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PUCSP
São Paulo
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUCSP
São Paulo
2012
BANCA EXAMINADORA
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FICHA CATALOGRÁFICA
MEGALE, Antonieta Heyden. “Eu sou, eu era, não sou mais”: Relatos de
sujeitos fal(t)antes em suas vidas entre línguas. São Paulo: 187 p., 2012.
1 ALVES, Rubem. Variações sobre o prazer. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. p.40.
APRECIAMENTO EM QUATRO ATOS
Acredito que amor não se deva agradecer, mas sim apreciar. Por todo amor
recebido que se materializou em gestos, quero expressar tudo que apreciei.
DE ANTES DO COMEÇO
Oficialmente esta história teve seu início no ano de 2010 com o esperado
encontro com minha orientadora – Antonieta Celani. Estranho encontrar
alguém que a gente já ouviu falar tanto... Parece até que a gente já conhece a
pessoa, embora essa pessoa não tenha a menor ideia de quem somos –
relação estranha essa... Relação que foi sendo construída, entre silêncios,
sorrisos e dúvidas. Dentre as qualidades que aprecio, uma das principais e rara
é a capacidade que poucas pessoas têm de acreditar uma nas outras e minha
orientadora-xará nunca hesitou em acreditar em mim (ou pelo menos nunca
deu indícios de qualquer descrença). Primeiro, quis mudar meu tema de
pesquisa. Depois, a escola na qual a pesquisa aconteceria não mais permitiu
que isso ocorresse e, assim, tive de mudar novamente. E então, encantada
com tudo que aprendia, quis transformar o pouco que tinha. Antonieta sorria,
procurava entender ou apenas acreditava... Essa lição eu levo comigo, essa
capacidade de acreditar na capacidade do outro. Nunca vou esquecer os
momentos compartilhados com alguém tão importante... Lembro-me dos
gestos de encorajamento e principalmente da generosidade com a qual fui
tratada nestes dois anos. Minha querida orientadora fez com que este percurso
fosse cheio de descobertas agradáveis. Minha gratidão vai muito além dos
limites desta pesquisa.
Ainda em 2010, conheci o restante do grupo: Rogério, Cynthia, Priscila,
Francisco, Eliane, Luciana, Luzia, Neiva, Paulo e Paula. Colegas de mestrado
e de pesquisa que começaram a fazer parte do meu cotidiano na PUC. Com
cada um deles cresci e aprendi. E sorri tanto com eles. Na PUC, ainda, conheci
duas amigas que serão permanentemente importantes para minha vida: Eva e
Camila. Amizades construídas no mestrado que levarei para sempre: as
viagens, a cumplicidade, as dúvidas... Minha gratidão pelo companheirismo
dessas amigas é imensa. Também fundamentais neste caminho, foram os
professores: Mara, Toni, Maximina, Fernanda e Ciampa – pessoas que
ampliaram minha visão de mundo. Ainda no processo de pesquisa, conheci
muitas pessoas que me abriram portas para conseguir aplicar os questionários
necessários. Aprecio a generosidade de todos. Como também aprecio a
disponibilidade de todos os participantes desta pesquisa.
DO MEIO DE TUDO
O ano de 2011 foi um ano inesquecível, por tudo o que vivi. E duas pessoas
inicialmente: Marcello e Fernanda foram novamente fundamentais nesta
história. Marcello deu-me a oportunidade ímpar de ocupar um lugar que já foi
dele na coordenação de um colégio – confiança essa que não sei se, algum
dia, conseguirei retribuir. Foi, neste colégio, que várias questões identitárias
afloraram e muitas das reflexões deste trabalho são frutos desta vivência.
Nesse ano, também, motivada pela professora Fernanda, participei de
congressos nacionais e internacionais, escrevi artigos e aprendi que não basta
fazer mestrado, tem de viver o mestrado. Conheci também uma amiga que
levarei para sempre: Selma Moura, doutoranda da UNICAMP. Amiga de
congressos, confissões e devaneios. Além disso, não poderia aqui, de maneira
alguma, deixar de expressar textualmente o quanto apreciei a colaboração
efetiva em meu exame de qualificação e a disponibilidade em acompanhar meu
trabalho dos professores Orlando Vian Junior e Mara Sofia Zanotto.
DO INÍCIO DO FIM
RESUMO
No Brasil, são faladas mais de 200 línguas. Somando-se a isso, não se pode
ignorar os impactos da globalização que, como argumentam McGrew e Held
(1992), conectam comunidades em novas combinações de espaço-tempo,
tornando o mundo mais interconectado. Outro fator desencadeante do
interesse por línguas estrangeiras no Brasil foi a ascensão econômica da
classe C, o que representa mais de 90 milhões de brasileiros com acesso à
educação e ao mercado de trabalho. Com isso, a procura por escolas de
idiomas aumentou consideravelmente, assim como o número de brasileiros que
tem a possibilidade de estudar no exterior ou que opta por colégios
internacionais ou bilíngues. Frente a estes dados, o objetivo deste trabalho é o
de estudar o funcionamento da linguagem na constituição da subjetividade dos
sujeitos, apontando deslocamentos identitários nos discursos de falantes de
inglês e português. Para tanto, analiso recortes discursivos selecionados entre
as respostas a um questionário de indivíduos bilíngues – simultâneos e
sequenciais, a fim de mostrar a irrupção de discursos em torno da identidade.
Proponho uma interpretação discursiva destes recortes apoiada teoricamente
na Análise de Discurso de linha francesa, com contribuições teóricas da
psicanálise, de autores e de teóricos da identidade como Hall (2005), Norton
(1995), Bauman (2005) e Ciampa (1984; 1990; 2004). Dentro deste quadro
teórico, adoto a noção de sujeito como cindido, heterogêneo, atravessado pelo
inconsciente e constituído no e pelo olhar do outro (LACAN, 1966/1998).
Assim, a identidade é aqui entendida (i) como tendo sua existência no
imaginário do sujeito, que, de acordo com Coracini (2007), constrói-se nos e
pelos discursos imbricados que o constituem, o discurso da ciência, do
colonizado e da mídia e (ii) como um processo de metamorfose a partir de uma
identidade que é sempre pressuposta (CIAMPA, 1984). A análise dos dados
sugere que há diversas maneiras de se viver entre línguas, mas que é
impossível negar que saber mais de uma língua imprime, como afirma Coracini
(2007), marcas indeléveis à subjetividade que se (re)constrói a todo o
momento.
ABSTRACT
There are over 200 languages spoken in Brazil. Moreover, one cannot ignore
the impact of globalization. As McGrew and Held (1992) argue, it connects
communities in new combinations of time-space, making the world more
interconnected. Another triggering factor of the interest in foreign languages in
Brazil was the economic rise of low income classes, which represent more than
90 million Brazilians with access to education and the labor market. Thus, the
search for language schools has increased considerably, as well as the number
of Brazilians who have the possibility to study abroad or who opt for bilingual or
international schools. Faced with this data, the objective of this research is to
study the functioning of language in the constitution of the subjectivity of
individuals, pointing to identity shifts in the discourse of speakers of English and
Portuguese. The corpus was gathered from questionnaires answered by
simultaneous and sequential bilingual individuals. As to the analysis of the
corpus a transdiciplinary approach is adopted. It includes concepts from French
discourse analysis with theoretical contributions from psychoanalysis, as well as
authors who study identity such as Hall (2005), Norton (1995), Bauman (2005)
and Ciampa (1984, 1990, 2004). Thus, identity is here understood (i) as having
its existence in the imagination of the subject which according to Coracini
(2007) is built through and by overlapped discourses which constitute the
subject; the discourse of science, of the colonized and of the media and (ii ) as
a process of metamorphosis from an identity that is always assumed (Ciampa,
1984). The analysis of data suggests that there are different ways of living
between languages, but it is impossible to deny that speaking more than one
language prints, as Coracini (2007) states, indelible marks on the subjects’
identities which are (re) built all the time.
O PERCURSO ESCOLHIDO 32
45
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
2.1 Representações sociais 47
2.2 Ancoragem 50
2.3 Objetivação 52
IDENTIDADES 57
3.1 O conceito de identidade empregado 60
3.2 Estigma e preconceito 65
TRAJETÓRIA 93
1.1 A LA e os princípios filosóficos que norteiam esta pesquisa 95
1.2 A análise de discurso de linha francesa 100
1.3 A constituição do corpus e os instrumentos de coleta 101
1.4 Os participantes da pesquisa 104
1.5 Mo(vi)mento de análise 110
CRÉDITOS 183
APÊNDICE 185
45
47
LISTA DE OBRAS DE ARTE
Obra 1: Who am I? 1
Obra 7: Relativity 94
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Objetivos, perguntas de pesquisa e perguntas do questionário 103
Quadro 2: Bilíngues simultâneos participantes da pesquisa 107
Quadro 3: Bilíngues sequenciais participantes da pesquisa 109
Quadro 4: Critérios para seleção dos partiipantes 116
Quadro 5: Relação das perguntas de pesquisa e das representações localizadas 117
Quadro 6 Relação das seções organizadas e das representações 118
Quadro 7 Perguntas que suscitaram as representações sobre o que é ser bilíngue 145
Quadro 8 Transformações em decorrência de ser bilíngue 161
LISTA DE FIGURAS
Figura 12: Universidade de São Paulo tornam inglês língua oficial 150
Figura 13: Inglês: saber o idioma é cada vez mais importante 151
“It seems to me that in any other
“I had to work like a
language happiness is not so sweet, logic coal-miner in his pit
is not so clear. I am not sure that I could
believe in my neighbors as I do if I quarrying all my English
thought about them in un-English words.
I could almost say that my conviction
sentences out of a black
of immortality is bound up with the night”.
English of its promise. And as I am
attached to my prejudices, I must love Joseph Conrad, aprendeu inglês
the English Language!”. aos 20 anos, depois de aprender
polonês e francês.
Mary Antin, um judeu russo que emigrou para os
EUA em 1894.
"For me, one language is complementary to the other, one always lacking a capacity that
the other has".
Ha-yun Jung, que escreve ficção em inglês, mas recentemente retornou para seu país de origem, Coreia do Sul,
e se sente incompleta tanto em inglês quanto em coreano.
Trechos extraídos do livro “The Genius of Language: Fifteen Writers Reflect on Their
Mother Tongues”, de Steven G. Kellman (2004).
Notas de um percurso pessoal
1 CAMPOS, A. (Fernando Pessoa). Obra poética e em Prosa. Porto: Lello & Irmão Editores, 1986, p. 413.
17
18
INTRODUÇÃO
Notas de um percurso pessoal
2 BRITTO, P. Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.15.
19
de quem e como me sinto em ambientes que me causam estranheza e me
fazem pensar se pertenço a algum lugar, a alguma língua. Mas, como diz
Saramago: “como é que se pode não pertencer à língua que se aprendeu, à
língua com que se comunica e com que se escreve?”3.
Neste percurso me deparei com diversos depoimentos que, por vezes,
fizeram-me pensar que me revelam e que dizem de mim coisas que não
saberia dizer. Bauman (2005), parafraseado no início desta seção, ilustra com
precisão alguns dos dilemas inquietantes e das escolhas obsedantes que
tendem a fazer da identidade um tema de graves preocupações e agitadas
controvérsias. O autor narra sua decisão de, naquela situação, tocar o hino
europeu; decisão essa “excludente” e “includente”:
3 LOPES, Victor. Entrevista de José Saramago em Língua – Vidas em Português (documentário). Brasil/Portugal,
2004. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=b7cIiiHmFI8>. Acesso em: dez. 2011.
4 Este estudo tem como base teórico-metodológica a análise de discurso de linha francesa que faz uso da
denominação sujeito. O sujeito difere do indivíduo por estar em uma relação de assujeitamento e de pertencimento a
uma memória discursiva. Orlandi explica que: “o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a
língua faz sentido” (ORLANDI, 1999, p.17). A partir dessa perspectiva, emprego o termo sujeito em minhas perguntas
de pesquisa e também no decorrer desta dissertação quando o assunto tratado for discutido a partir da análise de
discurso de linha francesa.
