de um enfoque que considera as
línguas como parte constitutiva do sujeito e o sujeito como parte constitutiva da
história que o interpela. Nessa esfera, espero trazer contribuições para o
entendimento de como as condições de produção vivenciadas por bilíngues
falantes de inglês e português e as relações de poder que estão em jogo nesse
processo têm implicações diretas na constituição identitária desses sujeitos.
Essas premissas norteiam uma pesquisa inovadora, uma vez que vários
estudos já foram desenvolvidos sobre a relação língua e identidade, mas
nenhum deles parece abordar esse prisma. Em 2007, Marques realizou uma
dissertação de mestrado que analisou as representações construídas no
discurso de quatro professores brasileiros de inglês de escolas de idiomas com
o intuito de compreender mais ampla e profundamente alguns de seus
aspectos identitários. Embora partilhe de matrizes teóricas semelhantes, minha

22
dissertação faz uso de teorias de identidade e de bilinguismo para investigar a
relação de bilíngues brasileiros falantes de português e inglês com suas
línguas, com o povo brasileiro e com o nativo de língua inglesa. Sendo assim,
vai além do proposto por Marques, uma vez que procura, por meio dessas
teorias, analisar os laços que prendem esses sujeitos aos discursos pelos
quais constroem biografias que tecem as diferentes partes de seus “eus”
divididos.

Sob a mesma lupa das representações, Andrade (2008) pretendeu


identificar e discutir as representações de língua e de ensino aprendizagem de
línguas, principalmente do inglês, que emergem do dizer dos professores em
formação. Tanto Marques (2007) quanto Andrade (2008) apoiam-se na análise
de discurso (AD) de linha francesa e nos conceitos de representações, porém,
diferentemente de minha pesquisa, têm como foco professores de línguas e
não fazem uso de teorias de identidade e de bilinguismo para a compreensão
dos processos discursivos que fundam os quadros de que se alimentam as
representações sociais.

Netto (2008), por sua vez, estudou a constituição identitária de


professores de língua portuguesa que não possuem exclusivamente essa
língua em sua inscrição no campo da linguagem. A pesquisadora analisou as
narrativas desses professores em contexto de imigração e concluiu que
histórias de vida caracterizadas por uma constituição linguística marcadamente
plural trazem incidências para a formação desses professores. A pesquisa de
Netto (2008), assim como esta dissertação, discute a relação língua e
identidade e utiliza a análise de discurso francesa como aporte teórico-
metodológico. Entretanto, como o contexto no qual a pesquisa de Netto (2008)
ocorreu é o de imigração alemã, as questões ideológicas e sociais que
envolvem o uso dessa língua são muito diferentes das que envolvem o uso da
língua inglesa por brasileiros.
Análoga a esses estudos, encontra-se a pesquisa realizada por Tavares
(2010), que investigou possíveis deslocamentos na constituição identitária do
professor de inglês da educação básica, durante um processo de formação
contínua. Como nos estudos mencionados anteriormente, Tavares (2010),
23
diferente do estudo aqui apresentado, também analisa o discurso de
professores.

Vale frisar que, apesar das diferenças descritas entre esses trabalhos e
minha pesquisa, esta foi certamente influenciada pela leitura cuidadosa dos
trabalhos mencionados que corroboraram na minha opção pela análise de
discurso francesa como aporte teórico para realização da mesma.
Este estudo é, desse modo, inovador e deverá ser o motor essencial
para o desenvolvimento de novos saberes relacionados ao binômio língua e
constituição identitária na área da Linguística Aplicada.

Acredito ser de grande valia para a leitura deste trabalho discorrer, nesta
introdução, sobre o título escolhido para minha pesquisa: “Eu sou, eu era, não
sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em suas vidas entre línguas. Para
isso, primeiramente, faz-se necessário explicitar a concepção de sujeito
empregada neste estudo.
A análise de discurso de linha francesa recorre a três autores para
definir sua concepção de sujeito. Foucault (1987) e Pêcheux (1997) concebem
o sujeito associado à ordem do social e do discursivo. Lacan (1972-1973/1982),
por sua vez, pensa o sujeito como efeito de linguagem e em relação ao
inconsciente. De acordo com Coracini (2007), essas concepções, apesar de
apresentarem pressupostos diferentes, têm o aspecto social presente, uma vez
que: “o sujeito é também alteridade, carrega em si o outro, o estranho, que o
transforma e é transformado por ele” (CORACINI, 2007, p.17). A partir desse
prisma, parte-se do pressuposto de que o sujeito não tem o controle sobre a
produção de sentidos: ele é interpelado pelo interdiscurso que é reatualizado
em seu discurso, ocorrendo um processo de ressignificação. Com isso, há a
produção de outros sentidos, de outras leituras e de outras interpretações, o
que marca a heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso, uma
vez que o discurso é constitutivamente atravessado pelo discurso do outro e do
inconsciente. Esse processo de (re)significação permite pensar um sujeito além
da pura interpelação ideológica. Retomando essas condições, o sujeito é, de
acordo com Lacan (1966/1998), determinado pela linguagem e pela falta. Em
função disso, o sujeito é inacabado, produzindo-se, interminavelmente, em um
24
eterno movimento de vir-a-ser, impulsionado pelo desejo, deslizando entre o
desejar e o gozar, posições que, imbricadamente, constituem-no. Assim, pode-
se falar de um sujeito que é falante e faltante, uma vez que, na teoria
psicanalítica, todo sujeito é faltante da permanência do gozo. Portanto, ser
fal(t)ante implica em permanentemente buscar – pelos meandros da linguagem
– a ilusória completude.
Uma vez esclarecido o que entendo por fal(t)ante, destaco, a seguir, o
que pretendo com a expressão “entre línguas”. Melman (1992) afirma que o
inconsciente não cria obstáculo para o contato das línguas. Sendo assim,
entendo que estar entre línguas significa que não existe uma fronteira
determinada entre uma língua e outra.
Recorro, também, ao início de cada seção, às ilustrações do artista
holandês Mauritus Cornelis Escher, que sinto materializarem, por meio de
imagens, o que minhas palavras escrevem. As imagens de Escher são
constituídas de paisagem-corpo, corpo-paisagem e outras subjetivações, e
abrigam jogos de ilusão que referem ao impensado e ao paradoxo. Por meio
desses jogos de realidades, Escher produz gravuras que causam
estranhamento e permitem deslocamentos a percursos inusitados, a partir de
suas relações de composição onde o ser, o tempo e o espaço coexistem e
produzem novos modos de subjetivação. Suas obras parecem demonstrar
conceitos pelos quais transito: deslocamentos, estranhamentos, subjetivações
e paradoxos.
Em sua série Metamorfoses, utilizada na seção “Entre ditos e não ditos”,
Escher faz com que várias estruturas se transformem inesperadamente.
Nessas imagens, há repetições que metamorfoseiam por meio de pequenas
mudanças em um contexto próximo, assim, produzindo o diferente. É como se
não existisse separação entre o fora e o dentro, o que proporciona uma visão
ininterrupta do dentro e do fora, do sujeito e do social. Essa ideia de
metamorfose corrobora a concepção de identidade adotada por Ciampa (1990),
que compreende a identidade como um processo de metamorfose permanente;
visão esta empregada neste estudo e desenvolvida na seção “Identidades”.
Para terminar esta introdução, cabe-me apresentar a organização deste
trabalho. Divido meu texto em duas grandes partes. A primeira parte, “Do
25
enredo teórico”, está organizada em quatro seções e, nelas, desenvolvo o
arcabouço teórico que fundamenta minha pesquisa. O “Percurso Escolhido”
discorre sobre os principais conceitos que embasam a análise de discurso de
linha francesa: o discurso, o sujeito discursivo e a ideologia. A seção
“Identidades” apresenta as teorias de identidades empregadas na análise dos
dados neste estudo. Em “Vidas entre línguas”, enfatizo o aporte teórico sobre
língua materna, língua estrangeira e bilinguismo. A seção “Representações
Sociais” aborda esse conceito a partir dos estudos de Moscovici (1961; 2003) e
Jodelet (1990; 2001).
A segunda parte, “Do que se descobriu no caminho”, está organizada
em duas seções. Em “Trajetória”, apresento os aspectos metodológicos e
detalho os procedimentos para geração e análise dos dados. Na seção “Entre
ditos e não ditos”, discuto os resultados da análise, dividindo-os em três
subseções: “Entre o desejo da completude e a falta do sujeito”; “Entre o mito, o
possível e o desejo do outro” e “Entre as diversas concepções do eu”.
Na seção “E, por fim, um recomeço”, teço comentários em relação à
relevância e à necessidade de outros pesquisadores ampliarem o tema em
questão. As “Referências Bibliográficas” compõem a última parte deste
trabalho.

26
27
PRIMEIRA PARTE
Do enredo teórico

Na parte primeira deste trabalho, apresento a matriz conceitual que


sustenta esta pesquisa. Esta parte está organizada em quatro seções, a seguir:
A primeira seção, O percurso escolhido, discorre sobre os
pressupostos teóricos da AD francesa, linha teórico-metodológica adotada
neste estudo. Inicio essa seção, contextualizando seu surgimento a partir dos
estudos de Orlandi (1998; 1999; 2005; 2006). A seguir, enfatizo seus conceitos-
chave: o discurso, a ideologia e o sujeito. O conceito de discurso é discutido a
partir de Foucault (1970/1996) e de Pêcheux (1969/1993; 1975/1993), assim,
abordo a noção de formação discursiva e heterogeneidade do discurso. A
discussão sobre o conceito de ideologia é realizada a partir de uma releitura
que Althusser (1985; 1996) faz de Marx, trazendo à tona o que denomina
Aparelhos Ideológicos do Estado. O sujeito da AD francesa e sua relação com
o discurso e com a ideologia é o último conceito abordado nessa primeira
seção. Essa relação dá origem ao fenômeno denominado assujeitamento
ideológico. Para sua compreensão, recorro a Pêcheux (1997), que desenvolve
a noção de interdiscurso, a Foucault (1979; 1987; 1998) que discorre sobre a
noção de poder disciplinar para fundamentar o conceito de descentramento do
sujeito; e, uma vez mais, remeto-me a Pêcheux (1975/1988) e Pêcheux e
Fuchs (1975/1997) para abordar a noção de duplo esquecimento.

A partir dos conceitos discutidos na primeira seção, parto do


pressuposto que, dentro das formações discursivas produzidas pelos sujeitos,
há marcas linguísticas que revelam as representações sociais que o sujeito
tem do mundo. Nessa seção, ressalto o papel dessas na constituição da
subjetividade dos sujeitos com base nos mecanismos de ancoragem e
objetivação propostos por Moscovici (1984; 2003), Jodelet (1990; 2001) e Abric
(2003). Estabeleço, também, uma relação entre ideologia, representações
sociais e a AD francesa a partir da pesquisa de Sousa Filho (2003). Esse autor

28
pensa a ideologia como um conjunto de representações, com isso, assume-se
que, identificando as representações sociais que o sujeito tem do mundo, por
meio das marcas linguísticas que se repetem dentro das formações
discursivas, inicia-se o processo de reconhecimento da ideologia que interpela
o indivíduo em sujeito. Dessa forma, torna-se tangível analisar a inscrição do
Outro, ou o interdiscurso, no discurso do sujeito, e consequentemente se
reconhece valores e ideias circulantes em dada sociedade. Essas ideias têm
influência direta na identidade do sujeito, uma vez que aquilo que o sujeito
acredita é justamente o que o faz agir ou não agir, direcionando sua relação
com o mundo e o modo como o mesmo se percebe na sociedade.
Na terceira seção, Identidades, abordo os estudos sobre identidade a
partir da perspectiva da Pós-Modernidade, com base em Hall (2005), Bauman
(2005), Norton (1995) e Coracini (2003; 2007). Nessa perspectiva, retomo os
estudos de Ianni (1999) para discorrer a respeito das implicações da
globalização na conceptualização da identidade e na fragmentação do sujeito
na Pós-Modernidade. Nessa seção, recorro também a outras áreas de
conhecimento para melhor compreender minhas questões da pesquisa, uma
vez que a linguística aplicada converge em um processo transdisciplinar de
produção de conhecimento (MOITA LOPES, 2006). Busco esteio no psicólogo
social Ciampa (1984; 1990; 2004) que entende a identidade como um construto
social e, a partir disso, desenvolve os conceitos de pressuposição da
identidade (CIAMPA, 1990), mesmice (CIAMPA, 1984) e mesmidade (CIAMPA,
1990). Esses conceitos são essenciais para a análise de dados desta pesquisa,
uma vez que relacionam a identidade a uma predicação atribuída ao sujeito
pelo outro e a AD francesa, base teórico-metodológica desta pesquisa que tem,
como postulado fundamental, o fato de que não há discurso que não tenha ou
não apresente a inscrição de outros. Retomo também o conceito de estigma,
do sociólogo Goffman (1988), que reflete acerca do processo constitutivo da
identidade de sujeitos que se distinguem dos outros. Atrelado a esse conceito,
resgato a noção de preconceito linguístico, difundida no Brasil, por Bagno
(2002). Os conceitos de estigma e preconceito linguístico são empregados na
análise dos dados deste trabalho, uma vez que os sujeitos bilíngues que

29
participaram da pesquisa parecem apresentar estigma relacionado ao sotaque
e à condição de ser brasileiro.
É importante ressaltar que os conceitos discutidos na seção um e dois
se entrelaçam com o conceito de identidade exposto na terceira seção.
A AD francesa reflete o percurso histórico, social e cultural do sujeito,
revelando quais discursos que perpassam a sua identidade diante da
materialização da sua linguagem. Portanto, parto da premissa de que a
identidade se forma ao longo do tempo por meio de processos inconscientes,
uma vez que o processo de identidade é constituído no decorrer da vida do
sujeito e orientado por vários interdiscursos que se revelam por meio da
produção discursiva.
Além disso, não se pode desprezar o fato de que a identidade também
se constitui a partir das representações que um grupo ou sociedade possui em
torno dele mesmo. Desse modo, entender como os bilíngues desta pesquisa,
falantes de português e de inglês, percebem-se e percebem as línguas que os
constituem é essencial para entender como captam essas referências e são
por elas afetados na construção de suas identidades.
Finalmente, na última seção, Vida entre línguas, enfatizo o elo língua,
sujeito e identidade com base nos estudos de Revuz (1998), que tem como
base uma concepção lacaniana de sujeito, constituído pela e na linguagem.
Essa parte tem como objetivo interrogar a nominação materna e estrangeira
atribuída à língua. Para tanto, apoio-me nas pesquisas de Coracini (2003,
2007), Revuz (1998) e Maher (1998) filiadas à linguística aplicada e nos
estudos psicanalíticos de Fages (1977), Prasse (1997) e Melman (1992), que
explicam o conceito de interdição a partir da concepção lacaniana da
constituição do Eu (Lacan, 1958/1998 e 1966/1998). Na terceira parte, discuto
a evolução dos conceitos de bilinguismo partindo de concepções
unidimensionais como as de Bloomfield (1935), Macnamara (1967), Barker e
Prys (1998), Li Wei (2000) e Mackey (2000). Discorro também sobre
concepções teóricas que contemplam, em sua definição de bilinguismo, tanto a
dimensão linguística como a não linguística, como Maher (2007), Hamers e
Blanc (2000), Heye (2003) e Dias e Salgado (2010), que trabalham com o
conceito de bilingualidade; e García (2009) e Cummins (1984), que advogam a
30
favor de uma visão heteroglóssica de língua. Por fim, introduzo a perspectiva
derridiana (2001), que discute a construção de próteses a fim de explicar o
conflito/sofrimento experimentado por diversos sujeitos em sua condição
bilíngue.
Esses conceitos, discutidos na quarta seção, são essenciais para a
análise das representações que os sujeitos desta pesquisa têm sobre as
línguas que os constituem e sobre sua bilingualidade dentro do quadro teórico
da AD francesa.

31
O Percurso escolhido

Gide disse que o diabo desta vida é


que entre cem caminhos, temos de
escolher apenas um e viver com a
nostalgia dos outros noventa e
nove[ ...]5

5 SABINO, Fernando. O Encontro Marcado. Rio de Janeiro: Record, 1981. p. 44.


32
33
SEÇÃO 1
O percurso escolhido: análise de discurso de linha francesa

É ideia central, no projeto de diversos teóricos, a noção de que a


linguagem funda a compreensão de mundo do sujeito. Muitos estudiosos,
dentre eles, filósofos, linguistas e psicanalistas, debruçaram-se sobre
diferentes aspectos da linguagem. De acordo com os distintos pontos de vista
atinentes à linguagem, ela pode ser compreendida de várias formas. Neste
estudo, que se filia à análise de discurso (AD) de linha francesa, compreende-
se a linguagem a partir de uma perspectiva discursiva, o que significa buscar
entender e compreender o seu funcionamento como sendo um lugar de conflito
e de confronto ideológico.
Nesta seção, inicialmente, contextualizo o surgimento da AD francesa. A
seguir, discorro sobre seus conceitos-chave: o discurso, o sujeito discursivo e a
ideologia.

1.1 Análise de discurso de linha francesa

A AD francesa surgiu, de acordo com Maingueneau (1989), no final da


década de 60, e estava associada a uma tradicional prática escolar francesa: a
explicação de textos. O marco inaugural de seu nascimento foi a publicação de
Michel Pêcheux - “Análise Automática do Discurso” - e o lançamento da revista
“Langages”, organizada por Jean Dubois, no ano de 1969. Para a sua criação,
Pêcheux (1993) realizou rupturas com as pesquisas estruturalistas, que
figuravam como verdadeiro paradigma de formatação do mundo, das ideias e
das coisas para toda uma geração de intelectuais franceses. Os estruturalistas,
rompendo com a fenomenologia, o psicologismo e a hermenêutica viam a
língua apenas como um simples ato de fala ou um veículo para transmissão de
informações. Excluíram de suas análises o sujeito, que era, por eles, encarado
como um elemento suscetível de perturbar a análise do objeto científico. Essa
visão equivocada, estava relacionada ao domínio do objetivismo, como forma

34
única de ciência, que defende “o possível acesso a verdades absolutas e
incondicionais sobre o mundo, e entende a linguagem como mero espelho da
realidade objetiva” (ZANOTTO et al., 2002, p.11).

O movimento de maio de 1968, na França, e as novas interrogações que


surgiram, no âmbito das ciências humanas, foram decisivas para subverter o
paradigma então reinante e trazer o sujeito para o centro do novo cenário,
permitindo-lhe “reaparecer pela janela, após ter sido expulso pela porta”
(DOSSE, 1993, p. 65). A AD francesa nasce, assim, na perspectiva política de
uma intervenção, de uma ação transformadora que visava a combater o
excessivo formalismo linguístico vigente, outrora, considerado como uma nova
facção burguesa.

Outro aspecto que merece atenção é de que, diferentemente do


estruturalismo, a AD francesa toma a linguagem como mediadora
indispensável entre o homem e o meio social e natural em que vive. A língua
não é aqui vista como um sistema abstrato, ou como mero método de
interação, como explica Orlandi (2005). A linguagem é entendida como ação,
transformação, como um trabalho simbólico em que “tomar a palavra é um ato
social com todas as suas implicações, conflitos, reconhecimentos, relações de
poder, constituição de identidade, etc.” (ORLANDI, 1998, p.17). Ao se propor
analisar o discurso, a AD francesa analisa-o ultrapassando os aspectos
formais, aprofunda-se em aspectos extradiscursivos a fim de chegar à
construção de sentidos, considerando o contexto social, histórico e ideológico
em que o discurso foi produzido. Nessa perspectiva, o discurso é o meio pelo
qual o processo de interação verbal se concretiza e, como Orlandi (2005)
assevera, “o discurso é a palavra em movimento, prática de linguagem: com o
estudo do discurso, observa-se o homem falando” (ORLANDI, 2005, p.15).

Por conseguinte, a AD francesa resgata o sujeito excluído pelo


estruturalismo e é, na busca desse sujeito, que se articula principalmente com
três áreas de conhecimento: a psicologia/psicanálise, as ciências
sociais/marxismo e a linguística, formando uma espécie de tríplice aliança. Por
meio da releitura de Marx, feita por Althusser, da releitura de Freud por Lacan,

35
e da releitura do estruturalismo linguístico de Saussure, realizada por Pêcheux,
a AD francesa nasce na tentativa de suprimir a falta que cada uma dessas
áreas possui isoladamente e cria um objeto que está na fronteira de todas elas:
o discurso.

Da psicanálise, a AD francesa resgata o sujeito oriundo do inconsciente


freudo-lacaniano, sujeito este, desejante, descentrado, afetado pela ferida
narcísica que se pensa livre e dono de si. De acordo com Orlandi (1999), o
sujeito da linguagem é descentrado, uma vez que o real da língua e o real da
história lhe afetam, não tendo o controle sobre o modo como é afetado. Isso,
segundo a autora, redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo
inconsciente e pela ideologia.

A partir das ciências sociais, a AD francesa interessa-se pelo


materialismo histórico, com base na leitura que Althusser faz dos textos de
Marx. Dessa vertente, resgata-se o sujeito assujeitado, materialmente
constituído pela linguagem e interpelado pela ideologia. O materialismo
histórico defende que a evolução histórica sempre se deu pelos confrontos
entre diferentes classes sociais, decorrentes da exploração do homem pelo
homem. Sendo assim, esta teoria é também empregada como forma essencial
para explicar as relações entre sujeitos. Segundo Pêcheux (1993), o sujeito,
enquanto membro de uma sociedade estratificada por classes sociais, assume
diferentes papéis, porém participa apenas de situações autorizadas, uma vez
que, em cada situação, é exigido um estilo, um conhecimento sobre o contexto
histórico-social, enfim, um discurso. Além disso, o contexto sócio-histórico
contribui para a construção de sentido de um enunciado. Assim, a linguagem é
a materialização do discurso e carrega consigo as manifestações ideológicas
de ordem sócio-histórica enunciadas pelo sujeito do discurso.

No entanto é importante entender que o sujeito da AD francesa não é o


sujeito ideológico marxista-althusseriano, nem o sujeito do inconsciente freudo-
lacaniano; e não é, tampouco, uma junção entre esses dois sujeitos. O que
representa esse sujeito é o papel de intervenção da linguagem, da marca
discursiva, na perspectiva linguística e histórica que a análise de discurso lhe

36
atribui. Pêcheux, que foi um atento leitor de Saussure, desloca o conceito
saussuriano de função para funcionamento das línguas, ultrapassando, assim,
os limites estritos do linguístico e permitindo a descrição da materialidade
específica da língua.

Frente a essas articulações propostas pela AD francesa, é fundamental


compreender que, embora apresente áreas de contato com a linguística, a
psicanálise e o marxismo, ela não se confunde com essas disciplinas. Orlandi
(2006) explica que a AD francesa pressupõe tais disciplinas à medida que se
constitui da relação de três regiões científicas: a teoria da ideologia, a teoria da
sintaxe e da enunciação, e a teoria do discurso como determinação histórica
dos processos de significação, tudo isso atravessado por uma teoria
psicanalítica do sujeito. Vale frisar ainda que é necessário entender que a AD
francesa não pretende ser nem uma disciplina autônoma, nem uma disciplina
auxiliar, o que pretende é trabalhar o objeto discursivo como sendo um objeto-
fronteira nos limites das divisões disciplinares, sendo constituída
simultaneamente de uma materialidade linguística e de uma materialidade
histórica. Sobre esse ponto, aliás, é preciso salientar que é inapropriado
conceituar a AD francesa como uma disciplina interdisciplinar, como alguns
teóricos insistem em fazer. A esse respeito, Orlandi (1996) atribui à AD
francesa a condição de disciplina de entremeio, uma vez que sua constituição
se dá às margens das chamadas ciências humanas, entre as quais, ela opera
um profundo deslocamento de terreno. Assim, é importante reiterar que os
conceitos que a AD francesa traz de outras áreas, como a psicanálise, o
marxismo, a linguística e o materialismo histórico, ao se integrarem ao corpo
teórico do discurso, deixam de ser aquelas noções com os sentidos estritos
originais e se ajustam à especificidade e à ordem própria da rede discursiva.
Diante do exposto, nas subseções seguintes, discorro a respeito de
conceitos-chave para análise de discurso francesa e, consequentemente, para
a análise dos dados deste trabalho segundo esta perspectiva: o discurso, o
sujeito discursivo e a ideologia.

37
1.1.1 O discurso

O conceito de discurso da AD francesa fundamenta-se, principalmente,


em Foucault (1970/1996), que define o discurso como um conjunto de
enunciados regulados numa mesma formação discursiva. Para este autor, se
uma proposição, uma frase ou um conjunto de signos podem ser considerados
enunciados, não é porque houve, um dia, alguém para proferi-los ou para
depositar, em algum lugar, seu traço provisório; mas, sim, na medida em que
pode ser assinalada a posição do sujeito. Para Foucault, o discurso é um
campo de regularidade para diversas posições de subjetividade, é um conjunto
em que pode ser determinada a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em
relação a si mesmo.
Por sua vez, o conceito de formação discursiva, assim como explica
Pêcheux (1969/1993), compreende o lugar de construção dos sentidos,
determinando o que pode e deve ser dito num determinado contexto. É
importante ressaltar que a formação discursiva não só se circunscreve na zona
do dizível – do que pode e do que deve ser dito – definindo os enunciados
possíveis, a partir de um lugar determinado, mas também circunscreve o lugar
do não dizível – o que não pode e o que não deve ser dito. Prosseguindo com
suas reflexões, Pêcheux (1975/1988) argumenta que, no interior de uma
formação discursiva, coexistem discursos provenientes de outras formações
discursivas. Assim, o discurso não constitui um bloco homogêneo, idêntico a si
mesmo, pois reproduz a divisão e a contradição presentes na formação
discursiva da qual procede. A formação discursiva passa, então, a ser
caracterizada pela heterogeneidade, o que determina, consequentemente, a
natureza heterogênea do discurso.
Authier-Revuz (1982/2004) confere à noção de heterogeneidade
discursiva maior definição, tendo como base a problemática do discurso como
produto do interdiscurso, a teoria do sujeito constituída pela psicanálise e o
dialogismo e a política de Bakhtin. Segundo a autora, o princípio da
heterogeneidade parte da premissa de que a própria linguagem é heterogênea
em sua constituição; e, como a materialidade do discurso é de natureza
linguística, é lógico considerá-lo também heterogêneo. Authier-Revuz (1990)
distingue duas formas de heterogeneidade: a constitutiva e a mostrada.
38
A heterogeneidade mostrada no discurso indica a presença do outro
no discurso do sujeito e divide-se em duas modalidades: a marcada, da ordem
da enunciação e visível na materialidade linguística; e a não marcada, da
ordem do discurso e não provida de visibilidade.
A heterogeneidade constitutiva ocorre quando o discurso é dominado
pelo interdiscurso, ou seja, uma articulação de formações discursivas que se
refere a formações ideológicas antagônicas e, com isso, esgota a possibilidade
de captar linguisticamente a presença do outro no um.
Levando isso consideração, a AD francesa não só desfaz a ideia de um
discurso homogêneo como também desestabiliza os conceitos de unidade do
sujeito e unidade do texto dos estudos tradicionais da linguagem. Como o
sujeito e o discurso são heterogêneos em sua constituição, a ilusão de unidade
tanto do sujeito quanto do texto não passa de efeitos ideológicos.
Por conta disso, os estudiosos da AD francesa postulam que não há
discurso destituído de ideologia, assim como não há discurso que não tenha ou
não apresente a inscrição de outros. Portanto, para tratar de formações
discursivas, é imprescindível estudar as interações entre essas, uma vez que a
identidade do discurso se constrói na relação com o outro, que pode ou não ser
marcado linguisticamente.

1.1.2 Ideologia

A AD francesa, como descrita na subseção anterior, situa-se num campo


de debate que envolve as condições de produção do objeto investigado – o
discurso e as relações existentes entre ele e a ideologia. Ideologia é
atualmente um termo difícil de ser definido, o filósofo Eagleton (1993) enumera,
em sua obra, vinte e seis definições de ideologia utilizadas hoje em dia.
Perante a tamanha complexidade, neste trabalho, atenho-me a estudiosos que
discorrem a respeito de ideologia dentro do quadro teórico da AD francesa.
A base teórica adotada pela AD francesa, a fim de relacionar ideologia e
discurso, advém do marxismo estrutural, uma vez que a teoria pecheutiana se
origina na matriz althusseriana, da qual Pêcheux retira os conceitos de
ideologia e assujeitamento, dessa maneira, reinterpretando-os e obrigando-os
39
a abrir sua grade estrutural ao mesmo tempo em que repensa a noção de
discurso de Foucault. Segundo Orlandi (2005), a ideologia materializa-se no
discurso como conjunto de valores e crenças que constituem as práticas
sociais dos sujeitos. Para Pêcheux (1997), as ideologias constituem os sujeitos,
uma vez que circunscrevem um espaço social de práticas e condutas por meio
de relações sociais concretas.
Althusser complementa a teoria marxista à medida que defende que há
não apenas Aparelhos Repressivos de Estado6, mas também o que ele chama
de Aparelhos Ideológicos de Estado. De acordo com Althusser (1996), os
Aparelhos Ideológicos de Estado (doravante AIE) correspondem a certo
número de realidades que se apresenta ao observador imediato sob a forma de
instituições distintas e especializadas, como, por exemplo: o Religioso (o
sistema de diferentes igrejas), o Escolar (o sistema de escolas públicas e
privadas), o Sindical (o sistema de organização dos sindicatos), o Político (o
sistema eleitoral e partidário), o Cultural (Letras, Belas Artes, esportes, etc.), o
de Informação (a imprensa, o rádio e a televisão, etc.), o Jurídico e o Familiar,
entre outros.
Pêcheux (1996), por sua vez, retoma o conceito de AIE para fixar o lugar
da ideologia na construção de sua teoria do discurso. Para o autor, os AIE não
são a expressão da ideologia dominante (burguesa), mas o local e o meio para
a realização dessa dominação, ou seja, a ideologia dominante é propagada nos
discursos das igrejas e escolas, com o intuito de interpelar os indivíduos como
sujeitos, a fim de “mascarar” – no sentido marxista do termo – a “realidade” e
dar continuidade, segundo Althusser (1996), à reprodução das condições de
produção que sustentam a posição da classe dominante no sistema capitalista:
“está claro que é nas formas e sob as formas da sujeição ideológica que se
assegura a reprodução da qualificação da força de trabalho” (ALTHUSSER,
1996, p. 109).
Nessa perspectiva, a ideologia também opera no sujeito pelo
inconsciente. De acordo com Althusser (1985), em consonância com o primeiro

6 Os Aparelhos Repressivos do Estado são o governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais e as prisões
que funcionam, basicamente, por meio da violência. Os Aparelhos Repressivos de Estado funcionam principalmente
pela repressão, embora possam ter um aspecto ideológico que é secundário (ALTHUSSER, 1985).

40
esquecimento postulado por Pechêux (1975/1988), o sujeito não é a origem de
seu discurso ou de suas práticas e, além disso, não domina o sentido de seu
dizer.
Dentro das relações existentes entre o discurso e ideologia, destaca-se
a importância do sujeito na formação do discurso. Na próxima seção, focalizar-
se-á o sujeito da AD francesa e sua relação com o discurso e com a ideologia,
o que é denominado assujeitamento ideológico.