20
suas narrativas, porém, por uma questão metodológica e temporal, detive-me
neste trabalho a sujeitos bilíngues falantes de português e inglês. Além do
mais, a língua inglesa tem uma história de imposição por razões políticas e
materiais em muitos países do terceiro mundo, o que implica na constituição
identitária de seus falantes. A partir dessa perspectiva, apoio-me em
Canagarajah (1999) para afirmar que, ao optar por aprender ou fazer uso do
inglês, esses sujeitos fazem também uma opção ideológica e social, ainda que
de modo inconsciente.
Outro motivo que me levou, neste momento, a delimitar meus sujeitos de
pesquisa desse modo, é a crescente propagação da língua inglesa no Brasil.
Observa-se, como aponta Marcelino (2009), que o crescimento do bilinguismo,
no Brasil, evidencia um desenvolvimento na educação e uma demanda
mercadológica pressionada pelos pais de alunos de escolas regulares. O autor
aponta também para o fato de que se anteriormente os pais escolhiam as
escolas para seus filhos com base na proposta de ensino e a necessidade de
se aprender outra língua era suprida por meio de institutos de idiomas,
atualmente, essa escolha é muitas vezes definida pela importância dada à
língua inglesa nas escolas regulares. Frente a esse panorama, percebe-se, no
Brasil, a disseminação das escolas bilíngues, de programas de intensificação
de língua inglesa e de escolas de idiomas.
Nessa direção, meus objetivos neste trabalho são:
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dissertação faz uso de teorias de identidade e de bilinguismo para investigar a
relação de bilíngues brasileiros falantes de português e inglês com suas
línguas, com o povo brasileiro e com o nativo de língua inglesa. Sendo assim,
vai além do proposto por Marques, uma vez que procura, por meio dessas
teorias, analisar os laços que prendem esses sujeitos aos discursos pelos
quais constroem biografias que tecem as diferentes partes de seus “eus”
divididos.
Vale frisar que, apesar das diferenças descritas entre esses trabalhos e
minha pesquisa, esta foi certamente influenciada pela leitura cuidadosa dos
trabalhos mencionados que corroboraram na minha opção pela análise de
discurso francesa como aporte teórico para realização da mesma.
Este estudo é, desse modo, inovador e deverá ser o motor essencial
para o desenvolvimento de novos saberes relacionados ao binômio língua e
constituição identitária na área da Linguística Aplicada.
Acredito ser de grande valia para a leitura deste trabalho discorrer, nesta
introdução, sobre o título escolhido para minha pesquisa: “Eu sou, eu era, não
sou mais”: Relatos de sujeitos fal(t)antes em suas vidas entre línguas. Para
isso, primeiramente, faz-se necessário explicitar a concepção de sujeito
empregada neste estudo.
A análise de discurso de linha francesa recorre a três autores para
definir sua concepção de sujeito. Foucault (1987) e Pêcheux (1997) concebem
o sujeito associado à ordem do social e do discursivo. Lacan (1972-1973/1982),
por sua vez, pensa o sujeito como efeito de linguagem e em relação ao
inconsciente. De acordo com Coracini (2007), essas concepções, apesar de
apresentarem pressupostos diferentes, têm o aspecto social presente, uma vez
que: “o sujeito é também alteridade, carrega em si o outro, o estranho, que o
transforma e é transformado por ele” (CORACINI, 2007, p.17). A partir desse
prisma, parte-se do pressuposto de que o sujeito não tem o controle sobre a
produção de sentidos: ele é interpelado pelo interdiscurso que é reatualizado
em seu discurso, ocorrendo um processo de ressignificação. Com isso, há a
produção de outros sentidos, de outras leituras e de outras interpretações, o
que marca a heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso, uma
vez que o discurso é constitutivamente atravessado pelo discurso do outro e do
inconsciente. Esse processo de (re)significação permite pensar um sujeito além
da pura interpelação ideológica. Retomando essas condições, o sujeito é, de
acordo com Lacan (1966/1998), determinado pela linguagem e pela falta. Em
função disso, o sujeito é inacabado, produzindo-se, interminavelmente, em um
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eterno movimento de vir-a-ser, impulsionado pelo desejo, deslizando entre o
desejar e o gozar, posições que, imbricadamente, constituem-no. Assim, pode-
se falar de um sujeito que é falante e faltante, uma vez que, na teoria
psicanalítica, todo sujeito é faltante da permanência do gozo. Portanto, ser
fal(t)ante implica em permanentemente buscar – pelos meandros da linguagem
– a ilusória completude.
Uma vez esclarecido o que entendo por fal(t)ante, destaco, a seguir, o
que pretendo com a expressão “entre línguas”. Melman (1992) afirma que o
inconsciente não cria obstáculo para o contato das línguas. Sendo assim,
entendo que estar entre línguas significa que não existe uma fronteira
determinada entre uma língua e outra.
Recorro, também, ao início de cada seção, às ilustrações do artista
holandês Mauritus Cornelis Escher, que sinto materializarem, por meio de
imagens, o que minhas palavras escrevem. As imagens de Escher são
constituídas de paisagem-corpo, corpo-paisagem e outras subjetivações, e
abrigam jogos de ilusão que referem ao impensado e ao paradoxo. Por meio
desses jogos de realidades, Escher produz gravuras que causam
estranhamento e permitem deslocamentos a percursos inusitados, a partir de
suas relações de composição onde o ser, o tempo e o espaço coexistem e
produzem novos modos de subjetivação. Suas obras parecem demonstrar
conceitos pelos quais transito: deslocamentos, estranhamentos, subjetivações
e paradoxos.
Em sua série Metamorfoses, utilizada na seção “Entre ditos e não ditos”,
Escher faz com que várias estruturas se transformem inesperadamente.
Nessas imagens, há repetições que metamorfoseiam por meio de pequenas
mudanças em um contexto próximo, assim, produzindo o diferente. É como se
não existisse separação entre o fora e o dentro, o que proporciona uma visão
ininterrupta do dentro e do fora, do sujeito e do social. Essa ideia de
metamorfose corrobora a concepção de identidade adotada por Ciampa (1990),
que compreende a identidade como um processo de metamorfose permanente;
visão esta empregada neste estudo e desenvolvida na seção “Identidades”.
Para terminar esta introdução, cabe-me apresentar a organização deste
trabalho. Divido meu texto em duas grandes partes. A primeira parte, “Do
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enredo teórico”, está organizada em quatro seções e, nelas, desenvolvo o
arcabouço teórico que fundamenta minha pesquisa. O “Percurso Escolhido”
discorre sobre os principais conceitos que embasam a análise de discurso de
linha francesa: o discurso, o sujeito discursivo e a ideologia. A seção
“Identidades” apresenta as teorias de identidades empregadas na análise dos
dados neste estudo. Em “Vidas entre línguas”, enfatizo o aporte teórico sobre
língua materna, língua estrangeira e bilinguismo. A seção “Representações
Sociais” aborda esse conceito a partir dos estudos de Moscovici (1961; 2003) e
Jodelet (1990; 2001).
A segunda parte, “Do que se descobriu no caminho”, está organizada
em duas seções. Em “Trajetória”, apresento os aspectos metodológicos e
detalho os procedimentos para geração e análise dos dados. Na seção “Entre
ditos e não ditos”, discuto os resultados da análise, dividindo-os em três
subseções: “Entre o desejo da completude e a falta do sujeito”; “Entre o mito, o
possível e o desejo do outro” e “Entre as diversas concepções do eu”.
Na seção “E, por fim, um recomeço”, teço comentários em relação à
relevância e à necessidade de outros pesquisadores ampliarem o tema em
questão. As “Referências Bibliográficas” compõem a última parte deste
trabalho.
26
27
PRIMEIRA PARTE
Do enredo teórico
28
pensa a ideologia como um conjunto de representações, com isso, assume-se
que, identificando as representações sociais que o sujeito tem do mundo, por
meio das marcas linguísticas que se repetem dentro das formações
discursivas, inicia-se o processo de reconhecimento da ideologia que interpela
o indivíduo em sujeito. Dessa forma, torna-se tangível analisar a inscrição do
Outro, ou o interdiscurso, no discurso do sujeito, e consequentemente se
reconhece valores e ideias circulantes em dada sociedade. Essas ideias têm
influência direta na identidade do sujeito, uma vez que aquilo que o sujeito
acredita é justamente o que o faz agir ou não agir, direcionando sua relação
com o mundo e o modo como o mesmo se percebe na sociedade.
Na terceira seção, Identidades, abordo os estudos sobre identidade a
partir da perspectiva da Pós-Modernidade, com base em Hall (2005), Bauman
(2005), Norton (1995) e Coracini (2003; 2007). Nessa perspectiva, retomo os
estudos de Ianni (1999) para discorrer a respeito das implicações da
globalização na conceptualização da identidade e na fragmentação do sujeito
na Pós-Modernidade. Nessa seção, recorro também a outras áreas de
conhecimento para melhor compreender minhas questões da pesquisa, uma
vez que a linguística aplicada converge em um processo transdisciplinar de
produção de conhecimento (MOITA LOPES, 2006). Busco esteio no psicólogo
social Ciampa (1984; 1990; 2004) que entende a identidade como um construto
social e, a partir disso, desenvolve os conceitos de pressuposição da
identidade (CIAMPA, 1990), mesmice (CIAMPA, 1984) e mesmidade (CIAMPA,
1990). Esses conceitos são essenciais para a análise de dados desta pesquisa,
uma vez que relacionam a identidade a uma predicação atribuída ao sujeito
pelo outro e a AD francesa, base teórico-metodológica desta pesquisa que tem,
como postulado fundamental, o fato de que não há discurso que não tenha ou
não apresente a inscrição de outros. Retomo também o conceito de estigma,
do sociólogo Goffman (1988), que reflete acerca do processo constitutivo da
identidade de sujeitos que se distinguem dos outros. Atrelado a esse conceito,
resgato a noção de preconceito linguístico, difundida no Brasil, por Bagno
(2002). Os conceitos de estigma e preconceito linguístico são empregados na
análise dos dados deste trabalho, uma vez que os sujeitos bilíngues que
29
participaram da pesquisa parecem apresentar estigma relacionado ao sotaque
e à condição de ser brasileiro.
É importante ressaltar que os conceitos discutidos na seção um e dois
se entrelaçam com o conceito de identidade exposto na terceira seção.
A AD francesa reflete o percurso histórico, social e cultural do sujeito,
revelando quais discursos que perpassam a sua identidade diante da
materialização da sua linguagem. Portanto, parto da premissa de que a
identidade se forma ao longo do tempo por meio de processos inconscientes,
uma vez que o processo de identidade é constituído no decorrer da vida do
sujeito e orientado por vários interdiscursos que se revelam por meio da
produção discursiva.
Além disso, não se pode desprezar o fato de que a identidade também
se constitui a partir das representações que um grupo ou sociedade possui em
torno dele mesmo. Desse modo, entender como os bilíngues desta pesquisa,
falantes de português e de inglês, percebem-se e percebem as línguas que os
constituem é essencial para entender como captam essas referências e são
por elas afetados na construção de suas identidades.
Finalmente, na última seção, Vida entre línguas, enfatizo o elo língua,
sujeito e identidade com base nos estudos de Revuz (1998), que tem como
base uma concepção lacaniana de sujeito, constituído pela e na linguagem.
Essa parte tem como objetivo interrogar a nominação materna e estrangeira
atribuída à língua. Para tanto, apoio-me nas pesquisas de Coracini (2003,
2007), Revuz (1998) e Maher (1998) filiadas à linguística aplicada e nos
estudos psicanalíticos de Fages (1977), Prasse (1997) e Melman (1992), que
explicam o conceito de interdição a partir da concepção lacaniana da
constituição do Eu (Lacan, 1958/1998 e 1966/1998). Na terceira parte, discuto
a evolução dos conceitos de bilinguismo partindo de concepções
unidimensionais como as de Bloomfield (1935), Macnamara (1967), Barker e
Prys (1998), Li Wei (2000) e Mackey (2000). Discorro também sobre
concepções teóricas que contemplam, em sua definição de bilinguismo, tanto a
dimensão linguística como a não linguística, como Maher (2007), Hamers e
Blanc (2000), Heye (2003) e Dias e Salgado (2010), que trabalham com o
conceito de bilingualidade; e García (2009) e Cummins (1984), que advogam a
30
favor de uma visão heteroglóssica de língua. Por fim, introduzo a perspectiva
derridiana (2001), que discute a construção de próteses a fim de explicar o
conflito/sofrimento experimentado por diversos sujeitos em sua condição
bilíngue.