1.1.3 O sujeito discursivo

Ao longo da história, o sujeito vem sofrendo drásticas transformações


referentes à sua conceituação teórica. Apresento, aqui, o sujeito da análise de
discurso francesa, concepção que emprego, neste trabalho, afastando-me,
portanto, de uma filosofia idealista da linguagem que concebe o sujeito como
fonte e origem de tudo o que diz e o sentido como algo já existente. O sujeito
do discurso é um sujeito essencialmente histórico, ideológico e heterogêneo,
interpelado pelo inconsciente constituído na e pela linguagem.
Esse sujeito é concebido como histórico e ideológico, uma vez que sua
fala é sempre produzida a partir de um determinado lugar e de um determinado
tempo. Sua fala é, na verdade, um recorte das representações de um tempo
histórico e de um espaço social. Trata-se de um sujeito descentrado, entre o eu
e o “outro”. Sujeito esse que não pode ser entendido como um ser uno que se
constitui na fonte do próprio discurso. É o que se denomina sujeito assujeitado,
pois é submetido a coerções sociais, visto que todo discurso é determinado
pelo interdiscurso. O conceito de interdiscurso, segundo Pêcheux (1997),
reside no fato de que algo fala sempre antes e independentemente, sob a
dominação do complexo de formações ideológicas. Essa concepção de sujeito
abarca a noção de alteridade, uma vez que se tem um sujeito que luta para ser
uno, mas que, na materialidade discursiva, é polifônico. Portanto, o discurso
produzido é heterogêneo, como explica Pêcheux (1975/1988), pois incorpora e
assume, pelo diálogo, diferentes vozes sociais, relacionando “o mesmo” com o
seu “outro”, de modo a reconhecer, no discurso, a coexistência de várias
linguagens em uma só linguagem. Esse “outro” não deve aqui ser
41
compreendido como o destinatário, ou seja, aquele para quem o sujeito planeja
e ajusta a sua fala no plano intradiscursivo, mas deve ser compreendido como
os outros discursos historicamente já costurados e que emergem em sua fala.
Complementando essa ideia, os estudos de Foucault (1979) sobre a
noção de poder disciplinar foram fundamentais para o aprofundamento da
noção de descentramento do sujeito. O poder, ao invés de se apropriar e de
retirar, tem como função maior “adestrar”, ou, sem dúvida, adestrar para retirar
e se apropriar ainda mais e melhor. Foucault (1987) explica que, ao ser
exercido, esse poder torna-se invisível, mas, em compensação, impõe aos que
submete um princípio de visibilidade obrigatória. Como diz Foucault (1999, p.
35), “o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles [...] o poder transita
pelo indivíduo que ele constituiu”.
A partir desse ponto, aliás, é preciso salientar que o sujeito discursivo
não se encontra no campo consciente, mas, sim, clivado, submetido ao
inconsciente, ou seja, o sujeito do discurso encontra-se dividido entre o
consciente e o inconsciente. Não existe um sujeito que tenha consciência
daquilo que diz. Há, na verdade, um sujeito que é levado, inconscientemente, a
produzir um discurso de uma forma e não de outra.
Por conseguinte, o sujeito do discurso cria para si uma realidade
discursiva ilusória, sofrendo, de acordo com Pêcheux e Fuchs (1975/1997), de
um duplo esquecimento. O primeiro esquecimento, segundo Pêcheux
(1975/1988), é ideológico e do nível do inconsciente. O sujeito rejeita, apaga,
de modo inconsciente, tudo o que não está inserido em sua formação
discursiva e, com isso, tem a ilusão de que é senhor absoluto daquilo que
enuncia. O segundo esquecimento é da ordem da enunciação e de caráter
semiconsciente. Nesse, o sujeito privilegia algumas famílias parafrásicas e
apaga outras no momento em que seleciona determinados dizeres em
detrimento de outros. Além disso, o sujeito tem a ilusão de que aquilo que diz
tem apenas um significado, acreditando que todo interlocutor captará suas
intenções e sua mensagem da mesma forma.
Em contrapartida, Sirio Possenti, importante representante da Análise do
Discurso Francesa no Brasil, defende, diferentemente de Pêcheux, que há
espaço para a inscrição do indivíduo no discurso, onde ele pode deixar a sua
42
marca - mesmo na condição de assujeitado. Para Possenti (2002), o sujeito
assume um papel ativo, apesar de estar submetido às questões ideológicas,
estruturais e psicológicas da sua formação discursiva. Segundo o autor, o
assujeitamento não se dá de forma plena e o sujeito tem certa competência na
escolha de seu material discursivo. Segundo Possenti (2002, p. 54-65), “a
presença do outro não é suficiente para apagar a do eu, é apenas suficiente
para mostrar que o eu não está só”.
Produzi, de acordo com o apresentado até então, minhas reflexões em
consonância com essa visão de sujeito discursivo, que é essencialmente
descentrado, clivado, heterogêneo e perpassado por vozes que provocam
identificações de toda sorte.
Nesta seção, discorri sobre os pressupostos teóricos da AD francesa.
Inicialmente, contextualizei seu surgimento a partir da obra de Oralandi (1998;
1999; 2005; 2006). A seguir, enfatizei seus conceitos-chave: o discurso, a
ideologia e o sujeito. O conceito de discurso foi discutido a partir de Foucault
(1970/1996) e, a partir de Pêcheux (1969/1993; 1975/1993), abordei os
conceitos de formação discursiva e heterogeneidade do discurso. O conceito
de ideologia foi descrito a partir de uma releitura que Althusser (1985; 1996) fez
de Marx, trazendo à tona o que denominou de Aparelhos Ideológicos do
Estado. O sujeito da AD francesa e sua relação com o discurso e com a
ideologia foi o último conceito abordado. Essa relação deu origem ao fenômeno
denominado assujeitamento ideológico. Para sua compreensão, recorri a
Pêcheux (1997), que desenvolveu a noção de interdiscurso, a Foucault (1979,
1987; 1998) que discorreu sobre a noção de poder disciplinar para fundamentar
o conceito de descentramento do sujeito e, uma vez mais, recorri a Pêcheux
(1975/1988) e Pêcheux e Fuchs (1975/1997) para abordar a noção de duplo
esquecimento.

Na próxima seção, exponho o conceito de representação social a partir


de Moscovici (1961; 2003) e Jodelet (1990; 2001).

Neste estudo, as representações sociais, presentes nas formações


discursivas, serão observadas a partir das regularidades discursivas na
materialidade linguística. Ao analisar as representações acerca da
43
bilingualidade dos sujeitos de pesquisa, das línguas que falam, dos povos e
dos países envolvidos, busco a compreensão da linguagem, não centrada
apenas na língua, mas também na ligação entre o sujeito e o contexto sócio-
histórico-cultural. Com isso, procuro desvelar os sentidos manifestos e latentes
no discurso dos sujeitos bilíngues a fim de responder às perguntas que
norteiam esta pesquisa.

44
Representações Sociais

O curso de um rio, seu discurso-rio,


chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.7

7 MELO NETO, João Cabral de. Rios sem discurso. In: MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1979. p.26.

45
46
SEÇÃO 2
Representações Sociais

Como discutido na seção anterior, de acordo com os pressupostos da


AD francesa, o sujeito é interpelado pelo inconsciente e pela ideologia.
Portanto, não é dono de seu dizer, pois seu discurso é sempre marcado pela
presença do discurso do outro, entendido aqui como interdiscurso. O discurso,
assim como definido por Foucault (1970/1996), é um conjunto de enunciados
regulados numa mesma formação discursiva. Retomando esse conceito a partir
de Pêcheux (1969/1993), a formação discursiva compreende o lugar de
construção dos sentidos, determinando o que pode e deve ser dito num
determinado contexto.
Um aspecto que merece especial atenção, neste estudo, é que, nas
formações discursivas produzidas pelos sujeitos, há marcas linguísticas que
revelam as representações sociais que o sujeito tem do mundo.
Sendo assim, o discurso jamais é neutro, pois sempre se volta para um
conjunto de representações sociais que o sujeito tem sobre o tema tratado.
Segundo Moscovici (2003), as representações sociais convencionalizam
objetos, pessoas ou acontecimentos e os localizam em uma determinada
categoria, desse modo, colocando-os gradualmente como um modelo de
determinado tipo partilhado por um grupo de pessoas. Essas representações
funcionam sempre num espaço de tensão entre o consciente e o inconsciente
e, como afirma Moscovici (1984), terminam por construir o pensamento em um
verdadeiro ambiente onde se desenvolve a vida cotidiana.
Nesta seção, ressalto o papel das representações sociais na
constituição da subjetividade dos sujeitos a partir dos mecanismos de
ancoragem e objetivação propostos por Moscovici (1984; 2003), Jodelet (1990;
2001) e Abric (2003). Estabeleço, também, uma relação entre ideologia,
representações sociais e a AD francesa com base nos estudos de Sousa Filho
(2003).

47
2.1 Representações sociais

O conceito de Representação Social surgiu do trabalho de Serge


Moscovici, intitulado La Psychanalyse, son image et son public (1961), que se
ocupava do estudo pioneiro sobre a difusão da psicanálise em diferentes
âmbitos, de sua apropriação e de transformação para outras funções sociais no
pensamento popular parisiense da referida época.
Para fazer frente a tal perspectiva, Moscovici buscou referência na obra
de Durkheim (1895/1982), que preconizava a explicação sociológica dos fatos
sociais, mais especificamente, em seu conceito de Representações Coletivas.
Entendendo a sociedade como uma realidade em si, Durkheim entende as
representações coletivas como categorias que são produzidas e que
coletivamente formam a bagagem cultural de uma sociedade. Entretanto
Moscovici (2003) adota o termo “social” e não “coletivo” a fim de enfatizar a
qualidade dinâmica das representações sociais, em contraposição ao caráter
mais fixo que elas tinham em Durkheim. Porém o autor explica que as duas
palavras são, muitas vezes, usadas como sinônimas e que prefere social, pois
essa palavra remete a “uma ideia de diferenciação, de redes de pessoas e
suas interações” (MOSCOVICI, 2003, p. 348).
Em relação às diferenças dos conceitos de representações apresentado
por Durkheim e Moscovici, Duveen (2003), na introdução do livro
Representações Sociais – investigações em psicologia social (MOSCOVICI,
2003), esclarece que enquanto Durkheim vê as representações coletivas como
formas estáveis de compreensão coletiva, Moscovici concentra-se na
exploração da variação e da diversidade das ideias coletivas nas sociedades
modernas, o que gera uma heterogeneidade de representações. Perante essas
diversidades, segundo Duveen (2003), surgem os pontos de tensão e é, ao
redor desses pontos de clivagem, que se caracterizam pela falta de sentido,
que novas representações emergem com o objetivo de reestabelecer um
sentido de estabilidade. Moscovici (2003) explica que as representações são
criadas por pessoas e grupos no decurso da comunicação e cooperação, mas
alerta para o fato de que, uma vez criadas, elas adquirem vida própria, circulam
e dão oportunidade para o surgimento de novas representações. É por isso
48
que, segundo o autor, para se compreender uma representação é necessário
resgatar aquela, ou aquelas, das quais ela nasceu, sendo que quanto mais sua
origem é esquecida mais fossilizada a representação torna-se.
A partir dos estudos de Moscovici sobre as representações sociais,
muitos teóricos e pesquisadores vêm enriquecendo esse campo em diferentes
áreas de pesquisa das Ciências Humanas e Sociais. Denise Jodelet, principal
colaboradora de Moscovici, contribui significantemente para a sistematização e
o aprofundamento teórico das representações sociais. O conceito de
representações sociais, proposto por Jodelet (2001), é definido como uma
forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada e que contribui
para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. De acordo
com a autora, as representações sociais são saberes de senso comum ou
ainda saberes ingênuos e naturais cujos conteúdos manifestam a operação de
processos generativos e funcionais socialmente marcados. O estudo de tais
fenômenos, como enfatiza a autora, possibilita o desvelamento de diversos
elementos que, tantas vezes, foram estudados isoladamente: “[...] informativos,
cognitivos, ideológicos, normativos, crenças, valores, atitudes, opiniões,
imagens etc.” (JODELET, 2001, p.21).
Somando-se a isso, Moscovici (2003) explica que a função primeira das
representações sociais é tornar o não familiar em familiar. E isso significa que
as representações criadas são sempre o resultado do esforço constante de se
tornar comum e real, algo que é incomum ou não familiar. Segundo o autor,
supera-se o problema integrando-o em nosso mundo mental e físico, que é,
assim, enriquecido e transformado. Esse processo, prossegue o autor,
reestabelece um sentido de continuidade no grupo e no sujeito que se
encontrava ameaçado pela descontinuidade e falta de sentido. É por isso que,
ao estudar uma representação, de acordo com Moscovici (2003), deve-se
descobrir a característica não familiar que a motivou e o momento exato em
que ela emerge na esfera social.
Além disso, as representações sociais possuem outras duas funções.
Em primeiro lugar, elas convencionalizam objetos, pessoas ou acontecimentos
e os localizam em uma determinada categoria, colocando-os gradualmente
como um modelo de determinado tipo partilhado por um grupo de pessoas. Em
49
relação a essa função das representações, o autor alerta que nenhuma mente
está livre dos efeitos dos condicionamentos anteriores que lhes são impostos
por suas representações, linguagem e cultura. Retomando essas condições,
pode-se inferir, primeiramente, que os pensamentos dos sujeitos se organizam
conforme um sistema que está condicionado pelas representações. Em
segundo lugar, de acordo com o autor, as representações são prescritivas, uma
vez que se impõem sobre os sujeitos devido à combinação de uma estrutura
que está presente antes de se começar a pensar e de uma tradição que
decreta o que deve ser pensado. Finalmente, vale ressaltar que as
representações são transmitidas de geração à geração e representam “uma
estratificação na memória coletiva e uma reprodução na linguagem que,
invariavelmente, reflete um conhecimento anterior e que quebra as amarras da
informação presente” (MOSCOVICI, 2003, p. 37).
Para explicar a transformação do não familiar em familiar, o autor
apresenta dois mecanismos: ancoragem e objetivação. Esses mecanismos
serão descritos nas partes a seguir.

2.2 A ancoragem

O primeiro mecanismo ancora ideias estranhas e perturbadoras e as


transformam em categorias ou imagens comuns. Ancorar é, nas palavras do
autor, “classificar e dar nome a alguma coisa” (MOSCOVICI, 2003, p. 61). Ao
classificar o que é inclassificável, ao se dar nome ao que era impossível
nomear, superam-se o estranhamento e a resistência ao desconhecido. É
importante, como alerta o autor, compreender as implicações dessa
classificação. Classificar significa confinar algo a um conjunto de
comportamentos e regras que estipulam o que é ou não permitido a todos os
indivíduos pertencentes a essa categoria ou classe. Em outras palavras,
“categorizar alguém ou alguma coisa significa escolher um dos paradigmas
estocados em nossa memória e estabelecer uma relação positiva ou negativa
com ele” (MOSCOVICI, 2003, p. 63). As classificações, segundo o autor, são
feitas comparando pessoas a um protótipo aceito como representante de uma
classe. Nesse sentido, Moscovici (2003) complementa que o ser humano não
50
tenta conhecer ou compreender outro indivíduo; de outra feita, tenta
reconhecê-lo, o que segundo o autor, é o mesmo que descobrir a que tipo de
categoria ele pertence. Assim, ancorar implica veredito sobre esse sujeito;
veredito esse que, segundo o autor, é obtido por meio da generalização ou
particularização. A generalização é a seleção de uma característica aleatória
que passa a ser utilizada como categoria, e essa característica se torna
coextensiva a todos os membros dessa categoria.
A particularização, por sua vez, tem como objetivo descobrir que
característica torna o objeto/sujeito distinto. Classificar, esclarece o autor,
implica em nomear. Ao nomear algo, o sujeito é libertado de um anonimato
perturbador e incluído em um complexo de palavras específicas, dessa
maneira, localizando-o na matriz de identidade de sua cultura. Moscovici (2003)
explica que nomear alguma coisa ou pessoa é precipitá-la e são três as
consequências: a pessoa ou coisa nomeada pode ser descrita e adquire certas
características utilizadas nessa descrição; a pessoa ou coisa, por meio dessas
características, torna-se distinta de outras pessoas ou objetos; e, finalmente, a
pessoa ou coisa torna-se objeto de uma convenção entre os que adotam e
partilham a mesma convenção.
Retomando o conceito de ancoragem, Jodelet (1990) explica que a
intervenção do social, nesse caso, traduz-se na significação e na utilidade que
são conferidas à representação. Ao analisar a ancoragem como atribuição de
sentido, a autora afirma que a hierarquia de valores prevalente na sociedade e
em seus diferentes grupos contribui para criar em torno do objeto uma rede de
significações na qual ele é inserido e avaliado como fato social. Jodelet (1990)
prossegue esclarecendo que os elementos da representação não apenas
exprimem relações sociais, mas contribuem para constituí-las. Segundo a
autora, a estrutura imaginante torna-se um guia de leitura da realidade e,
consequentemente, há uma “generalização funcional” que se torna referência
para compreender a realidade. Esse sistema de interpretação, de acordo com a
autora, tem uma função de mediação entre o indivíduo e seu meio e entre os
membros de um mesmo grupo, concorrendo para afirmar a identidade grupal e
o sentimento de pertencimento do indivíduo. A ancoragem torna-se, assim, um
código comum que permite classificar pessoas e acontecimentos, comunicar-se
51
usando a mesma linguagem e, portanto, influenciar. A autora enfatiza ainda
que a ancoragem fornece à objetivação seus elementos imaginados a título
de pré-constructos, para servir à elaboração de novas representações.

À luz de Moscovici, Jodelet (1990) esclarece que o processo de


ancoragem está relacionado dialeticamente à objetivação, uma vez que
articula as três funções básicas da representação: a função cognitiva de
integração da novidade, a função de interpretação da realidade e a função
de orientação das condutas e das relações sociais. Conforme a autora, os
processos de ancoragem e objetivação permitem compreender: como a
significação é conferida ao objeto representado; como é utilizada quanto ao
sistema de interpretação do mundo social e instrumentaliza a conduta; e,
finalmente, como se dá sua integração em um sistema de recepção e como
influencia e é influenciada pelos elementos que aí se encontram.

2.3 A objetivação

O segundo mecanismo, para explicar essa transformação do não familiar


em familiar, foi denominado, por Moscovici (2003), como objetivação e tem a
função de transformar algo abstrato em algo quase concreto, transferindo o que
está na mente em algo que existe no mundo físico. Em outras palavras, o autor
esclarece que a objetivação “está fundamentada na arte de transformar uma
representação na realidade da representação; transformar a palavra que
substitui a coisa, na coisa que substitui a palavra” (MOSCOVICI, 2003, p.71). O
autor explica que objetivar é descobrir a qualidade icônica de uma ideia, ou
seja, é reproduzir um conceito em uma imagem.
Fazendo coro com Moscovici, Jodelet (2001) define a objetivação como
uma operação imaginante e estruturante, que dá corpo aos esquemas
conceituais, reabsorvendo o excesso de significações, procedimento
necessário ao fluxo das comunicações. A autora distingue três fases nesse
processo: a construção seletiva, a esquematização estruturante e a
naturalização. A primeira fase corresponde ao processo pelo qual o sujeito se
52
apropria das informações e dos saberes sobre um dado objeto. Nessa
apropriação, a autora esclarece que alguns elementos são retidos, enquanto
outros são ignorados ou rapidamente esquecidos. As informações que circulam
sobre o objeto sofrem, de acordo com a autora, uma triagem em função de dois
fatores. O primeiro são os condicionantes culturais, isto é, o acesso
diferenciado às informações em decorrência da inserção grupal do sujeito. O
segundo fator são os critérios normativos os quais explicam que o indivíduo só
retém o que está de acordo com o sistema de valores circundante. Na segunda
fase, a esquematização, a autora explica que uma estrutura imaginante
reproduz, de forma visível, a estrutura conceitual de modo a proporcionar uma
imagem coerente e facilmente exprimível dos elementos que constituem o
objeto da representação, permitindo ao sujeito apreendê-los individualmente e
em suas relações. A última etapa da objetivação, Jodelet (1900) explica que é
a naturalização. Segundo a autora, nessa fase, os conceitos retidos no nó
figurativo e as respectivas relações constituem-se como categorias naturais,
adquirindo materialidade, ou seja, os conceitos tornam-se equivalentes à
realidade e o abstrato torna-se concreto por meio da sua expressão em
imagens e metáforas.

2.4 Núcleo central e sistema periférico

Abric (2003) aponta para o fato de que a objetivação se cristaliza a partir


de um processo figurativo e social e passa a constituir o núcleo central de uma
determinada representação, seguidamente evocada, concretizada e
disseminada como se fosse o real daqueles que a expressam. Ao introduzir o
conceito de núcleo central à teoria das representações sociais, Abric apresenta
o que muitos autores reconhecem como o elemento essencial da
representação. O autor sustenta a hipótese de que toda representação social
está organizada em torno de um núcleo central e de um sistema periférico.
O núcleo central, segundo o autor, determina o significado de uma
representação e, ao mesmo tempo, contribui para sua organização interna,
53
uma vez que está relacionado à memória coletiva dando significação,
consistência e permanência à representação sendo, portanto, estável e
resistente a mudanças.
O sistema periférico, ou ancoragem, constitui a parte operacional do
núcleo central e sua concretização mediante a apropriação individual e
personalizada por parte de diferentes pessoas oriundas de grupos sociais
diversos. Abric (2003) destaca cinco funções da ancoragem ou do sistema
periférico na dinâmica das representações sociais. São elas: a concretização
do núcleo central; a regulação das representações sociais, adaptando-as à
realidade do grupo; a prescrição de comportamentos; a proteção do núcleo
central e a elaboração de representações relacionadas à história e às
experiências pessoais do sujeito.
À luz dos conceitos discutidos até o momento, entende-se que o sistema
central estabelece a base das representações sociais, uma vez que está
associado às normas e aos valores partilhados pelo grupo. O sistema
periférico, por sua vez, é mais flexível e heterogêneo, pois incorpora a
contribuição dos indivíduos de acordo com suas experiências e vivências
pessoais. Logo, pode-se dizer que, na ancoragem, o indivíduo tem um papel
mais ativo no processo de construção da representação social. É nesse
componente que o sujeito pode apresentar abertura para conferir um novo
significado para algo. Dessa forma, os elementos periféricos, ou a ancoragem,
constituem uma oportunidade de transformação de representações sociais
alienadas.

Após discorrer sobre os conceitos estruturantes que constituem as


representações sociais, considero importante vincular a noção de ideologia,
essencial para a AD francesa, ao estudo das representações sociais.

54
2.5 Representações sociais, ideologia e AD francesa: breve diálogo
necessário

Retomando o discutido na seção primeira deste trabalho, a AD francesa


situa-se num campo de debate que envolve as condições de produção do
discurso e as relações existentes entre ele e a ideologia. Pêcheux (1966)
retoma o conceito de AIE (ALTHUSSER, 1985) para afirmar que os AIE são o
local e o meio para que a ideologia seja propagada a fim de interpelar o
indivíduo em sujeito.

Relacionando o conceito de ideologia com os estudos de representações


sociais, Sousa Filho (2003) argumenta que a ideologia pode ser pensada em
termos de um conjunto de representações cuja função é assegurar as
condições simbólicas da reprodução das relações de produção dominantes nas
sociedades. Para o autor, as representações podem ser definidas como a
menor parte da ideologia, constituindo-se no veículo pelo qual a ideologia
circula na sociedade. Nas palavras do autor:

Como materialização da ideologia em sua menor parte, as


representações se tornam visões e práticas duradouras de sujeitos
que estão investidos de crenças que as adotam para conceber o
mundo, a si próprios e os outros, embora desconheçam a história
dessas mesmas crenças e práticas. Através das representações, a
ideologia é capaz de significar para cada um o que se é e significar
como se deve conduzir em consequência (SOUSA FILHO, 2003, p.
80).

Ao se pensar a ideologia como um conjunto de representações (SOUSA


FILHO, 2003), assume-se que identificando as representações sociais que o
sujeito tem do mundo, por meio das marcas linguísticas que se repetem dentro
das formações discursivas, inicia-se o processo de reconhecimento da
ideologia que interpela o indivíduo em sujeito. Dessa forma, torna-se tangível
analisar a inscrição do outro, ou o interdiscurso, no discurso do sujeito, e
consequentemente se reconhecem valores e ideias circulantes em dada
sociedade. Essas ideias têm influência direta na identidade do sujeito, uma vez
que aquilo que o sujeito acredita é aquilo que o faz agir ou não agir,
55
direcionando sua relação com o mundo e o modo como se percebe na
sociedade.

Nesta seção, ressaltei o papel das representações sociais na


constituição da subjetividade dos sujeitos a partir dos mecanismos de
ancoragem e objetivação propostos por Moscovici (1984; 2003), Jodelet (1990;
2001). Retomo, também, os conceitos de núcleo central e sistema periférico
propostos por Abric (2003) e considerados por muitos teóricos como elementos
essenciais da representação. Ao término da seção, estabeleço uma relação
entre ideologia, representações sociais e a AD francesa por meio dos estudos
de Sousa Filho (2003).

Na seção seguinte, discorrerei sobre o conceito de identidade e o


relacionarei com os estudos de representações sociais, assim, objetivando
compreender como as identidades dos sujeitos desta pesquisa transformaram-
se na sua relação com as línguas que os constituem.

56
Identidades

O senhor... mire e veja: o mais


importante e bonito, do mundo, é
isto: que as pessoas não estão
sempre iguais, ainda não foram
terminadas – mas que elas vão
sempre mudando. 8

8 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. p.24.

57
58
SEÇÃO 3
Identidades

Nesta seção, discuto o conceito de identidade. Na seção primeira,


descrevi como a AD francesa reflete o percurso histórico, social e cultural do
sujeito, revelando quais discursos que perpassam a sua identidade diante da
materialização da sua linguagem. É importante ressaltar que parto da premissa
de que a identidade se forma ao longo do tempo e por meio de processos
inconscientes, uma vez que o processo de identidade é constituído ao decorrer
da vida do sujeito e orientado por vários interdiscursos que se revelam a partir
da produção discursiva.
Na segunda seção, discuti o conceito de representações sociais, uma
vez que, nas formações discursivas produzidas pelos sujeitos, há marcas
linguísticas que revelam as representações que o sujeito tem do mundo.
A bem da verdade, não se pode desprezar o fato de que a identidade,
conceito discutido nesta seção, também se constitui a partir das
representações que um grupo ou sociedade possui em torno dele mesmo. A
esse respeito, Woodward (2000, p.17) argumenta que:

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas


simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos,
posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados
produzidos pelas representações que damos sentido à nossa
experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses
sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no
qual podemos nos tornar.

Desse modo, entender como os bilíngues desta pesquisa, falantes de


português e inglês, percebem-se e percebem as línguas que os constituem é
essencial para entender como captam essas referências e são por elas
afetados na construção de suas identidades.
Somando-se a isso, Shotter e Gergen (1989) afirmam que nossas
identidades são construídas através de nossas práticas discursivas com o

59
outro. A esse respeito, Moita Lopes (1998) esclarece que os indivíduos têm
suas identidades construídas de acordo com o modo que se vinculam a um
discurso – o seu próprio e o discurso dos outros. Logo, pode-se dizer que não
há construção identitária desvinculada do discurso. Portanto, a identidade do
sujeito bilíngue constrói-se nas diferentes práticas discursivas em que ele se
engaja e pelas quais se relaciona com o outro. Nesse sentido, apoio-me em
Moita Lopes (2002) para afirmar que o indivíduo se constitui em um movimento
de vai e vem da percepção e da representação do outro sobre ele mesmo.
Para subsidiar esta discussão, resgato da literatura construtos teóricos
defendidos por autores pós-modernos, como Hall (2005), Bauman (2005),
Norton (1995) e Coracini (2003; 2007). Recorro também a outras áreas de
conhecimento para melhor compreender minhas questões de pesquisa. Busco
esteio no psicólogo social Ciampa (1984; 1990; 2004), que entende a
identidade como um construto social e, a partir disso, desenvolve os conceitos
de pressuposição da identidade (CIAMPA, 1990), mesmice (CIAMPA, 1984) e
mesmidade (CIAMPA, 1990). Retomo também o conceito de estigma do
sociólogo Goffman (1988), que reflete acerca do processo constitutivo da
identidade de sujeitos que se distinguem dos outros. Atrelado a esse conceito,
resgato a noção de preconceito linguístico, difundida no Brasil, por Bagno
(2002).

3.1 O conceito de identidade empregado

O conceito de identidade tem sido amplamente discutido e, ao mesmo


tempo, problematizado nos últimos anos, por estudiosos de diversas áreas e a
partir de diferentes linhas teóricas. Coracini (2003) enfatiza que vivemos em um
momento privilegiado de questionamentos de tudo que parece preestabelecido
e justificado, sendo, em meio a tantos questionamentos, que o sujeito procura
reconhecer-se e encontrar uma explicação de sua própria condição. A
compreensão do sujeito – da pessoa, do ser, do homem/mulher, etc. – sempre
foi uma temática instigante, pois, afinal, o ser humano (pre)ocupa-se com ele
mesmo na tentativa de responder à célebre pergunta: Quem somos nós?.

60
Porém essa pergunta não pode ser dissociada de onde estamos, de onde
viemos, para onde vamos? Sobre esse ponto, aliás, é preciso salientar que
conhecer o humano não é expulsá-lo do universo, mas sim situá-lo.
Historicamente, é possível localizar que, toda vez que uma mudança
epistemológica ocorre, torna-se preciso também ver o homem na história e
(re)conceitualizar o sujeito para que ele se conscientize sobre o modo como o
conhecimento estrutura a mente humana. Hall (2005) contribui para esta
discussão ao conceitualizar a noção de sujeito em consonância com os
diferentes períodos históricos:
a) sujeito do iluminismo: o sujeito do iluminismo estava baseado numa
concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado,
unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo
"centro" consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o
sujeito nascia e se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o
mesmo - contínuo ou "idêntico" a ele - ao longo da existência do indivíduo.
b) sujeito sociológico: a noção de sujeito sociológico refletia a crescente
complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior
do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação
com outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os
valores, sentidos e símbolos, a cultura, dos mundos que ele habitava.
c) sujeito pós-moderno: o sujeito pós-moderno torna-se fragmentado; composto
não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou
não resolvidas. À medida que os sistemas de significação e representação
cultural se multiplicam, o sujeito é confrontado por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis e com cada uma das
quais se identifica ao menos temporariamente. A identidade do homem pós-
moderno é definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são
unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro dele, há identidades
contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que essas
identificações são continuamente deslocadas.
Neste cenário, emerge também o processo de globalização, quebrando
antigos paradigmas e reforçando algumas características desse momento
61
histórico. O fenômeno, que “tende a desenraizar as coisas, as gentes e as
ideias” (IANNI, 1999, p. 94), interfere diretamente na conceptualização da
identidade e na fragmentação do sujeito, além de atingir as diversas relações
sociais nos mais variados níveis e afetar o modo de ser e agir da sociedade, na
qual agora vigoram dualidades como global/local, coletivo/individual,
micro/macro e concreto/abstrato. Somando-se a isso, Bauman (2005)
acrescenta que a noção de identidade herdada da Modernidade naufraga em
um contexto fluido em que verdades, outrora inquestionáveis, são postas em
xeque e nascem novas formas de sociabilidade sob os auspícios da
globalização no mundo capitalista contemporâneo. Para o autor, na
contemporaneidade, a tônica recai no individualismo, na solidão e na exclusão
gritantes nos mais diversos contextos sociais. A partir desse mesmo prisma,
Coracini (2003) salienta que, ainda que os defensores deste fenômeno
neguem, a globalização pretende a centralização e a homogeneização de tudo
e todos, o que contribui para a caracterização de uma crise da identidade,
provocada, em grande parte, pela ideologia da globalização.
Neste estudo, o conceito de identidade é concebido a partir da
concepção de sujeito pós-moderno apresentada acima. De acordo com Hall
(2005), a identidade de um sujeito é formada e transformada continuamente em
relação às formas pelas quais este é representado ou interpelado nos sistemas
culturais que lhe rodeiam. Frente a esta postura teórica adotada, pode-se
considerar que a identidade do sujeito se constrói na/através da linguagem e,
por isso, não se pode falar em identidades fixas; as identidades estão sempre
em estado de fluxo.
Não é à toa que Bauman (2005) assevera que a constituição identitária
deve ser considerada um processo contínuo de redefinir-se e de inventar e
reinventar sua própria história, pois a identidade, como afirma Coracini (2007),
tem sua existência no imaginário do sujeito que se constrói nos e pelos
discursos imbricados que o constituem. Porém é importante salientar que,
apesar da identidade ser tratada como um processo ficcional, pois, como
salienta Bauman (2005), a inventamos, não se deve desmerecê-la, visto que,
por meio desse processo, o sujeito revela como se posiciona no decorrer de
sua história.
62
Neste mesmo universo conceitual, Norton (1995) também defende a
concepção de uma identidade múltipla e suscetível a mudanças. Para esta
autora, o termo identidade refere-se ao modo pelo qual as pessoas
compreendem sua relação com o mundo, como tal relação é construída através
do tempo e do espaço e como essas mesmas pessoas entendem suas
possibilidades para o futuro. Para Norton (1995), a noção de identidade está
intimamente ligada aos desejos de reconhecimento, afiliação e segurança. A
autora completa que a língua constitui e é constituída pela identidade do
sujeito, que, por intermédio dela, negocia a noção do “eu” em meio a ambientes
diferentes e em pontos distintos no tempo. A autora afirma ainda que, ao falar,
os aprendizes não estão apenas trocando informações com o interlocutor: eles
estão constantemente organizando e reorganizando o senso de quem são e de
como se relacionam com o mundo. Durante esse processo, os aprendizes
estão envolvidos na construção e na negociação de suas identidades.
Em consonância à concepção defendida por Norton, um dos estudiosos
brasileiros mais significativos do conceito identidade, Ciampa (1990), defende
que a identidade é um constructo social resultante da relação dialética entre o
sujeito e a sociedade. Nessa relação, de acordo com o autor, o sujeito é
configurado não apenas como personagem, mas também como autor de sua
própria história. Essa configuração, salienta Ciampa (1984), ocorre uma vez
que não se pode isolar, de um lado, todo um conjunto de elementos biológicos,
psicológicos e sociais que podem caracterizar um indivíduo 9; e de outro lado, a
representação desse sujeito como uma duplicação simbólica que expressaria
sua identidade. Dessa forma, há uma interpenetração desses dois aspectos, o
que impossibilita a separação da identidade pressuposta e a representação
desse indivíduo.

9 Como explicitado na nota de rodapé número 4, da página 20, este estudo tem como base teórico-metodológica a
análise de discurso de linha francesa que faz uso da denominação sujeito. Na AD francesa, o sujeito difere do indivíduo
por estar em uma relação de assujeitamento e de pertencimento a uma memória discursiva. A partir dessa perspectiva,
emprego o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa e também no decorrer desta dissertação quando o assunto
tratado for discutido a partir da análise de discurso de linha francesa. Nesta seção, no entanto, recorro a outras áreas
de conhecimento para melhor compreensão de minhas questões de pesquisa, uma vez que a linguística aplicada
converge em um processo transdisciplinar de produção de conhecimento (MOITA LOPES, 2006). Desse modo, busco
esteio na psicología social (CIAMPA, 1984; 1990; 2004), na sociología (GOFFMAN, 1988) e na filosofía (HABERMAS,
1976) para me aprofundar na discussão do conceito identidade. Esses autores, em suas diferentes áreas de
conhecimento, fazem uso da denominação indivíduo (e não sujeito, como na análise de discurso francesa), uma vez
que não se remetem a questão do assujeitamento e da memória discursiva. Sendo assim, opto por manter a
denominação indivíduo utilizada pelos autores. Porém mantenho o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa,
pois utilizarei os conceitos desenvolvidos por esses autores, dentro da perspectiva que me proponho, a AD francesa.
63
Sendo assim, faz-se fundamental entender que sempre há a
pressuposição de uma identidade (CIAMPA, 1990), isto é, sempre, existe
uma predicação atribuída ao indivíduo pelo outro, ou seja, há uma nomeação
de atributos individuais nas relações que se dão no âmago de uma estrutura
social. Trata-se, então, de uma identidade que é dada, atribuída, outorgada e
mediada pelo outro. Assim, de acordo com essa pressuposição, o sujeito, como
ser social, é um ser-posto (CIAMPA, 1990), uma vez que carrega em si o
conhecimento compartilhado socialmente e as expectativas dos outros no que
se refere ao modo como um determinado indivíduo deve agir e ser.

A partir da pressuposição da identidade, Ciampa (1990) compreende a


identidade como um processo de metamorfose permanente, uma vez que
pressuposta e posta, a identidade é reposta, o que Ciampa (1984) denomina
como mesmice. Em outras palavras, a mesmice é a reposição da identidade
pressuposta por meio de ritos sociais ou pela reposição de personagens
estereotipados. Isso equivale a dizer que mesmo quando a identidade é
percebida como estática – parecendo não sofrer modificação alguma – ela está
sendo transformada à medida que, por meio de ações, o indivíduo “repõe”
aquilo que a sociedade “põe” como certo, isto é, aquilo que as normas sociais e
a ideologia dominante estabelecem ser o mais adequado, criando, como afirma
Ciampa (1990), a identidade mito que apenas reproduz o social sem
questionamento e/ou responsabilidade por parte do indivíduo com relação à
sua identidade.

Opondo-se à mesmice, ou ao ser-feito-pelo-outro, como argumenta


Ciampa (1990), a mesmidade, ou o ser-para-si é a superação da identidade
pressuposta, ou seja, o indivíduo emancipa-se de valores estigmatizantes e
preconceituosos impostos pela sociedade e/ou apropriados por ele,
possibilitando um agir mais livre e criativo para realização de suas metas e
desejos. Assim, o indivíduo sai do movimento de reposição e busca o outro;
“outro” que também é ele, isto é, o “outro” que se quer ser pela superação da
identidade pressuposta.

64
Ciampa (1984) alerta para o fato de que essa nova identidade necessita
de reconhecimento social. Esse novo conteúdo identitário do Ego precisa ser
reconhecido pelo Alter para que esse sentido pessoal se estabilize como
significado socialmente compartilhado, o que permite que se desenvolva uma
nova rede intersubjetiva.

Sob esse mesmo prisma, Ciampa (1990) afirma que a identidade é a


articulação entre a diferença e a igualdade: o outro designa o eu, da mesma
forma que a identidade do indivíduo é também “determinada pelo que não é
ele, pelo que o nega” (CIAMPA, 1990, p.137). Essa identificação e
diferenciação não podem ser apreendidas à margem dos sistemas de
significação social vigentes. O autor prossegue salientando que ter
características e comportamentos apontados pela sociedade como
indesejáveis pode suscitar sanções e reprimendas, o que remete à ideia de que
a construção da identidade não ocorre de forma harmoniosa ou equilibrada,
mas é fruto de um jogo de poderes, em que a dominância dos grupos
hegemônicos aponta o socialmente valorizado e influencia a constituição da
identidade.

3.2 Estigma e preconceito

À luz das discussões estabelecidas até o momento, busco esteio em


Goffman (1988), especificamente na obra Estigma: notas sobre a manipulação
da identidade deteriorada, para refletir acerca do processo constitutivo da
identidade a partir das considerações apontadas a respeito da manipulação da
identidade de indivíduos que se distinguem dos outros em determinado
contexto, por uma marca que lhe é peculiar - o estigma.

Nessa obra, o autor introduz o conceito de identidades sociais virtuais


e identidades sociais reais. As identidades sociais virtuais são constituídas
pelas afirmativas em relação àquilo que o indivíduo outro deveria ser. O
conceito de identidades sociais virtuais, apresentado por Goffman (1988), pode
65
ser alinhado ao conceito de identidade pressuposta, proposto por Ciampa
(1984), uma vez que essas preconcepções são transformadas em expectativas
normativas e exigências apresentadas de modo rigoroso pela sociedade. Por
sua vez, a categoria e os atributos que o indivíduo, na verdade, prova possuir
são chamados de sua identidade social real.

A discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social real


é responsável pela produção do estigma. Segundo Goffman (1988), em
contato com o estranho, o indivíduo tem evidências de que esse estranho tem
um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria
que pudesse ser incluído. Essas características que o diferenciam são
denominadas estigma.

Goffman (1988) distingue três tipos de estigma:

1. As abominações do corpo ou deformidades físicas.

2. As culpas de caráter individual, como, por exemplo, o distúrbio mental,


a prisão, o vício, o homossexualismo e tentativas de suicídio, entre outros.

3. Estigmas tribais de raça, nação e religião.

Este trabalho trata do terceiro tipo de estigma proposto pelo autor, uma
vez que, ao se compararem com falantes oriundos de países de língua inglesa,
falantes bilíngues brasileiros colocam-se em uma posição estigmatizada, seja
por sua condição de latino e de ideias preconcebidas acerca de ser brasileiro,
ou por um sentimento de inferioridade pela percepção de diferenças no
sotaque quando comparado a falantes oriundos de países de língua inglesa.

O termo estigma, ressalta o autor, oculta uma dupla perspectiva: o


indivíduo que assume que a sua característica distintiva já é conhecida ou é
imediatamente evidente – condição de desacreditado ou, então, que ela não é
nem conhecida pelos presentes nem imediatamente perceptível por eles –
condição de desacreditável. Goffman (1988) pontua que o sujeito
desacreditável manipula a informação sobre sua marca, decidindo exibi-la ou
ocultá-la dependendo de como, para quem, quando e onde. Há, dessa forma,
uma manipulação da informação oculta que desacredita o eu, ou seja, um
66
encobrimento (GOFFMAN, 1988). De acordo com o autor, há na literatura
cinco ciclos naturais nesse processo:

1. Encobrimento inconsciente, que o indivíduo pode nunca perceber.

2. Encobrimento involuntário, que o indivíduo pode perceber com


surpresa no meio do processo.

3. Encobrimento “de brincadeira”, que é o encobrimento em momentos


não rotineiros da vida social, como férias e viagens.

4. Encobrimento em ocasiões rotineiras da vida diária, como no trabalho


e em situações de serviço.

5. Desaparecimento, que é o encobrimento completo em todas as áreas


da vida.

Goffman (1988) chama a atenção para o fato de que alguns poucos


indivíduos não conseguem viver de acordo com o que é efetivamente exigido e
esperado dele, mas que, ainda assim, permanecem alheios à sua inadequação
em relação ao que a sociedade espera deles e se protegem por crenças de
identidades próprias. No entanto Goffman (1988) ressalta que a grande maioria
de indivíduos estigmatizados tende a ter as mesmas crenças sobre identidade
que o grupo dominante possui.

O autor pontua ainda que indivíduos estigmatizados tendem a ter


experiências semelhantes de aprendizagem relativa à sua condição e a sofrer
mudanças semelhantes na concepção do eu, isto é, uma carreira moral
semelhante, que é não só causa como efeito do compromisso com uma
sequência semelhante de ajustamentos pessoais (GOFFMAN, 1988). Para
Goffman (1988), há duas fases nesse aprendizado. Uma das fases é a que a
pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de vista dos outros
indivíduos do grupo dominante, adquirindo, dessa forma, as crenças da
sociedade mais ampla em relação à identidade e uma ideia geral do que
significa possuir determinado estigma. Em outra fase, o indivíduo aprende que
possui um estigma particular e, dessa vez, detalhadamente, as consequências
de possuí-lo. Segundo o autor, a sincronização e interação dessas duas fases
67
iniciais da carreira moral formam quatro modelos, descritos a seguir, que
estabelecem as bases para um desenvolvimento posterior e distinguem entre
as carreiras morais disponíveis para os estigmatizados:

1. O primeiro modelo envolve indivíduos que possuem um estigma


congênito e que são socializados dentro de sua situação de desvantagem,
mesmo aprendendo e incorporando os padrões frente aos quais fracassam.

2. O segundo modelo deriva da capacidade da família ou grupo no qual


o indivíduo está inserido de controlar as informações que o diminuiriam,
enquanto se dá acesso a outras concepções da sociedade mais ampla. Esse
indivíduo encapsulado passa, dessa forma, a considerar-se inteiramente
qualificado, o que não impede que, em algum momento de sua vida, ocorra a
aprendizagem do estigma.

3. O terceiro modelo engloba indivíduos que se tornaram estigmatizados


numa fase avançada da vida ou aprenderam muito tarde que sempre foram
desacreditáveis, o que envolve uma reorganização radical de seu passado.

4. O quarto modelo, no qual alguns participantes deste trabalho se


inserem, diz respeito a indivíduos que são inicialmente socializados numa
comunidade diferente, dentro ou fora das fronteiras geográficas da sociedade,
e que devem posteriormente aprender uma segunda maneira de ser validado
pelo grupo social à sua volta.

Em contato com o grupo dominante, o que autor define como situações


sociais mistas, os indivíduos estigmatizados tentam corrigir diretamente o que
consideram a base objetiva de seu defeito, ocorre aqui a vitimização, que é
quando a pessoa estigmatizada se rende a servidores que vendem meios para
corrigir a fala, para clarear a cor da pele ou para esticar o corpo, por exemplo.

Indo mais além, Goffman (1988) esclarece que, quando o indivíduo


adquire tardiamente o ego estigmatizado, como é o caso de muitos dos sujeitos
desta pesquisa, as dificuldades para estabelecer novas relações podem se
estender também a relações antigas, uma vez que as relações anteriores
podem não conseguir tratá-lo “nem com um tato formal nem com uma
68
aceitação familiar total” (GOFFMAN, 1988, p. 45). O autor salienta que há
também exemplos de indivíduos que se desviam, quer em atos ou em atributos
que possuem, do grupo estigmatizado a que pertencem. Esses indivíduos,
como explica Goffman (1988), são denominados desafiliados ou desviantes
sociais, e voluntária e abertamente recusam-se a aceitar o lugar social que
lhes é destinado.

Na esfera do discutido por Goffman (1988), há ainda outra situação a ser


considerada: o preconceito linguístico. O preconceito linguístico é um conceito
marxista, criado pelo sociólogo Nildo Viana, calcado em escritos de Pierre
Bordieu, como demonstração de outra forma de opressão e luta de classes.

O principal defensor desse conceito, no Brasil, é o professor Marcos


Bagno. Bagno (2002) alerta para a existência do preconceito linguístico como
uma forma recorrente e atual de preconceito. Em seu livro, Preconceito
linguístico – o que é, como se faz, o autor atém-se a discutir a questão dos
vários preconceitos, praticados pelos próprios brasileiros, em relação à língua
portuguesa falada no Brasil. Segundo o autor, a noção de correto, imposta pelo
ensino tradicional, origina um preconceito contra as variedades não padrão de
português faladas no Brasil.

O autor ressalta, ao longo de seu livro, uma série de afirmações que já


fazem parte da imagem (negativa) que o brasileiro tem de si mesmo e da
língua falada por aqui, como a de que o português é uma língua difícil e a de
que brasileiros não sabem português. Essas afirmações parecem se estender
também no que tange ao sotaque brasileiro ao falar inglês. Possuir sotaque
brasileiro parece ser visto como uma desvantagem e, desse modo, existe uma
tentativa de encobri-lo, de escondê-lo.

Bagno (2002) salienta que os preconceitos impregnam-se de tal maneira


na mentalidade das pessoas que as atitudes preconceituosas se tornam parte
integrante do seu próprio modo de ser e de estar no mundo e alerta para o fato
de que “o tipo mais trágico de preconceito não é aquele que é exercido por
uma pessoa em relação a outra, mas o preconceito que uma pessoa exerce
contra si mesma” (BAGNO, 2002, p.75). O autor atribui à união de quatro
69
elementos a formação do preconceito linguístico no Brasil: à gramática
tradicional, aos métodos tradicionais de ensino, aos livros didáticos e aos
comandos paragramaticais, os quais o autor define como sendo “todo esse
arsenal de livros, manuais de redação de empresas jornalísticas, programas de
rádio e de televisão, colunas de jornal e de revista, CD-ROMS, consultórios
gramaticais” (BAGNO, 2002, p.76).

Segundo o autor, tanto os livros didáticos quanto os recursos


paragramaticais, que poderiam ter utilidade para quem tem dúvidas na hora de
falar ou de escrever, acabam perdendo-se por trás da espessa neblina de
preconceito que envolve essas manifestações da (multi)mídia. Assim,
perpetuam as velhas noções de que brasileiro não sabe português e de que
português é muito difícil. Acrescento a isso, a questão do sotaque brasileiro ao
falar inglês. Inúmeros são os recursos que, sob a mesma neblina de
preconceito, prometem reduzi-lo ou mesmo apagá-lo. Com isso, mais uma
forma de preconceito contra o português falado no Brasil é disseminado, o que
acarreta em mais uma ideia negativa que o brasileiro tem de si mesmo e da
língua que fala. Ideias essas, conscientes ou não, têm implicações direta na
construção e na negociação das identidades de sujeitos bilíngues brasileiros.

Nesta seção, abordei os estudos sobre identidade a partir da perspectiva


da Pós-Modernidade com base em Hall (2005), Bauman (2005), Norton (1995)
e Coracini (2003; 2007). Nessa perspectiva, retomei os estudos de Ianni (1999)
para discorrer a respeito das implicações da globalização na conceptualização
da identidade e na fragmentação do sujeito na Pós-Modernidade. Recorri
também a outras áreas de conhecimento para melhor compreender minhas
questões de pesquisa. Busquei esteio no psicólogo social Ciampa (1984; 1990;
2004), que entende a identidade como um construto social e, a partir disso,
desenvolveu os conceitos de pressuposição da identidade (CIAMPA, 1990),
mesmice (CIAMPA, 1984) e mesmidade (CIAMPA, 1990). Dentro da filosofia,
recorri a Habermas (1976) que enfatiza o conceito de individuação relacionado
à noção de mesmice desenvolvida por Ciampa (1984). Finalmente, retomei o
conceito de estigma do sociólogo Goffman (1988), que reflete acerca do
processo constitutivo da identidade de sujeitos que se distinguem dos outros.
70
Atrelado a esse conceito, resgatei a noção de preconceito linguístico, difundida
no Brasil, por Bagno (2002).

Revisando o percurso traçado até aqui, compreendo o desafio de


abordar a identidade não como uma descrição em termos objetivantes, mas,
sim, como compreensão do processo constante de formação e transformação
do indivíduo.

Na seção seguinte, enfatizo o aporte teórico sobre língua materna,


língua estrangeira e bilinguismo, que servirão de base para minhas análises.

71
Vida entre línguas
Nós temos sempre necessidade
de pertencer a alguma coisa; e
parece que a liberdade plena
seria a de não pertencer a coisa
nenhuma. Mas, como é que se
pode não pertencer à língua
que se aprendeu, à língua com
que se comunica e com que se
escreve?10

10 LOPES, Victor. Entrevista de José Saramago em Língua – Vidas em Português (documentário). Brasil/Portugal,
2004. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=b7cIiiHmFI8 >. Acesso em: dez. 2011.

72
73
SEÇÃO 4
Vida entre línguas

Revuz (1998), a partir dos estudos sobre a enunciação e de


contribuições da psicanálise a respeito da incidência da língua na constituição
identitária do sujeito falante, afirma que a língua é "o material fundador de
nosso psiquismo e de nossa vida relacional" (REVUZ, 1998, p.217). Sendo
assim, este trabalho parte do pressuposto de que o sujeito se constitui pela e
na linguagem. À luz dos estudos lacanianos, tomo como base que o sujeito não
tem uma identidade anterior e fora da língua, uma vez que o mundo humano é
o mundo da linguagem e não há nada aquém ou além da linguagem. Levando
em consideração tal posicionamento, ao se referir a sujeitos falantes de mais
de uma língua, qual é o papel da língua materna e da língua estrangeira em
sua constituição identitária? No que se constitui essa língua materna e essa
língua estrangeira?
Nas duas partes seguintes, proponho-me a refletir sobre o que é língua
materna e língua estrangeira e a imbricação dessas na constituição da
identidade de sujeitos fal(t)antes de mais de uma língua. Na última parte,
discorro sobre as noções de bilinguismo, sujeito bilíngue e bilingualidade.
Noções essas, importantes para a análise das representações que os sujeitos
desta pesquisa têm sobre as línguas que os constituem e sobre sua
bilingualidade dentro do quadro teórico da AD francesa.

4.1 O que é esta língua dita materna?

De um modo geral, o termo língua materna leva em consideração a terra


onde se nasce, o sangue que se herda e a língua na qual se é criado. Coracini
(2003) explica que língua materna significa etimologicamente língua da mãe.
Mas acrescenta que não se pode tomar a definição ao pé da letra, uma vez que
há sociedades em que a língua ensinada é a língua do pai ou que a criança é
educada por outra mulher, a qual possui outra língua. A autora prossegue
74
afirmando que, na escola, assume-se como língua materna a língua na qual a
criança é alfabetizada, língua esta que nem sempre coincide com a primeira
língua na qual a criança aprendeu a falar. Coracini (2003) aponta ainda para o
fato de que língua materna indica também a primeira língua adquirida, todavia
esclarece que há casos de bilinguismo simultâneo, quando a criança adquire
duas línguas ao mesmo tempo, como é o caso de muitos participantes desta
pesquisa.
Porém Maher (1998) esclarece que, em termos de língua materna,
ultrapassam-se diferenças linguísticas e se coloca em jogo questões
relacionadas à identidade. Diante dessa complexidade na qual se deslocam
escopos estritamente linguísticos, recorro aos estudos psicanalíticos e aos
estudiosos do ser-estar entre línguas, como Melman (1992), Revuz (1998),
Maher (1998) e Coracini (2003/2007), que se distanciam de acepções
simplistas acerca de constituição da língua materna.
Revuz (1998) alerta para o fato de que a língua materna é a língua
primeira aprendida por um falante, língua essa que o assujeita e o torna um
sujeito da linguagem, uma vez que molda suas bases de estruturação psíquica
e solicita uma prática complexa: o relacionar-se consigo mesmo, com os outros
e com o mundo.
Melman (1992), por sua vez, relata que, durante muito tempo,
perguntou-se o que era uma língua materna, uma vez que frequentemente se
fala mais de uma língua e, por vezes, a língua estrangeira é utilizada com uma
maior facilidade. Ao prosseguir, o autor explica que se pode pensar que a
língua materna veicula a lembrança daquela que introduziu o sujeito à fala e
esclarece que a língua materna é aquela “na qual, para aquele que fala, a mãe
foi interditada” (MELMAN, 1992, p. 32). Ela é dita “materna”, porque, nela, falta
justamente o que pode ser considerado “materno”, ou seja, a lembrança
daquela que, primeiramente, introduziu o sujeito à fala, como assinala o
psicanalista:

A língua materna [...] é aquela na qual funcionou para o pequeno


falante, para o sujeito que a articula, o interdito de sua mãe. E a
chamamos “língua materna” porque é inteiramente organizada por
este interdito que, de algum modo, imaginariza o impossível próprio a
toda língua (MELMAN, 1992, p. 44).
75
Esse conceito de interdição empregado por Melman advém de Lacan.
Em o Estádio do Espelho como Formador da Função do “Eu”, Lacan
(1966/1998) apresenta três etapas para a constituição do Eu, trabalhando o
fenômeno pelo qual uma criança reconhece sua imagem no espelho.
Inicialmente, a criança reage à sua imagem no espelho como uma realidade ou
uma imagem de um outro. Após esse período, a criança deixa de tratar essa
imagem como um objeto real e entende que o reflexo no espelho não passa de
uma imagem. E, em uma terceira etapa, a criança, finalmente, por volta dos 18
meses, reconhece esse outro como sua própria imagem. Trata-se do processo
de identificação, como conquista progressiva da identidade do sujeito. De
acordo com Fages (1977), essa identificação primária da criança com sua
imagem é o tronco de todas as outras identificações.
Na terceira etapa, que é a da identificação ao pai, ocorre a aquisição da
linguagem e, com isso, a entrada da criança na ordem simbólica. Para tanto, a
mãe precisa reconhecer o pai como representante da lei para que a criança
identifique o pai como aquele que detém o falo. O pai é aquele que repõe o falo
em seu devido lugar: como objeto desejado pela mãe e distinto da criança.
Assim, o pai castra a criança, distinguindo-a do falo e separando-a da mãe
(castração simbólica) e a criança encontra sua justa posição na família. Com
isso, a criança ultrapassa a relação dual com a mãe, adquire subjetividade e
entra no mundo da linguagem.
Melman (1992) esclarece que a língua materna é a própria condição de
estruturação psíquica, pois, a partir da inscrição do sujeito no universo da
linguagem, ele subjetiva-se e se torna Eu. Além disso, ao ser a língua na qual a
mãe é interditada, é também a língua do desejo, uma vez que o desejo é
produzido por essa interdição.
Esse desejo, segundo Fages (1977), segue-se a essa falta essencial
que, separada de sua mãe, a criança sofre. O desejo tende a preencher a falha
– a castração – que é a separação da mãe. Como a criança não consegue
satisfazer o desejo de ser o falo da mãe, o desejo de ser a mãe, a criança
deseja o Outro, mas precisamente deseja ser reconhecido pelo Outro.

76
4.2 O que é esta língua dita estrangeira?

A língua estrangeira, assim como a língua materna, apresenta também


diversas acepções. É também chamada de segunda língua, como no caso de
imigrantes que aprendem a língua do país para o qual emigraram; ou, em
países europeus e no Canadá, tal denominação é concebida pela ordem de
colocação das línguas existentes no currículo escolar. Coracini (2003) alerta
para o fato de que há diferentes graus de estrangeirização e de estranhamento.
Para a autora, a língua estrangeira é a língua “estranha”, a língua do estranho,
do outro.
Se, como Melman (1992) conceitua, a língua materna é o lugar de
interdição, uma vez que carrega o peso da história do sujeito e, assim, do
imaginário resultante da ideologia que naturaliza o que foi construído; a língua
estrangeira, por sua vez, é o lugar onde quase tudo é permitido, onde os
desejos podem irromper mais livremente, uma vez que, como afirma Coracini
(2003), ainda, não foi moldada pelos interditos. Melman (1992) afirma ainda
que, quando se fala uma língua estrangeira - estrangeira comparada à língua
materna que teceu o inconsciente -, o retorno do recalcado na língua
estrangeira não é mais escutado como a expressão de um desejo, mas apenas
como a expressão de erros gramaticais, sintáticos ou lexicais. Coracini (2003)
apresenta como prova cabal desse fenômeno o fato de um falante estrangeiro
ser todo comedido em sua própria língua, mas que faz uso de palavras de
baixo-calão na língua estrangeira. A autora exemplifica que, muitas vezes, por
mais desenvoltura que se tenha em uma língua estrangeira, ela não é capaz de
dizer o que se gostaria ou como seria capaz na língua materna. A partir disso,
se pode dizer que a língua materna e a língua estrangeira têm funções
diferentes. Coracini (2003) afirma que a língua materna é a língua dos desejos
interditados que escapam por meio das metáforas, metonímias, deslizes,
lapsos ou chistes. A língua estrangeira, por sua vez, é, segundo a autora, a
língua que permite dar vazão a esses desejos interditados, criando a impressão
de liberdade, uma vez que se constitui nas zonas de não interdição.
Para Coracini (2007), a língua chamada estrangeira tem uma função
formadora, uma vez que atua na imagem do sujeito falante e dos outros e na
77
constituição identitária do sujeito do inconsciente. Na mesma direção, Revuz
(1998) afirma que o encontro com a língua estrangeira faz vir à consciência
algo do elo que se mantém com a língua materna. Coracini (2007)
complementa que a língua estrangeira sempre traz consigo consequências
indeléveis para a constituição do sujeito: outras vozes, outras culturas, outro
modo de organizar o pensamento e outro modo de ver o mundo e o outro. São
essas vozes que irão se entrelaçar no inconsciente do sujeito e provocar
reconfigurações identitárias e rearranjos subjetivos. De acordo com a autora,
esses rearranjos produzem-se porque a língua estrangeira, o outro, penetra
como fragmentos que incomodam, desarranjam, confundem e deslocam as
bases repousantes da língua materna e da cultura local. Para a autora, uma
língua estrangeira constitui um conjunto de fragmentos estranhos que
perturbam, confundem e, com isso, colocam em questão o modo de ser e de se
posicionar do sujeito. Coracini (2003) ressalta também a importância de se
compreender que a língua estrangeira traz consigo, à revelia do aprendiz, uma
carga ideológica que o coloca em conflito permanente com a ideologia da
língua materna.
A estranheza à língua estrangeira, apontada por Coracini (2003), pode
provocar reações que vão desde o medo de aprender uma língua estrangeira
até uma atração irresistível por essa língua. Na mesma direção, Revuz (1998)
afirma que a língua estrangeira vai confrontar o sujeito com um recorte do real
em unidades de significação desprovidas de carga afetiva. Dessa forma, o
arbitrário do signo linguístico torna-se uma realidade tangível, vivida pelos
sujeitos na exultação ou no desânimo.
Complementando essa ideia, Melman (1992) aponta para o fato de que
há hipóteses que explicam a resistência inconsciente ao aprendizado de uma
língua estrangeira pelo medo da perda da identidade ou da perda de si que a
outra língua pode implicar. Revuz (1998) reforça essa hipótese ao salientar que
o medo pode bloquear aprendizagens, impondo uma barreira ao encontro do
outro.
De outra feita, Coracini (2007) esclarece que os casos em que aprender
uma língua estrangeira constitui uma forte atração para o sujeito podem ser
explicados como o desejo do outro, outro que o constitui e cujo acesso é
78
interditado e que ilusoriamente tem o poder de o fazer uno e completo. Essa
forte atração pela língua do outro compreende muitos dos casos relatados e
analisados nesta pesquisa. Prasse (1997) complementa explicando que esse
desejo pelas línguas estrangeiras se alimenta de duas fontes: inveja dos bens
e da maneira como gozam os outros e a inquietação de não conseguir
encontrar seu próprio lugar na língua materna. É, segundo o autor, o desejo de
ser livre, de impor-se a uma ordem por um ato voluntário.
A partir da discussão realizada nesta seção, é importante ressaltar que,
neste trabalho, língua materna e língua estrangeira caminham juntas, num
duplo efeito de sentido, o que vem ao encontro com o defendido por Derrida
(2001), que salienta a ideia de que a língua é sempre estrangeira, à medida
que provoca estranhamentos, e é sempre materna, conforme, nela, o sujeito
inscreve-se. Considero pertinente também reforçar o já mencionado por
Coracini (2003), que argumenta que o importante não é se algum dia alguém
saberá a língua estrangeira como sabe a materna. A questão é, como afirma a
autora, compreender que a inscrição do sujeito numa língua estrangeira é
sempre portadora de novas vozes, confrontos e questionamentos que alteram
a constituição da subjetividade e modificam o sujeito ao trazer-lhe novas
identificações sem que ocorra o apagamento da discursividade da língua
materna que o constitui.

4.3 Algumas considerações sobre as noções de bilinguismo,


bilingualidade e sujeito bilíngue

Frente ao exposto sobre língua materna e língua estrangeira, pretendo,


nesta parte, discutir as noções de bilinguismo, bilingualidade e sujeito bilíngue.
A partir de estudos teóricos, como os de Grosjean (1982), constata-se que falar
duas línguas pode esconder conflitos identitários difíceis de serem explicados
ou equacionados.
Na literatura especializada, muito se tem escrito sobre a questão do
bilinguismo e do sujeito bilíngue. Apesar disso, não há, até hoje, uma
concepção clara do fenômeno, como se pode observar a seguir.