Esses conceitos, discutidos na quarta seção, são essenciais para a
análise das representações que os sujeitos desta pesquisa têm sobre as
línguas que os constituem e sobre sua bilingualidade dentro do quadro teórico
da AD francesa.
31
O Percurso escolhido
34
única de ciência, que defende “o possível acesso a verdades absolutas e
incondicionais sobre o mundo, e entende a linguagem como mero espelho da
realidade objetiva” (ZANOTTO et al., 2002, p.11).
35
e da releitura do estruturalismo linguístico de Saussure, realizada por Pêcheux,
a AD francesa nasce na tentativa de suprimir a falta que cada uma dessas
áreas possui isoladamente e cria um objeto que está na fronteira de todas elas:
o discurso.
36
atribui. Pêcheux, que foi um atento leitor de Saussure, desloca o conceito
saussuriano de função para funcionamento das línguas, ultrapassando, assim,
os limites estritos do linguístico e permitindo a descrição da materialidade
específica da língua.
37
1.1.1 O discurso
1.1.2 Ideologia
6 Os Aparelhos Repressivos do Estado são o governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais e as prisões
que funcionam, basicamente, por meio da violência. Os Aparelhos Repressivos de Estado funcionam principalmente
pela repressão, embora possam ter um aspecto ideológico que é secundário (ALTHUSSER, 1985).
40
esquecimento postulado por Pechêux (1975/1988), o sujeito não é a origem de
seu discurso ou de suas práticas e, além disso, não domina o sentido de seu
dizer.
Dentro das relações existentes entre o discurso e ideologia, destaca-se
a importância do sujeito na formação do discurso. Na próxima seção, focalizar-
se-á o sujeito da AD francesa e sua relação com o discurso e com a ideologia,
o que é denominado assujeitamento ideológico.
44
Representações Sociais
7 MELO NETO, João Cabral de. Rios sem discurso. In: MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1979. p.26.
45
46
SEÇÃO 2
Representações Sociais
47
2.1 Representações sociais
2.2 A ancoragem
2.3 A objetivação
54
2.5 Representações sociais, ideologia e AD francesa: breve diálogo
necessário
56
Identidades
8 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. p.24.
57
58
SEÇÃO 3
Identidades
59
outro. A esse respeito, Moita Lopes (1998) esclarece que os indivíduos têm
suas identidades construídas de acordo com o modo que se vinculam a um
discurso – o seu próprio e o discurso dos outros. Logo, pode-se dizer que não
há construção identitária desvinculada do discurso. Portanto, a identidade do
sujeito bilíngue constrói-se nas diferentes práticas discursivas em que ele se
engaja e pelas quais se relaciona com o outro. Nesse sentido, apoio-me em
Moita Lopes (2002) para afirmar que o indivíduo se constitui em um movimento
de vai e vem da percepção e da representação do outro sobre ele mesmo.
Para subsidiar esta discussão, resgato da literatura construtos teóricos
defendidos por autores pós-modernos, como Hall (2005), Bauman (2005),
Norton (1995) e Coracini (2003; 2007). Recorro também a outras áreas de
conhecimento para melhor compreender minhas questões de pesquisa. Busco
esteio no psicólogo social Ciampa (1984; 1990; 2004), que entende a
identidade como um construto social e, a partir disso, desenvolve os conceitos
de pressuposição da identidade (CIAMPA, 1990), mesmice (CIAMPA, 1984) e
mesmidade (CIAMPA, 1990). Retomo também o conceito de estigma do
sociólogo Goffman (1988), que reflete acerca do processo constitutivo da
identidade de sujeitos que se distinguem dos outros. Atrelado a esse conceito,
resgato a noção de preconceito linguístico, difundida no Brasil, por Bagno
(2002).
60
Porém essa pergunta não pode ser dissociada de onde estamos, de onde
viemos, para onde vamos? Sobre esse ponto, aliás, é preciso salientar que
conhecer o humano não é expulsá-lo do universo, mas sim situá-lo.
Historicamente, é possível localizar que, toda vez que uma mudança
epistemológica ocorre, torna-se preciso também ver o homem na história e
(re)conceitualizar o sujeito para que ele se conscientize sobre o modo como o
conhecimento estrutura a mente humana. Hall (2005) contribui para esta
discussão ao conceitualizar a noção de sujeito em consonância com os
diferentes períodos históricos:
a) sujeito do iluminismo: o sujeito do iluminismo estava baseado numa
concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado,
unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo
"centro" consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o
sujeito nascia e se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o
mesmo - contínuo ou "idêntico" a ele - ao longo da existência do indivíduo.
b) sujeito sociológico: a noção de sujeito sociológico refletia a crescente
complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior
do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação
com outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os
valores, sentidos e símbolos, a cultura, dos mundos que ele habitava.
c) sujeito pós-moderno: o sujeito pós-moderno torna-se fragmentado; composto
não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou
não resolvidas. À medida que os sistemas de significação e representação
cultural se multiplicam, o sujeito é confrontado por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis e com cada uma das
quais se identifica ao menos temporariamente. A identidade do homem pós-
moderno é definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são
unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro dele, há identidades
contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que essas
identificações são continuamente deslocadas.
Neste cenário, emerge também o processo de globalização, quebrando
antigos paradigmas e reforçando algumas características desse momento
61
histórico. O fenômeno, que “tende a desenraizar as coisas, as gentes e as
ideias” (IANNI, 1999, p. 94), interfere diretamente na conceptualização da
identidade e na fragmentação do sujeito, além de atingir as diversas relações
sociais nos mais variados níveis e afetar o modo de ser e agir da sociedade, na
qual agora vigoram dualidades como global/local, coletivo/individual,
micro/macro e concreto/abstrato. Somando-se a isso, Bauman (2005)
acrescenta que a noção de identidade herdada da Modernidade naufraga em
um contexto fluido em que verdades, outrora inquestionáveis, são postas em
xeque e nascem novas formas de sociabilidade sob os auspícios da
globalização no mundo capitalista contemporâneo. Para o autor, na
contemporaneidade, a tônica recai no individualismo, na solidão e na exclusão
gritantes nos mais diversos contextos sociais. A partir desse mesmo prisma,
Coracini (2003) salienta que, ainda que os defensores deste fenômeno
neguem, a globalização pretende a centralização e a homogeneização de tudo
e todos, o que contribui para a caracterização de uma crise da identidade,
provocada, em grande parte, pela ideologia da globalização.
Neste estudo, o conceito de identidade é concebido a partir da
concepção de sujeito pós-moderno apresentada acima. De acordo com Hall
(2005), a identidade de um sujeito é formada e transformada continuamente em
relação às formas pelas quais este é representado ou interpelado nos sistemas
culturais que lhe rodeiam. Frente a esta postura teórica adotada, pode-se
considerar que a identidade do sujeito se constrói na/através da linguagem e,
por isso, não se pode falar em identidades fixas; as identidades estão sempre
em estado de fluxo.
Não é à toa que Bauman (2005) assevera que a constituição identitária
deve ser considerada um processo contínuo de redefinir-se e de inventar e
reinventar sua própria história, pois a identidade, como afirma Coracini (2007),
tem sua existência no imaginário do sujeito que se constrói nos e pelos
discursos imbricados que o constituem. Porém é importante salientar que,
apesar da identidade ser tratada como um processo ficcional, pois, como
salienta Bauman (2005), a inventamos, não se deve desmerecê-la, visto que,
por meio desse processo, o sujeito revela como se posiciona no decorrer de
sua história.
62
Neste mesmo universo conceitual, Norton (1995) também defende a
concepção de uma identidade múltipla e suscetível a mudanças. Para esta
autora, o termo identidade refere-se ao modo pelo qual as pessoas
compreendem sua relação com o mundo, como tal relação é construída através
do tempo e do espaço e como essas mesmas pessoas entendem suas
possibilidades para o futuro. Para Norton (1995), a noção de identidade está
intimamente ligada aos desejos de reconhecimento, afiliação e segurança. A
autora completa que a língua constitui e é constituída pela identidade do
sujeito, que, por intermédio dela, negocia a noção do “eu” em meio a ambientes
diferentes e em pontos distintos no tempo. A autora afirma ainda que, ao falar,
os aprendizes não estão apenas trocando informações com o interlocutor: eles
estão constantemente organizando e reorganizando o senso de quem são e de
como se relacionam com o mundo. Durante esse processo, os aprendizes
estão envolvidos na construção e na negociação de suas identidades.
Em consonância à concepção defendida por Norton, um dos estudiosos
brasileiros mais significativos do conceito identidade, Ciampa (1990), defende
que a identidade é um constructo social resultante da relação dialética entre o
sujeito e a sociedade. Nessa relação, de acordo com o autor, o sujeito é
configurado não apenas como personagem, mas também como autor de sua
própria história. Essa configuração, salienta Ciampa (1984), ocorre uma vez
que não se pode isolar, de um lado, todo um conjunto de elementos biológicos,
psicológicos e sociais que podem caracterizar um indivíduo 9; e de outro lado, a
representação desse sujeito como uma duplicação simbólica que expressaria
sua identidade. Dessa forma, há uma interpenetração desses dois aspectos, o
que impossibilita a separação da identidade pressuposta e a representação
desse indivíduo.
9 Como explicitado na nota de rodapé número 4, da página 20, este estudo tem como base teórico-metodológica a
análise de discurso de linha francesa que faz uso da denominação sujeito. Na AD francesa, o sujeito difere do indivíduo
por estar em uma relação de assujeitamento e de pertencimento a uma memória discursiva. A partir dessa perspectiva,
emprego o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa e também no decorrer desta dissertação quando o assunto
tratado for discutido a partir da análise de discurso de linha francesa. Nesta seção, no entanto, recorro a outras áreas
de conhecimento para melhor compreensão de minhas questões de pesquisa, uma vez que a linguística aplicada
converge em um processo transdisciplinar de produção de conhecimento (MOITA LOPES, 2006). Desse modo, busco
esteio na psicología social (CIAMPA, 1984; 1990; 2004), na sociología (GOFFMAN, 1988) e na filosofía (HABERMAS,
1976) para me aprofundar na discussão do conceito identidade. Esses autores, em suas diferentes áreas de
conhecimento, fazem uso da denominação indivíduo (e não sujeito, como na análise de discurso francesa), uma vez
que não se remetem a questão do assujeitamento e da memória discursiva. Sendo assim, opto por manter a
denominação indivíduo utilizada pelos autores. Porém mantenho o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa,
pois utilizarei os conceitos desenvolvidos por esses autores, dentro da perspectiva que me proponho, a AD francesa.
63
Sendo assim, faz-se fundamental entender que sempre há a
pressuposição de uma identidade (CIAMPA, 1990), isto é, sempre, existe
uma predicação atribuída ao indivíduo pelo outro, ou seja, há uma nomeação
de atributos individuais nas relações que se dão no âmago de uma estrutura
social. Trata-se, então, de uma identidade que é dada, atribuída, outorgada e
mediada pelo outro. Assim, de acordo com essa pressuposição, o sujeito, como
ser social, é um ser-posto (CIAMPA, 1990), uma vez que carrega em si o
conhecimento compartilhado socialmente e as expectativas dos outros no que
se refere ao modo como um determinado indivíduo deve agir e ser.
64
Ciampa (1984) alerta para o fato de que essa nova identidade necessita
de reconhecimento social. Esse novo conteúdo identitário do Ego precisa ser
reconhecido pelo Alter para que esse sentido pessoal se estabilize como
significado socialmente compartilhado, o que permite que se desenvolva uma
nova rede intersubjetiva.