79
A noção de bilinguismo tornou-se cada vez mais ampla e difícil de
conceituar a partir do século XX. A primeira vista, definir o bilinguismo não
parece ser uma tarefa difícil. De acordo com o dicionário Oxford (2000, p. 117),
bilíngue é definido como: “ser capaz de falar duas línguas igualmente bem
porque as utiliza desde muito jovem”. Na visão popular, ser bilíngue é o mesmo
que ser capaz de falar duas línguas perfeitamente; esta é também a definição
empregada por Bloomfield (1935), que define bilinguismo como o controle
nativo de duas línguas. Opondo-se a esta visão que inclui apenas bilíngues
perfeitos, Macnamara (1967) propõe que um indivíduo 11 bilíngue é alguém que
possui competência mínima em uma das quatro habilidades linguísticas (falar,
ouvir, ler e escrever) em uma língua diferente de sua língua nativa.
Entre estes dois extremos, encontram-se outras definições, como, por
exemplo, a definição proposta por Barker e Prys Jones (1998), pela qual
levantam algumas questões para a classificação de indivíduos bilíngues:
- Devem-se considerar bilíngues somente indivíduos fluentes nas duas
línguas?
- São considerados bilíngues apenas indivíduos com competência
linguística equivalente nas duas línguas?
- Proficiência nas duas línguas deve ser o único critério para a definição
de bilinguismo, ou o modo como essas línguas são utilizadas também deve ser
levado em consideração?
De forma semelhante a Barker e Prys (1998), Li Wei (2000) argumenta
que o termo bilíngue basicamente pode definir indivíduos que possuem duas
línguas. Mas deve-se incluir, entre estes, indivíduos com diferentes graus de
proficiência nessas línguas e que, muitas vezes, fazem uso de três, quatro ou
mais línguas. Seguindo na mesma direção, Mackey (2000) pondera que, ao
definir bilinguismo, devem-se considerar quatro questões:

11 Como explicitado na nota de rodapé número 4 da página 20, embora este estudo tenha como base teórico-
metodológica a análise de discurso de linha francesa, que faz uso da denominação sujeito. Recorro a outras áreas de
conhecimento para melhor compreensão de minhas questões de pesquisa. Desse modo, busco esteio na psicología
social (CIAMPA, 1984; 1990; 2004), na sociologia (GOFFMAN, 1988) e na filosofia (HABERMAS, 1976) Nesta seção,
para me aprofundar na discussão do conceito bilinguismo, recorro a autores que, em suas diferentes áreas de
conhecimento, fazem uso da denominação indivíduo (e não sujeito, como na análise de discurso francesa), uma vez
que não se remetem a questão do assujeitamento e da memória discursiva. Sendo assim, opto por manter a
denominação indivíduo utilizada pelos autores. Porém mantenho o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa,
pois utilizarei os conceitos desenvolvidos por esses autores dentro da perspectiva que me proponho, a AD francesa.
80
- A primeira é referente ao grau de proficiência, ou seja, o conhecimento
do indivíduo sobre as línguas em questão deve ser avaliado. Dessa forma, o
conhecimento de tais línguas não precisa ser equivalente em todos os níveis
linguísticos. O indivíduo pode, por exemplo, apresentar vasto vocabulário em
uma das línguas, mas, nela apresentar pronúncia deficiente.
– A segunda questão proposta por Mackey (2000) destaca a função e o
uso das línguas, isto é, as situações, nas quais o indivíduo faz uso das duas
línguas, também devem ser objeto de estudo ao conceituar o bilinguismo.
– A terceira questão levantada diz respeito à alternância de código.
Segundo o autor, deve ser estudado como e com qual frequência e condições
o indivíduo alterna de uma língua para outra.
- E, finalmente, deve também ser estudado para classificação correta do
bilinguismo, como uma língua influencia a outra e como uma interfere na outra.
Fenômeno este conhecido por interferência.
Diferentemente dos teóricos citados, Maher (2007) contempla em sua
definição de bilinguismo tanto a dimensão linguística como uma dimensão não
linguística:

O bilíngue – não o idealizado, mas o de verdade – não exibe


comportamentos idênticos na língua X e na língua Y. A depender do
tópico, da modalidade, do gênero discursivo em questão, a depender
das necessidades impostas por sua história pessoal e pelas
exigências de sua comunidade de fala, ele é capaz de se
desempenhar melhor em uma língua do que na outra ´- e até mesmo
de se desempenhar em apenas uma delas em certas práticas
comunicativas (MAHER, 2007, p. 73).

Essa visão multidimensional apresentada por Maher (2007) pode ser


alinhada com a proposta de Hamers e Blanc (2000), que distinguem o
bilinguismo em duas modalidades: a bilingualidade e o bilinguismo12. Os
autores definem a bilingualidade como um estado psicológico de um indivíduo
que tem acesso a mais de um código linguístico como meio de comunicação.
Por outro lado, o bilinguismo, segundo os autores, refere-se ao estado de
uma comunidade linguística na qual duas línguas estão em contato e são
utilizadas para a interação. Heye (2003) acrescenta que a bilingualidade pode

12 No original bilinguality e bilingualism, respectivamente.


81
ser entendida como os diferentes estágios de bilinguismo, pelos quais os
indivíduos, portadores da condição de bilíngue, passam em sua trajetória de
vida. De acordo com o autor, “esses estágios são vistos como processos
situacionalmente fluídos e definem, de forma dinâmica a bicompetência
linguística, comunicativa e cultural nas diferentes épocas e situações de vida”
(HEYE, 2003, p. 33-4).
Dias e Salgado (2010) complementam essa visão argumentando que
cada indivíduo possui um grau de bilingualidade, o qual é mutável e dinâmico
de acordo com as situações de bilinguismo que lhe são apresentadas, assim,
significando que a manifestação da bilingualidade está diretamente
relacionada às necessidades apresentadas pelos contextos. A partir dessas
considerações, os autores acertadamente propõem que a primeira questão que
deve ser considerada para a identificação de quem é ou não bilíngue é: Quem
decide que alguém é bilíngue? Essa pergunta remete ao fato de que alguns
indivíduos podem se considerar bilíngues, mas talvez, isso não corresponda à
verdade. Nesse caso, Dias e Salgado (2010) complementam salientando que a
verdade deve ser tomada como a condição que satisfaz os critérios e as
exigências da situação ou evento social em questão. Esses autores enfatizam
que, antes de se identificar o sujeito como bilíngue, é necessária a identificação
do contexto no qual esse bilinguismo se manifesta e a análise de quais fatores
relevantes, nesse contexto, devem ser levados em consideração para a
identificação do indivíduo bilíngue.
Corroborando a essa linha de pensamento, Hamers e Blanc (2000)
analisam seis dimensões ao definir o bilinguismo individual ou bilingualidade:
competência relativa; organização cognitiva; idade de aquisição; presença ou
não de indivíduos falantes da língua estrangeira no ambiente em questão;
status das duas línguas envolvidas e identidade cultural. Dentre as seis
dimensões propostas, enfocarei, neste estudo, quatro delas, descritas a seguir:
A dimensão relacionada à competência relativa prioriza a relação entre
as duas competências linguísticas. Obtêm-se, assim, as definições de
bilinguismo balanceado e bilinguismo dominante. Considera-se bilíngue
balanceado o indivíduo que possui competência linguística equivalente em

82
ambas as línguas. Por bilíngue dominante, entende-se o indivíduo que possui
competência maior em uma das línguas em questão.
A segunda dimensão empregada neste estudo está de acordo com a
idade de aquisição da língua estrangeira. São identificados: o bilinguismo
infantil, adolescente ou adulto. O bilinguismo infantil subdivide-se: em
bilinguismo simultâneo e bilinguismo sequencial. No bilinguismo simultâneo, a
criança adquire as duas línguas ao mesmo tempo, sendo expostas as mesmas
desde o nascimento. Por sua vez, no bilinguismo sequencial, a criança adquire
a língua estrangeira ainda na infância, mas após ter adquirido as bases
linguísticas da língua materna, aproximadamente aos cinco anos, conforme
aponta Wei (2000). Quando a aquisição da língua estrangeira ocorre durante o
período da adolescência, conceitua-se esse fenômeno como bilinguismo
adolescente e por bilinguismo adulto, entende-se a aquisição da língua
estrangeira que ocorre durante a idade adulta.
A terceira dimensão, aqui utilizada, dá-se de acordo com o status
atribuído a estas línguas na comunidade em questão. A partir disso, o indivíduo
desenvolverá formas diferenciadas de bilinguismo. A primeira delas é o
bilinguismo aditivo, na qual as duas línguas são suficientemente valorizadas no
desenvolvimento cognitivo da criança e a aquisição da língua estrangeira
ocorre, consequentemente, sem perda ou prejuízo da língua materna. No
entanto, na segunda forma de aquisição, denominada bilinguismo subtrativo, a
língua materna é desvalorizada no ambiente infantil, gerando desvantagens
cognitivas no desenvolvimento da criança e, neste caso, durante a aquisição da
língua estrangeira, ocorre perda ou prejuízo da língua materna.
Finalmente, a quarta dimensão, que emprego neste estudo, trata de
como indivíduos bilíngues podem ser diferenciados em termos de identidade
cultural, obtendo-se bilíngues biculturais, monoculturais, aculturais e
desculturais. Como bilinguismo bicultural, entende-se o indivíduo bilíngue que
se identifica positivamente com os dois grupos culturais e é reconhecido por
cada um deles. No bilinguismo monocultural, o indivíduo bilíngue identifica-se e
é reconhecido culturalmente apenas por um dos grupos em questão. Deve ser
ressaltado que um indivíduo bilíngue pode ser fluente nas duas línguas, mas se
manter monocultural. Já acultural é considerado o indivíduo que renuncia sua
83
identidade cultural relacionada à sua língua materna e adota valores culturais
associados ao grupo de falantes da língua estrangeira. Finalmente, o
bilinguismo descultural dá-se quando o indivíduo bilíngue desiste de sua
própria identidade cultural, mas falha ao tentar adotar aspectos culturais do
grupo falante da língua estrangeira.
De acordo com Hamers e Blanc (2000), deve-se ressaltar que
concepções unidimensionais apresentam alguns pontos desfavoráveis, pois
estas definem o indivíduo bilíngue apenas em termos de competência
linguística, ignorando outras importantes dimensões. Outro ponto em que tais
concepções são falhas é que estas não levam em consideração diferentes
níveis de análises, sejam elas: individuais, interpessoais ou sociais.
Finalmente, considera-se o ponto mais discutível dessas concepções o fato de
não serem embasadas por teorias de comportamento linguístico. Hamers e
Blanc (2000) consideram como princípios básicos de comportamento
linguístico: a constante interação de dinamismos sociais e individuais da língua,
os complexos processos entre as formas de comportamento linguístico e as
funções em que são utilizados, a interação recíproca entre língua e cultura -
autorreguladores que caracterizam todos os comportamentos de ordem
elevada - e consequentemente a língua e a valorização que é central para toda
esta dinâmica de interação.
García (2009), por sua vez, questiona o proposto por Hamers e Blanc
(2000), ao afirmar que os modelos de bilinguismo aditivo e subtrativo têm, em
seu início e em seu fim, sujeitos monolíngues, uma vez que nomeiam uma
língua claramente como a primeira e a língua adicional13 como a segunda,
criando duplos monolíngues e, dessa forma, não respondendo mais à grande
complexidade linguística do século 21. A autora argumenta que o bilinguismo
aditivo, por exemplo, enxerga as práticas linguísticas do sujeito a partir de uma
visão monoglóssica e cria, dessa maneira, espaços monolíngues protegidos,
uma vez que defende a separação completa das línguas. Ilustrando essa ideia,
Cummins (2000) argumenta que o monolinguismo, a partir dessa perspectiva,
pode ser comparado a um uniciclo e, com isso, o bilinguismo seria

13 García (2009) advoga a favor do conceito de língua adicional para se referir à língua estrangeira, uma vez que tanto
a língua materna quanto a estrangeira são constitutivas do sujeito e a nomenclatura língua estrangeira ou segunda
língua podem transmitir a ideia de exterioridade.
84
erroneamente visto como dois uniciclos que podem ser, a qualquer momento,
pedalados de forma independente, como mostra a figura 1 a seguir:
García (2009) complementa que, no século 21, é necessário conceituar
bilinguismo de modo muito além do proposto por Hamers e Blanc (2000). É
necessário, segundo a autora, de rodas que girem, expandam-se e se
contraiam, que sustentem uma a outra e sejam capazes de moverem-se em
direções diversas. Na verdade, faz-se necessário, mais de duas rodas,
acrescenta García (2009). A autora propõe que os conceitos de bilinguismo
aditivo e subtrativo sejam reconsiderados a partir de uma visão
heteroglóssica, que não vê essas línguas como separadas completamente, e,
sim, considere que o sujeito se constitui na imbricação de ambas. Nesse
sentido, Cummins (1984) propõe o que denominou de Common Underlying
Proficiency, como mostra a Figura 1. A ideia é de que as línguas não estão
armazenadas separadamente, pelo contrário as informações de uma interagem
com a outra.
VISÃO MONOGL

ÓSSICA DE LÍNGUA
COMMON UNDERLYING
PROFICIENCY

Figura 1: Common Underlying Proficiency


Fonte: Cummins (1984)

85
A partir disso, García (2009) propõe os conceitos de bilinguismo
recursivo e dinâmico14. O recursivo, segundo a autora, refere-se a casos nos
quais o bilinguismo é desenvolvido após as práticas linguísticas de uma
comunidade terem sido suprimidas. Nesses casos, o desenvolvimento da
língua materna da comunidade não pode ser considerado uma simples adição
que tem início em um ponto monolíngue, uma vez que a língua ancestral
continua a ser utilizada em cerimônias tradicionais e por alguns membros da
comunidade em diferentes graus. De acordo com García (2009), o bilinguismo,
nesses casos, é recursivo porque alcança novamente algumas práticas
linguísticas ancestrais, enquanto elas são redirecionadas para novas funções
e, com isso, ganham ímpeto para serem projetadas no futuro.
O bilinguismo dinâmico, por sua vez, refere-se a práticas linguísticas
que são múltiplas e se ajustam ao terreno multilíngue e multimodal do ato
comunicativo. Esse modelo, segundo García (2009), está relacionado com o
modo como o Language Policy Division of the Council of Europe15 define o
conceito de plurilinguismo como a habilidade “de usar línguas para os
propósitos de comunicação e para participar de ações interculturais, nas quais
a pessoa, vista como agente social, tem proficiência, em variados graus, em
várias línguas e experimenta diversas culturas”(COUNCIL OF EUROPE, 2000,
p. 168). García (2009) complementa salientando que o bilinguismo dinâmico
se refere aos variados graus de habilidade e usos de múltiplas práticas
linguísticas necessárias para se cruzar fronteiras físicas e virtuais. A autora
criou uma representação gráfica para esse conceito exposta a seguir:

14 O conceito de bilinguismo recursivo será apenas citado, uma vez que, neste trabalho, trato de situações de
bilinguismo dinâmico.

15 Divisão que tem sua base em Strasbourg, França, sendo responsável pela concepção e implementação de
iniciativas para o desenvolvimento e análise de políticas de educação linguística destinadas a promoverem diversidade
linguística e plurilinguismo. Os programas da divisão atendem às necessidades de todos os 48 Estados que ratificaram
a Convenção Cultural Europea.

86
BILINGUISMO DINÂMICO

Figura 2: Bilinguismo dinâmico


Fonte: García (2009)

García (2009) argumenta que a progressão dos modelos de bilinguismo


subtrativo e aditivo para os modelos recursivo e dinâmico é ideológico, uma
vez que reconhece o valor de discursos heteroglóssicos e de múltiplas vozes.
Segundo a autora, práticas e discursos heteroglóssicos não apenas afirmam a
inter-relação funcional de linguar bilingualmente16, mas também quebram o
ciclo de poder que sustenta práticas monolíngues como dominantes. Linguar
bilingualmente ou translinguar passa a ser considerado a norma, uma vez
que falantes começam a ser vistos como sujeitos que ocupam diferentes
pontos em um contínuo bilíngue, ao invés de partirem de uma totalidade
monolíngue.
Nota-se que apesar de as concepções de bilinguismo apontarem para
diversos elementos-chave, como grau de competência linguística, identidade
cultural e a sensação ou não de pertencimento, não conseguem explicar o
conflito/sofrimento experimentado por diversos sujeitos em sua condição
bilíngue. É, nesse ponto, que julgo valiosa a introdução da perspectiva
derridiana, tal como se apresenta no ensaio “O Monolinguismo do Outro”
(2001). Nessa obra, que não trata exclusivamente da questão do bilinguismo,
Derrida formulou alguns princípios gerais da relação entre ser humano, língua e
identidade.

16 No original, language billingually ou translanguaging, como utilizado por García (2008), que usa language como
verbo to language.
87
O autor não faz uma distinção categórica entre as línguas materna e
estrangeira, no sentido de que seria possível atribuir ao falante nativo uma
determinada identidade ou um determinado conhecimento linguístico que seria
vedado ao falante supostamente não nativo. Na ótica derridiana, há apenas
línguas, das quais o falante pode apropriar-se em maior ou menor grau, mas
que ele nunca é capaz de possuir por completo. Em consequência, também,
não há como sustentar os critérios que costumam ser usados para descrever a
condição bilíngue apresentada anteriormente. Nota-se que, nessa ótica, não se
distingue o bilinguismo de outras formas de domínio linguístico, dado que todos
os falantes são considerados indivíduos plurilíngues e que desejam alcançar
um idioma absoluto que se apresenta mais como promessa, como aspiração
última do ser humano, cujo acesso, no entanto lhe é interditado, uma vez que
sempre, em sua fala, há o vestígio do outro. Por isso, na perspectiva
derridiana, não se fala várias línguas apenas quando mesclamos línguas
nacionais, mas sempre, visto que é preciso se apropriar da fala do outro para
poder significar.
Essa sensação de falta faz, segundo Derrida (2001), com que as
pessoas construam próteses com o intuito de supri-la ou compensá-la. O autor
destaca dois tipos de próteses: (i) a procura de história e de filiação, isto é, a
recuperação ou invenção de uma narrativa da história familiar e (2) a exigência
compulsiva de uma pureza da língua, ou seja, a preocupação exacerbada com
a correção linguística.
Esta seção foi organizada em três partes. Inicialmente, enfatizei o elo
língua, sujeito e identidade, apoiando-me em Revuz (1998), que tem como
base uma concepção lacaniana de sujeito, constituído pela e na linguagem. A
seguir, tive como objetivo interrogar a nominação materna e estrangeira
atribuída à língua. Para tanto, apoiei-me nas pesquisas de Coracini (2003,
2007), Revuz (1998) e Maher (1998) filiadas à linguística aplicada; nos estudos
psicanalíticos de Fages (1977), Prasse (1997) e Melman (1992), que explicam
o conceito de interdição a partir da concepção lacaniana da constituição do Eu
(LACAN, 1966/1998), e no filósofo Derrida (2001). Na terceira parte, discuti a
evolução dos conceitos de bilinguismo, partindo de concepções
unidimensionais como as de Bloomfield (1935), Macnamara (1967), Barker e
88
Prys (1998), Li Wei (2000) e Mackey (2000). Discorri também sobre
concepções teóricas que contemplam em sua definição de bilinguismo, tanto a
dimensão linguística como a não linguística, como Maher (2007), Hamers e
Blanc (2000), Heye (2003) e Dias e Salgado (2010), que trabalham com o
conceito de bilingualidade, e García (2009) e Cummins (1984; 2000), que
advogam a favor de uma visão heteroglóssica de língua. Por fim, introduzi a
perspectiva derridiana (2001), que discute a construção de próteses por
bilíngues.
Esta seção marca o término da fundamentação teórica e teve como
objetivo descrever os pilares sobre os quais este trabalho se apoia. Marca
também o início da descrição dos aspectos metodológicos, que devem
possibilitar uma melhor compreensão de como esta pesquisa foi desenvolvida.

89
90
PARTE II – DO QUE SE DESCOBRIU NO CAMINHO

Esta segunda parte da pesquisa está organizada nas duas seções, a


seguir:
Na primeira, Trajetória, defino a visão de Linguística Aplicada (doravante
LA)
compreendida, neste trabalho, por meio da discussão dos princípios
filosóficos que a norteiam. Busco, nesse intuito, esteio em Moita Lopes (2006)
para inserir esta pesquisa numa perspectiva de LA contemporânea.
Em seguida, discorro sobre a escolha metodológica utilizada nesta
pesquisa, a AD francesa, para a manutenção da coerência com os princípios
teóricos e filosóficos que dão embasamento a este trabalho.
Por fim, descrevo o contexto de pesquisa e a seleção dos dados
utilizados, assim como os procedimentos de análise empregados.
Na segunda seção, Entre ditos e não ditos, retomo como se deu a coleta
de dados neste trabalho, assim como as perguntas de pesquisa que o
norteiam. A seguir, exponho a análise do corpus que foi organizada em três
partes:
Na primeira parte, Entre o desejo da completude e a falta do sujeito,
relato duas representações da língua portuguesa e da língua inglesa
localizadas nas falas dos sujeitos desta pesquisa: o português como língua
difícil e complexa; e o inglês como língua fácil e prática.
Na segunda, Entre o mito, o possível e o desejo do outro, procuro
mostrar a irrupção de discursos em torno da identidade e apontar a existência
de estigma relacionado ao fato de ser brasileiro e de um sentimento de
inferioridade por conta de aspectos na produção oral, o sotaque, que se
diferenciam dos de falantes oriundos de países de língua inglesa.
A terceira parte, Entre as diversas concepções do eu, subdivide-se em
três subseções:
- Da importância, que relata recortes discursivos que revelam a posição
dos sujeitos perante as línguas que os constituem a partir da pergunta: “Qual
língua você considera mais importante? Por quê?”.
91
- De quem sou, que apresenta as impressões dos sujeitos participantes
perante a questão: “Você se considera bilíngue? Por quê?”.
- Das transformações, que descreve as mudanças percebidas pelos
bilíngues a partir de sua condição de viver entre línguas.

92
Trajetória
É inútil procurar encurtar
caminho e querer começar,
já sabendo que a voz diz
pouco, já começando por ser
despessoal. Pois existe a
trajetória, e a trajetória não
é apenas um modo de ir. A
trajetória somos nós
mesmos. Em matéria de viver
nunca se pode chegar
antes17.

17 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974, p. 213.
93
94
SEÇÃO 1
Trajetória

Nesta seção, defino a visão de Linguística Aplicada (LA) compreendida,


neste trabalho, por meio da discussão dos princípios filosóficos que a norteiam.
Em seguida, discorro sobre a escolha metodológica utilizada aqui para a
manutenção da coerência com os princípios teóricos e filosóficos que dão
embasamento a este trabalho. Por fim, descrevo o contexto de pesquisa e a
seleção dos dados utilizados, assim como os procedimentos de análise
empregados.

1.1 A LA e os princípios filosóficos que norteiam esta pesquisa

Nesta seção, pretendo discutir porque entendo que esta pesquisa


encontra-se inserida numa perspectiva de Linguística Aplicada
Contemporânea. Segundo Moita Lopes (2006), uma das preocupações dos
linguistas aplicados contemporâneos é com as novas teorizações calcadas em
novos modos de entender a vida social, o que inaugura não apenas um novo
paradigma social e político, mas também um novo paradigma epistemológico,
isto é, uma reinvenção das formas de produzir conhecimento.
Ao se perguntar se o que mudou foi o mundo social ou a forma de
produzir conhecimento sobre ele, Moita Lopes (2006) recorre a autores como
Bauman (2005), Giddens, Beck e Lash (1997) e Denzin (1997) para refletir
sobre esta questão. Argumenta que, em decorrência das mudanças de
natureza social, cultural, econômica e tecnológica nas sociedades, que
ocorreram no mundo, a forma de produção de conhecimento foi alterada. No
entanto, o questionamento das formas tradicionais de produção de
conhecimento ocidentalista e positivista incita um novo modo de produzir
conhecimento com implicações nas mudanças da sociedade. Boaventura
Santos (2001) salienta que a transformação nos modos de conhecer ocorre

95
não apenas porque a sociedade está diferente, mas porque estas mudanças
exigem processos de produção de conhecimento que impliquem em mudanças
na vida social.
Indo mais além, Moita Lopes (2006) discorre sobre o impacto dos
avanços tecnológicos e da mídia em nossa sociedade. As novas tecnologias da
informação estão integrando o mundo em redes globais de comunicação e têm
provocado modificações no estilo de conduta, atitudes, costumes e tendências
das populações mundiais. Dessa forma, as pessoas estão cada vez mais
expostas a uma multiplicidade de projetos identitários. Nesse sentido, Hall
(2005) afirma que a “identidade torna-se uma celebração móvel: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL,
2005, p. 12).
A fim de traçar um quadro das implicações dessas percepções da vida
social atual e dos modos de produzir conhecimento, nos dias de hoje, para uma
LA contemporânea, Moita Lopes (2006) sugere que a LA do século XXI seja
pautada em quatro pontos básicos:
1. a imprescindibilidade de uma LA híbrida ou mestiça;
2. a essencialidade da LA explodir os limites entre teoria e prática;
3. a necessidade de mudar o sujeito da LA;
4. a importância da LA ter como novos pilares a ética e o poder.
Farei, a seguir, algumas reflexões a respeito de cada um dos pontos
elencados com o propósito não só de esclarecê-los, mas também de localizá-
los em minha pesquisa.
Quanto à imprescindibilidade de uma LA híbrida ou mestiça, Moita Lopes
(2006) sugere que esta seja entendida não mais como uma disciplina, mas sim
como uma área de estudos em que pesquisadores, oriundos de diferentes
disciplinas, convirjam em um processo transdisciplinar de produção de
conhecimento. Outro ponto central é a necessidade de entender a LA como
uma área de indisciplina que se preocupa em compreender a questão da
pesquisa na perspectiva de várias áreas de conhecimento, com o objetivo de
integrá-las.

96
Nesta vertente, minha pesquisa rejeita o enquadramento em uma
disciplina apenas ou a subordinação à linguística como disciplina mãe. Ao
contrário, as teorizações aqui presentes pretendem estar mais próximas do que
Moita Lopes (2006) propõe como uma linguística aplicada indisciplinar, isto é,
que transgride os limites disciplinares fechados. Como, nesta pesquisa,
entendo identidade como algo que não pode ser definido como fixo ou
preestabelecido, e sim como um processo em constante mudança, é
necessário, para entender a identidade do sujeito, conhecer sua ecologia,
revelada implícita ou explicitamente em seu discurso e em suas ações, o que
implica ir muito além de estudos linguísticos. Para se atingir uma compreensão
mais ampla da vida social vivida “pelas pessoas de carne e osso no dia-a-dia”
(MOITA LOPES, 2006, p.88), é preciso entender a complexidade das relações
envolvidas nas práticas sociais. É preciso revelar sua historicidade, os jogos de
poder, os interesses, os sentidos dos envolvidos na ação. Para isso, torna-se
imprescindível acessar conhecimentos desenvolvidos por outras disciplinas.
Diante desse desafio, optei pelo viés teórico que me possibilitasse dialogar e
compartilhar questões com várias disciplinas na abordagem do mundo e da
vida desses sujeitos sociais situados em um contexto sócio-histórico, político e
ideológico específico, como demonstra a figura a seguir:

97
UMA VISÃO TRANSDISCIPLINAR
PARA ANÁLISE DOS DADOS Norton (1995)
Bagno (2002)
Coracini (1999; 2003;
2007)
Revuz (1998)
Lacan (1966;1972-73)
Melman (1992) García (2009)
Cummins (1984; 2000)

Moscovici (1984;2003)
Psicanálise
Jodelet (1990;2001)
Abric (2000) Estudos da
Ciampa (1984;1990;2004)
Psicologia linguagem
Social

ANÁLISE
DOS Pêcheux (1966; 1969;
1975; 1993; 1997; 2002)
Goffman (1988)
DADOS Orlandi (1983; 1989;
1993; 1996; 1998; 1999;
Foucault
2005; 2006)
(1969;1970;1979;1987; AD
1999)
Hall (2005)
Sociologia Francesa
Althusser (1985;1996)

Filosofia
Derrida (2001)

Figura 3: Uma visão transdisciplinar para análise dos dados


Fonte: Dados da pesquisa

Vale ressaltar que a AD francesa, base teórico-metodológica deste


estudo, articula-se principalmente com três áreas de conhecimento: a
psicologia/psicanálise – releitura de Freud por Lacan; as ciências
sociais/marxismo – releitura de Marx por Althusser; e a linguística – releitura de
Saussure por Pêcheux, formando, dessa forma, uma espécie de tríplice
aliança. Porém é fundamental compreender que, embora apresente áreas de
contato com essas disciplinas, Orlandi (2006) explica que a AD francesa
pressupõe as mesmas à medida que se constitui da relação de três regiões
científicas: a teoria da ideologia, a teoria da sintaxe e da enunciação, e a teoria
do discurso como determinação histórica dos processos de significação, tudo
isso atravessado por uma teoria psicanalítica do sujeito. Vale frisar, ainda, que

98
é necessário entender que a AD francesa não pretende ser nem uma disciplina
autônoma nem uma disciplina auxiliar, o que pretende é trabalhar o objeto
discursivo como sendo um objeto-fronteira nos limites das divisões
disciplinares, sendo constituída simultaneamente de uma materialidade
linguística e de uma materialidade histórica. Sobre esse ponto, aliás, é preciso
salientar que é inapropriado conceituar a AD francesa como uma disciplina
interdisciplinar, como alguns teóricos insistem em fazer. A esse respeito,
Orlandi (1996) atribui à AD francesa a condição de disciplina de entremeio,
uma vez que sua constituição se dá às margens das chamadas ciências
humanas, entre as quais, ela opera um profundo deslocamento de terreno.
Mais uma vez, é importante reiterar que os conceitos que a AD francesa traz de
outras áreas, como a psicanálise, o marxismo, a linguística e o materialismo
histórico, ao integrarem-se ao corpo teórico do discurso, deixam de ser aquelas
noções com os sentidos estritos originais e se ajustam à especificidade e à
ordem própria da rede discursiva.

Quanto à essencialidade da LA explodir os limites entre teoria e prática,


Moita Lopes (2006) refere que a LA precisa, além de produzir teorizações de
caráter híbrido, não fazer distinção entre teoria e prática, rejeitando, assim, a
herança deixada pela ciência moderna: a ruptura entre o conhecimento
científico e o conhecimento do senso comum (SANTOS, 2001), a ilusão da
neutralidade científica e a hierarquização do saber. Sendo assim, minha
pesquisa abre espaço para as vozes que foram histórica, social e culturalmente
silenciadas pelo modelo totalitário de racionalidade científica.
No que concerne à necessidade de reescrever o sujeito da LA, Moita Lopes
(2006) afirma que este deve ser visto não mais como uno, homogêneo,
racional, mas como um sujeito heterogêneo, múltiplo, contraditório e construído
dentro de diferentes discursos. Esta afirmação vai ao encontro de meu objetivo
de pesquisa, que é o de estudar o funcionamento da linguagem na constituição
da subjetividade dos sujeitos, desse modo, apontando deslocamentos
identitários nos discursos de falantes de mais de uma língua e que, dessa
forma, são atravessados por traços culturais muitas vezes em conflito. Além
disso, o sujeito da AD francesa é um sujeito essencialmente histórico,

99
ideológico e heterogêneo, interpelado pelo inconsciente constituído na e pela
linguagem e, com isso, descentrado, clivado, fragmentado e desejante.
Com relação à importância da LA ter como novos pilares a ética e o poder,
Moita Lopes (2006) salienta a importância de pesquisas que têm a ética como
horizonte norteador. Dessa forma, as reflexões a respeito das noções de ética
contribuem para a realização de pesquisas responsáveis que não prejudiquem
os próprios pesquisados, como ocorre neste trabalho.
Somando-se a isso, faz-se necessário, ao término desta reflexão,
salientar que minha pesquisa tem como foco apontar deslocamentos
identitários nos discursos de falantes de mais de uma língua, o que vai
diretamente ao encontro da afirmação de Moita Lopes (2006) ao definir LA
contemporânea:

Não surpreende, portanto, que na LA, como em outras áreas, as


questões identitárias estejam interessando a tantos pesquisadores
exatamente quando se problematiza a importância de pensar outras
sociabilidades para a vida social, o que é o principal projeto político
da atualidade (MOITA LOPES, 2006 p.104).

1.2 A análise de discurso de linha francesa

Ao reivindicar um campo específico no domínio da linguística para si, a


AD francesa, segundo Pêcheux (1997), não apenas desestabiliza o sentido de
língua, como também rompe com a proposta metodológica de Saussure: a
definição do objeto e a metodologia de análise. Além disso, como descrito
anteriormente, ao vincular a linguística a duas outras áreas do saber, à
psicanálise e ao marxismo, a AD passa a ser vista como uma disciplina de
entremeio (ORLANDI, 1996), uma vez que não é absorvida nem pelo marxismo
nem pela psicanálise.
Nesse sentido, Possenti (2005) enumera as rupturas que a AD francesa
causou no domínio da linguística: do campo da interpretação, da língua, da
pragmática, do texto, das condições de produção, do sentido, da enunciação,
do acontecimento, do interdiscurso e do sujeito. Essas rupturas promovem uma
tensão na metodologia e na forma de observar e analisar a língua. Logo, pode-
se considerar que a metodologia da AD francesa está posta seja na forma de
100
pressuposto, seja na forma de implícitos. Isso equivale a dizer que a AD
francesa é um campo de pesquisa que não possui uma metodologia pronta, ao
lançar mão dos elementos constitutivos de seu arcabouço teórico, o analista do
discurso estará, concomitantemente, alçando seus dispositivos metodológicos.
Nessa vertente, não há o enquadramento de dados em esquemas
prontos. A proposta metodológica é uma construção do analista que tem o
papel de problematizar e colocar questões no confronto com os dados.
Procura-se, como salienta Orlandi (2009), realizar uma “exausitividade vertical”
(ORLANDI, 1999, p. 62) como dispositivo analítico considerando os objetivos
da pesquisa que podem incluir os efeitos de memória, da história, as
ideologias, as heterogenedidades e os não ditos.
Em suma, pode-se afirmar que, na AD francesa, a metodologia de
análise não consiste em uma leitura horizontal do texto, do início ao fim, na
tentativa de compreendê-lo, uma vez que se parte do pressuposto de que todo
discurso é incompleto. De outra feita, realiza-se uma análise em profundidade,
como acontece na relação descrição-interpretação, pela qual se faz possível
verificarem-se as posições assumidas pelos sujeitos, as imagens e os lugares
construídos a partir de regularidades discursivas evidenciadas nas
materialidades. Enfim, o analista faz uso de procedimentos teóricos que
subsidiam sua análise de acordo com o enfoque da pesquisa. Isto é, ao
analisar o objeto, é necessário recorrer novamente à teoria e, nesse vai e vem
entre a descrição e a interpretação, dá-se o procedimento analítico da AD
francesa.

1.3 A constituição do corpus e os instrumentos de coleta

Metodologicamente, este trabalho foi realizado a partir do que Courtine


(1981), ao trabalhar com corpus de pesquisa na Análise de Discurso, define
como corpus experimental. Para o autor, corpus experimental é aquele
produzido a partir de enquetes empíricas, como formulários, questionários e
entrevistas. Nessa concepção de corpus experimental, há o corpus
previamente preparado, como acontece neste estudo, no qual faço uso do

101
questionário (vide Apêndice A) a fim de coletar textos escritos dentro de um
roteiro específico.
Frente a essas definições, o corpus deste estudo é um corpus
experimental e previamente preparado, uma vez que, ao elaborar as perguntas
do questionário, tinha como objetivo responder minhas perguntas de pesquisa.
Segundo Nunan (1992), o questionário pode ser fechado ou aberto. No
questionário fechado, as possibilidades de resposta são determinadas pelo
pesquisador; ao passo que, no aberto, o participante tem a possibilidade de
escolher o que dizer e como dizer. Apesar do questionário fechado ser mais
fácil para a coleta e análise, optei pelo tipo aberto, pois para levantar as
representações desses participantes acerca de quem são e das línguas que os
constituem se fez necessário criar um espaço para que compartilhassem
narrativas de quem são ou esperavam ser.
A parte I do questionário teve como objetivo traçar o perfil dos
participantes que compõem este estudo. As perguntas 1, 2 e 3, da segunda
parte, tinham como objetivo verificar quais línguas eram utilizadas pelos
participantes18, se as utilizavam em alguma das esferas de suas vidas19, e
qual tipo de bilinguismo desenvolveram, simultâneo ou sequencial. As demais
perguntas foram formuladas a fim de levantar as representações dos sujeitos
sobre sua condição bilíngue, suas línguas e os povos com quem se
relacionam.
Vale ressaltar que, no decorrer da análise, constatei que não se fazia
necessário utilizar todas as perguntas do questionário para responder às
minhas perguntas de pesquisa. Com isso, as respostas obtidas para as
perguntas 4 e 11 do questionário não foram utilizadas na análise por não
estarem relacionadas às perguntas de pesquisa.
A seguir, retomo os objetivos deste estudo e as perguntas de pesquisa
referentes aos mesmos. Relaciono, também, as perguntas realizadas no
questionário utilizado.

18 Apenas, ao longo do estudo, optei por trabalhar apenas com falantes de inglês e português. Opção que justifico na
introdução e a seguir, no item 1.4 desta seção.
19 Essa é uma condição necessária para ser participante desta pesquisa. Falantes de inglês e português, que não
utilizavam as duas línguas em suas interações diárias em alguma esfera de suas vidas, não se tornaram participantes
desta pesquisa.
102
Quadro 1 - Objetivos, perguntas de pesquisa e perguntas do questionário

OBJETIVOS PERGUNTAS DE PERGUNTAS DO


PESQUISA QUESTIONÁRIO

1) Estudar a imbricação da língua 1) Como é a relação desses sujeitos Qual de suas línguas é mais
materna e da língua estrangeira com as línguas que os constituem? importante para você? Por quê?
na constituição da subjetividade Qual de suas duas línguas você mais
de sujeitos que falam mais de aprecia? Por quê?
uma língua.

2) Apontar deslocamentos 2) Como as identidades desses Você se considera bilíngue? Por


identitários nos discursos desses sujeitos foram se (trans)formando na quê?
sujeitos. sua relação com as línguas?
O fato de se comunicar em mais de
uma língua lhe modificou como
indivíduo?

Você se preocupa com seu sotaque?


Por quê?

Como você se relaciona com os dois


3) Rastrear o olhar do outro na 3) Como esses sujeitos ao se
grupos sociais referentes às línguas
constituição identitária desses enunciarem constroem imagens de si que utiliza?
sujeitos. e do Outro?
Como você acha que é visto por
estes grupos sociais?

Você se preocupa com seu sotaque?


Por quê?20

Fonte: Dados da Pesquisa

Um comentário pertinente é que, ao observar os questionários


preenchidos, notei que as respostas que obtive eram por demais completas,
com muitos comentários que foram essenciais à minha análise. Com isso, não
foi necessária a realização de algum tipo de entrevista como julguei, a
princípio, que seria preciso. Do conjunto dos dezoito questionários, senti a
necessidade de contatar quatro participantes para maiores esclarecimentos a
respeito de respostas a questões específicas. Esses contatos foram feitos por

20 As repostas a essa pergunta forneceram-me dados para responder a duas de minhas perguntas de pesquisa: Como
as identidades desses sujeitos foram se (trans)formando na sua relação com as línguas? e Como estes sujeitos ao se
enunciarem constroem imagens de si e do Outro?
103
e-mail e, na análise, são diferenciadas as respostas obtidas por meio do
questionário pela sigla CP – contato posterior.

2.4 Os participantes da pesquisa

Primeiramente, a seleção dos participantes foi definida obedecendo a


quatro critérios:
(i) ser brasileiro;
(ii) ser falante de português e de inglês;
(iii) utilizar ambas as línguas em alguma esfera de suas vidas, por
exemplo, profissional, familiar, entre outras; e,
(iv) ser escolarizado, uma vez que responderiam ao questionário por
escrito.
Inicialmente, coletei 98 questionários de sujeitos bilíngues constituídos
por línguas diversas: coreano, alemão, espanhol, sérvio, entre outras. Porém,
por uma questão metodológica e temporal, detive-me, neste trabalho, a sujeitos
bilíngues falantes de português e de inglês. Ademais, a língua inglesa tem uma
história de imposição por razões políticas e materiais em muitos países do
terceiro mundo, o que implica na constituição identitária de seus falantes.
Nesse sentido, Vian Junior (2008) acrescenta que, inicialmente, pela primazia
econômica dos Estados Unidos e também com o desenvolvimento científico e
tecnológico liderado pelo país, o inglês passou a ser a língua da ciência e da
tecnologia e, também por questões políticas e econômicas, passou a ser a
língua utilizada para comunicação internacional.
A partir dessa perspectiva, apoio-me em Canagarajah (1999) para
afirmar que, ao optar por aprender ou fazer uso do inglês, esses sujeitos fazem
também uma opção ideológica e social, ainda que de modo inconsciente.
Outro motivo que me levou, neste momento, a delimitar meus sujeitos de
pesquisa desse modo é a crescente propagação da língua inglesa no Brasil.
Observa-se, como aponta Marcelino (2009), que o crescimento do bilinguismo
no Brasil evidencia um desenvolvimento na educação e uma demanda
mercadológica pressionada pelos pais de alunos de escolas regulares. O autor
aponta também para o fato de que se, anteriormente, os pais escolhiam as
104
escolas para seus filhos com base na proposta de ensino e a necessidade de
se aprender outra língua era suprida por meio de institutos de idiomas,
atualmente, essa escolha é, muitas vezes, definida pela importância dada à
língua inglesa nas escolas regulares. Frente a esse panorama, percebe-se, no
Brasil, a disseminação das escolas bilíngues, de programas de intensificação
de língua inglesa e de escolas de idiomas.
A partir desse critério, selecionei, dentre os questionários obtidos, um
conjunto de nove questionários respondidos por bilíngues simultâneos21 e
nove questionários respondidos por bilíngues sequenciais22. Optei por
organizar os participantes desta pesquisa desse modo para que fosse possível
contrastar e comparar as respostas obtidas por esses dois tipos de sujeitos
bilíngues.
Os bilíngues simultâneos, aqui representados por B, que participaram
desta pesquisa foram:
B1: 24 anos, professora de inglês em um instituto de idiomas. O pai é
americano e a mãe é brasileira. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São
Paulo.
B2: 27 anos, professora em um colégio regular. O pai é americano e a
mãe é brasileira. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.
B3: 31 anos, coordenadora de uma escola de idiomas. Os pais são
brasileiros. Mudou-se, ainda na primeira infância, para Irlanda, onde foi
escolarizada. Reside atualmente no Brasil, na cidade de Santo André.
B4: 57 anos, diretora de uma escola de idiomas. A família é americana.
Estudou e morou entre os EUA e o Brasil até completar a universidade. Reside
atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.
B5: 33 anos, trabalha no setor administrativo, em uma rede de
supermercados. Os pais são americanos, mas nasceu e morou no Brasil, por
um longo período. Reside atualmente nos EUA, em Miami.
B6: 37 anos, professor universitário. Aprendeu a língua portuguesa em
casa, com a família, que é brasileira e teve o inglês como sua língua de

21 Entende-se, neste trabalho, por bilíngues simultâneos, indivíduos que adquiriram as duas línguas ao mesmo tempo,
sendo expostos às mesmas desde o nascimento (HAMERS; BLANC, 2000).
22 Os bilíngues sequenciais, por sua vez, adquiriram a língua estrangeira após terem adquirido a base linguística da
língua materna (HAMERS; BLANC, 2000).

105
instrução a partir dos dois anos de idade, quando ingressou em uma escola
americana. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.
B7: 34 anos, professora em uma escola bilíngue inglês/português.
Aprendeu o português em casa e o inglês em uma escola internacional, na qual
ingressou ainda na primeira infância. Reside atualmente no Brasil, na cidade de
São Paulo.
B8: 41 anos, dona de casa. Aprendeu o português em casa e o inglês
em uma escola internacional, quando ingressou ainda na primeira infância.
Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.
B9: 43 anos, empresária. Aprendeu o português com a família brasileira
e o inglês ao morar nos EUA, quando criança. Reside atualmente no Brasil, na
cidade de São Paulo.
A seguir, exponho um quadro no qual essas informações foram
organizadas para melhor visualização.

106
Quadro 2: Bilíngues simultâneos participantes da pesquisa
Participante Idade Profissão Origem Origem Como Como Residência
do pai da mãe aprendeu aprendeu
inglês português
B1 24 Professora de Americano Brasileira Família do Família da São Paulo –
inglês pai mãe e escola Brasil
B2 27 Professora de Americano Brasileira Família do Família da São Paulo –
área geral pai mãe e escola Brasil
B3 31 Coordenadora de Brasileiro Brasileira Foi Família do São Paulo –
uma escola de escolarizada pai e da mãe Brasil
idiomas na Irlanda,
onde residia
B4 57 Diretora de Americano American Com a Viveu entre São Paulo –
escola a família dos os EUA e o Brasil
pais. Brasil até
completar a
universidade
B5 33 Assistente Americano American Com a Viveu no Miami, EUA
administrativo a família dos Brasil por
pais e na um longo
escola período
B6 37 Professor Brasileiro Brasileira Com a Estudou em São Paulo –
universitário família dos uma escola Brasil
pais internacional
B7 34 Professora em Brasileiro Brasileira Com a Estudou em São Paulo –
uma escola família dos uma escola Brasil
bilíngüe pais internacional
B8 41 Dona de casa Brasileiro Brasileira Com a Estudou em São Paulo –
família dos uma escola Brasil
pais internacional
B9 43 Empresária Brasileiro Brasileira Com a Residiu nos São Paulo –
família dos EUA quando Brasil
pais criança
Fonte: Dados da Pesquisa.

Os bilíngues sequenciais, que aqui serão representados por S, que


participaram desta pesquisa foram:
S1: 34 anos, tradutor inglês/português. Família brasileira. Aprendeu
inglês em programas para estrangeiros nos Estados Unidos, onde residiu por
cinco anos até a conclusão de seu mestrado. Reside atualmente no Brasil, na
cidade de Guarulhos.
S2: 28 anos, doutorando em estudos literários na The City University of
New York. Família brasileira. Aprendeu inglês em cursos de idiomas. Reside
atualmente nos EUA, na cidade de Nova Iorque.
S3: 32 anos, professora de inglês em uma escola de idiomas. Família
brasileira. Aprendeu inglês em escola de idiomas na infância e em interações
107
sociais a partir da adolescência. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São
Paulo.
S4: 28 anos, tradutora. Família brasileira. Aprendeu inglês estudando no
Canadá. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.
S5: 29 anos, dona de casa. Família brasileira. Aprendeu inglês em
cursos de idiomas e intercâmbio para Nova Zelândia. Reside atualmente no
Brasil, na cidade de São José dos Campos.
S6: 35 anos, biomédico. Família brasileira. Aprendeu inglês em cursos
de idiomas e viagens para o exterior. Reside atualmente no Brasil, na cidade
de São Paulo.
S7: 27 anos, professora em uma escola internacional. Família brasileira.
Aprendeu inglês em cursos de idiomas e viagens para o exterior. Reside
atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.
S8: 38 anos, pedagoga. Família brasileira. Aprendeu inglês em cursos
de idiomas e intercâmbio para os EUA. Reside atualmente no Brasil, na cidade
de São Paulo.
S9: 29 anos, professora em uma escola internacional. Família brasileira.
Aprendeu inglês em cursos de idiomas e intercâmbio para os EUA. Reside
atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.
A seguir, exponho um quadro no qual essas informações foram
organizadas para melhor visualização.

108
Quadro 3: Bilíngues sequenciais participantes da pesquisa

Participante Idade Profissão Origem Origem Como Como Residência


do pai da mãe aprendeu aprendeu
inglês português
S1 34 Tradutor Brasileiro Brasileira Programas Com a Guarulhos –
para família no SP, Brasil
estrangeiros Brasil
nos EUA, onde
residiu por 5
anos até
concluir o
mestrado
S2 28 Doutorando em Brasileiro Brasileira Cursos de Com a New York,
Estudos idiomas família no EUA
Literários na Brasil
The City
University of
New York
S3 32 Professora de Brasileiro Brasileira Cursos de Com a São Paulo,
inglês idiomas e com família no Brasil
amigos no Brasil
exterior
S4 28 Tradutora Brasileiro Brasileira Estudou no Com a São Paulo,
Canadá família no Brasil
Brasil
S5 29 Dona de casa Brasileiro Brasileira Cursos e Com a São José dos
idiomas e família no Campo, SP.
intercâmbio Brasil Brasil
para Nova
Zelândia
S6 35 Biomédico Brasileiro Brasileira Cursos de Com a São Paulo,
idiomas e família no Brasil
viagens para o Brasil
exterior
S7 27 Professora em Brasileiro Brasileira Cursos de Com a São Paulo,
uma escola idiomas e família no Brasil
internacional viagens para o Brasil
exterior
S8 38 Pedagoga Brasileiro Brasileira Cursos de Com a São Paulo,
idiomas e família no Brasil
intercâmbio Brasil
para o
exterior
S9 29 Professora em Brasileiro Brasileira Cursos de Com a São Paulo,
uma escola idiomas e família no Brasil
internacional intercâmbio Brasil
para o
exterior
Fonte: Dados da Pesquisa

Na seção seguinte, serão descritos os procedimentos adotados para


categorizar e analisar os dados advindos da aplicação dos instrumentos.

109
1.5 Mo(vi)mento de análise

Pêcheux (2002) afirma que toda descrição abre sobre a interpretação, ou


seja, por meio de descrições regulares de montagens discursivas, pode-se
detectar os momentos de interpretações enquanto atos que surgem “como
tomadas de posição reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de
identificação assumidos e não negados” (PÊCHEUX, 2002, p.57). Logo, como
pesquisadora, não me encontro livre das formações inconscientes e dos
discursos conflituosos que me constituem como sujeito e, assim, ao deparar-
me com o dispositivo teórico desta pesquisa, produzo sentidos a partir do lugar
e das posições que ocupo no discurso.

Como explicitado anteriormente, a AD francesa não possui uma


metodologia, modelo ou esquema específico. Isso significa que cabe ao
analista adotar, como salienta Orlandi (1999), princípios e procedimentos a
partir das perguntas e dos objetivos em relação aos dados. A autora afirma que
a construção de dispositivos de análise é condição para se desenvolver um
conjunto de práticas sobre como trabalhar com os dados e, por fim, essas
práticas se constituem em procedimentos metodológicos.

Dessa forma, apresento, na figura que segue, as etapas que constituíram


os procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa. Vale ressaltar que
as etapas não estão numeradas e se relacionam entre si por meio de flechas
com pontas duplas, pois durante todo o processo de análise do corpus, recorri
a esses procedimentos por mais de uma vez e em momentos diversos.

110
Procedimentos metodológicos
adotados nesta pesquisa

Recorte dos
enunciados e
suas
Definição de paráfrases
objetivo,
objeto e
perguntas a Localização das
fazer representações
encontradas nos
enunciados

Volta ao corpus
para efetuar Análise
outros recortes
específicos e a do
teoria para o
confrontamento corpus Agrupamento
com os dados
dos enunciados
a partir das
representações
encontradas
Análise das
representações
que revelam Análise das
aspectos da representações
identidade dos quanto a sua
sujeitos posição
ideológica

Figura 4: Procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa


Fonte: Dados da pesquisa

Inicialmente, a partir das perguntas de pesquisa, localizei os recortes de


enunciados que respondiam ou possuíam relações com meus objetivos.
Segundo Orlandi (1989), o recorte refere-se a uma unidade discursiva
entendida como fragmentos correlacionados de linguagem e situação. Para
essa autora, cada texto é um conjunto de recortes discursivos que se

111
entrecruzam e se dispersam. Pode-se dizer que um recorte é um fragmento da
situação discursiva e a análise empreendida efetua-se por meio de seleção
dessas unidades extraídas do corpus, ou mesmo de recortes de recortes, de
acordo com os objetivos da pesquisa. A partir desses recortes, é possível
analisar cada enunciado como Foucault (1969/1995, p. 124) o concebe,
“elemento suscetível de ser isolado e capaz de entrar em jogo de relações com
outros elementos semelhantes a ele”. Analisar os enunciados exige uma
reflexão sobre as regras que estabelecem suas condições de existência, de
aparição, sua produção na história, quais são suas correlações com outros
enunciados, qual seu papel desempenhado em meio a outros neste jogo
enunciativo, seus limites e qual a memória retomada e efeitos de sentidos
produzidos neste contexto.
Após o recorte dos enunciados, localizei as representações existentes
acerca:
a) das línguas inglesa e portuguesa faladas pelos sujeitos desta
pesquisa;
b) do Brasil e dos países relacionados à história dos participantes;
c) do povo brasileiro e do povo relacionado ao país que os participantes
mantém relação;
d) de sua condição bilíngue.
Esse conjunto de representações foi delimitado, pois, a partir dessas,
seria possível responder às perguntas desta pesquisa e compreender o
fenômeno estudado. Como afirmam Freire e Lessa (2003, p.174), as
representações são:
[...] maneiras socialmente construídas de perceber, configurar,
negociar, significar, compartilhar e/ou redimensionar fenômenos,
mediadas pela linguagem e veiculadas por escolhas lexicais e/ou
simbólicas expressivas que dão margem ao conhecimento de um
repertório que identifica o indivíduo e sua relação sócio-histórica com
o meio, com o outro e consigo mesmo.

Nessa vertente, o estudo das representações possibilitar-me-ia o acesso


de localizar, no discurso desses sujeitos, questões pertinentes à sua
constituição identitária, uma vez que a identidade se constitui a partir das
representações que um grupo ou sociedade possui em torno dele mesmo.

112
A seguir, separei o conjunto de enunciados de acordo com as
representações encontradas e os analisei quanto à sua posição ideológica e no
tocante aos aspectos identitários que podiam suscitar.
Cabe mencionar que, no decorrer das análises, o retorno ao corpus foi
constante, assim como o reajustamento dos agrupamentos, considerando a
exclusão ou a inclusão de enunciados.
Com a trajetória da pesquisa delineada, tenho subsídios para o trabalho
com os dados. Dessa maneira, apresentarei, na próxima seção, a discussão
dos resultados a partir da análise do corpus.

113
Entre ditos e não-ditos
Chega mais perto e contempla as
palavras. Cada uma tem mil faces
secretas sob a face neutra.
E te pergunta, sem interesse pela
resposta, pobre ou terrível, que lhe
deres: Trouxeste a chave?23

23 DRUMMOND, C. Procura da poesia. In: A Rosa do Povo. São Paulo: Editora Record, 1945/2000. p. 12.

114
115
SEÇÃO 2
Entre ditos e não ditos
Para iniciar esta seção retomo como se deu a coleta de dados neste
trabalho e discorro sobre a organização desta seção.
O trabalho de campo foi realizado nos meses de agosto e setembro de
2010. É importante salientar que a seleção dos participantes foi definida
obedecendo a quatro critérios:

Quadro 4: Critérios para seleção dos participantes


desta pesquisa
(i) ser brasileiro;
(ii) ser falante de português e de inglês;
(iii) utilizar ambas as línguas em alguma esfera de
suas vidas, por exemplo, profissional, familiar,
entre outras;
(iv) ser escolarizado, uma vez que responderia o
questionário por escrito.
Fonte: Dados da Pesquisa

Sendo assim, nove bilíngues simultâneos e nove bilíngues sequenciais


responderam a um questionário aberto que tinha como objetivo localizar as
representações que esses sujeitos têm acerca de sua condição bilíngue, de
suas línguas e dos povos com quem se relacionam. Nesta análise, os bilíngues
simultâneos serão representados pela letra B e os recortes de suas narrativas
estão registrados, para uma melhor visualização, na cor azul. Por sua vez, os
bilíngues sequenciais serão representados pela letra S e os recortes de suas
narrativas estão registrados na cor vermelha.
Além do questionário, contatei posteriormente quatro participantes para
esclarecimentos a respeito de algumas de suas respostas no questionário.
Esses contatos foram feitos por e-mail e, na análise, são diferenciados das
respostas obtidas por meio do questionário pela sigla CP – contato posterior.
A partir das respostas obtidas por meio do questionário e dos
esclarecimentos realizados por e-mail, realizei o recorte dos enunciados que

116
respondiam ou possuíam relações com meus objetivos. A seguir, localizei as
representações existentes acerca:
a) das línguas inglesa e portuguesa que os sujeitos desta pesquisa
falam;
b) do Brasil e dos países relacionados à história dos participantes;
c) do povo brasileiro e do povo relacionado ao país com que os
participantes mantêm relação;
d) de sua condição bilíngue.
Depois de localizá-las, separei e agrupei os enunciados de acordo com
as representações encontradas e os analisei quanto à sua posição ideológica e
quanto aos aspectos identitários que podiam suscitar para que, desse modo, as
perguntas de pesquisa fossem respondidas. No quadro a seguir, relaciono as
perguntas desta pesquisa e as representações, que, após analisadas à luz da
AD francesa, permitiram-me responder às perguntas que norteiam este
trabalho:

Quadro 5: Relação das perguntas de pesquisa e das representações localizadas

Perguntas de pesquisa Representações Sociais

1) Como é a relação desses sujeitos Representações da língua inglesa e


com as línguas que os constituem? portuguesa que os sujeitos desta
pesquisa falam.

2) Como as identidades desses Representações de sua condição


sujeitos foram se (trans)formando na bilíngue.
sua relação com as línguas?

3) Como esses sujeitos ao se Representações (a) do Brasil e dos


enunciarem constroem imagens de si países relacionados à história dos
e do Outro? participantes e (b) do povo brasileiro e
do povo relacionado ao país com que os
participantes mantêm relação.
Fonte: Dados da Pesquisa

117
A análise foi organizada em três seções: (i) Entre o desejo da
completude e a falta do sujeito; (ii) Entre o mito, o possível e o desejo do outro
e (iii) Entre as diversas concepções do eu. Essas seções foram organizadas a
partir das representações localizadas no discurso dos participantes a fim de
responder às perguntas que norteiam esta pesquisa. Na sequência, apresento
um quadro no qual relaciono as seções e as representações enfatizadas:

Quadro 6: Relação das seções organizadas e das representações

Seções Representações Sociais

Entre o desejo da completude e a (a) Representações sobre a língua


falta do sujeito portuguesa e inglesa que os sujeitos desta
pesquisa falam.

Entre o mito, o possível e o (a) Representações sobre a língua inglesa


desejo do outro que os sujeitos desta pesquisa falam.

(b) Representações sobre o Brasil e sobre


os países relacionados à história dos
participantes.

(c) Representações sobre o povo brasileiro


e sobre o povo relacionado ao país que os
participantes mantêm relação.

Entre as diversas concepções do Representações sobre sua condição


eu bilíngue e sobre a imbricação (ou não) das
línguas que o constituem.

Fonte: Dados da Pesquisa

Vale ressaltar que, ao perseguir as possíveis respostas às perguntas


que norteiam esta pesquisa, é importante considerar o fato de que, na
perspectiva teórico-metodológica a que me proponho, toda interpretação é
múltipla e deslizante. Logo, como afirma Coracini (1999), não existem verdades
absolutas, ou seja, ninguém é detentor da verdade, mas sempre um porta-voz
de uma interpretação possível.
Dito isso, apresento, nas seções seguintes, a análise do corpus desta
pesquisa.

118
Entre o desejo da completude e a falta do sujeito

Entre o mito, o possível e o desejo do outro

Entre as diversas concepções do eu

119
2.1 Entre o desejo da completude e a falta do sujeito

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito. Tendendo


24
em todas as direções para todos os lados do espaço

Nas sequências discursivas analisadas, percebem-se diferentes


representações relacionadas à língua portuguesa e à língua inglesa pelos
falantes bilíngues desta pesquisa. Essas representações certamente
constituem o imaginário dos sujeitos envolvidos, e isso acarreta em implicações
na relação que travam com a língua materna e com a língua estrangeira e,
consequentemente, com eles próprios. Neste trabalho, parto do pressuposto de
que o falante é um sujeito da linguagem, constituído socio-historicamente cujas
representações, por ele construídas sobre as línguas que fala, apontam para
sua constituição subjetiva. Ressalto que a análise dos registros, apresentada a
seguir, está organizada conforme as posições enunciativas, que materializam
representações quanto às línguas portuguesa e inglesa.
É também essencial considerar que as línguas dos participantes são a
língua portuguesa do Brasil, língua relacionada a um determinado contexto
socio-histórico de um país pós-colonial e a língua inglesa é considerada
internacional principalmente devido às políticas expansionistas do império
britânico no século XIX e à ascensão econômica dos Estados Unidos como
superpotência. Nesse sentido, apoio-me em Canagarajah (1999) para afirmar
que, ao optar por aprender ou fazer uso do inglês, esses indivíduos fazem
também uma opção ideológica e social, ainda que de modo inconsciente.
Uma das representações mais recorrentes, neste corpus, no tocante à
língua portuguesa é a de que o português é uma língua difícil e complexa. Os
sujeitos, desta pesquisa, definem a dificuldade da língua pela quantidade de
regras das gramáticas normativas e pela diversidade lexical apresentada pelos
dicionários. É importante ressaltar que, nas sequências discursivas analisadas,
a representação da língua portuguesa como difícil foi contrastada à da língua
inglesa - como fácil e simples. Essa representação da língua inglesa funciona
como alicerce para a construção das representações do português. Vale

24 PESSOA, Fernando. Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. In: Poesia de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática,
1993. p.132.
120
ressaltar que as representações dessas duas línguas se entrecruzam e se
constituem a todo o momento.
As representações, aqui discutidas, foram discursivamente construídas
por meio da utilização de adjetivos, como, por exemplo, trabalhosa, complexa,
difícil, simples e fácil, como se percebe a seguir:

B6: O português é uma língua mais trabalhosa, que requer mais esforço para
construção de alguns significados.

B8: Gosto mais do inglês porque acho bem mais fácil.

S5: Sinto um orgulho muito grande por ser falante de uma língua tão complexa
quanto o português.

S8: Essa pergunta é difícil de responder. Acho a língua inglesa mais direta,
simples, econômica que a língua portuguesa e aprecio isso. Vejo beleza nessa
simplicidade. Gosto muito de ler textos em inglês pelo deleite que sinto.

A qualificação difícil que se atribui à língua portuguesa é materializada


quando os sujeitos, ao justificarem sua posição, dão ênfase às regras
gramaticais que para eles são impossíveis de serem colocadas em uso. A
percepção de que há muitas regras, as quais não são utilizadas pelos falantes,
faz com que esses sujeitos vejam sua língua portuguesa como incompleta, na
ilusão de que apenas as gramáticas e dicionários a teriam em sua completude.
Pode-se observar esse aspecto quando B5 e B3 enunciam acerca da
complexidade da língua portuguesa:

B5: Eu sou mais fluente em Inglês, mas prefiro e aprecio muito mais o
Português. Por mais complicado que seja a gramática, ela é muito bonita.

B3: O inglês me é mais natural, por uma dificuldade psicológica com o


Português. Eu faço muitas pausas pra raciocinar em Português com a
mesma velocidade. Acho que é medo de errar principalmente conjugações
verbais do Português.

Nas sequências discursivas analisadas, o conhecimento gramatical


parece ser uma verdade construída sobre a língua. Isso culmina no
estabelecimento do que pode ou não ser dito e da forma como pode ser dito
121
em determinados contextos, de acordo com uma língua que não pertence a
todos os falantes, mas apenas aos mais escolarizados e socialmente
reconhecidos, e, assim, autorizados a dizer algo sobre essas línguas.
Foucault (1979) contribui para essa discussão ao ressaltar que são
essas verdades que contribuem para o funcionamento das relações de poder
entre os falantes nos discursos sobre a língua. O conhecimento da gramática
normativa é posto em funcionamento por meio de uma rede de procedimentos
e mecanismos que atingem os aspectos mais sutis da realidade e da vida dos
sujeitos. Esse saber normativo da língua pode ser caracterizado como um
micropoder ou um subpoder, tornando-se, por isso, objeto de desejo daqueles
que fazem parte de sua formação discursiva, como se pode perceber nas
sequências analisadas.
Esse saber, que aparece como ciência, transformou-se naquilo que é
acolhido, hoje, como discurso válido e de prestígio. Com isso, esse saber
organizado em torno de normas possibilita o controle dos indivíduos ao longo
de sua existência. Ou seja, para ascender socialmente é necessário dominar
esse saber culto sobre a língua, sendo que a não utilização dessas normas e
regras gera um sentimento de não apropriação e não “domínio” da língua.
Outro aspecto que merece ser ressaltado nas sequências discursivas é
a utilização de construções linguísticas de comparação por meio dos advérbios
que acompanham os adjetivos exemplificados anteriormente como “muito”,
“mais” e “tão”. Esses advérbios constroem uma escala, na qual se tem, no topo
da dificuldade, a língua portuguesa e, na base, o inglês, língua fácil e simples,
de acordo com o discurso dos enunciadores.

B6: O português é uma língua mais trabalhosa, que requer mais esforço para
construção de alguns significados.

B8: Gosto mais do inglês porque acho bem mais fácil.

S8: Essa pergunta é difícil de responder. Acho a língua inglesa mais direta,
simples, econômica que a língua portuguesa e aprecio isso. Vejo beleza
nessa simplicidade. Gosto muito de ler textos em inglês pelo deleite que
sinto.