Este trabalho trata do terceiro tipo de estigma proposto pelo autor, uma
vez que, ao se compararem com falantes oriundos de países de língua inglesa,
falantes bilíngues brasileiros colocam-se em uma posição estigmatizada, seja
por sua condição de latino e de ideias preconcebidas acerca de ser brasileiro,
ou por um sentimento de inferioridade pela percepção de diferenças no
sotaque quando comparado a falantes oriundos de países de língua inglesa.
71
Vida entre línguas
Nós temos sempre necessidade
de pertencer a alguma coisa; e
parece que a liberdade plena
seria a de não pertencer a coisa
nenhuma. Mas, como é que se
pode não pertencer à língua
que se aprendeu, à língua com
que se comunica e com que se
escreve?10
10 LOPES, Victor. Entrevista de José Saramago em Língua – Vidas em Português (documentário). Brasil/Portugal,
2004. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=b7cIiiHmFI8 >. Acesso em: dez. 2011.
72
73
SEÇÃO 4
Vida entre línguas
76
4.2 O que é esta língua dita estrangeira?
79
A noção de bilinguismo tornou-se cada vez mais ampla e difícil de
conceituar a partir do século XX. A primeira vista, definir o bilinguismo não
parece ser uma tarefa difícil. De acordo com o dicionário Oxford (2000, p. 117),
bilíngue é definido como: “ser capaz de falar duas línguas igualmente bem
porque as utiliza desde muito jovem”. Na visão popular, ser bilíngue é o mesmo
que ser capaz de falar duas línguas perfeitamente; esta é também a definição
empregada por Bloomfield (1935), que define bilinguismo como o controle
nativo de duas línguas. Opondo-se a esta visão que inclui apenas bilíngues
perfeitos, Macnamara (1967) propõe que um indivíduo 11 bilíngue é alguém que
possui competência mínima em uma das quatro habilidades linguísticas (falar,
ouvir, ler e escrever) em uma língua diferente de sua língua nativa.
Entre estes dois extremos, encontram-se outras definições, como, por
exemplo, a definição proposta por Barker e Prys Jones (1998), pela qual
levantam algumas questões para a classificação de indivíduos bilíngues:
- Devem-se considerar bilíngues somente indivíduos fluentes nas duas
línguas?
- São considerados bilíngues apenas indivíduos com competência
linguística equivalente nas duas línguas?
- Proficiência nas duas línguas deve ser o único critério para a definição
de bilinguismo, ou o modo como essas línguas são utilizadas também deve ser
levado em consideração?
De forma semelhante a Barker e Prys (1998), Li Wei (2000) argumenta
que o termo bilíngue basicamente pode definir indivíduos que possuem duas
línguas. Mas deve-se incluir, entre estes, indivíduos com diferentes graus de
proficiência nessas línguas e que, muitas vezes, fazem uso de três, quatro ou
mais línguas. Seguindo na mesma direção, Mackey (2000) pondera que, ao
definir bilinguismo, devem-se considerar quatro questões:
11 Como explicitado na nota de rodapé número 4 da página 20, embora este estudo tenha como base teórico-
metodológica a análise de discurso de linha francesa, que faz uso da denominação sujeito. Recorro a outras áreas de
conhecimento para melhor compreensão de minhas questões de pesquisa. Desse modo, busco esteio na psicología
social (CIAMPA, 1984; 1990; 2004), na sociologia (GOFFMAN, 1988) e na filosofia (HABERMAS, 1976) Nesta seção,
para me aprofundar na discussão do conceito bilinguismo, recorro a autores que, em suas diferentes áreas de
conhecimento, fazem uso da denominação indivíduo (e não sujeito, como na análise de discurso francesa), uma vez
que não se remetem a questão do assujeitamento e da memória discursiva. Sendo assim, opto por manter a
denominação indivíduo utilizada pelos autores. Porém mantenho o termo sujeito em minhas perguntas de pesquisa,
pois utilizarei os conceitos desenvolvidos por esses autores dentro da perspectiva que me proponho, a AD francesa.
80
- A primeira é referente ao grau de proficiência, ou seja, o conhecimento
do indivíduo sobre as línguas em questão deve ser avaliado. Dessa forma, o
conhecimento de tais línguas não precisa ser equivalente em todos os níveis
linguísticos. O indivíduo pode, por exemplo, apresentar vasto vocabulário em
uma das línguas, mas, nela apresentar pronúncia deficiente.
– A segunda questão proposta por Mackey (2000) destaca a função e o
uso das línguas, isto é, as situações, nas quais o indivíduo faz uso das duas
línguas, também devem ser objeto de estudo ao conceituar o bilinguismo.
– A terceira questão levantada diz respeito à alternância de código.
Segundo o autor, deve ser estudado como e com qual frequência e condições
o indivíduo alterna de uma língua para outra.
- E, finalmente, deve também ser estudado para classificação correta do
bilinguismo, como uma língua influencia a outra e como uma interfere na outra.
Fenômeno este conhecido por interferência.
Diferentemente dos teóricos citados, Maher (2007) contempla em sua
definição de bilinguismo tanto a dimensão linguística como uma dimensão não
linguística:
82
ambas as línguas. Por bilíngue dominante, entende-se o indivíduo que possui
competência maior em uma das línguas em questão.
A segunda dimensão empregada neste estudo está de acordo com a
idade de aquisição da língua estrangeira. São identificados: o bilinguismo
infantil, adolescente ou adulto. O bilinguismo infantil subdivide-se: em
bilinguismo simultâneo e bilinguismo sequencial. No bilinguismo simultâneo, a
criança adquire as duas línguas ao mesmo tempo, sendo expostas as mesmas
desde o nascimento. Por sua vez, no bilinguismo sequencial, a criança adquire
a língua estrangeira ainda na infância, mas após ter adquirido as bases
linguísticas da língua materna, aproximadamente aos cinco anos, conforme
aponta Wei (2000). Quando a aquisição da língua estrangeira ocorre durante o
período da adolescência, conceitua-se esse fenômeno como bilinguismo
adolescente e por bilinguismo adulto, entende-se a aquisição da língua
estrangeira que ocorre durante a idade adulta.
A terceira dimensão, aqui utilizada, dá-se de acordo com o status
atribuído a estas línguas na comunidade em questão. A partir disso, o indivíduo
desenvolverá formas diferenciadas de bilinguismo. A primeira delas é o
bilinguismo aditivo, na qual as duas línguas são suficientemente valorizadas no
desenvolvimento cognitivo da criança e a aquisição da língua estrangeira
ocorre, consequentemente, sem perda ou prejuízo da língua materna. No
entanto, na segunda forma de aquisição, denominada bilinguismo subtrativo, a
língua materna é desvalorizada no ambiente infantil, gerando desvantagens
cognitivas no desenvolvimento da criança e, neste caso, durante a aquisição da
língua estrangeira, ocorre perda ou prejuízo da língua materna.
Finalmente, a quarta dimensão, que emprego neste estudo, trata de
como indivíduos bilíngues podem ser diferenciados em termos de identidade
cultural, obtendo-se bilíngues biculturais, monoculturais, aculturais e
desculturais. Como bilinguismo bicultural, entende-se o indivíduo bilíngue que
se identifica positivamente com os dois grupos culturais e é reconhecido por
cada um deles. No bilinguismo monocultural, o indivíduo bilíngue identifica-se e
é reconhecido culturalmente apenas por um dos grupos em questão. Deve ser
ressaltado que um indivíduo bilíngue pode ser fluente nas duas línguas, mas se
manter monocultural. Já acultural é considerado o indivíduo que renuncia sua
83
identidade cultural relacionada à sua língua materna e adota valores culturais
associados ao grupo de falantes da língua estrangeira. Finalmente, o
bilinguismo descultural dá-se quando o indivíduo bilíngue desiste de sua
própria identidade cultural, mas falha ao tentar adotar aspectos culturais do
grupo falante da língua estrangeira.
De acordo com Hamers e Blanc (2000), deve-se ressaltar que
concepções unidimensionais apresentam alguns pontos desfavoráveis, pois
estas definem o indivíduo bilíngue apenas em termos de competência
linguística, ignorando outras importantes dimensões. Outro ponto em que tais
concepções são falhas é que estas não levam em consideração diferentes
níveis de análises, sejam elas: individuais, interpessoais ou sociais.
Finalmente, considera-se o ponto mais discutível dessas concepções o fato de
não serem embasadas por teorias de comportamento linguístico. Hamers e
Blanc (2000) consideram como princípios básicos de comportamento
linguístico: a constante interação de dinamismos sociais e individuais da língua,
os complexos processos entre as formas de comportamento linguístico e as
funções em que são utilizados, a interação recíproca entre língua e cultura -
autorreguladores que caracterizam todos os comportamentos de ordem
elevada - e consequentemente a língua e a valorização que é central para toda
esta dinâmica de interação.
García (2009), por sua vez, questiona o proposto por Hamers e Blanc
(2000), ao afirmar que os modelos de bilinguismo aditivo e subtrativo têm, em
seu início e em seu fim, sujeitos monolíngues, uma vez que nomeiam uma
língua claramente como a primeira e a língua adicional13 como a segunda,
criando duplos monolíngues e, dessa forma, não respondendo mais à grande
complexidade linguística do século 21. A autora argumenta que o bilinguismo
aditivo, por exemplo, enxerga as práticas linguísticas do sujeito a partir de uma
visão monoglóssica e cria, dessa maneira, espaços monolíngues protegidos,
uma vez que defende a separação completa das línguas. Ilustrando essa ideia,
Cummins (2000) argumenta que o monolinguismo, a partir dessa perspectiva,
pode ser comparado a um uniciclo e, com isso, o bilinguismo seria
13 García (2009) advoga a favor do conceito de língua adicional para se referir à língua estrangeira, uma vez que tanto
a língua materna quanto a estrangeira são constitutivas do sujeito e a nomenclatura língua estrangeira ou segunda
língua podem transmitir a ideia de exterioridade.
84
erroneamente visto como dois uniciclos que podem ser, a qualquer momento,
pedalados de forma independente, como mostra a figura 1 a seguir:
García (2009) complementa que, no século 21, é necessário conceituar
bilinguismo de modo muito além do proposto por Hamers e Blanc (2000). É
necessário, segundo a autora, de rodas que girem, expandam-se e se
contraiam, que sustentem uma a outra e sejam capazes de moverem-se em
direções diversas. Na verdade, faz-se necessário, mais de duas rodas,
acrescenta García (2009). A autora propõe que os conceitos de bilinguismo
aditivo e subtrativo sejam reconsiderados a partir de uma visão
heteroglóssica, que não vê essas línguas como separadas completamente, e,
sim, considere que o sujeito se constitui na imbricação de ambas. Nesse
sentido, Cummins (1984) propõe o que denominou de Common Underlying
Proficiency, como mostra a Figura 1. A ideia é de que as línguas não estão
armazenadas separadamente, pelo contrário as informações de uma interagem
com a outra.
VISÃO MONOGL
ÓSSICA DE LÍNGUA
COMMON UNDERLYING
PROFICIENCY
85
A partir disso, García (2009) propõe os conceitos de bilinguismo
recursivo e dinâmico14. O recursivo, segundo a autora, refere-se a casos nos
quais o bilinguismo é desenvolvido após as práticas linguísticas de uma
comunidade terem sido suprimidas. Nesses casos, o desenvolvimento da
língua materna da comunidade não pode ser considerado uma simples adição
que tem início em um ponto monolíngue, uma vez que a língua ancestral
continua a ser utilizada em cerimônias tradicionais e por alguns membros da
comunidade em diferentes graus. De acordo com García (2009), o bilinguismo,
nesses casos, é recursivo porque alcança novamente algumas práticas
linguísticas ancestrais, enquanto elas são redirecionadas para novas funções
e, com isso, ganham ímpeto para serem projetadas no futuro.
O bilinguismo dinâmico, por sua vez, refere-se a práticas linguísticas
que são múltiplas e se ajustam ao terreno multilíngue e multimodal do ato
comunicativo. Esse modelo, segundo García (2009), está relacionado com o
modo como o Language Policy Division of the Council of Europe15 define o
conceito de plurilinguismo como a habilidade “de usar línguas para os
propósitos de comunicação e para participar de ações interculturais, nas quais
a pessoa, vista como agente social, tem proficiência, em variados graus, em
várias línguas e experimenta diversas culturas”(COUNCIL OF EUROPE, 2000,
p. 168). García (2009) complementa salientando que o bilinguismo dinâmico
se refere aos variados graus de habilidade e usos de múltiplas práticas
linguísticas necessárias para se cruzar fronteiras físicas e virtuais. A autora
criou uma representação gráfica para esse conceito exposta a seguir:
14 O conceito de bilinguismo recursivo será apenas citado, uma vez que, neste trabalho, trato de situações de
bilinguismo dinâmico.
15 Divisão que tem sua base em Strasbourg, França, sendo responsável pela concepção e implementação de
iniciativas para o desenvolvimento e análise de políticas de educação linguística destinadas a promoverem diversidade
linguística e plurilinguismo. Os programas da divisão atendem às necessidades de todos os 48 Estados que ratificaram
a Convenção Cultural Europea.
86
BILINGUISMO DINÂMICO
16 No original, language billingually ou translanguaging, como utilizado por García (2008), que usa language como
verbo to language.
87
O autor não faz uma distinção categórica entre as línguas materna e
estrangeira, no sentido de que seria possível atribuir ao falante nativo uma
determinada identidade ou um determinado conhecimento linguístico que seria
vedado ao falante supostamente não nativo. Na ótica derridiana, há apenas
línguas, das quais o falante pode apropriar-se em maior ou menor grau, mas
que ele nunca é capaz de possuir por completo. Em consequência, também,
não há como sustentar os critérios que costumam ser usados para descrever a
condição bilíngue apresentada anteriormente. Nota-se que, nessa ótica, não se
distingue o bilinguismo de outras formas de domínio linguístico, dado que todos
os falantes são considerados indivíduos plurilíngues e que desejam alcançar
um idioma absoluto que se apresenta mais como promessa, como aspiração
última do ser humano, cujo acesso, no entanto lhe é interditado, uma vez que
sempre, em sua fala, há o vestígio do outro. Por isso, na perspectiva
derridiana, não se fala várias línguas apenas quando mesclamos línguas
nacionais, mas sempre, visto que é preciso se apropriar da fala do outro para
poder significar.
Essa sensação de falta faz, segundo Derrida (2001), com que as
pessoas construam próteses com o intuito de supri-la ou compensá-la. O autor
destaca dois tipos de próteses: (i) a procura de história e de filiação, isto é, a
recuperação ou invenção de uma narrativa da história familiar e (2) a exigência
compulsiva de uma pureza da língua, ou seja, a preocupação exacerbada com
a correção linguística.
Esta seção foi organizada em três partes. Inicialmente, enfatizei o elo
língua, sujeito e identidade, apoiando-me em Revuz (1998), que tem como
base uma concepção lacaniana de sujeito, constituído pela e na linguagem. A
seguir, tive como objetivo interrogar a nominação materna e estrangeira
atribuída à língua. Para tanto, apoiei-me nas pesquisas de Coracini (2003,
2007), Revuz (1998) e Maher (1998) filiadas à linguística aplicada; nos estudos
psicanalíticos de Fages (1977), Prasse (1997) e Melman (1992), que explicam
o conceito de interdição a partir da concepção lacaniana da constituição do Eu
(LACAN, 1966/1998), e no filósofo Derrida (2001). Na terceira parte, discuti a
evolução dos conceitos de bilinguismo, partindo de concepções
unidimensionais como as de Bloomfield (1935), Macnamara (1967), Barker e
88
Prys (1998), Li Wei (2000) e Mackey (2000). Discorri também sobre
concepções teóricas que contemplam em sua definição de bilinguismo, tanto a
dimensão linguística como a não linguística, como Maher (2007), Hamers e
Blanc (2000), Heye (2003) e Dias e Salgado (2010), que trabalham com o
conceito de bilingualidade, e García (2009) e Cummins (1984; 2000), que
advogam a favor de uma visão heteroglóssica de língua. Por fim, introduzi a
perspectiva derridiana (2001), que discute a construção de próteses por
bilíngues.
Esta seção marca o término da fundamentação teórica e teve como
objetivo descrever os pilares sobre os quais este trabalho se apoia. Marca
também o início da descrição dos aspectos metodológicos, que devem
possibilitar uma melhor compreensão de como esta pesquisa foi desenvolvida.
89
90
PARTE II – DO QUE SE DESCOBRIU NO CAMINHO
92
Trajetória
É inútil procurar encurtar
caminho e querer começar,
já sabendo que a voz diz
pouco, já começando por ser
despessoal. Pois existe a
trajetória, e a trajetória não
é apenas um modo de ir. A
trajetória somos nós
mesmos. Em matéria de viver
nunca se pode chegar
antes17.
17 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974, p. 213.
93
94
SEÇÃO 1
Trajetória
95
não apenas porque a sociedade está diferente, mas porque estas mudanças
exigem processos de produção de conhecimento que impliquem em mudanças
na vida social.
Indo mais além, Moita Lopes (2006) discorre sobre o impacto dos
avanços tecnológicos e da mídia em nossa sociedade. As novas tecnologias da
informação estão integrando o mundo em redes globais de comunicação e têm
provocado modificações no estilo de conduta, atitudes, costumes e tendências
das populações mundiais. Dessa forma, as pessoas estão cada vez mais
expostas a uma multiplicidade de projetos identitários. Nesse sentido, Hall
(2005) afirma que a “identidade torna-se uma celebração móvel: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL,
2005, p. 12).
A fim de traçar um quadro das implicações dessas percepções da vida
social atual e dos modos de produzir conhecimento, nos dias de hoje, para uma
LA contemporânea, Moita Lopes (2006) sugere que a LA do século XXI seja
pautada em quatro pontos básicos:
1. a imprescindibilidade de uma LA híbrida ou mestiça;
2. a essencialidade da LA explodir os limites entre teoria e prática;
3. a necessidade de mudar o sujeito da LA;
4. a importância da LA ter como novos pilares a ética e o poder.
Farei, a seguir, algumas reflexões a respeito de cada um dos pontos
elencados com o propósito não só de esclarecê-los, mas também de localizá-
los em minha pesquisa.
Quanto à imprescindibilidade de uma LA híbrida ou mestiça, Moita Lopes
(2006) sugere que esta seja entendida não mais como uma disciplina, mas sim
como uma área de estudos em que pesquisadores, oriundos de diferentes
disciplinas, convirjam em um processo transdisciplinar de produção de
conhecimento. Outro ponto central é a necessidade de entender a LA como
uma área de indisciplina que se preocupa em compreender a questão da
pesquisa na perspectiva de várias áreas de conhecimento, com o objetivo de
integrá-las.
96
Nesta vertente, minha pesquisa rejeita o enquadramento em uma
disciplina apenas ou a subordinação à linguística como disciplina mãe. Ao
contrário, as teorizações aqui presentes pretendem estar mais próximas do que
Moita Lopes (2006) propõe como uma linguística aplicada indisciplinar, isto é,
que transgride os limites disciplinares fechados. Como, nesta pesquisa,
entendo identidade como algo que não pode ser definido como fixo ou
preestabelecido, e sim como um processo em constante mudança, é
necessário, para entender a identidade do sujeito, conhecer sua ecologia,
revelada implícita ou explicitamente em seu discurso e em suas ações, o que
implica ir muito além de estudos linguísticos. Para se atingir uma compreensão
mais ampla da vida social vivida “pelas pessoas de carne e osso no dia-a-dia”
(MOITA LOPES, 2006, p.88), é preciso entender a complexidade das relações
envolvidas nas práticas sociais. É preciso revelar sua historicidade, os jogos de
poder, os interesses, os sentidos dos envolvidos na ação. Para isso, torna-se
imprescindível acessar conhecimentos desenvolvidos por outras disciplinas.
Diante desse desafio, optei pelo viés teórico que me possibilitasse dialogar e
compartilhar questões com várias disciplinas na abordagem do mundo e da
vida desses sujeitos sociais situados em um contexto sócio-histórico, político e
ideológico específico, como demonstra a figura a seguir:
97
UMA VISÃO TRANSDISCIPLINAR
PARA ANÁLISE DOS DADOS Norton (1995)
Bagno (2002)
Coracini (1999; 2003;
2007)
Revuz (1998)
Lacan (1966;1972-73)
Melman (1992) García (2009)
Cummins (1984; 2000)
Moscovici (1984;2003)
Psicanálise
Jodelet (1990;2001)
Abric (2000) Estudos da
Ciampa (1984;1990;2004)
Psicologia linguagem
Social
ANÁLISE
DOS Pêcheux (1966; 1969;
1975; 1993; 1997; 2002)
Goffman (1988)
DADOS Orlandi (1983; 1989;
1993; 1996; 1998; 1999;
Foucault
2005; 2006)
(1969;1970;1979;1987; AD
1999)
Hall (2005)
Sociologia Francesa
Althusser (1985;1996)
Filosofia
Derrida (2001)
98
é necessário entender que a AD francesa não pretende ser nem uma disciplina
autônoma nem uma disciplina auxiliar, o que pretende é trabalhar o objeto
discursivo como sendo um objeto-fronteira nos limites das divisões
disciplinares, sendo constituída simultaneamente de uma materialidade
linguística e de uma materialidade histórica. Sobre esse ponto, aliás, é preciso
salientar que é inapropriado conceituar a AD francesa como uma disciplina
interdisciplinar, como alguns teóricos insistem em fazer. A esse respeito,
Orlandi (1996) atribui à AD francesa a condição de disciplina de entremeio,
uma vez que sua constituição se dá às margens das chamadas ciências
humanas, entre as quais, ela opera um profundo deslocamento de terreno.
Mais uma vez, é importante reiterar que os conceitos que a AD francesa traz de
outras áreas, como a psicanálise, o marxismo, a linguística e o materialismo
histórico, ao integrarem-se ao corpo teórico do discurso, deixam de ser aquelas
noções com os sentidos estritos originais e se ajustam à especificidade e à
ordem própria da rede discursiva.
99
ideológico e heterogêneo, interpelado pelo inconsciente constituído na e pela
linguagem e, com isso, descentrado, clivado, fragmentado e desejante.
Com relação à importância da LA ter como novos pilares a ética e o poder,
Moita Lopes (2006) salienta a importância de pesquisas que têm a ética como
horizonte norteador. Dessa forma, as reflexões a respeito das noções de ética
contribuem para a realização de pesquisas responsáveis que não prejudiquem
os próprios pesquisados, como ocorre neste trabalho.
Somando-se a isso, faz-se necessário, ao término desta reflexão,
salientar que minha pesquisa tem como foco apontar deslocamentos
identitários nos discursos de falantes de mais de uma língua, o que vai
diretamente ao encontro da afirmação de Moita Lopes (2006) ao definir LA
contemporânea:
101
questionário (vide Apêndice A) a fim de coletar textos escritos dentro de um
roteiro específico.
Frente a essas definições, o corpus deste estudo é um corpus
experimental e previamente preparado, uma vez que, ao elaborar as perguntas
do questionário, tinha como objetivo responder minhas perguntas de pesquisa.
Segundo Nunan (1992), o questionário pode ser fechado ou aberto. No
questionário fechado, as possibilidades de resposta são determinadas pelo
pesquisador; ao passo que, no aberto, o participante tem a possibilidade de
escolher o que dizer e como dizer. Apesar do questionário fechado ser mais
fácil para a coleta e análise, optei pelo tipo aberto, pois para levantar as
representações desses participantes acerca de quem são e das línguas que os
constituem se fez necessário criar um espaço para que compartilhassem
narrativas de quem são ou esperavam ser.