122
S5: Sinto um orgulho muito grande por ser falante de uma língua tão complexa
quanto o português.

Os advérbios muito, mais e tão têm a função de intensificar a esfera de


significados dos adjetivos complexa, simples, fácil e trabalhosa. Esses
advérbios funcionam como não coincidência entre as palavras e as coisas, uma
vez que contribuem para a intensificação de significados que, sozinhos,
parecem não serem suficientes.
A leitura desses enunciados evoca o princípio de que os sentidos não
são prontos. De outra feita, remetem a um já dito ao qual se filiam. A aparente
evidência dos sentidos expressos nos enunciados analisados não passa de um
efeito ideológico, uma vez que a ideologia faz parecer que o discurso é
homogêneo e transparente. Porém é o interdiscurso que define o dizível para
os sujeitos, ou seja, é um já dito que sustenta a possibilidade de todo dizer.
Nas sequências marcadas nesta seção, percebe-se o discurso ideologicamente
marcado pelas vozes que atravessam o discurso desses sujeitos e afirmam
que o português é uma língua difícil.
Nesse sentido, Bagno (2002) explica que a ideia de que o brasileiro não
sabe português e de que, apenas em Portugal, fala-se bem o português é
corriqueira e face “de uma mesma moeda enferrujada” (BAGNO, 2002, p. 20),
que reflete o complexo de inferioridade e o sentimento de que o Brasil é, até
hoje, uma colônia que depende de um país mais civilizado.
Pode-se, com isso, dizer que os sujeitos que se enunciam nesta
pesquisa estão exprimindo uma ideologia impregnada em nossa cultura há
muito tempo. Essas ideias equivocadas impregnaram o imaginário do brasileiro
e se constituíram em um dos preconceitos mais em voga ultimamente, que é o
preconceito linguístico.
É interessante notar que muitos dos participantes desta pesquisa
trabalham com educação25. Segundo Bagno (2002), quatro são os elementos
que favorecem a formação desse tipo de preconceito no Brasil: a gramática
tradicional, os métodos tradicionais de ensino, os livros didáticos e os
comandos paragramaticais. Esses elementos estão, sem dúvida, presentes em

25 Dentre os nove bilíngues simultâneos, seis trabalham no ambiente escolar: quatro como professores, um como
coordenador e um como diretor. Dentre os nove bilíngues sequenciais, quatro trabalham com educação e um trabalha
na área acadêmica, com pesquisa.
123
nossa sociedade, mas encontram-se em abundância no ambiente da maioria
dos participantes desta pesquisa: a escola.
Diante disso, é necessário considerar que, ao expressarem suas ideias
sobre o português, esses sujeitos não estão apenas relatando suas opiniões.
Enquanto sujeitos, interpelados pelas condições socio-históricas, fazem uma
escolha por determinada perspectiva discursiva porque estão envolvidos em
um jogo de imagens do qual sua própria imagem também é parte integrante.
Bagno (2002) afirma que o grande problema do ensino de português no
Brasil é que esse ensino, até hoje, depois de mais de cento e setenta anos de
independência política, continua com os olhos voltados para a norma linguística
de Portugal. As regras gramaticais consideradas “certas” são aquelas usadas
por lá, que servem para a língua falada lá, que retratam bem o funcionamento
da língua que os portugueses falam (BAGNO, 2002).
Portanto essas vozes, que perpassam o dizer dos participantes desta
pesquisa, estão imbuídas da ilusão de que os portugueses falam e escrevem
tudo certo e que seguem rigorosamente as regras da gramática ensinadas na
escola.
Para os participantes desta pesquisa, essa língua “perfeita” que pertence
ao povo português, pertenceria, no Brasil, apenas a indivíduos especiais, como
se pode verificar no enunciado a seguir:

S8: Agora, na língua portuguesa, me chama a atenção autores, por exemplo,


que são mais inventivos e arriscam até modificar a língua, como Manoel de
Barros e Guimarães Rosa.

Ao se referir a esses supostos falantes dessa língua “perfeita”, põe-se


uma comparação com os falantes comuns que, de acordo com os
enunciadores, não possuem essa língua ideal. Esses falantes ideais, conforme
o enunciador, podem até modificar a língua, uma vez que esta lhe pertence.
Além disso, neste caso, há um deslize do domínio da língua para a posição que
esse falante ocupa na sociedade, o que mostra que olhar para língua é
também olhar para o enunciador e tudo o que simbolicamente a ele está
relacionado, seu status, profissão e prestígio, dentre outros aspectos. Esse
olhar para quem enuncia é determinado pelas identificações do sujeito que são

124
interpeladas pelo seu inconsciente, ancorando suas representações de língua
ideal. Essa língua ideal passa a fazer parte do imaginário do sujeito que
começa a desejá-la e, dessa forma, seu desempenho linguístico é visto como
insuficiente e inacabado, sempre vislumbrando uma falta que é constitutiva ao
sujeito.
A sensação de falta faz, segundo Derrida (2001), com que as pessoas
construam próteses com o intuito de supri-la ou compensá-la. Nesse caso, a
prótese manifesta-se a partir da exigência compulsiva de uma pureza da
língua, ou seja, uma preocupação exacerbada com a correção linguística. É
como se os participantes desta pesquisa buscassem possuir a língua, dominá-
la, torná-la deles, mas, ao mesmo tempo, reconhecem essa impossibilidade
pelo encontro com a alteridade.
Faz-se importante ressaltar que essa dificuldade atribuída ao português
nem sempre é encarada negativamente, como se observa nas sequências a
seguir:

S5: Sinto um orgulho muito grande por ser falante de uma língua tão complexa
quanto o português.

B5: Eu sou mais fluente em Inglês, mas prefiro e aprecio muito mais o
Português. Por mais complicado que seja a gramática, ela é muito bonita.

Essa dificuldade atribuída ao português é considerada motivo de


orgulho, pois, para esses enunciadores, parece claro que a língua é difícil por
ser rica e bela. Dessa forma, mais uma representação sobre a língua
portuguesa é evidenciada: o português é uma língua rica. Essa riqueza é
relacionada, por esses sujeitos, à quantidade de palavras e à elasticidade das
construções sintáticas e morfológicas. Se, como discorri anteriormente, é o
interdiscurso que define o dizível para o sujeito, de onde vêm os sentidos que
levam a essa representação?
Para responder a essa pergunta, lanço a hipótese de que essa posição
enunciativa de língua rica interdiscursivamente dialoga com a ideia que
acompanha o Brasil desde seu descobrimento. De acordo com ela, o Brasil
seria um paraíso, cheio de riquezas e recursos inesgotáveis. Além disso, a
ideia de que o Brasil é um vasto país, gigante pela própria natureza, como
125
postulado pelo hino nacional, é um enunciado atualizado sistematicamente na
sociedade.
Parece que a ideia de que o Brasil é um país contemplado por sua
riqueza e por seu território grandioso mantém-se no imaginário dos brasileiros.
Logo, pode-se presumir que esse imaginário relacionado ao país perpassa
também as representações da língua portuguesa que passa por ser também
um lugar de riqueza inesgotável.
É interessante ressaltar que é essa mesma riqueza, vista como motivo
de orgulho, como enuncia S5, que seria a responsável pela característica
negativa de uma língua difícil. Assim, verifica-se que os discursos que
sustentam as representações da língua se entrecruzam e muitas vozes se
confundem nos discursos dos participantes desta pesquisa.
Essas atribuições do português como uma língua difícil e rica estão
ancoradas na comparação com a língua inglesa, classificada como fácil e
simples, como nas sequências enunciadas por B8 e S8:

B8: Gosto mais do inglês porque acho bem mais fácil.

S8: Essa pergunta é difícil de responder. Acho a língua inglesa mais direta,
simples, econômica que a língua portuguesa e aprecio isso. Vejo beleza
nessa simplicidade. Gosto muito de ler textos em inglês pelo deleite que
sinto.

A representação de fácil, já internalizada nas sociedades que estudam a


língua inglesa como língua estrangeira ou segunda língua, parece fazer parte
de uma ideologia hegemônica. Isso explicaria o fato de o inglês ser a língua
mais difundida no mundo: a língua dos negócios, a língua internacional ou a
língua franca, como é classificada. Outro ponto a se considerar é que esse
caráter de língua fácil foi estabelecido em contraposição ao latim, no passado,
língua obrigatória nas escolas e também classificado como difícil e complexo.
Pode-se assumir que os livros didáticos para o ensino de língua inglesa
também contribuem para essa representação de fácil, uma vez que, na grande
maioria dos casos, a língua apresentada é uma língua homogênea e as
variedades são completamente ignoradas, o que contribui para a criação da
ilusão de que o inglês é uma língua una e, por isso, mais simples e fácil.
126
Nas sequências analisadas, os enunciadores constroem uma escala de
valores para as línguas: o português como língua difícil se contrapondo ao
inglês como língua fácil e o português como língua rica em contraposição ao
inglês como língua simples.
Com a análise dos registros, observa-se que as representações das
línguas portuguesa e inglesa são construídas no mesmo sentido por
enunciadores bilíngues sequenciais e simultâneos, assim como as construções
discursivas empregadas, como o uso de adjetivos e advérbios a fim de
intensificar as significações, também, foram equivalentes.
Percebe-se nas sequências analisadas a presença do interdiscurso que
mobiliza vozes distintas: a voz do colonizado, do colono e da sociedade
globalizada. Verifica-se, então, que a constituição do sentido e do sujeito
decorre de esquecimentos da ordem enunciativa e ideológica. Isso equivale a
dizer que o sujeito tem a ilusão de que é fonte primeira de seu dizer e de que o
que diz só pode ser dito dessa forma. Além disso, é, nesse jogo de
classificação das línguas, que os enunciadores assumem sua posição no
discurso e desenham sua identidade pelo viés da língua.
Para completar é importante salientar que, embora aqui a língua inglesa
tenha sido classificada como fácil e simples, também, é tomada por esse
mesmo sentimento de falta atribuído à língua portuguesa. Esse sentimento é
detectado ao analisar relatos desses sujeitos quanto às suas experiências e
impressões relacionadas ao seu sotaque, que expressam, em sua grande
maioria, o desejo de soar como o outro, o nativo. Esse aspecto será tratado na
próxima seção.

127
2.2 Entre o mito, o possível e o desejo do outro

Enquanto falar me for possível, e em vida e na


morte, jamais esta língua única, estás a ver, virá a
26
ser minha. Nunca na verdade o foi.

Nesta seção, a partir das representações que os sujeitos desta pesquisa


têm sobre a língua inglesa, sobre o Brasil e sobre o brasileiro , procuro: (i)
mostrar a irrupção de discursos a respeito da identidade, (ii) apontar a
existência de estigma relacionado ao fato de ser brasileiro e de um sentimento
de inferioridade por conta de diferenças na produção oral, o sotaque, quando
se comparam a falantes oriundos de países de língua inglesa.
Frente à pergunta: Você se preocupa com seu sotaque? Por quê? Pode-
se destacar que, dentre os nove bilíngues simultâneos participantes desta
pesquisa, seis (66,6%)afirmam que se preocupam com seu sotaque. Enquanto
isso, esta questão desperta a preocupação de oito (88,9%), dos nove, bilíngues
sequenciais, como se observa no gráfico a seguir:

9
8
7
6
5 Preocupação com o
sotaque
4
Não preocupação com o
3
sotaque
2
1
0
Bilíngues Bilíngues
Simultâneos Sequenciais

Figura 5: Preocupação com o sotaque – bilíngues sequenciais e simultâneos


Fonte: Dados da pesquisa

Ao serem questionados quanto à importância atribuída, por eles, ao


sotaque, os participantes, de modo geral, conferem ao seu dizer uma

26 DERRIDA, J. O monolinguismo do Outro ou a prótese da origem. Tradução de Fernando Berardo. Porto: Campo das
Letras, 2001. p.14.

128
conformidade com um discurso que atribui ao falante nativo o domínio da
língua, como se pode observar nas sequências discursivas desta seção:

S5 Sim, porque gostaria de aproximar cada vez mais a minha fala à de um


nativo.

S8 Sim, preocupo-me com minha pronúncia porque sou perfeccionista e quero


ser compreendida e quero falar “bonito”.

S4 Sempre me preocupei, mas não sei bem a razão. Acho que é um pouco
como música, me incomoda falar com sotaque carregado, como se alguém
estivesse cantando desafinado.

Pode-se inferir, desses relatos, que falar com sotaque, ou seja, ser
identificado como brasileiro, remete a um falar que é feio, comparado por S4 a
um cantar desafinado. Possivelmente, o que se tangencia, a partir desses
recortes, é a estranheza que provoca a língua do outro, pois essas
formulações trazem indícios de que esses bilíngues simultâneos e sequenciais
não se veem inscritos nessa outra ordem simbólica e, desse modo, por
oposição, seria apenas o nativo (monolíngue?) que desfrutaria do conforto de
sua língua materna.
Na tessitura desses dizeres, percebe-se que o falar como nativo remete
à ilusão de familiaridade e acolhimento experimentada na língua materna.
Essas considerações trazem à tona a problematização sobre o que é língua
materna e o que é língua estrangeira discutida na seção “Vida entre línguas”,
o que reforçaria a ideia de que os sentimentos vivenciados na experiência de
ser/estar entre línguas não são tão facilmente mensuráveis; antes, não
passam de ilusão, porque, a todo o momento, o sujeito vê-se frente ao
desconhecido na língua que pensa ser sua, ao inesperado que não se quer
enfrentar ou ao mal dito que não se deseja não ter dito. Sendo assim, a
sensação de estranha familiaridade e de familiar estranheza perpassa a
inscrição do sujeito, seja na língua materna ou na estrangeira, fazendo com
que o “domínio” dessas línguas seja sempre da ordem do semelhante, jamais
da totalidade.

129
Vale ressaltar que esse desejo de se aproximar do lugar do falante
nativo também aponta para o processo de identificação com a língua do outro,
que passa a ser constitutivo da identidade do sujeito bilíngue e, com isso,
desloca sua identificação com a língua materna e com o lugar que ela ocupa.
Na mesma direção, vislumbra-se, no enunciado de B2, a pressuposição
da identidade (CIAMPA, 1990), isto é, há uma nomeação de atributos
individuais nas relações que se dão no âmago de uma estrutura social. Nesse
caso, esses atributos individuais referem-se a como o sujeito bilíngue deve ou
não falar.

B2 Às vezes, me preocupo com meu sotaque na língua inglesa por vários


motivos: não convivo com anglofalantes nativos e, às vezes, sinto que
perco um pouco das referências; quase não tenho praticado meu inglês e
como meu pai é americano as pessoas sempre querem me ouvir falando e
me sinto no “dever” de falar com um sotaque nativo, que acredito ter
perdido um pouco.

No recorte supracitado, o conhecimento compartilhado socialmente e as


expectativas dos outros, no que se refere ao modo como um determinado
sujeito deve agir e ser, são tangenciados. Pode-se também acompanhar um
movimento de reposição dessa identidade pressuposta, uma vez que B2 se
sente no “dever” de falar como esperado, o que evidencia o processo de
mesmice, assim como denominado por Ciampa (1984). Ao trazer essas
asserções, B2 repõe a personagem estereotipada de como filhos de
americanos devem falar, ao se intitular no dever de atender às exigências do
que a sociedade espera dela. No dizer de B2, ressoam indícios de um
movimento inconsciente para “repor” aquilo que a sociedade “põe” como certo.
Além disso, o uso das aspas por B2, neste enunciado, marca a
eterogeneidade mostrada que incide na construção dos sentidos.
Primeiramente, há a tentativa de sinalizar que o “dever” a que B2 se refere
não é o mesmo “dever” em outros âmbitos de sua vida. Observa-se, além
disso, a não coincidência entre a palavra e a coisa, o que indica uma
negociação do sujeito com a alteridade discursiva, pois as aspas indicam que
a palavra “dever” não é a mais apropriada para designar o que o enunciador
pretendia. Finalmente, o uso das aspas remete à distância ou à crítica que o

130
enunciador pretende manter quanto a esse “dever”, visto que seu uso delimita
espacial e discursivamente a palavra que a vincula a uma determinada
formação discursiva e indica uma não coincidência das palavras com elas
mesmas.
Na mesma direção, B7, S7 e S8 também imprimem, em seus relatos,
marcas que funcionam como um deslize do enunciador na sua tentativa de
apagar a contradição. Ao justificar sua preocupação ou falta dessa, o uso da
subordinada adversativa “mas” produz uma significação de contradição. Há,
nesses dizeres, uma forma de escamoteamento das lacunas que esses
sujeitos possuem em relação ao seu sotaque em língua inglesa.

B7 Não. Na verdade, por falar desde muito nova, não. Procuro sempre falar
corretamente, mas não me preocupo.

S4 Sim. Sempre me preocupei, mas não sei bem a razão. Acho que é um
pouco como música, me incomoda falar com sotaque carregado, como se
alguém estivesse cantando desafinado.

S8 Sim. Preocupo-me com minha pronúncia. Porque sou perfeccionista e quero


ser compreendida e quero falar “bonito”. Mas não acho que o objetivo de
quem aprende ou ensina língua deva ser falar como nativos (isso seria se
preocupar com o sotaque, eu acho). Até porque, o que é falar como
nativos?

No fio de seus dizeres, esses sujeitos deslizam entre sua preocupação


ou falta dela à racionalização das mesmas, justificando-se, contradizendo-se e
se explicando. Nesse momento, pergunto-me se não seriam essas marcas na
linguagem a cisão do sujeito e sua constituição heterogênea? Hall (2001)
salienta que, dentro de cada sujeito, há identidades contraditórias, empurrando
em diferentes direções, de tal modo que suas identificações estão sendo
continuamente deslocadas. Esses sujeitos, ao narrarem-se, revelam seu
desejo de um dizer controlável. Mostra-se uma “luta” do enunciador com a
palavra e, ao mesmo tempo, um encontro com a incompletude nas línguas que
o constituem. A bem da verdade, como afirma Coracini (2007), o sujeito não
está preparado para lidar com a heterogeneidade que o constitui e, por isso,
contrapõe o seu dizer pelo uso de marcas linguísticas, como as adversativas.

131
Ao se comparar a justificativa enunciada por S8 com a explicação
proferida por B2, pode-se constatar a multiplicidade de vozes que atravessam o
discurso de indivíduos bilíngues. Desse modo, há bilíngues interpelados pelo
discurso que versa sobre a competência ideal dos falantes nativos.
Semelhantemente, B2 apoia-se na decorrente representação de que o nativo
sabe a língua perfeitamente e serve de parâmetro para dizer o que está certo
ou errado, consequentemente, para que se avalie quem é, ou não é, um falante
competente da língua.

B2 Às vezes me preocupo com meu sotaque na língua inglesa por vários


motivos: não convivo com anglofalantes nativos e às vezes sinto que perco
um pouco das referências; quase não tenho praticado meu inglês e, como
meu pai é americano, as pessoas sempre querem me ouvir falando e me
sinto no “dever” de falar com um sotaque nativo, que acredito ter perdido
um pouco.

Por sua vez, S8, primeiramente, afirma que se preocupa com sua
pronuncia porque quer ser compreendido e quer falar bonito. A seguir,
questiona o que seria falar como nativo:

S8 Mas não acho que o objetivo de quem aprende ou ensina língua deva ser
falar como nativos (isso seria se preocupar com o sotaque, eu acho). Até
porque, o que é falar como nativos?

Verifica-se, na construção dessa representação de domínio da língua,


um dizer proveniente do discurso da Linguística Aplicada, que defende um
ensino de língua inglesa que enfatiza a capacidade de formar indivíduos que
possam interagir com esse mundo de diferentes modos e questiona a
supremacia do falante nativo. Porém notam-se resquícios da visão de falante
nativo ideal quando S8 justifica sua preocupação com o sotaque, sob a
alegação de se falar bonito.
A preocupação exacerbada com o sotaque, por alguns participantes
desta pesquisa, revela-se na tentativa, mesmo que inconsciente, de falar
inglês sem sotaque brasileiro. Tanto B4 quanto B6 ressaltam sua condição de
desacreditáveis (GOFFMAN, 1988), afirmando que sua brasilidade não é nem
conhecida pelos presentes nem imediatamente perceptível por eles:

132
B4 Não tenho sotaque em nenhuma das línguas... pelo contrário nos USA
ninguém consegue dizer de onde sou.

B6 Presto atenção e tento neutralizar ao máximo o regionalismo do meu


sotaque. Não é tão difícil por ter muito conhecimento técnico na área.

B4 afirma não possuir sotaque em língua alguma e acrescenta que


ninguém consegue dizer de onde é. Por sua vez, B6 declara que não é difícil
para ele neutralizar seu sotaque, uma vez que possui conhecimento técnico na
área por ser professor de letras e linguística. B4 e B6 manipulam uma
informação oculta, neste caso, o sotaque, que desacredita o eu, ou seja, ocorre
aqui o que Goffman (1988) denomina de encobrimento. Observa-se em B4, um
encobrimento inconsciente, pois ele afirma que não possui sotaque algum –
como se fosse possível não possuir sotaque que o caracterize pertencente a
alguma comunidade linguística.
Por outro lado, B6 realiza um encobrimento em ocasiões rotineiras da
vida diária, como no trabalho e em situações de serviço. Ambos os sujeitos
evidenciam uma reposição da identidade pressuposta, denominada de
mesmice por Ciampa (1984), assim como foi também observado em B2.
Portanto há a criação de uma identidade “mito” (CIAMPA, 1990), que reproduz
o social sem questionamentos, nesse caso, referindo-se a como bilíngues
simultâneos deveriam falar.
Na sequência discursiva enunciada por B6, percebe-se que o
enunciador se vê como um sujeito que controla o seu dizer e,
consequentemente, é capaz de esquivar-se da alteridade. Esse sujeito parece
ter a sensação de que produz algo que ele pode controlar, o que advém de um
mecanismo ilusório que, de forma inconsciente, tenta abafar a heterogeneidade
constitutiva. É importante ressaltar que, historicamente, o sujeito cartesiano
tem pleno controle da língua, ou seja, é um indivíduo autônimo capaz de
controlar seu dizer, o que representa, para o enunciador, uma promessa de
completude.
Ao não atender às expectativas normativas da sociedade acerca do
sotaque que um falante competente deve ter, esses sujeitos suscitam sanções

133
e reprimendas, como se pode observar em S7 e S2 ao relatarem o porquê seu
sotaque é motivo de preocupação:

S2 Quando falo com falantes nativos me preocupo porque vejo como eles
tratam falantes que tem determinados sotaques (inclusive outros falantes
nativos). Ou seja, não ser vítima de preconceito linguístico é, sem dúvida,
uma preocupação minha.
S7 Me preocupo com meu sotaque porque já fui discriminada em meu
ambiente de trabalho por não ter sotaque de estrangeiro ou por meu sotaque
não ser o mais adequado.

Tanto S2 quanto S7 revelam o desejo de ser racional e centrado,


tentando ter controle sobre tudo que dizem e apagando, desse modo, as
variantes diatópicas que os constituem. Revela-se, nessas sequências
discursivas, a presença do interdiscurso que se vincula ao postulado de que a
língua é um fenômeno homogêneo e que pode, assim, ser adquirida em sua
totalidade. Mergulhados nessa problemática, S2 e S7 tentam se passar por um
sujeito uno, que lutam pelo controle e domínio de sua consciência e da língua
que os constitui.
Nota-se que S2 faz uso de parênteses, no seu discurso, para salientar
que inclusive falantes nativos que falam uma variedade não padrão da língua
também sofrem de preconceito. A nota (inclusive outros falantes nativos) rompe
o fio discursivo, assim, emergindo, de forma abrupta, em meio do texto com o
uso de parênteses, como um sinal de alerta à heterogeneidade que poderá
ameaçar a atividade. Nesse caso, haveria a possibilidade de utilização de uma
sentença simples, porém o uso de parênteses configura-se como algo
emergencial e secreto, que não merece ser compartilhado com todos e, ao
mesmo tempo, garante traçar o contorno de um discurso com relação a um
outro que é importante distinguir.
Além disso, S2 diz que uma de suas preocupações é não ser vítima de
preconceito linguístico. Por sua vez, S7 afirma já ter sido discriminada, em seu
ambiente de trabalho, por conta do sotaque, o que também remete à noção de
preconceito. Na esfera do discutido por Bagno (2002), pode-se inferir que o
sentimento de inferioridade que cerca os brasileiros em relação à língua
portuguesa também se estende ao falar inglês com sotaque. Uma vez que isso

134
o identifica como brasileiro e, por conseguinte, encontra-se vulnerável, na visão
dos enunciadores, para ser vítima de preconceito linguístico.
Instada a explicar como foi discriminada em seu ambiente de trabalho,
S7 relata:

S7 - CP27 No meu caso, a própria coordenadora da educação infantil disse que


houve reclamação de pais por meu inglês não ser melhor... E ela
acabou completando que meu maior problema era o sotaque e que
eu devia me policiar mais.

Vale ressaltar o papel das reticências no discurso de S7 quando afirma


que houve reclamações de pais por seu inglês não ser melhor. As reticências
parecem representar um espaço indeterminado, de transição e incertezas, o
que consiste em uma abertura para que sentidos paralelos aos vigentes
possam ser inscritos. Essa é uma marca linguística que tenta exprimir o não
dito, paralelamente ao dito, e tem a função de denunciar a heterogeneidade
presente na língua. Se o silêncio é, para o falante, uma forma de dizer, pode-
se considerar as reticências como uma marca de heterogeneidade ressaltada
do discurso, uma vez que, em seu lugar, é possível a substituição por várias
palavras portadoras de muitos sentidos. Nesse caso, o trecho “No meu caso,
a própria coordenadora da educação infantil disse que houve reclamação de
pais por meu inglês não ser melhor...” evoca a possibilidade de outras
questões relacionadas à produção de língua inglesa por S7, que faz a opção
por silenciá-las, ao mesmo tempo, que abre ao interlocutor a possibilidade de
decifrá-las.
O discurso de S3 acerca da importância dada ao sotaque corrobora o
exposto por S7:

S3 O sotaque identifica de onde o sujeito é, e com isso carrega estigmas. Por


exemplo, de forma geral, considera-se que o carioca é malandro, o
nordestino é de baixo nível socioeconômico-cultural, o português é
estúpido, o britânico é educado, o alemão é ríspido, etc. Quando se ouve
uma pessoa falando, os primeiros julgamentos são feitos dependendo da

27 Como explicitado no capítulo da metodologia, do conjunto dos dezoito questionários, senti a necessidade de
contatar quatro participantes para maiores esclarecimentos a respeito de respostas a questões específicas. Esses
contatos foram feitos por e-mail e na análise são diferenciados das respostas obtidas por meio do questionário pela
sigla CP – contato posterior.

135
forma como ela fala, e muitas vezes o sotaque fala mais alto que a
gramática ou o vocabulário empregado.

Nesse recorte, S3 afirma que a gramática ou o vocabulário ficam em


segundo plano quando comparados com o sotaque que assume papel
primordial para se avaliar um falante de língua inglesa.

Percebe-se também, no discurso de S3, uma manifestação na qual se


distinguem outras vozes constitutivas. Nota-se que S3 não fala de si, mas faz
alusão ao sujeito, o que permite a percepção de que ele está inserido em outra
formação discursiva. Não se tem aqui a voz isolada de S3; do interdiscurso que
interpela seu dizer emergem múltiplas representações de nacionalidades e
regiões do Brasil.

S3 confere a indivíduos oriundos de diferentes países e regiões do Brasil


um veredito: “o carioca é malandro, o nordestino é de baixo nível
socioeconômico-cultural, o português é estúpido, o britânico é educado, o
alemão é ríspido”, que exprime as representações sociais acerca desses
indivíduos. Essas representações são obtidas por meio de um processo de
generalização, que é a seleção de uma característica aleatória que se torna
coextensiva a todos os membros da categoria.
Em consonância com o dizer de S3, observa-se, na trama de outros
dizeres analisados nesta seção, uma tentativa, por parte dos enunciadores, de
neutralização de seu sotaque. Para esses sujeitos, é motivo de orgulho quando
não são identificados como brasileiros, o que conferiria, ao bilíngue, o status de
falante competente de acordo com suas representações. A esse respeito,
Goffman (1988) salienta que sujeitos que não atendem às expectativas da
sociedade tendem a tentar corrigir diretamente o que consideram a base
objetiva de seu defeito, ocorrendo a vitimização.
Neste trabalho, como o sotaque brasileiro é visto como um problema ou
defeito a ser corrigido, observa-se a proliferação de cursos de pronúncia que
prometem um apagamento de qualquer sotaque ou marcas na fala que
caracterizam esse indivíduo como brasileiro. Essa discussão aparece no
recorte que se segue:

136
B6 Presto atenção e tento neutralizar ao máximo o regionalismo do meu
sotaque. Não é tão difícil por ter muito conhecimento técnico na área.

Neste, B6 afirma que possui conhecimento técnico e, com isso, pode


neutralizar o regionalismo de seu sotaque. É importante ressaltar que B6 é
professor universitário na área de lingüística, com especialização em fonética.
Em consonância ao enunciado por B6, diversos cursos surgiram no Brasil com
o intuito de neutralização e redução do sotaque. Para ilustrar com maior
clareza esta questão, apresento, na continuidade, alguns anúncios de cursos
com essa finalidade, encontrados na internet.

Figura 6: Aulas de redução de sotaque


Fonte: http://www.cclscorp.com/pt/special-programs/accent-reduction-course/

Esse curso tem como objetivo “aproximar a enunciação do aluno ao


discurso padrão americano”. Percebe-se, aqui, a exaltação do mito da
natividade e a, ainda presente, idealização e glorificação da figura do falante
nativo de língua inglesa, que o coloca como superior em relação ao falante não
nativo. Mas é importante ressaltar que não é qualquer falante nativo que está
em questão, e sim o falante nativo proveniente principalmente dos EUA e da
Inglaterra que fala uma variedade de inglês considerada de prestígio (RP ou

137
GA28). É como se esses países tivessem um poder consideravelmente grande
sobre o uso da língua inglesa e, sobretudo, sobre os seus outros usuários, e
esse poder leva muitos, como os participantes desta pesquisa, a crerem que a
língua pertence a americanos e ingleses, e é apenas disponibilizada a falantes
de outros países, como os brasileiros. Essa visão também é compartilhada no
curso exposto a seguir, que faz uma “revisão profunda dos sons, ênfase e
entoação do inglês americano”:

Figura 7: Curso de redução de sotaque


Fonte: www.talk.edu.intel/portuguese/programs/english-pronunciation.php

Esse curso parte da ideia central apresentada como subtítulo “Seja


claramente entendido!”, o que traz implícita a noção de que o sotaque brasileiro
prejudicaria o entendimento e a comunicação de falantes brasileiros com
falantes oriundos de outras localidades. Verifica-se, entre o participantes deste
trabalho, o efeito desse pré-construído em seus dizeres, como se pode
acompanhar nas formulações de S1 e S8:

28 RP – Received Pronunciation, também chamada the Queen’s English (inglês da Rainha), é o sotaque considerado
padrão na Inglaterra.
GA – General American – é o sotaque considerado padrão, ou não regional, nos Estados Unidos.

138
S1 Me preocupo (mas não muito) com o sotaque porque temo comprometer a
qualidade da comunicação.

S8 Preocupo-me com minha pronúncia, porque sou perfeccionista e quero ser


compreendida.

Nota-se ainda como S8 confunde as noções de sotaque e pronúncia. Ao


responder a pergunta sobre sotaque, utiliza a palavra pronúncia e vincula sua
preocupação ao fato de querer ser compreendida. É como se, ao possuir
sotaque, este não possibilitasse a pronúncia correta de certas palavras e,
consequentemente, impossibilitasse a comunicação.
Nessa mesma direção, o próximo curso, destinado a professores e
futuros professores de inglês, além de minimizar o sotaque brasileiro, também,
tem como objetivo o trabalho com técnicas para ensinar pronúncia:

Figura 8: Curso de redução de sotaque


Fonte: http://www.summitschool.com.br/sft.htm

Consolida-se, assim, o ciclo vicioso do processo de vitimização, uma vez


que há a formação de profissionais que são capacitados para minimizar o
sotaque brasileiro.

Além disso, Bagno (2002) atribui aos comandos paragramaticais papel


fundamental à formação do preconceito linguístico no Brasil. Esses materiais
que, segundo o autor, teriam a utilidade para solucionar dúvidas em relação à
língua, acabam tendo a função principal de perpetuação de preconceitos.
Embora o autor se refira à língua portuguesa, estendo essa ideia também aos
139
materiais de ensino de língua inglesa, como ilustrado no Kit de Redução de
Sotaque Zenaric, criado com a finalidade de reduzir o sotaque brasileiro:

Figura 9: Material para redução de sotaque


Fonte: http://accentreduction.brainyus.com/

Depreende-se, dos exemplos ilustrados nas figuras 7, 8, 9 e 10(conferir


se a numração está correta após juntar todo o material), uma amostra de como
o discurso referente ao falante nativo circula na sociedade, interpela o sujeito
bilíngue e atravessa seu discurso.

Outro aspecto importante capturado na análise das respostas obtidas às


perguntas: Como você se relaciona com os dois grupos sociais referentes às
línguas que utiliza? e Como você acha que é visto por estes grupos sociais? - é
a irrupção de questões relacionadas ao estereótipo de brasileiro e o
preconceito relacionado a essa condição, como enunciado por S2:

140
S2 Ter que constituir minha própria identidade fora do meu país de origem dá
mais trabalho do que imaginei, porque as pessoas já têm uma série de
ideias preconcebidas sobre como um brasileiro é ou deve ser. Fica mais
difícil se constituir como indivíduo, independentemente da minha fluência
em inglês.