A parte I do questionário teve como objetivo traçar o perfil dos
participantes que compõem este estudo. As perguntas 1, 2 e 3, da segunda
parte, tinham como objetivo verificar quais línguas eram utilizadas pelos
participantes18, se as utilizavam em alguma das esferas de suas vidas19, e
qual tipo de bilinguismo desenvolveram, simultâneo ou sequencial. As demais
perguntas foram formuladas a fim de levantar as representações dos sujeitos
sobre sua condição bilíngue, suas línguas e os povos com quem se
relacionam.
Vale ressaltar que, no decorrer da análise, constatei que não se fazia
necessário utilizar todas as perguntas do questionário para responder às
minhas perguntas de pesquisa. Com isso, as respostas obtidas para as
perguntas 4 e 11 do questionário não foram utilizadas na análise por não
estarem relacionadas às perguntas de pesquisa.
A seguir, retomo os objetivos deste estudo e as perguntas de pesquisa
referentes aos mesmos. Relaciono, também, as perguntas realizadas no
questionário utilizado.
18 Apenas, ao longo do estudo, optei por trabalhar apenas com falantes de inglês e português. Opção que justifico na
introdução e a seguir, no item 1.4 desta seção.
19 Essa é uma condição necessária para ser participante desta pesquisa. Falantes de inglês e português, que não
utilizavam as duas línguas em suas interações diárias em alguma esfera de suas vidas, não se tornaram participantes
desta pesquisa.
102
Quadro 1 - Objetivos, perguntas de pesquisa e perguntas do questionário
1) Estudar a imbricação da língua 1) Como é a relação desses sujeitos Qual de suas línguas é mais
materna e da língua estrangeira com as línguas que os constituem? importante para você? Por quê?
na constituição da subjetividade Qual de suas duas línguas você mais
de sujeitos que falam mais de aprecia? Por quê?
uma língua.
20 As repostas a essa pergunta forneceram-me dados para responder a duas de minhas perguntas de pesquisa: Como
as identidades desses sujeitos foram se (trans)formando na sua relação com as línguas? e Como estes sujeitos ao se
enunciarem constroem imagens de si e do Outro?
103
e-mail e, na análise, são diferenciadas as respostas obtidas por meio do
questionário pela sigla CP – contato posterior.
21 Entende-se, neste trabalho, por bilíngues simultâneos, indivíduos que adquiriram as duas línguas ao mesmo tempo,
sendo expostos às mesmas desde o nascimento (HAMERS; BLANC, 2000).
22 Os bilíngues sequenciais, por sua vez, adquiriram a língua estrangeira após terem adquirido a base linguística da
língua materna (HAMERS; BLANC, 2000).
105
instrução a partir dos dois anos de idade, quando ingressou em uma escola
americana. Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.
B7: 34 anos, professora em uma escola bilíngue inglês/português.
Aprendeu o português em casa e o inglês em uma escola internacional, na qual
ingressou ainda na primeira infância. Reside atualmente no Brasil, na cidade de
São Paulo.
B8: 41 anos, dona de casa. Aprendeu o português em casa e o inglês
em uma escola internacional, quando ingressou ainda na primeira infância.
Reside atualmente no Brasil, na cidade de São Paulo.
B9: 43 anos, empresária. Aprendeu o português com a família brasileira
e o inglês ao morar nos EUA, quando criança. Reside atualmente no Brasil, na
cidade de São Paulo.
A seguir, exponho um quadro no qual essas informações foram
organizadas para melhor visualização.
106
Quadro 2: Bilíngues simultâneos participantes da pesquisa
Participante Idade Profissão Origem Origem Como Como Residência
do pai da mãe aprendeu aprendeu
inglês português
B1 24 Professora de Americano Brasileira Família do Família da São Paulo –
inglês pai mãe e escola Brasil
B2 27 Professora de Americano Brasileira Família do Família da São Paulo –
área geral pai mãe e escola Brasil
B3 31 Coordenadora de Brasileiro Brasileira Foi Família do São Paulo –
uma escola de escolarizada pai e da mãe Brasil
idiomas na Irlanda,
onde residia
B4 57 Diretora de Americano American Com a Viveu entre São Paulo –
escola a família dos os EUA e o Brasil
pais. Brasil até
completar a
universidade
B5 33 Assistente Americano American Com a Viveu no Miami, EUA
administrativo a família dos Brasil por
pais e na um longo
escola período
B6 37 Professor Brasileiro Brasileira Com a Estudou em São Paulo –
universitário família dos uma escola Brasil
pais internacional
B7 34 Professora em Brasileiro Brasileira Com a Estudou em São Paulo –
uma escola família dos uma escola Brasil
bilíngüe pais internacional
B8 41 Dona de casa Brasileiro Brasileira Com a Estudou em São Paulo –
família dos uma escola Brasil
pais internacional
B9 43 Empresária Brasileiro Brasileira Com a Residiu nos São Paulo –
família dos EUA quando Brasil
pais criança
Fonte: Dados da Pesquisa.
108
Quadro 3: Bilíngues sequenciais participantes da pesquisa
109
1.5 Mo(vi)mento de análise
110
Procedimentos metodológicos
adotados nesta pesquisa
Recorte dos
enunciados e
suas
Definição de paráfrases
objetivo,
objeto e
perguntas a Localização das
fazer representações
encontradas nos
enunciados
Volta ao corpus
para efetuar Análise
outros recortes
específicos e a do
teoria para o
confrontamento corpus Agrupamento
com os dados
dos enunciados
a partir das
representações
encontradas
Análise das
representações
que revelam Análise das
aspectos da representações
identidade dos quanto a sua
sujeitos posição
ideológica
111
entrecruzam e se dispersam. Pode-se dizer que um recorte é um fragmento da
situação discursiva e a análise empreendida efetua-se por meio de seleção
dessas unidades extraídas do corpus, ou mesmo de recortes de recortes, de
acordo com os objetivos da pesquisa. A partir desses recortes, é possível
analisar cada enunciado como Foucault (1969/1995, p. 124) o concebe,
“elemento suscetível de ser isolado e capaz de entrar em jogo de relações com
outros elementos semelhantes a ele”. Analisar os enunciados exige uma
reflexão sobre as regras que estabelecem suas condições de existência, de
aparição, sua produção na história, quais são suas correlações com outros
enunciados, qual seu papel desempenhado em meio a outros neste jogo
enunciativo, seus limites e qual a memória retomada e efeitos de sentidos
produzidos neste contexto.
Após o recorte dos enunciados, localizei as representações existentes
acerca:
a) das línguas inglesa e portuguesa faladas pelos sujeitos desta
pesquisa;
b) do Brasil e dos países relacionados à história dos participantes;
c) do povo brasileiro e do povo relacionado ao país que os participantes
mantém relação;
d) de sua condição bilíngue.
Esse conjunto de representações foi delimitado, pois, a partir dessas,
seria possível responder às perguntas desta pesquisa e compreender o
fenômeno estudado. Como afirmam Freire e Lessa (2003, p.174), as
representações são:
[...] maneiras socialmente construídas de perceber, configurar,
negociar, significar, compartilhar e/ou redimensionar fenômenos,
mediadas pela linguagem e veiculadas por escolhas lexicais e/ou
simbólicas expressivas que dão margem ao conhecimento de um
repertório que identifica o indivíduo e sua relação sócio-histórica com
o meio, com o outro e consigo mesmo.
112
A seguir, separei o conjunto de enunciados de acordo com as
representações encontradas e os analisei quanto à sua posição ideológica e no
tocante aos aspectos identitários que podiam suscitar.
Cabe mencionar que, no decorrer das análises, o retorno ao corpus foi
constante, assim como o reajustamento dos agrupamentos, considerando a
exclusão ou a inclusão de enunciados.
Com a trajetória da pesquisa delineada, tenho subsídios para o trabalho
com os dados. Dessa maneira, apresentarei, na próxima seção, a discussão
dos resultados a partir da análise do corpus.
113
Entre ditos e não-ditos
Chega mais perto e contempla as
palavras. Cada uma tem mil faces
secretas sob a face neutra.
E te pergunta, sem interesse pela
resposta, pobre ou terrível, que lhe
deres: Trouxeste a chave?23
23 DRUMMOND, C. Procura da poesia. In: A Rosa do Povo. São Paulo: Editora Record, 1945/2000. p. 12.
114
115
SEÇÃO 2
Entre ditos e não ditos
Para iniciar esta seção retomo como se deu a coleta de dados neste
trabalho e discorro sobre a organização desta seção.
O trabalho de campo foi realizado nos meses de agosto e setembro de
2010. É importante salientar que a seleção dos participantes foi definida
obedecendo a quatro critérios:
116
respondiam ou possuíam relações com meus objetivos. A seguir, localizei as
representações existentes acerca:
a) das línguas inglesa e portuguesa que os sujeitos desta pesquisa
falam;
b) do Brasil e dos países relacionados à história dos participantes;
c) do povo brasileiro e do povo relacionado ao país com que os
participantes mantêm relação;
d) de sua condição bilíngue.
Depois de localizá-las, separei e agrupei os enunciados de acordo com
as representações encontradas e os analisei quanto à sua posição ideológica e
quanto aos aspectos identitários que podiam suscitar para que, desse modo, as
perguntas de pesquisa fossem respondidas. No quadro a seguir, relaciono as
perguntas desta pesquisa e as representações, que, após analisadas à luz da
AD francesa, permitiram-me responder às perguntas que norteiam este
trabalho:
117
A análise foi organizada em três seções: (i) Entre o desejo da
completude e a falta do sujeito; (ii) Entre o mito, o possível e o desejo do outro
e (iii) Entre as diversas concepções do eu. Essas seções foram organizadas a
partir das representações localizadas no discurso dos participantes a fim de
responder às perguntas que norteiam esta pesquisa. Na sequência, apresento
um quadro no qual relaciono as seções e as representações enfatizadas:
118
Entre o desejo da completude e a falta do sujeito
119
2.1 Entre o desejo da completude e a falta do sujeito
24 PESSOA, Fernando. Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. In: Poesia de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática,
1993. p.132.
120
ressaltar que as representações dessas duas línguas se entrecruzam e se
constituem a todo o momento.
As representações, aqui discutidas, foram discursivamente construídas
por meio da utilização de adjetivos, como, por exemplo, trabalhosa, complexa,
difícil, simples e fácil, como se percebe a seguir:
B6: O português é uma língua mais trabalhosa, que requer mais esforço para
construção de alguns significados.
S5: Sinto um orgulho muito grande por ser falante de uma língua tão complexa
quanto o português.
S8: Essa pergunta é difícil de responder. Acho a língua inglesa mais direta,
simples, econômica que a língua portuguesa e aprecio isso. Vejo beleza nessa
simplicidade. Gosto muito de ler textos em inglês pelo deleite que sinto.
B5: Eu sou mais fluente em Inglês, mas prefiro e aprecio muito mais o
Português. Por mais complicado que seja a gramática, ela é muito bonita.
B6: O português é uma língua mais trabalhosa, que requer mais esforço para
construção de alguns significados.
S8: Essa pergunta é difícil de responder. Acho a língua inglesa mais direta,
simples, econômica que a língua portuguesa e aprecio isso. Vejo beleza
nessa simplicidade. Gosto muito de ler textos em inglês pelo deleite que
sinto.
122
S5: Sinto um orgulho muito grande por ser falante de uma língua tão complexa
quanto o português.
25 Dentre os nove bilíngues simultâneos, seis trabalham no ambiente escolar: quatro como professores, um como
coordenador e um como diretor. Dentre os nove bilíngues sequenciais, quatro trabalham com educação e um trabalha
na área acadêmica, com pesquisa.
123
nossa sociedade, mas encontram-se em abundância no ambiente da maioria
dos participantes desta pesquisa: a escola.
Diante disso, é necessário considerar que, ao expressarem suas ideias
sobre o português, esses sujeitos não estão apenas relatando suas opiniões.
Enquanto sujeitos, interpelados pelas condições socio-históricas, fazem uma
escolha por determinada perspectiva discursiva porque estão envolvidos em
um jogo de imagens do qual sua própria imagem também é parte integrante.
Bagno (2002) afirma que o grande problema do ensino de português no
Brasil é que esse ensino, até hoje, depois de mais de cento e setenta anos de
independência política, continua com os olhos voltados para a norma linguística
de Portugal. As regras gramaticais consideradas “certas” são aquelas usadas
por lá, que servem para a língua falada lá, que retratam bem o funcionamento
da língua que os portugueses falam (BAGNO, 2002).
Portanto essas vozes, que perpassam o dizer dos participantes desta
pesquisa, estão imbuídas da ilusão de que os portugueses falam e escrevem
tudo certo e que seguem rigorosamente as regras da gramática ensinadas na
escola.
Para os participantes desta pesquisa, essa língua “perfeita” que pertence
ao povo português, pertenceria, no Brasil, apenas a indivíduos especiais, como
se pode verificar no enunciado a seguir:
124
interpeladas pelo seu inconsciente, ancorando suas representações de língua
ideal. Essa língua ideal passa a fazer parte do imaginário do sujeito que
começa a desejá-la e, dessa forma, seu desempenho linguístico é visto como
insuficiente e inacabado, sempre vislumbrando uma falta que é constitutiva ao
sujeito.
A sensação de falta faz, segundo Derrida (2001), com que as pessoas
construam próteses com o intuito de supri-la ou compensá-la. Nesse caso, a
prótese manifesta-se a partir da exigência compulsiva de uma pureza da
língua, ou seja, uma preocupação exacerbada com a correção linguística. É
como se os participantes desta pesquisa buscassem possuir a língua, dominá-
la, torná-la deles, mas, ao mesmo tempo, reconhecem essa impossibilidade
pelo encontro com a alteridade.
Faz-se importante ressaltar que essa dificuldade atribuída ao português
nem sempre é encarada negativamente, como se observa nas sequências a
seguir:
S5: Sinto um orgulho muito grande por ser falante de uma língua tão complexa
quanto o português.
B5: Eu sou mais fluente em Inglês, mas prefiro e aprecio muito mais o
Português. Por mais complicado que seja a gramática, ela é muito bonita.
S8: Essa pergunta é difícil de responder. Acho a língua inglesa mais direta,
simples, econômica que a língua portuguesa e aprecio isso. Vejo beleza
nessa simplicidade. Gosto muito de ler textos em inglês pelo deleite que
sinto.
127
2.2 Entre o mito, o possível e o desejo do outro
9
8
7
6
5 Preocupação com o
sotaque
4
Não preocupação com o
3
sotaque
2
1
0
Bilíngues Bilíngues
Simultâneos Sequenciais
26 DERRIDA, J. O monolinguismo do Outro ou a prótese da origem. Tradução de Fernando Berardo. Porto: Campo das
Letras, 2001. p.14.
128
conformidade com um discurso que atribui ao falante nativo o domínio da
língua, como se pode observar nas sequências discursivas desta seção:
S4 Sempre me preocupei, mas não sei bem a razão. Acho que é um pouco
como música, me incomoda falar com sotaque carregado, como se alguém
estivesse cantando desafinado.
Pode-se inferir, desses relatos, que falar com sotaque, ou seja, ser
identificado como brasileiro, remete a um falar que é feio, comparado por S4 a
um cantar desafinado. Possivelmente, o que se tangencia, a partir desses
recortes, é a estranheza que provoca a língua do outro, pois essas
formulações trazem indícios de que esses bilíngues simultâneos e sequenciais
não se veem inscritos nessa outra ordem simbólica e, desse modo, por
oposição, seria apenas o nativo (monolíngue?) que desfrutaria do conforto de
sua língua materna.
Na tessitura desses dizeres, percebe-se que o falar como nativo remete
à ilusão de familiaridade e acolhimento experimentada na língua materna.
Essas considerações trazem à tona a problematização sobre o que é língua
materna e o que é língua estrangeira discutida na seção “Vida entre línguas”,
o que reforçaria a ideia de que os sentimentos vivenciados na experiência de
ser/estar entre línguas não são tão facilmente mensuráveis; antes, não
passam de ilusão, porque, a todo o momento, o sujeito vê-se frente ao
desconhecido na língua que pensa ser sua, ao inesperado que não se quer
enfrentar ou ao mal dito que não se deseja não ter dito. Sendo assim, a
sensação de estranha familiaridade e de familiar estranheza perpassa a
inscrição do sujeito, seja na língua materna ou na estrangeira, fazendo com
que o “domínio” dessas línguas seja sempre da ordem do semelhante, jamais
da totalidade.
129
Vale ressaltar que esse desejo de se aproximar do lugar do falante
nativo também aponta para o processo de identificação com a língua do outro,
que passa a ser constitutivo da identidade do sujeito bilíngue e, com isso,
desloca sua identificação com a língua materna e com o lugar que ela ocupa.
Na mesma direção, vislumbra-se, no enunciado de B2, a pressuposição
da identidade (CIAMPA, 1990), isto é, há uma nomeação de atributos
individuais nas relações que se dão no âmago de uma estrutura social. Nesse
caso, esses atributos individuais referem-se a como o sujeito bilíngue deve ou
não falar.
130
enunciador pretende manter quanto a esse “dever”, visto que seu uso delimita
espacial e discursivamente a palavra que a vincula a uma determinada
formação discursiva e indica uma não coincidência das palavras com elas
mesmas.
Na mesma direção, B7, S7 e S8 também imprimem, em seus relatos,
marcas que funcionam como um deslize do enunciador na sua tentativa de
apagar a contradição. Ao justificar sua preocupação ou falta dessa, o uso da
subordinada adversativa “mas” produz uma significação de contradição. Há,
nesses dizeres, uma forma de escamoteamento das lacunas que esses
sujeitos possuem em relação ao seu sotaque em língua inglesa.
B7 Não. Na verdade, por falar desde muito nova, não. Procuro sempre falar
corretamente, mas não me preocupo.
S4 Sim. Sempre me preocupei, mas não sei bem a razão. Acho que é um
pouco como música, me incomoda falar com sotaque carregado, como se
alguém estivesse cantando desafinado.
131
Ao se comparar a justificativa enunciada por S8 com a explicação
proferida por B2, pode-se constatar a multiplicidade de vozes que atravessam o
discurso de indivíduos bilíngues. Desse modo, há bilíngues interpelados pelo
discurso que versa sobre a competência ideal dos falantes nativos.
Semelhantemente, B2 apoia-se na decorrente representação de que o nativo
sabe a língua perfeitamente e serve de parâmetro para dizer o que está certo
ou errado, consequentemente, para que se avalie quem é, ou não é, um falante
competente da língua.
Por sua vez, S8, primeiramente, afirma que se preocupa com sua
pronuncia porque quer ser compreendido e quer falar bonito. A seguir,
questiona o que seria falar como nativo:
S8 Mas não acho que o objetivo de quem aprende ou ensina língua deva ser
falar como nativos (isso seria se preocupar com o sotaque, eu acho). Até
porque, o que é falar como nativos?
132
B4 Não tenho sotaque em nenhuma das línguas... pelo contrário nos USA
ninguém consegue dizer de onde sou.
133
e reprimendas, como se pode observar em S7 e S2 ao relatarem o porquê seu
sotaque é motivo de preocupação:
S2 Quando falo com falantes nativos me preocupo porque vejo como eles
tratam falantes que tem determinados sotaques (inclusive outros falantes
nativos). Ou seja, não ser vítima de preconceito linguístico é, sem dúvida,
uma preocupação minha.
S7 Me preocupo com meu sotaque porque já fui discriminada em meu
ambiente de trabalho por não ter sotaque de estrangeiro ou por meu sotaque
não ser o mais adequado.
134
o identifica como brasileiro e, por conseguinte, encontra-se vulnerável, na visão
dos enunciadores, para ser vítima de preconceito linguístico.
Instada a explicar como foi discriminada em seu ambiente de trabalho,
S7 relata:
27 Como explicitado no capítulo da metodologia, do conjunto dos dezoito questionários, senti a necessidade de
contatar quatro participantes para maiores esclarecimentos a respeito de respostas a questões específicas. Esses
contatos foram feitos por e-mail e na análise são diferenciados das respostas obtidas por meio do questionário pela
sigla CP – contato posterior.
135
forma como ela fala, e muitas vezes o sotaque fala mais alto que a
gramática ou o vocabulário empregado.
136
B6 Presto atenção e tento neutralizar ao máximo o regionalismo do meu
sotaque. Não é tão difícil por ter muito conhecimento técnico na área.
137
GA28). É como se esses países tivessem um poder consideravelmente grande
sobre o uso da língua inglesa e, sobretudo, sobre os seus outros usuários, e
esse poder leva muitos, como os participantes desta pesquisa, a crerem que a
língua pertence a americanos e ingleses, e é apenas disponibilizada a falantes
de outros países, como os brasileiros. Essa visão também é compartilhada no
curso exposto a seguir, que faz uma “revisão profunda dos sons, ênfase e
entoação do inglês americano”:
28 RP – Received Pronunciation, também chamada the Queen’s English (inglês da Rainha), é o sotaque considerado
padrão na Inglaterra.
GA – General American – é o sotaque considerado padrão, ou não regional, nos Estados Unidos.
138
S1 Me preocupo (mas não muito) com o sotaque porque temo comprometer a
qualidade da comunicação.
140
S2 Ter que constituir minha própria identidade fora do meu país de origem dá
mais trabalho do que imaginei, porque as pessoas já têm uma série de
ideias preconcebidas sobre como um brasileiro é ou deve ser. Fica mais
difícil se constituir como indivíduo, independentemente da minha fluência
em inglês.
S2: Sou do tipo que conhece a língua bem demais pra ser considerado
outsider do ponto de vista linguístico, mas é considerado outsider do
ponto de vista cultural.
S2-CP: Eis que eu sou um problema pras pessoas que operam com essas
definições. Sou branco demais pra ser chamado de latino, não falo inglês
com o sotaque que seria esperado, estou de fato morando aqui, mas não
faço nenhuma espécie de trabalho braçal, sou estudante de doutorado
(nível de instrução que poucos estadunidenses têm), sou financeiramente
independente e, como se tudo isso não bastasse, vegetariano (ou seja,
não conte comigo pra ir naquela "Brazilian barbecue place" da qual você
ouviu falar).
143
Fica evidente, pelo discurso dos demais sujeitos, que este movimento
de distanciamento apresentado por S2 não é partilhado pelos outros sujeitos
participantes desta pesquisa. Enquanto S2 caminha para um processo
emancipatório, observa-se que os demais sujeitos estão engajados em um
processo de reposição de suas identidades pressupostas.
Para complementar esta seção, acredito ser importante retomar que a
noção de identidade está intimamente ligada aos desejos de reconhecimento,
afiliação e segurança e que é por meio da língua que o sujeito negocia a noção
do “eu”. Ao falar, os sujeitos estão envolvidos na construção e na negociação
de suas identidades. Esse falar, de acordo com os sujeitos participantes desta
pesquisa, está intimamente relacionado à dicotomia sotaque x não sotaque.
Porém fica evidente, conforme me aprofundo na análise dos questionários, que
a questão do sotaque se insere numa discussão maior, na qual se envolve
poder, ideologia e representações sociais. A seguir, apresento, em um quadro,
os aspectos relacionados à constituição identitária dos bilíngues encontrados
na análise realizada nesta parte da seção:
Nesta seção, trabalhei com as representações atinentes à língua
inglesa, sobre o Brasil e o brasileiro a fim de mostrar: (i) a irrupção de discursos
em torno da identidade, (ii) apontar a existência de estigma relacionado ao fato
de ser brasileiro e de um sentimento de inferioridade por conta de diferenças
na produção oral, o sotaque, quando se comparam a falantes oriundos de
países de língua inglesa.
Na seção seguinte, localizo as representações dos participantes sobre o
que é ser bilíngue, a partir de três perguntas: (i) Qual língua você considera
mais importante? Por quê?(ii) Você se considera bilíngue? Por quê? e (iii) O
fato de se comunicar em mais de uma língua lhe modificou como indivíduo?