S1 Tudo depende de quanta informação as pessoas têm – ‘sobre mim’. Por


exemplo, nos Estados Unidos, algumas pessoas podem te julgar pela
aparência. No entanto, a partir do momento que a fala entra em ação, o
fato de eu dominar a fala bem como boa parte do sotaque considerado
padrão, as pessoas notam que se trata de uma pessoa educada
(educação formal), e por isso, muito se é reavaliado. Ou seja, se você é
latino nos Estados Unidos, mas tem formação acadêmica e a usa no dia-
dia, boa parte da cobrança racial é esquecida.

Observam-se, nessas sequências, a presença de identidades sociais


virtuais (GOFFMAN, 1988) que são constituídas pelas afirmativas em relação
àquilo que o sujeito deveria ser. No caso deste trabalho, de como um
brasileiro ou um latino deveria ser. Goffman (1988) afirma que é a
discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social real que é
responsável pela produção do estigma. Tanto S2 quanto S1 residem ou
residiram nos EUA e têm consciência de que possuem atributos que os
diferenciam dos americanos, mas também não se identificam com o rótulo de
latino ou de brasileiro. Esses dois casos inserem-se no quarto modelo
apresentado por Goffman (1988) de carreira moral, uma vez que ambos foram
socializados numa comunidade diferente, no caso, dentro da comunidade
brasileira no Brasil e, posteriormente, tiveram de aprender uma segunda
maneira de serem validados pelo grupo social à sua volta, os americanos nos
EUA.
Outro ponto a destacar no recorte supracitado é o uso do deôntico ter
(que constituir), o qual sugere um juízo social que não parece ser a escolha
primeira do sujeito que tenta impor resistência a essa injunção social. Ao
mesmo tempo, há, neste sujeito, na tentativa de constituir sua própria
identidade, uma busca em ser completo na língua do outro. Cabe aduzir que
S2 vê a si e ao seu grupo social como uno e diferente do outro e, dessa forma,
seu sentimento de identidade emana necessariamente do outro. Dentro do
universo conceitual da psicanálise, Lacan (1966/1998), em o estádio do
espelho, argumenta que é pelo e no olhar do outro que me vejo como um.
141
Outro que, como afirma Coracini (2007), pelo discurso, diz o que e quem sou,
como e por que sou e, à medida que assumo esse dizer inconscientemente,
submetendo-me a ele e dele me aproprio. Portanto, S2 encontra dificuldades
em sua vida fora de seu país de origem. Sua nova vida assume perigo para
sua “identidade já conquistada como brasileiro”, dando a impressão de que não
se sente preparado para fazer mudanças em sua constituição subjetiva. S2
complementa sua resposta, dizendo:

S2: Sou do tipo que conhece a língua bem demais pra ser considerado
outsider do ponto de vista linguístico, mas é considerado outsider do
ponto de vista cultural.

O enunciado de S2 faz emergir indícios de uma polarização entre “nós” e


“eles”, o que dá indícios da ideia de uma identidade fixa, imóvel que privilegia
um em detrimento do outro. Pode-se também neste recorte, analisar a
competência cultural de S2, uma vez que a língua está intimamente ligada ao
exercício social, sendo, através da língua, que o sujeito se comunica, troca
ideias e impressões, dessa maneira, compartilhando o que é e o que sente.
Esse processo do exercício social faz com que a cultura não seja algo
estanque, mas em processo, uma vez que é influenciada e (re)formada
diariamente por múltiplos falantes que, a todo o momento, podem ser
considerados diferentes. Apesar de sua fluência na língua inglesa, S2 ainda
sente que é visto como um “outsider”. Nesse caso, a língua inglesa, que
também o constitui como sujeito, o destitui de seu lugar na sociedade, o
impedindo de ocupar um lugar confortável dentro desse grupo, o que perturba
seu sentimento de pertença.
Convidado a relatar quais seriam as ideias preconcebidas sobre como
um brasileiro deve ser, S2 explica:

S2 - CP: Existem basicamente duas ideias sobre brasileiros em Nova York e


arredores: 1) os migrantes: são pouco instruídos, vem fazer trabalho braçal
e competir no mercado de trabalho com latinos e (eventualmente) brancos
pobres. Os pertencentes a esse grupo não falam inglês muito bem
(embora falem melhor que os latinos) e são submissos, o que é
considerado uma coisa boa. 2) os turistas: são ricos, arrogantes, bem
instruídos e vêm aqui pra fazer compras. São realmente apenas turistas,
nunca ficam por aqui pra morar.
142
Ao ser questionado a respeito de como se sente em relação a essas
ideias preconcebidas de como deveria ser ou se portar, S2 complementa:

S2-CP: Eis que eu sou um problema pras pessoas que operam com essas
definições. Sou branco demais pra ser chamado de latino, não falo inglês
com o sotaque que seria esperado, estou de fato morando aqui, mas não
faço nenhuma espécie de trabalho braçal, sou estudante de doutorado
(nível de instrução que poucos estadunidenses têm), sou financeiramente
independente e, como se tudo isso não bastasse, vegetariano (ou seja,
não conte comigo pra ir naquela "Brazilian barbecue place" da qual você
ouviu falar).

Ao falar sobre como se sente, S2 traz traços diferenciados dos demais


sujeitos desta pesquisa de não conformidade com a identidade pressuposta.
Em nenhum momento, S2 revela “repor” aquilo que a sociedade “põe” como
certo. Não se nota uma tentativa de adequação às expectativas da sociedade
na qual ele agora está inserido. S2 demonstra um agir mais livre e criativo para
realização de suas metas e desejos, saindo do movimento de reposição e
buscando o outro “outro” – mesmidade (CIAMPA, 1990). Dessa forma, S2
distancia-se perante as expectativas dos outros ao desempenhar papéis.
Sujeitos como S2, explica Goffman (1988), são denominados “desafiliados” ou
“desviantes sociais”, categoria na qual é enquadrado, uma vez que voluntária e
abertamente se recusa a aceitar o lugar social que lhe é destinado.
Pode-se relacionar esse movimento de S2 ao sistema periférico, que é a
apropriação individual e personalizada da representação por parte de sujeitos
oriundos de grupos sociais diversos. S2 tem um papel ativo no processo de
construção da representação social do que é ser brasileiro e, com isso, vê-se
em posição de rejeitá-la e criticá-la, não se sujeitando a ela.
Esse movimento vai ao encontro do proposto por Possenti (2002), que
afirma que também há espaço para a inscrição do indivíduo no discurso, onde
ele pode deixar a sua marca, mesmo na condição de assujeitado. Infere-se,
aqui que o assujeitamento não se deu, para S2, de forma plena e, com isso, S2
parece ter certa competência na escolha de seu material discursivo. Logo, S2
inscreve-se no discurso de uma forma diferenciada dos demais participantes
desta pesquisa.

143
Fica evidente, pelo discurso dos demais sujeitos, que este movimento
de distanciamento apresentado por S2 não é partilhado pelos outros sujeitos
participantes desta pesquisa. Enquanto S2 caminha para um processo
emancipatório, observa-se que os demais sujeitos estão engajados em um
processo de reposição de suas identidades pressupostas.
Para complementar esta seção, acredito ser importante retomar que a
noção de identidade está intimamente ligada aos desejos de reconhecimento,
afiliação e segurança e que é por meio da língua que o sujeito negocia a noção
do “eu”. Ao falar, os sujeitos estão envolvidos na construção e na negociação
de suas identidades. Esse falar, de acordo com os sujeitos participantes desta
pesquisa, está intimamente relacionado à dicotomia sotaque x não sotaque.
Porém fica evidente, conforme me aprofundo na análise dos questionários, que
a questão do sotaque se insere numa discussão maior, na qual se envolve
poder, ideologia e representações sociais. A seguir, apresento, em um quadro,
os aspectos relacionados à constituição identitária dos bilíngues encontrados
na análise realizada nesta parte da seção:
Nesta seção, trabalhei com as representações atinentes à língua
inglesa, sobre o Brasil e o brasileiro a fim de mostrar: (i) a irrupção de discursos
em torno da identidade, (ii) apontar a existência de estigma relacionado ao fato
de ser brasileiro e de um sentimento de inferioridade por conta de diferenças
na produção oral, o sotaque, quando se comparam a falantes oriundos de
países de língua inglesa.
Na seção seguinte, localizo as representações dos participantes sobre o
que é ser bilíngue, a partir de três perguntas: (i) Qual língua você considera
mais importante? Por quê?(ii) Você se considera bilíngue? Por quê? e (iii) O
fato de se comunicar em mais de uma língua lhe modificou como indivíduo?

144
3. Entre as diversas concepções do eu

Passa uma borboleta por diante de mim


E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
29
E a flor é apenas flor.

Nesta seção, localizo, nas formações discursivas, as representações dos


participantes sobre o que é ser bilíngue, a partir de três perguntas:

Quadro 7: Perguntas que suscitaram as representações sobre o que é ser bilíngue

(i) Qual língua você considera mais importante? Por quê?


(ii) Você se considera bilíngue? Por quê?
(iii) O fato de se comunicar em mais de uma língua te modificou como indivíduo?
Fonte: Dados da Pesquisa

Esta seção está organizada em três partes. Na primeira, Da importância,


trabalho com recortes discursivos que revelam a posição dos sujeitos perante
as línguas que os constituem. Na segunda parte, De quem sou, apresento as
representações dos sujeitos sobre o que é ser bilíngue. Na continuidade, na
última parte, Das transformações, analiso os enunciados nos quais os
participantes relatam mudanças percebidas por eles a partir de suas vidas
entre línguas.

3.1 Da importância

Nesta parte, tenho como objetivo analisar os relatos dos participantes


frente à pergunta: “Qual língua você considera mais importante? Por quê?”. A

29 CAIEIRO, A. (Fernando Pessoa). O Guardador de Rebanhos. In: POEMAS de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática.
1964/1993. p.64.

145
partir das respostas obtidas, foi possível a localização de representações sobre
a imbricação (ou não) da língua portuguesa e da língua inglesa. Considerando
que a língua é um construto fundamental da constituição identitária do sujeito,
conhecer essas representações sobre as línguas possibilita conhecer os
modos de subjetivação daqueles que as falam e são por elas constituídos.
Retomando a pergunta que norteia esta parte, dentre os nove bilíngues
simultâneos participantes desta pesquisa, sete (77,8%) afirmam ter o inglês
como sua língua de maior importância, um (11,1%) afirma que o português é,
para ele, a língua mais importante e um sujeito (11,1%) declara-se em dúvida,
como se pode visualizar no gráfico que segue:

Figura 10: Língua de maior importância para bilíngues simultâneos


Fonte: Dados da Pesquisa

Um único sujeito, B5, diz-se indeciso frente à pergunta e argumenta que as


duas línguas são, para ele, importantes por diferentes motivos:

B5 Depende – o português pela sua beleza, mas por outro lado o inglês pela
sua praticidade no mundo.

Nesse recorte, a adversativa “mas” remete a uma contradição, a uma


disputa, a uma tensão no discurso. Para B5, a língua mais importante é o
português por sua beleza. Porém esse sentido escapa-lhe e instaura uma
contradição quando contrasta a língua portuguesa com a língua inglesa no que
tange à sua circulação no mundo. Para isso, B2 recorre ao discurso do inglês
como língua internacional para justificar essa tensão. Essa representação
pertinente à língua inglesa como língua internacional será recorrente tanto
entre os bilíngues sequenciais quanto entre os simultâneos.
146
Dentre os bilíngues sequenciais, três (33,3%), dos nove, participantes
desta pesquisa consideram o português como sua língua de maior importância.
Dois desses sujeitos (22,2%) acreditam que o inglês é mais importante e quatro
destes (44,4%) afirmam que as duas línguas são de igual importância em suas
vidas, como ilustrado no gráfico seguinte:

Figura 11: Língua de maior importância para bilíngues sequenciais


Fonte: Dados da Pesquisa

Grande parte dos recortes selecionados revela a notória ilusão da


possibilidade de neutralidade das línguas que, para os sujeitos desta pesquisa,
desempenham papéis diferentes. Logo, percebe-se, em seus enunciados, a
ideia de que suas línguas possuem espaços protegidos que as separam,
garantindo, dessa forma, sua pureza. É como se, para eles, suas línguas não
se misturassem e não trouxessem mudanças subjetivas decorrentes do contato
entre elas. Os enunciados de B4, S1 e S5 defendem essa visão de línguas
unas, puras e separadas:

B4 As duas. Inglês porque é meu meio de sobrevivência, minha profissão, mas


é o Português que preciso para me comunicar diariamente com as
pessoas do meu trabalho.

S1 O inglês é muito importante, pois sou um profissional que uso o inglês como
a ferramenta principal de trabalho. O português se relaciona com minha
formação pessoal e com minha vida de várias formas.

147
S5 Apesar de o inglês ser essencial para meu trabalho em escola bilíngue, o
português é a língua falado no meu país, a língua que mais utilizo para me
comunicar com as pessoas ao meu redor.

B4, S1 e S5, ao enunciarem-se, parecem revelar a ideia de que cada


uma dessas línguas é pura e inteira e, dessa forma, não estão em constante
transformação graças ao contato com outras línguas. Como se, para B4, “a
comunicação diária com as pessoas de seu trabalho” não se altera devido à
sua vida-entre-línguas. Nesse sentido, pergunto-me: Será mesmo possível não
se “contaminar” pela língua do outro? Sobre essa questão, Coracini (2007)
salienta que todo ato de enunciação, todo uso de língua transforma não apenas
o sujeito como também sua própria língua e cultura, pois “ele a altera,
movimentando-a, deixa na língua e em si mesmo uma espécie de cicatriz, de
marca, de ferida” (CORACINI, 2007, p. 50).
Outro aspecto importante, percebido apenas entre os bilíngues
sequenciais desta pesquisa, é a atribuição do português à característica de
materno, colocando o inglês em uma posição de estrangeiridade, como se
observa no fio do discurso de S1, S2, S3 e S8:

S1 O inglês é muito importante, pois sou um profissional que uso o inglês como
a ferramenta principal de trabalho. O português se relaciona com minha
formação pessoal e com minha vida de várias formas. O português é
minha identidade.

S2 Português, por questões familiares. Foi a língua na qual constitui minha


identidade na infância e adolescência. Inglês, por questões profissionais.

S3 Ambas, dependendo da situação. A língua portuguesa é usada em casa,


nas relações familiares, e não poderia ser substituída. A língua inglesa é
meu instrumento de trabalho e o idioma no qual converso com a maioria
dos amigos mais íntimos, e nesses caos também não pode ser substituída.

S8 A língua portuguesa é minha língua materna. A maior parte das minhas


relações/interações acontece nessa língua. Está ligada à minha cultura. É
a língua que ensino ao meu filho. É, por tudo isso, a mais importante para
mim.

Depreende-se desses relatos o mito da língua materna como sendo, de


acordo com Melman (1992), a língua do saber, do gozo, do desejo, do conforto
148
e do bem-estar e a língua estrangeira como língua de comunicação com o
outro, em um mundo globalizado. Além disso, verifica-se, nos enunciados de
S1 e S2, a vinculação da língua portuguesa com suas constituições identitárias:

S1 O português é minha identidade.

S2 Português, por questões familiares. Foi a língua na qual constitui minha


identidade na infância e adolescência.

Tanto S1 quanto S2 mobilizam, em seus dizeres, uma concepção do ser


humano como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das
capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo "centro" consiste num
núcleo interior, que emergia, pela primeira vez, quando o sujeito nascia e com
ele se desenvolvia, permanecendo essencialmente o mesmo - contínuo ou
"idêntico" a ele - ao longo da existência do indivíduo. O conceito de identidade
defendido, nos recortes de S1 e S2, é de que a identidade é fixa, imutável e
que se constitui e se define em um determinado momento histórico da vida
desses sujeitos, como explica Hall ao discorrer sobre o sujeito do iluminismo.
Outro aspecto marcante que os participantes desta pesquisa trazem em
seu funcionamento discursivo e que regem seu dizer é o papel da língua
inglesa como agenciamento social, como enunciam B6, B7, S4 e S9:

B6 Hoje acho que o inglês, por motivos profissionais. Meu desenvolvimento e


posição estão muito relacionados à língua inglesa.

B7 O Inglês é mais importante, pois a minha profissão se desenvolve nessa


língua.

S4 O inglês sempre foi meu diferencial na vida acadêmica e profissional, por


isso acredito que ele seja o mais importante na minha vida.

S9 Por ser de naturalidade brasileira, não há dúvidas de que o português seja


a língua mais importante para mim, até porque é a minha ferramenta de
comunicação dentro do país. Através da língua portuguesa, tenho acesso
a vários estratos sociais e consigo ativar diversas normas da língua a fim
de me comunicar melhor com meu interlocutor. Já a língua inglesa é mais
importante no que diz respeito à carreira profissional, pois além de ser
minha ferramenta de comunicação dentro do meu campo profissional, ela

149
também me traz prestígio, sendo responsável até por alterações de salário,
caso possua mais conhecimento do que seus parceiros profissionais.

A língua inglesa é, por esses sujeitos, encarada como sendo importante


por questões profissionais. No relato de S9, por exemplo, pode-se perceber o
vínculo entre alterações salariais e maior prestígio por conta de sua
desenvoltura na língua inglesa, o que vai ao encontro do discurso do inglês
como necessário à ascensão social.
Nessa direção, faz-se importante ressaltar que as representações da
língua inglesa, na mídia impressa, parecem revelar um discurso que estabelece
uma relação inextricável entre a língua inglesa e o mercado de trabalho. Essas
representações, na mídia, são atravessadas pela promessa de ascensão
econômica e social, para a qual a língua inglesa é definida como seu
passaporte essencial, como se pode observar nos artigos expostos a seguir:

Figura 12: Universidade de São Paulo tornam inglês língua oficial


Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/saber/909675-universidades-de-sao-paulo-tornam-ingles-lingua-oficial.shtml

Nessa matéria, vinculada pelo Jornal Folha de São Paulo, atribui-se ao


inglês tamanha importância que, com o intuito de preparar os alunos para o
mercado de trabalho, há universidades que ministram suas aulas em inglês. Na
mesma direção, a Catho, importante site de classificados de currículos e
150
empregos da América do Sul, também defende a ideia de que o inglês é vital
para o mercado de trabalho:

Figura 13: Inglês : saber o idioma é cada vez mais importante


Fonte: http://www.catho.com.br/carreira-sucesso/noticias/ingles-saber-o-idioma-e-cada-vez-mais-importante

Nesse artigo, afirma-se que o domínio do inglês se tornou primordial


para evoluir na profissão e para alcançar maiores patamares profissionais.
O discurso da mídia enfatiza o inglês, dentre as línguas estrangeiras,
como língua essencial no mundo atual. Nesse cenário, a língua portuguesa
adquire um valor muito menor. Vale ressaltar que esse modo de significação
das línguas parece determinar como o sujeito se relaciona com as línguas e é
consequência, principalmente, do discurso da mídia. Nesse discurso, as
línguas são vistas como mercadorias e suas características primordiais são seu
valor em relação a outras mercadorias, ou seja, a outras línguas.
É importante enfatizar que o discurso da mídia, assim como outros
discursos que circulam na sociedade, interpela o sujeito e, consequentemente,
influencia sua constituição identitária. Ao atribuir à língua inglesa o papel de
agenciamento social, o sujeito, inconscientemente, identifica-se com o discurso

151
hegemônico de superioridade que determina que uma língua seja mais
importante do que as demais por seu valor mercadológico.
Além disso, faz-se importante lembrar que esse discurso postula que a
disseminação da língua inglesa é sempre positiva em qualquer situação e
região. Nessa perspectiva, há um apagamento do fato de que o inglês atende a
interesses específicos de certas classes e, assim, opera como um meio
importante de propagação de desigualdades sociais, políticas e econômicas.
Somando-se a isso, é possível vislumbrar, nas posições enunciativas
analisadas, a importância atribuída à representação do inglês como língua
internacional. Essa representação está associada à outra representação, que é
a da língua, como instrumento de comunicação. Isso leva o enunciador a
atribuir à língua uma função utilitária, e dela depreende-se o desejo do
enunciador de possuir uma língua que é reconhecida pelo outro, o estrangeiro.
Os dizeres de B5 e B8 ilustram bem essa ideia:

B8 O inglês porque acho uma língua mais “universal”.

B5 Depende – o português pela sua beleza, mas por outro lado o inglês pela
sua praticidade no mundo.

Nota-se, no dizer de B8, que as aspas na palavra universal assinalam as


palavras do outro em seu discurso. Detecta-se, nesse sentido, o processo de
heterogeneidade mostrada, que deve ser compreendido como formas
linguísticas de representação de diferentes modos de negociação do sujeito
falante com a heterogeneidade constitutiva do seu discurso. Nesse sentido,
pode-se referir que, para os sujeitos desta pesquisa, o apelo da ideologia da
globalização é notório e está interdiscursivamente na formação discursiva dos
discursos sobre as línguas.

3.2 De quem sou

Na segunda parte desta seção, discuto as representações sobre sujeito


bilíngue e bilinguismo obtidas dentre as respostas à pergunta: Você se
considera bilíngue? Por quê?
152
Vale ressaltar que as representações sociais sobre bilinguismo
desempenham um papel primordial na constituição identitária de indivíduos que
se deparam com situações de contato de línguas, como é o caso dos sujeitos
desta pesquisa. Não se pode esquecer que as representações sociais, por se
tratarem de saberes produzidos na sociedade, são capazes de produzir
marcas, positivas ou negativas, no indivíduo ou no grupo em que ele se insere
e, com isso, afetam a forma como o indivíduo se percebe e percebe o grupo
que faz parte.
Nesta pesquisa, dois, dentre os dezoito, participantes, um bilíngue
simultâneo e um sequencial, não aceitam serem chamados de bilíngues,
apesar de utilizarem o português e o inglês em suas interações diárias. Pode-
se inferir que os enunciados proferidos por S3 e B9 mobilizam uma
preocupação em dominar as línguas e, desse modo, utilizá-las com
naturalidade:

S3 Não. Porque, apesar de me comunicar razoavelmente na língua inglesa,


ainda não sou capaz de usá-la com a mesma naturalidade da língua
portuguesa.

B9 Não sei, pois creio que não domino nenhuma delas bem e tenho
dificuldade com todas.

Observa-se que S3 confere ao seu dizer um sentimento de segurança


em relação à sua língua materna, o português, e aduz não experimentar a
mesma sensação de conforto em inglês. O enunciador emite, nesse relato,
uma ilusão de que tudo o que disser na língua materna é controlável e da
ordem do consciente e, assim, pode se expressar com naturalidade. S3 parece
esquecer que a língua materna também é um lugar de equívoco e de mal-
entendidos percebidos quando se fala, por exemplo, “não foi isso que eu quis
dizer” ou outros enunciados dessa ordem.
Na tessitura do dizer de S3, pode-se desvelar também um dizer sobre
línguas distintas: a língua materna que o sujeito acredita ser completa e
transparente e a língua estrangeira que é a língua do desconforto e do
estranho. Depreende-se do dizer de S3 que, para ele, as línguas que o

153
constituem são línguas que funcionam separadamente e, sendo assim, são
puras e homogêneas. Porém, de acordo com o discutido na seção “Vida entre
línguas”, apreende-se que não há língua com tais características. Segundo
Coracini (2007), a língua estrangeira não é um sistema vazio de sentido, pois
traz consigo uma carga ideológica que coloca o aprendiz em conflito
permanente com a ideologia da língua materna.
Por sua vez, B9 afirma não dominar nenhuma língua. O termo dominar,
por si só, já é problemático. Primeiramente, porque uma língua não é passível
de dominação, uma vez que os sentidos lhe escapam. Seria como se, ao
dominar uma língua, o indivíduo pudesse subjugar aquilo que o subjuga na
condição de sujeito. Pode-se dizer, portanto, que dominar uma língua só pode
ocorrer de maneira ilusória. Percebe-se, também, que tanto o português como
o inglês são para esse sujeito como promessa, ou seja, línguas sempre
desejadas, porém não alcançadas. B9 deseja a língua em sua totalidade e
afirma ter dificuldade com inglês e com português por não dominá-las. Esse
desejo de domínio parece conduzir a uma possibilidade ilusória de uma
identidade fixa e una, na qual não haja tensão ou conflito.
Em contrapartida, dezesseis, dos dezoito, participantes reconhecem
legítima a denominação de bilíngue quando se referem a si próprios. Ao
discorrerem sobre o porquê se consideram bilíngues, foi possível localizar suas
representações sobre o que é ser bilíngue e o que é bilinguismo. A
representação mais recorrente, dentre as obtidas nesta pesquisa, é a de que o
sujeito bilíngue é aquele que se comunica bem ou com naturalidade em ambas
as línguas:

B7 Sim, sou bilíngue, pois consigo me comunicar tanto oralmente quanto na


escrita em ambas as línguas

S1 Sim, porque gerencio ambas as línguas em todas as situações.

S2 Sim, tenho um bom grau de fluência e precisão em mais de uma língua.

S7 Sim, porque consigo me comunicar e me expressar em duas línguas.

154
Essas justificativas dão indícios de que esses sujeitos veem a língua,
mais uma vez, como um processo consciente e controlável, não subjugado a
deslizes, chistes ou lapsos. Além disso, a visão predominante de bilinguismo
aqui é focada na proficiência das línguas. Essas posições sobre quem é
bilíngue estruturam-se dentro de uma perspectiva que considera apenas
aspectos linguísticos para a definição de sujeito bilíngue e bilinguismo, como
proposto por Macnamara (1967) e Barker e Prys Jones (1998), entre outros.
Outros sujeitos preferiram distinguir as habilidades da língua, produção
oral e compreensão auditiva para autodenominarem-se bilíngues:

B2 Sim, porque considero que posso me comunicar (verbalmente)


suficientemente bem nessas línguas.

B8 Sim, porque entendo perfeitamente as duas línguas.

Nota-se que essas representações de língua, associadas às habilidades,


levam a crer que a língua é tomada em seu papel instrumental de
comunicação, reforçando a noção de exterioridade da língua, isto é, a língua,
para esses sujeitos, é um lugar externo a eles e à sua identidade, ou seja, um
lugar das necessidades sociais, como se comunicar, ou entender.
Ademais, pode-se perceber, tanto em B2 quanto em B8, a interpelação
pelo discurso tradicional que considera bilíngue apenas aquele que possui
competência linguística equivalente em ambas as línguas. Acredito que essa
concepção, a de bilinguismo balanceado, como proposto por Bloomfield (1935),
que define bilinguismo como o controle nativo de duas línguas, ainda, vigora
entre a sociedade atual e é amplamente utilizada para a definição de bilíngues.
Na mesma direção, B6 afirma que se aceitou como bilíngue após um
americano afirmar que suas habilidades linguísticas eram superiores se
comparadas com bilíngues de pai e mãe. É importante relembrar que B6 é
oriundo de uma família brasileira e é bilíngue simultâneo, pois estudou em uma
escola internacional desde a primeira infância.

B6 Sim, ao fazer amizade com um americano que trabalhava comigo, e por ele me
tratar como igual e me comparar com outros bilíngues de pai e mãe (apontando
que minhas habilidades linguísticas eram até superiores) eu me aceitei bilíngue.

155
Para B6 aceitar-se como bilíngue foi necessário o veredito de um falante
nativo da língua que não é falada no país que mora. Nota-se, aqui, o papel do
outro, falante nativo, no sentimento de pertença que o sujeito atribui ao grupo
de bilíngues.
Outra representação bastante recorrente foi a de que o sujeito bilíngue é
aquele que adquiriu as duas línguas na primeira infância, sendo expostas a
elas desde o nascimento:

S4 Sim, pelo fato de tanto inglês e português estarem presentes na minha vida
desde muito cedo, acredito que posso me considerar bilíngue nesse
sentido.

Essa representação parece excluir outros tipos de bilíngües, como o


bilinguismo adolescente e o bilinguismo adulto, conforme proposto por Hamers
e Blanc (2000). No senso comum, os bilíngues simultâneos são os chamados
“bilíngues reais” ou “bilíngues de verdade”, como se os demais tipos de
bilinguismo não fossem legítimos.
Outro aspecto interessante observado foi a atribuição de pensar por
meio de uma das línguas ao fato de ser bilíngue:

B3 Sim, porque misturo as línguas ao falar, e na maioria das vezes, penso em inglês e
fui alfabetizada bilíngue.

B5 Sim, porque penso nas duas línguas e, às vezes, confundo as duas.

B3 afirma pensar em inglês, enquanto B5 relata pensar nas duas


línguas. Nesses recortes, desvela-se a construção de um dizer que remete a
uma reprodução de falas, recolhida, pelo sujeito-enunciador, do senso comum,
do interdiscurso, e oriunda do discurso pedagógico amplamente pregado no
Brasil, que prioriza a oralidade em detrimento de outras habilidades e que dita
aos alunos que devem pensar em inglês para serem fluentes. (rever se as
alterações mudaram o sentido/estava confuso)
Outro ponto interessante nos relatos de B3 e B5 é o fato de que ambos
enunciadores atrelam o pensar em determinada língua à ideia de misturar ou
mesmo confundir as línguas. Nesses casos, nota-se que B3 e B5 tomam como
suas as palavras de uma voz anônima, a qual se produz no interdiscurso,

156
dessa maneira, apropriando-se da memória que se manifesta em seus
discursos. Existe, ainda, no senso comum, certo receio ao bilinguismo, uma
vez que é associado à confusão ou mistura de línguas, o que resultaria em
baixo desenvolvimento cognitivo. Historicamente, o bilinguismo foi visto, por
educadores, como prejudicial para o desenvolvimento cognitivo da criança.
Pesquisas iniciais sobre o tema apontavam o bilinguismo como causa de baixo
quociente intelectual, confusão linguística e até mudança de personalidade.
Consequentemente, surgiu o mito de que o bilinguismo seria prejudicial ao
desenvolvimento cognitivo da criança. Todavia outras pesquisas revelam que
uma série de críticas metodológicas pode ser feita a esses estudos iniciais: os
participantes bilíngues da pesquisa estavam em situação desigual, se
comparados aos monolíngues, em termos socioeconômicos ou de proficiência
na língua do teste aplicado. Além disso, muitas vezes, esses testes foram
ministrados na língua de menor domínio dos participantes. Em estudos mais
recentes, os quais fazem uso de modelos experimentais mais elaborados,
essas variáveis foram mais bem-controladas e, com isso, os resultados
apontaram uma direção bastante diferente.
Vale ressaltar que, dentre as dezesseis respostas, à pergunta: Você se
considera bilíngue? Por quê?, apenas, duas remetem a questões não
linguísticas para se justificarem como bilíngues:

S8 Sim, porque além de me comunicar na língua inglesa, ao adquirir outra


língua, ainda que sem me dar conta no inícios, passei a incluir diferentes
maneiras de “ler” o mundo, ou atribuir sentidos.

S9 Sim, por ter vivido em ambas as comunidades e ter presenciados diversas


situações linguísticas em ambas as línguas, acredito fazer parte dessa
comunidade bilíngue.

S8 direciona seu olhar a como a língua inglesa lhe proporcionou


diferentes formas de atribuir sentido ao mundo. Uma das razões que motiva
muitas pessoas a engajarem-se na aprendizagem de uma língua estrangeira é
o desejo de ampliar os horizontes culturais. Sendo assim, S8 relata as
vantagens associadas ao saber uma língua estrangeira, uma vez que a língua
inglesa é encarada, no Brasil, como uma língua superior, mesmo por seu
157
percurso histórico. S9, por sua vez, relata que o fato de ter vivido em ambas
comunidades linguísticas o caracteriza como bilíngue. Para S9, ser bilíngue
não está relacionado apenas às línguas envolvidas, mas também ao fato de ter
vivido em comunidades nas quais essas línguas eram utilizadas.
Nesse momento, faz-se importante relacionar esses recortes
discursivos, que justificam a classificação desses sujeitos como bilíngues, ao
conceito de classificação de Moscovici (2003), discutido na seção
Representações Sociais deste trabalho. As classificações, segundo o autor,
são feitas comparando pessoas a um protótipo aceito como representante de
uma classe. Observa-se, a partir dos recortes selecionados, que o protótipo
mais aceito para a denominação bilíngue é a de alguém que utiliza as duas
línguas com a mesma naturalidade. Classificar, esclarece o autor, implica em
nomear. Ao nomear estes sujeitos como bilíngues, eles são incluídos em um
complexo de termos específicos que o localizam no mundo.
Embora quase todos os participantes aceitem ser chamados de
bilíngues, é importante notar que nem todos aceitam sem ressalvas, como se
observa nos enunciados, a seguir:

S4. Embora o português seja o idioma predominante na minha vida familiar,


pelo fato de tanto inglês e português estarem presentes na minha vida
desde muito cedo, acredito que posso me considerar bilíngue nesse
sentido. Mas, evidentemente, para certos assuntos, consigo me expressar
melhor em minha língua-materna.

S5 Sim (dependendo da visão do que é ser bilíngue). Apesar de não possuir as


mesmas competências nas duas línguas, eu me considero bilíngue.

S6 Sim, me considero, pois posso me comunicar em português, inglês e


espanhol, claro que cometo erros de pronúncia e erros gramaticais, mas o
importante, a meu ver, é transmitir a informação de forma objetiva para que
ambas as partes façam cientes do conteúdo do mesmo.

S9 Por ter vivido em ambas as comunidades e ter presenciados diversas


situações linguísticas em ambas as línguas, acredito fazer parte dessa
comunidade bilíngue, apesar de sempre haver alguns espaços em branco
a serem completados na segunda língua. Em resumo, ser bilíngue não é
uma tarefa fácil, pois exige a fluência e eficiência de viver em duas línguas,
em dois mundos, não digo perfeitamente, mas próximo do ideal.

158
Em todos esses recortes, os sujeitos fazem uso de uma adversativa que
marca uma tensão e, com isso, uma nova direção argumentativa na
textualidade da narrativa, o que faz emergir contradições do interior das
formações discursivas: a língua deixa marcas, traços e instaura a falta e o
desejo do sujeito de dominá-la por completo, como se isso lhe fosse possível.
Todos esses falantes, ao comentarem sobre seu bilinguismo, justificam-se por
não ter um controle nativo ou balanceado nas duas línguas, como sugerem as
visões tradicionais de bilinguismo. Na verdade, pode-se constatar que todos os
recortes descritos remetem à visão que cada indivíduo possui de sua
bilingualidade, que pode ser mutável e dinâmica de acordo com as situações
de bilinguismo que lhe são apresentadas.
S9 compara ser bilíngue a uma tarefa, que complementa não é fácil,
uma vez que exige, nas palavras do participante, viver próximo do ideal em
dois mundos. Observa-se, aqui, novamente a ideia de ideal, perfeito e de
domínio completo. Este mesmo falante também faz referência a espaços em
branco em sua vida, como se a vida em uma língua funcionasse de modo
autônomo da vida em outra língua. Este dizer está em conformidade com o
discurso de B4 que descreve que:

B4 Tenho déficits culturais e educacionais de ambos os lados, mas isto não


me incomoda mais... sei onde achar ajuda quando preciso.

Para B4, a vida em uma língua o privou de outra vida em outra língua e,
com isso, há uma sentimento de que falta alguma coisa, algum espaço a ser
preenchido. B4 afirma ainda que consegue contornar essa falta e buscar ajuda
quando precisa. Esses recortes argumentam a favor de uma visão tradicional
de bilingüismo, que defende a ideia da existência de espaços monolíngues
protegidos e, desse modo, estar em um desses espaços faz com que o sujeito
se ausente do outro espaço reservado à outra língua e, com isso, há sempre a
sensação de que se perdeu algo enquanto se ocupava um dos espaços.

A meu ver, há pelo menos um motivo para esta dificuldade de se ver


como bilíngue. Conquanto se observe no Brasil uma crescente valorização da
língua inglesa e uma significativa penetração do inglês por meio de músicas e
159
da tecnologia, indivíduos que aprendem inglês não se enxergam como
bilíngues. Vigora, ainda, no Brasil, o ideal monolíngue e, dessa forma, ser
bilíngue exige definições e justificativas, como se nota entre as narrativas de
dois participantes:

S1 A questão do bilingualismo puro e ou total, em minha opinião, deve ser


visto partindo do ponto de vista que um se sentirá bilíngue devido ao nível
ideal, e ou desejável, do uso e razão do uso de qualquer idioma. Ou seja,
se um acredita que dar instruções básicas em outro idioma é suficiente, e
as mesmas funções satisfazem as necessidades de comunicação
desejada, o mesmo poderá se considerar bilíngue. Em outras palavras, o
sucesso é relativo, pois quem o determina é o próprio falante/aprendiz.

S9 A palavra “bilíngue” é um pouco traiçoeira. Ser bilíngue, para alguns


autores, não significa somente dizer uma porção de vocábulos ou frases
em duas línguas, significa conhecer profundamente a cultura da língua em
questão e ativar o vocabulário, a frase e a entonação correta para aquela
determinada situação.

Nos dizeres de S1 e S9 percebem-se claramente as várias vozes


constitutivas de seus discursos. S1, inicialmente, tenta marcar sua voz com
“em minha opinião”, porém há um deslize de sentido e em seguida faz uso de
“um” para fazer alusão a uma categoria, ao sujeito bilíngue. Há ainda o
discurso científico que está implícito em seu dizer, quando traz à tona as
necessidades de comunicação.
S9, por sua vez, ao trazer as vozes de outros autores, dá credibilidade
ao seu discurso. Esse movimento dialógico auxilia na construção de seu ponto
de vista. S9 traz essas vozes e se une a elas, utilizando-as como um
argumento de autoridade.
A análise do corpus desta pesquisa mostra que o discurso científico, ora
explícito ora implícito, foi um recurso importante para a definição de bilíngue
por parte dos participantes deste estudo. Os conceitos de bilinguismo,
sustentados pelos sujeitos, moveram-se dentre as concepções clássicas de
bilinguismo, que enfocam o domínio balanceado das habilidades da língua.

160
3.3 Das transformações

Nesta seção, analiso, entre as respostas dos participantes, as


transformações decorrentes de tornarem-se bilíngues. O quadro, a seguir,
apresenta as características que aparecem nos comentários dos sujeitos como
decorrências de sua condição entre línguas:

Quadro 8: Transformações em decorrência de ser bilíngue

Características Número de vezes


1) contato com outras culturas 7
2) visão mais flexível e aberta 3
3) fortalecimento com pessoa/segurança 5
4) maior facilidade em aprender outras 1
línguas
5) vantagens profissionais 3
Fonte: Dados da Pesquisa

O contato com outras culturas é a resposta mais recorrente entre as


justificativas de transformações devido à condição de ser bilíngue. Dessa
forma, verifica-se o desejo pelo outro, o desejo da língua estrangeira, do
estranho, do outro que o constitui.
O recorte, a seguir, ilustra, como explica Coracini (2007), casos em que
aprender uma língua estrangeira constitui uma forte atração para o sujeito, que
pode ser explicada como o desejo do outro. Outro que o constitui e cujo acesso
é interditado e que ilusoriamente tem o poder de o fazer uno e completo:

B6 Eu me constitui muito através da minha identidade de aluno e de falante de


inglês desde muito cedo. Eu tinha orgulho de falar a língua, eu me sentia
especial, diferente. Até por fazer parte de uma família que não falava
inglês. Foi uma forma de eu me fortalecer como pessoa durante uma
adolescência conturbada e permanência incerta em casas de familiares.
Era uma coisa que era minha, era certa e ninguém podia me tirar. Acredito
que isso me fortaleceu e me modificou como indivíduo.

Este relato corrobora o já mencionado por Prasse (1997), que


exemplifica que o desejo pelas línguas estrangeiras se alimenta de duas
161
fontes: inveja dos bens e da maneira como gozam os outros e a inquietação de
não conseguir encontrar seu próprio lugar na língua materna. Neste caso,
parece que B6, por não encontrar lugar em sua língua materna: durante uma
adolescência conturbada e permanência incerta em casas de familiares, tem a
língua estrangeira como um refúgio para se afirmar no mundo e, como não
consegue encontrar seu próprio lugar, tem a ilusão de encontrá-lo em sua
língua estrangeira, quando diz: Eu tinha orgulho de falar a língua, eu me sentia
especial, diferente, foi uma forma de eu me fortalecer como pessoa. Verifica-
se que S4 também afirma ter encontrado este lugar privilegiado por meio da
língua estrangeira:

S4 Muitos dos produtos culturais que influenciaram a minha adolescência


foram consumidos em inglês (filmes, músicas, revistas, internet e e-mails
com pessoas que tinham inglês como primeira língua e como língua
estrangeira) e isso, sem dúvida, abriu as portas para novos conhecimentos
de mundo e, de uma certa forma, garantia um espaço privilegiado, um
espaço que só eu tinha acesso porque só eu falava “o meu idioma”. Era a
minha porta para outros mundos, coisa que, considerando a época em que
a internet ainda era discada e os acessos muito mais restritos do que os
adolescentes tem hoje em dia, me garantia um espaço privilegiado e
“secreto”.

A língua estrangeira é, para S4, a língua que permite dar vazão a


desejos interditados, criando a impressão de liberdade, uma vez que se
constitui nas zonas de não interdição, como afirma Coracini (2007).
Outro aspecto recorrente, localizado entre os recortes selecionados
nesta pesquisa, é a noção criticada, por García (2008), de que indivíduos
bilíngues, muitas vezes, são vistos como duplos monolíngues:

S9 A partir do momento que você se considera um bilíngue, você passa a ter


“duas” identidades e isso modifica a pessoa como um todo.

Este recorte, mais uma vez, reafirma a visão monoglóssica com que se
olha para o fenômeno do bilinguismo. Esta visão penetra nos discursos e faz
com que esses sujeitos criem imagens de quem são, o que reflete diretamente
em suas constituições identitárias. Moscovici (2003) ilustra esta ideia ao
salientar que, ao classificar-se algo ou alguém, confina-se este objeto a um
162
conjunto de comportamentos e regras que estipulam o que é ou não permitido
a todos os indivíduos pertencentes a essa categoria ou classe. Dessa forma,
percebe-se, ao longo desta análise, que o sujeito bilíngue ficou confinado, a
partir desta classificação, a um conjunto de regras e comportamentos ao qual
deve seguir e que culmina na ilusória ideia da existência de dois sujeitos
monolíngues em seu ser bilíngue.
Dois dos sujeitos participantes relatam conflitos ou sofrimentos
experimentados devido à sua condição bilíngue.

B3 Até hoje existe uma confusão mental com as línguas, mas por viver no
Brasil acredito que, no começo, era difícil, mais adulta, eu já me sentia
brasileira completamente, mas sempre existe um “algo” de diferença que
sinto emocionalmente, difícil de explicar, confesso.

B4 Dos 19 aos 21 vivi uma crise bárbara: não sabia minha identidade, se era
americana ou brasileira. Tinha cara de americana (biótipo), falava inglês
como nativa, mas não me sentia americana de jeito algum...o jeito de me
relacionar com os outros era muito brasileiro, o jeito de comer também
embora tivesse acostumada a “jello salad, waffles, pancakes”, não me
identificava em nada com os americanos- achava-os ingênuos,
politicamente alienados. Todos meus amigos, neste período, ou eram
brasileiros ou estrangeiros, e a grande maioria pós-graduandos. Fiz minha
graduação de 4 anos em 3 para voltar voando para o Brasil, mas ainda em
crise. Na volta fiz terapia para me ajudar. Lembro que sentia falta de achar
alguém com quem fazê-lo em inglês... na época só conseguia expressar
meus sentimentos mais íntimos em inglês... Agora em retrospectiva, acho
que na verdade não era a questão de me expressar em inglês, mas de
achar alguém que pudesse entender este conflito bicultural, e me ajudar a
me aceitar como sendo de duas culturas.

No discurso de B3, verifica-se uma tentativa de manter suas línguas em


campos e áreas separadas e autônomas. B3 ressente-se com o que denomina
de mistura das línguas, deseja possuir línguas puras, independentes e
transparentes. Ademais, relata sentir “algo” de diferença, o uso das aspas
remete a uma não coincidência no dizer, como que esse “algo” não
representasse, ou coincidisse com esta palavra.

B4, por sua vez, busca uma identidade fixa, una e imutável. Sofre por
não saber sua identidade e, a partir disso, pergunto-me: Será possível sabê-la,
uma vez que é dinâmica, fluída e múltipla? Esta sensação de falta fez com que
este sujeito construísse uma prótese no intuito de superar esse conflito. B4 tem
163
na terapia um dos tipos de prótese derridiana. A terapia parece, neste caso,
uma tentativa de recuperar ou inventar uma narrativa da história familiar e de
alguma forma, entender seu conflito.

164
E, por fim, um recomeço

Sempre chega a hora em que descobrimos


que sabíamos muito mais do que antes
julgávamos.

José Saramago30

30 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.143.

165
166
E, POR FIM, UM RECOMEÇO

A finalização de uma pesquisa é sempre uma retomada, um momento


de amarrar os fios que teceram o texto. Ao reunir as imagens de Escher em um
só desenho, faço uma tentativa de alinhavo final ao revisitar as perguntas de
pesquisa, que penso terem sido tangenciadas à medida que foi criado um
espaço de escuta para que os sujeitos bilíngues, neste trabalho,
compartilhassem narrativas de quem são ou esperavam ser.
Inicialmente, ao decidir que teria nove sujeitos bilíngues simultâneos e
nove sequenciais entre os participantes desta pesquisa, acreditava que
encontraria diferenças, entre os dois grupos, no que concerne às relações
destes com as línguas que os constituem e consigo mesmos. O exercício desta
pesquisa mostrou-me o contrário: as dúvidas, os conflitos e as questões
identitárias mobilizadas foram bastante semelhantes, o que me faz concluir que
a experiência de ser/estar entre línguas não é tão facilmente mensurável;
antes, não passa de ilusão, porque, a todo o momento, o sujeito se vê frente ao
desconhecido na língua que pensa ser sua, ao inesperado que não se quer
enfrentar ou ao mal dito que se deseja não ter dito.
Minha primeira pergunta referia-se a como as identidades dos sujeitos
foram se (trans)formando em sua relação com as línguas. A partir dos
dados obtidos, verificou-se, entre os sujeitos desta pesquisa, todos brasileiros,
o desejo de se aproximar do lugar do falante nativo oriundo de países de língua
inglesa. Este desejo aponta para o processo de identificação com a língua do
outro, que passa a ser constitutiva da identidade do sujeito bilíngue e, com
isso, desloca sua identificação com a língua materna e com o lugar que ela
ocupa.
Outro aspecto recorrente entre as narrativas obtidas foram as
expectativas compartilhadas socialmente no que se refere ao modo como um
sujeito bilíngue deve falar, ser ou agir. A partir dessas expectativas, observa-
se, por parte dos bilíngues, um movimento de reposição de identidades
pressupostas. Assim, esses sujeitos trabalham inconscientemente num
movimento para “repor” aquilo que a sociedade “põe” como certo, tanto no que
167
se refere ao modo de falar e ao sotaque, quanto à forma como um brasileiro
deveria se comportar.
Observou-se também, entre os participantes, o encobrimento, isto é, a
manipulação da informação que gera o estigma – neste caso, o sotaque. Esses
sujeitos tentam corrigir diretamente o que consideram a base objetiva de seu
defeito, ocorrendo a vitimização. No caso específico deste trabalho, como o
sotaque brasileiro é visto como um problema ou defeito a ser corrigido,
observa-se o esforço para o apagamento de qualquer sotaque ou marcas na
fala que caracterizam esse sujeito como brasileiro.
Alguns sujeitos relataram terem sofrido sanções e reprimendas por não
atenderem às expectativas normativas da sociedade acerca do sotaque que
um falante competente deve ter. Isso prova que ainda hoje se verifica, em
escolas e institutos de idiomas, o interesse na preservação do status quo, pois
se considera que a necessidade do aluno está na aquisição fonológica de uma
variedade de prestígio do falante nativo, o que contribui para disseminação
desse processo de vitimização de falantes brasileiros de língua inglesa.
É interessante perceber que há, entre os sujeitos desta pesquisa, um
único que parece fazer um movimento diferente dos demais que se engajaram
numa constante reposição da identidade pressuposta. Esse sujeito parece
superar essa pressuposição e, desse modo, não se observou, em seu discurso,
uma “reposição” daquilo que a sociedade “põe” como certo. De outra feita, S2
demonstrou, em seu discurso, um agir mais livre e criativo para realização de
suas metas e desejos, saindo do movimento de reposição e buscando o outro
“outro”, movimento esse denominado por Ciampa (1990) de mesmidade. Dessa
forma, observou-se que S2 se distancia perante as expectativas dos outros ao
desempenhar papéis, o que o torna, como explica Goffman (1988), um sujeito
desafiliado ou desviante social, uma vez que voluntária e abertamente se
recusa a aceitar o lugar social que lhe é destinado.
Outro aspecto importante para responder a esta pergunta de pesquisa é
o de que todos os sujeitos acreditam ter sofrido transformações em decorrência
de sua condição como bilíngue. O contato com outras culturas é a resposta
mais recorrente entre as justificativas dessas transformações. Dessa forma,
verifica-se o desejo, pelo outro, o desejo da língua estrangeira, do estranho e
168
do outro que o constitui. Esse desejo pelas línguas estrangeiras alimentou-se,
entre os sujeitos desta pesquisa, principalmente de uma tentativa de encontrar
um lugar que parecia ser impossível ser encontrado em sua língua materna ou
em uma de suas línguas. A língua estrangeira, ou no caso de bilíngues
simultâneos, uma de suas línguas, serviu como um refúgio para se afirmar no
mundo e a possibilidade de encontrar um lugar que lhe foi negado em sua
língua materna.
A segunda pergunta de pesquisa abordava a relação desses sujeitos
com as línguas que os constituem. Dentre os dados obtidos, é notória a
ilusão da possibilidade de neutralidade das línguas que, para os sujeitos,
desempenham papéis diferentes sem trazerem mudanças subjetivas e sem se
misturarem. Os sujeitos, ao enunciarem-se, revelam a ilusão de que cada uma
de suas línguas é pura e inteira e, dessa forma, não estaria em constante
transformação graças ao contato com a outra língua.
Verifica-se, também, uma contradição quando os sujeitos de pesquisa
contrastam a língua portuguesa com a língua inglesa no que tange à sua
circulação no mundo. Muitos recorrem ao discurso do inglês como língua
internacional e franca do mundo, língua de agenciamento social, sendo
importante por questões profissionais. Este discurso tende a silenciar aspectos
negativos deste fenômeno como o fato de o inglês ser a língua do colonialismo
ou do interesse das classes dominantes e desse modo conseguir operar como
um meio importante mediante o qual as desigualdades políticas, sociais e
econômicas são mantidas. Esses mesmos sujeitos, por sua vez, atribuem ao
português a característica de materno, colocando o inglês em uma posição de
estrangeiridade, o que reforça o mito da língua materna como sendo a língua
do saber, do gozo, do desejo, do conforto e do bem-estar e a língua estrangeira
como língua de comunicação com o outro em um mundo globalizado.
Somando-se a isso, uma representação recorrente sobre a língua
portuguesa é ser considerada uma língua difícil, contrastando com imagem da
língua inglesa como uma língua fácil e prática. Ao classificar uma língua como
difícil ou fácil, o enunciador vê a língua como sendo externa a si mesmo, e isso
equivale a vê-la como um instrumento de comunicação.

169
A dificuldade da língua portuguesa é definida pela quantidade de regras
das gramáticas normativas. Esse conhecimento de gramáticas e dicionários
são verdades construídas sobre a língua, e isso culmina no estabelecimento do
que pode ou não ser dito e da forma como pode ser dito em determinados
contextos, de acordo com uma língua portuguesa que não pertence a todos os
falantes, mas apenas aos mais escolarizados e socialmente reconhecidos, e,
dessa forma, autorizados a dizer algo sobre as línguas.
A qualificação difícil que se atribui à língua portuguesa é materializada
quando o sujeito, ao justificar sua posição, dá ênfase às regras gramaticais
que, para ele, são impossíveis de serem colocadas em uso. A percepção de
que há muitas regras e não são utilizadas pelos falantes faz com que veja sua
língua portuguesa como incompleta, na ilusão de que apenas as gramáticas e
dicionários a teriam em sua completude. Esses enunciados revelam a falta
constitutiva do enunciador, assim como seu desejo por uma língua “perfeita”.
Essa língua “perfeita” pertenceria, de acordo com os sujeitos desta
pesquisa, a indivíduos especiais como escritores e intelectuais. Ao se referir a
esses supostos falantes dessa língua “perfeita”, faz-se uma comparação com
os falantes comuns, que conforme os enunciadores, não a possuem. Dessa
forma, observa-se um deslize do domínio da língua para a posição que esse
falante ocupa na sociedade, o que mostra que olhar para língua é também
olhar para o enunciador e tudo o que simbolicamente a ele está relacionado,
seu status, profissão e prestígio, dentre outros aspectos. Esse olhar para quem
enuncia é determinado pelas identificações do sujeito que são interpeladas
pelo inconsciente do enunciador, ancorando suas representações de língua
ideal. Essa língua ideal passa a fazer parte do imaginário do sujeito que
começa a desejá-la, e dessa forma, seu desempenho linguístico é visto como
insuficiente e inacabado, sempre, vislumbrando uma falta que é constitutiva ao
sujeito.
Esta sensação de falta fez com que esses sujeitos construíssem
próteses com o intuito de supri-la ou compensá-la (prótese derridiana). Neste
caso, a prótese manifestou-se a partir da exigência compulsiva de uma pureza
da língua, ou seja, uma preocupação exacerbada com a correção linguística.

170
A terceira pergunta objetivava entender como esses sujeitos ao se
enunciarem constroem imagens de si e do Outro.
Observa-se, entre as narrativas selecionadas, a presença de identidades
sociais virtuais que são constituídas pelas afirmativas em relação àquilo que o
indivíduo outro deveria ser, ou seja, de como um brasileiro ou um latino deveria
ser. Essa discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social
real foi responsável pela produção do estigma identificado entre os
participantes. Os sujeitos participantes desta pesquisa têm consciência de que
possuem atributos que os diferenciam dos americanos, mas também não se
identificam com o rótulo de latino ou de brasileiro. Verifica-se, entre os sujeitos,
uma tentativa de constituir sua própria identidade, uma busca em tentar ser
completo na língua do outro e um sentimento de identidade que emana
necessariamente do outro.
Outro ponto importante é a dificuldade dos sujeitos desta pesquisa de se
verem como bilíngues. Embora observe-se, no Brasil, uma crescente
valorização da língua inglesa e uma significativa penetração do inglês por meio
de músicas e da tecnologia, indivíduos que aprendem inglês não se enxergam
como bilíngues. Vigora, ainda, no Brasil, o ideal monolíngue, dessa forma, ser
bilíngue exige definições e justificativas como se nota entre as narrativas dos
participantes, que tentam buscar, na teoria, explicações para a aceitação de
sua condição. É como se o sujeito não fosse autorizado a falar sobre sua
condição de bilíngue, o que faz com que procure, em enunciadores que
considere autorizado, uma justificativa para seu sentir ou pensar. Novamente,
verifica-se um deslocamento para a posição que o falante ocupa na sociedade,
o que divide os sujeitos em autorizados ou não autorizados a discorrer sobre o
tema.
Ademais, observou-se a dificuldade em se classificar bilíngue, que
decorre também da representação social que se tem a respeito do bilinguismo.
Essa classificação é feita ao se comparar pessoas a um protótipo aceito como
representante de uma classe, no caso, a de indivíduos que falam duas línguas.
Percebeu-se, nesta pesquisa, que o protótipo mais aceito para a denominação
bilíngue é a de alguém que utiliza as duas línguas com a mesma naturalidade.
Somando-se a isso, a língua estrangeira não é um sistema vazio de sentido,
171
pois traz consigo uma carga ideológica que coloca o aprendiz em conflito
permanente com a ideologia da língua materna. Outros sujeitos, ao narrarem
aspectos relacionados à sua bilingualidade, apresentam, dentro de suas
formações discursivas, marcas de tensão que demonstram que a língua deixa
marcas, traços e instaura a falta e o desejo do sujeito de “dominá-la” por
completo, como se isso lhe fosse possível.
As respostas obtidas por meio das minhas perguntas de pesquisa
suscitaram-me um movimento que me faz pensar em como a escola ou
institutos de idiomas poderiam trabalhar o ensino de língua estrangeira
focalizando a concepção de identidade do sujeito e das diversidades, tendo em
vista a importância da relação língua e identidade a partir da dimensão da
alteridade discursiva.
Primeiramente, acredito ser importante o entendimento de que o
encontro da língua materna com a língua estrangeira pode gerar um confronto,
pois à medida que mecanismos psíquicos na aprendizagem da língua
estrangeira são acionados, mecanismos inconscientes remetem a
particularidades específicas que o sujeito mantém com a língua materna. Como
afirma Coracini (1998), a aprendizagem de uma língua estrangeira ocorre na
rede emaranhada de confrontos tecidos a partir da língua materna, urdindo o
inconsciente e alterando sua configuração pela problematização do outro e da
diferença.
Além disso, considero importante o entendimento de que aprender uma
língua estrangeira implica sempre em um questionamento e uma perturbação
do conhecimento adquirido sobre o mundo, dos valores e ideologias inscritos
no sujeito. Se, como Revuz (1995) postula, a língua é o material fundador do
psiquismo humano, aprender uma segunda língua é um processo delicado,
pois significa além da relação com o saber, a relação com nós mesmos.
Dessa forma, se, como defendido ao longo deste trabalho, ao aprender a
falar se aprende, sobretudo, um conjunto de crenças e desejos das pessoas
que cercam esse sujeito, aprender a falar é, em meio ao desejo do outro,
formular hipóteses partindo de seu próprio desejo. Assim, pode-se assumir que
alguns aprendizes monitoram seu aprendizado aceitando esse novo modo de
vislumbrar o mundo; enquanto outros, inconscientemente, podem bloquear sua
172
aprendizagem, rejeitando-a, uma vez que aceitar a nova língua significa um
deslocamento das ideologias que já estavam internalizadas no indivíduo.
Perante a tais premissas, acredito que a pergunta que se segue a este
estudo é: Quais são os desdobramentos para se pensar o ensino-
aprendizagem de língua estrangeira a partir das considerações tecidas aqui?
Creio que, primeiramente, haja a necessidade de se redefinir a questão
do ensino de línguas. De forma geral, observa-se um grande descompasso
entre “para que”, “por que” e “como” ensinar a língua inglesa no Brasil. Para
tanto, um aspecto fundamental que merece ser repensado é a formação de
professores de língua inglesa. Esses profissionais, na maioria das vezes, com
uma visão de mundo monocultural e monolíngue, apenas, corroboram a
reprodução do pensamento vigente. No Brasil, os professores de língua não
são instrumentalizados para pensar meios de tornar a língua inglesa um
instrumento de singularização dos sujeitos-alunos dentro do sistema
dominante. Dessa forma, as aulas de inglês, que seriam um cenário propício
para embates culturais e políticos, dessa maneira, possibilitando a tematização
de um mundo multicultural construído em outra língua, transformam-se, na
melhor das hipóteses, em um mero local para memorização de estruturas
linguísticas. Tais práticas só se fariam possíveis por meio de uma formação
que possibilite ao professor compreender os sentidos da presença da língua
inglesa no cenário brasileiro atual, conhecendo os modos de subjetivação
daqueles em contato com essa língua e, consequentemente, avançando na
reflexão sobre o binômio língua e identidade.
Nesse sentido, ainda há um longo caminho a percorrer. Ao final desta
pesquisa, pergunto-me: Como concluir este trabalho? São tantas ainda as
perguntas que me perturbam. Talvez, possam ser respondidas em uma
próxima pesquisa. Quem sabe? Aprendi mesmo que a pesquisa nunca chega
realmente ao fim; tendo-se de forçar, em meio à violência da palavra, um ponto
final.

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VIAN JUNIOR, O. Língua e Cultura Inglesa. Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2008.

ZANOTTO, M. ; MOURA, H. ; NARDI, M.; VEREZA, S. Apresentação à edição


brasileira de Metáforas da Vida Cotidiana (Metaphors We Live By), de Lakoff,
G. & Johnson, M. São Paulo, Campinas: EDUC, Mercado de Letras. Campinas,
São Paulo, 2002. (Prefácio, Pósfacio/Apresentação).

WEI, L. Dimensions of Bilingualism. In: Li Wei, The Bilingualism Reader.


London; New York : Routledge, 2000.

WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.


In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos
estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 7-72.

182
CRÉDITOS
Obra 1: Who am I

http://mushy-pea.deviantart.com/art/Confused-32533539

Obra 2: Hand with Reflecting Sphere

http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/escher/esfera.html

Obra 3: Stair cases

http://www.zbrushcentral.com/showthread.php?38838-Escher-Stair-cases

Obra 4: Three Worlds

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://upload.wikimedia.org/wikipedia/
en/8/85/Three_Worlds.jpg&imgrefurl=http://en.wikipedia.org/wiki/Three_Worlds
&h=425&w=290&sz=44&tbnid=5ZPd5f3Waneu1M:&tbnh=90&tbnw=61&prev=/s
earch%3Fq%3Dthree%2Bworlds%2Bescher%26tbm%3Disch%26tbo%3Du&zo
om=1&q=three+worlds+escher&docid=qWpomKgJ6IqAcM&hl=pt-
BR&sa=X&ei=ilxbT-DbJpO2tweqjvmEDA&ved=0CC8Q9QEwAQ&dur=1637

Obra 5: Bond of Union

http://www.mcescher.net/photo.php?idx=6

Obra 6: Tower of Babel

http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/escher/babel.html

Obra 7: Relativity

http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/escher/relatividade.html

Obra 8: Balcony

http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/escher/varanda.html

Obra 9, 10 e 11: Metamorphosis II

http://www.mcescher.com/Gallery/switz-bmp/LW320A.jpg

http://www.mcescher.com/Gallery/switz-bmp/LW320B.jpg

http://www.mcescher.com/Gallery/switz-bmp/LW320E.jpg

Obra 12: Rind

http://www.mcescher.com/Gallery/recogn-bmp/LW401.jpg
183
Olhar para trás após uma longa caminhada pode fazer perder
a noção da distância que percorremos, mas se nos detivermos
em nossa imagem, quando a iniciamos e ao término,
certamente nos lembraremos o quanto nos custou chegar até
ponto final, e hoje temos a impressão de que tudo começou
ontem. Não somos os mesmos, mas sabemos mais uns dos
outros. E é por esse motivo que dizer adeus se torna
complicado! Digamos então que nada se perderá. Pelo menos
dentro da gente..."

Guimarães Rosa

184
Apêndice A

185
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO
Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem

Parte I - Ficha de dados pessoais do participante

Nome: _________________________________________ Sexo: ( ) feminino ( ) masculino

Idade: ___ Nacionalidade___________________________ rofissão:____________________

País de origem do pai: ____________________ País de origem da mãe: ___________________

País de origem dos avós maternos: _________________________________________________

País de origem dos avós paternos: _________________________________________________

Profissão do pai: ________________________ Profissão da mãe:______________________

Parte II - Questionário

1. Quais línguas você utiliza em suas interações diárias?________________________________

2. Como você aprendeu suas duas línguas?

_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
3. Em quais situações você utiliza cada uma destas línguas?

_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
4. Em que língua você se sente mais confortável nas seguintes situações:

a) conversar com um amigo? _______________ e) ler? _______________________________


b) orar? _______________________________ f) escrever? __________________________
c) contar? ______________________________ g) reclamar? __________________________
d) xingar? ______________________________ h) explicar seu ponto de vista? ____________

5. Qual de suas duas línguas você mais aprecia? Por quê?


_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
186
6. Qual de suas línguas é mais importante para você? Por quê?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________

7. Você se considera bilíngue? ( ) sim ( ) não. Por quê?


_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________

8. O fato de se comunicar em mais de uma língua te modificou como indivíduo? ( ) sim ( )


não. Por quê?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________

9. Como você se relaciona com os dois grupos sociais referentes às línguas que utiliza?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________

10. Como você acha que é visto por estes grupos sociais?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________

11. Você se preocupa com seu sotaque? ( ) sim ( ) não. Por quê?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________

12. Você acha que crianças devem aprender outras línguas, além da primeira língua da família?
( ) sim ( ) não. Por quê?
____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________

187

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