144
3. Entre as diversas concepções do eu
3.1 Da importância
29 CAIEIRO, A. (Fernando Pessoa). O Guardador de Rebanhos. In: POEMAS de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática.
1964/1993. p.64.
145
partir das respostas obtidas, foi possível a localização de representações sobre
a imbricação (ou não) da língua portuguesa e da língua inglesa. Considerando
que a língua é um construto fundamental da constituição identitária do sujeito,
conhecer essas representações sobre as línguas possibilita conhecer os
modos de subjetivação daqueles que as falam e são por elas constituídos.
Retomando a pergunta que norteia esta parte, dentre os nove bilíngues
simultâneos participantes desta pesquisa, sete (77,8%) afirmam ter o inglês
como sua língua de maior importância, um (11,1%) afirma que o português é,
para ele, a língua mais importante e um sujeito (11,1%) declara-se em dúvida,
como se pode visualizar no gráfico que segue:
B5 Depende – o português pela sua beleza, mas por outro lado o inglês pela
sua praticidade no mundo.
S1 O inglês é muito importante, pois sou um profissional que uso o inglês como
a ferramenta principal de trabalho. O português se relaciona com minha
formação pessoal e com minha vida de várias formas.
147
S5 Apesar de o inglês ser essencial para meu trabalho em escola bilíngue, o
português é a língua falado no meu país, a língua que mais utilizo para me
comunicar com as pessoas ao meu redor.
S1 O inglês é muito importante, pois sou um profissional que uso o inglês como
a ferramenta principal de trabalho. O português se relaciona com minha
formação pessoal e com minha vida de várias formas. O português é
minha identidade.
149
também me traz prestígio, sendo responsável até por alterações de salário,
caso possua mais conhecimento do que seus parceiros profissionais.
151
hegemônico de superioridade que determina que uma língua seja mais
importante do que as demais por seu valor mercadológico.
Além disso, faz-se importante lembrar que esse discurso postula que a
disseminação da língua inglesa é sempre positiva em qualquer situação e
região. Nessa perspectiva, há um apagamento do fato de que o inglês atende a
interesses específicos de certas classes e, assim, opera como um meio
importante de propagação de desigualdades sociais, políticas e econômicas.
Somando-se a isso, é possível vislumbrar, nas posições enunciativas
analisadas, a importância atribuída à representação do inglês como língua
internacional. Essa representação está associada à outra representação, que é
a da língua, como instrumento de comunicação. Isso leva o enunciador a
atribuir à língua uma função utilitária, e dela depreende-se o desejo do
enunciador de possuir uma língua que é reconhecida pelo outro, o estrangeiro.
Os dizeres de B5 e B8 ilustram bem essa ideia:
B5 Depende – o português pela sua beleza, mas por outro lado o inglês pela
sua praticidade no mundo.
B9 Não sei, pois creio que não domino nenhuma delas bem e tenho
dificuldade com todas.
153
constituem são línguas que funcionam separadamente e, sendo assim, são
puras e homogêneas. Porém, de acordo com o discutido na seção “Vida entre
línguas”, apreende-se que não há língua com tais características. Segundo
Coracini (2007), a língua estrangeira não é um sistema vazio de sentido, pois
traz consigo uma carga ideológica que coloca o aprendiz em conflito
permanente com a ideologia da língua materna.
Por sua vez, B9 afirma não dominar nenhuma língua. O termo dominar,
por si só, já é problemático. Primeiramente, porque uma língua não é passível
de dominação, uma vez que os sentidos lhe escapam. Seria como se, ao
dominar uma língua, o indivíduo pudesse subjugar aquilo que o subjuga na
condição de sujeito. Pode-se dizer, portanto, que dominar uma língua só pode
ocorrer de maneira ilusória. Percebe-se, também, que tanto o português como
o inglês são para esse sujeito como promessa, ou seja, línguas sempre
desejadas, porém não alcançadas. B9 deseja a língua em sua totalidade e
afirma ter dificuldade com inglês e com português por não dominá-las. Esse
desejo de domínio parece conduzir a uma possibilidade ilusória de uma
identidade fixa e una, na qual não haja tensão ou conflito.
Em contrapartida, dezesseis, dos dezoito, participantes reconhecem
legítima a denominação de bilíngue quando se referem a si próprios. Ao
discorrerem sobre o porquê se consideram bilíngues, foi possível localizar suas
representações sobre o que é ser bilíngue e o que é bilinguismo. A
representação mais recorrente, dentre as obtidas nesta pesquisa, é a de que o
sujeito bilíngue é aquele que se comunica bem ou com naturalidade em ambas
as línguas:
154
Essas justificativas dão indícios de que esses sujeitos veem a língua,
mais uma vez, como um processo consciente e controlável, não subjugado a
deslizes, chistes ou lapsos. Além disso, a visão predominante de bilinguismo
aqui é focada na proficiência das línguas. Essas posições sobre quem é
bilíngue estruturam-se dentro de uma perspectiva que considera apenas
aspectos linguísticos para a definição de sujeito bilíngue e bilinguismo, como
proposto por Macnamara (1967) e Barker e Prys Jones (1998), entre outros.
Outros sujeitos preferiram distinguir as habilidades da língua, produção
oral e compreensão auditiva para autodenominarem-se bilíngues:
B6 Sim, ao fazer amizade com um americano que trabalhava comigo, e por ele me
tratar como igual e me comparar com outros bilíngues de pai e mãe (apontando
que minhas habilidades linguísticas eram até superiores) eu me aceitei bilíngue.
155
Para B6 aceitar-se como bilíngue foi necessário o veredito de um falante
nativo da língua que não é falada no país que mora. Nota-se, aqui, o papel do
outro, falante nativo, no sentimento de pertença que o sujeito atribui ao grupo
de bilíngues.
Outra representação bastante recorrente foi a de que o sujeito bilíngue é
aquele que adquiriu as duas línguas na primeira infância, sendo expostas a
elas desde o nascimento:
S4 Sim, pelo fato de tanto inglês e português estarem presentes na minha vida
desde muito cedo, acredito que posso me considerar bilíngue nesse
sentido.
B3 Sim, porque misturo as línguas ao falar, e na maioria das vezes, penso em inglês e
fui alfabetizada bilíngue.
156
dessa maneira, apropriando-se da memória que se manifesta em seus
discursos. Existe, ainda, no senso comum, certo receio ao bilinguismo, uma
vez que é associado à confusão ou mistura de línguas, o que resultaria em
baixo desenvolvimento cognitivo. Historicamente, o bilinguismo foi visto, por
educadores, como prejudicial para o desenvolvimento cognitivo da criança.
Pesquisas iniciais sobre o tema apontavam o bilinguismo como causa de baixo
quociente intelectual, confusão linguística e até mudança de personalidade.
Consequentemente, surgiu o mito de que o bilinguismo seria prejudicial ao
desenvolvimento cognitivo da criança. Todavia outras pesquisas revelam que
uma série de críticas metodológicas pode ser feita a esses estudos iniciais: os
participantes bilíngues da pesquisa estavam em situação desigual, se
comparados aos monolíngues, em termos socioeconômicos ou de proficiência
na língua do teste aplicado. Além disso, muitas vezes, esses testes foram
ministrados na língua de menor domínio dos participantes. Em estudos mais
recentes, os quais fazem uso de modelos experimentais mais elaborados,
essas variáveis foram mais bem-controladas e, com isso, os resultados
apontaram uma direção bastante diferente.
Vale ressaltar que, dentre as dezesseis respostas, à pergunta: Você se
considera bilíngue? Por quê?, apenas, duas remetem a questões não
linguísticas para se justificarem como bilíngues:
158
Em todos esses recortes, os sujeitos fazem uso de uma adversativa que
marca uma tensão e, com isso, uma nova direção argumentativa na
textualidade da narrativa, o que faz emergir contradições do interior das
formações discursivas: a língua deixa marcas, traços e instaura a falta e o
desejo do sujeito de dominá-la por completo, como se isso lhe fosse possível.
Todos esses falantes, ao comentarem sobre seu bilinguismo, justificam-se por
não ter um controle nativo ou balanceado nas duas línguas, como sugerem as
visões tradicionais de bilinguismo. Na verdade, pode-se constatar que todos os
recortes descritos remetem à visão que cada indivíduo possui de sua
bilingualidade, que pode ser mutável e dinâmica de acordo com as situações
de bilinguismo que lhe são apresentadas.
S9 compara ser bilíngue a uma tarefa, que complementa não é fácil,
uma vez que exige, nas palavras do participante, viver próximo do ideal em
dois mundos. Observa-se, aqui, novamente a ideia de ideal, perfeito e de
domínio completo. Este mesmo falante também faz referência a espaços em
branco em sua vida, como se a vida em uma língua funcionasse de modo
autônomo da vida em outra língua. Este dizer está em conformidade com o
discurso de B4 que descreve que:
Para B4, a vida em uma língua o privou de outra vida em outra língua e,
com isso, há uma sentimento de que falta alguma coisa, algum espaço a ser
preenchido. B4 afirma ainda que consegue contornar essa falta e buscar ajuda
quando precisa. Esses recortes argumentam a favor de uma visão tradicional
de bilingüismo, que defende a ideia da existência de espaços monolíngues
protegidos e, desse modo, estar em um desses espaços faz com que o sujeito
se ausente do outro espaço reservado à outra língua e, com isso, há sempre a
sensação de que se perdeu algo enquanto se ocupava um dos espaços.
160
3.3 Das transformações
Este recorte, mais uma vez, reafirma a visão monoglóssica com que se
olha para o fenômeno do bilinguismo. Esta visão penetra nos discursos e faz
com que esses sujeitos criem imagens de quem são, o que reflete diretamente
em suas constituições identitárias. Moscovici (2003) ilustra esta ideia ao
salientar que, ao classificar-se algo ou alguém, confina-se este objeto a um
162
conjunto de comportamentos e regras que estipulam o que é ou não permitido
a todos os indivíduos pertencentes a essa categoria ou classe. Dessa forma,
percebe-se, ao longo desta análise, que o sujeito bilíngue ficou confinado, a
partir desta classificação, a um conjunto de regras e comportamentos ao qual
deve seguir e que culmina na ilusória ideia da existência de dois sujeitos
monolíngues em seu ser bilíngue.
Dois dos sujeitos participantes relatam conflitos ou sofrimentos
experimentados devido à sua condição bilíngue.
B3 Até hoje existe uma confusão mental com as línguas, mas por viver no
Brasil acredito que, no começo, era difícil, mais adulta, eu já me sentia
brasileira completamente, mas sempre existe um “algo” de diferença que
sinto emocionalmente, difícil de explicar, confesso.
B4 Dos 19 aos 21 vivi uma crise bárbara: não sabia minha identidade, se era
americana ou brasileira. Tinha cara de americana (biótipo), falava inglês
como nativa, mas não me sentia americana de jeito algum...o jeito de me
relacionar com os outros era muito brasileiro, o jeito de comer também
embora tivesse acostumada a “jello salad, waffles, pancakes”, não me
identificava em nada com os americanos- achava-os ingênuos,
politicamente alienados. Todos meus amigos, neste período, ou eram
brasileiros ou estrangeiros, e a grande maioria pós-graduandos. Fiz minha
graduação de 4 anos em 3 para voltar voando para o Brasil, mas ainda em
crise. Na volta fiz terapia para me ajudar. Lembro que sentia falta de achar
alguém com quem fazê-lo em inglês... na época só conseguia expressar
meus sentimentos mais íntimos em inglês... Agora em retrospectiva, acho
que na verdade não era a questão de me expressar em inglês, mas de
achar alguém que pudesse entender este conflito bicultural, e me ajudar a
me aceitar como sendo de duas culturas.
B4, por sua vez, busca uma identidade fixa, una e imutável. Sofre por
não saber sua identidade e, a partir disso, pergunto-me: Será possível sabê-la,
uma vez que é dinâmica, fluída e múltipla? Esta sensação de falta fez com que
este sujeito construísse uma prótese no intuito de superar esse conflito. B4 tem
163
na terapia um dos tipos de prótese derridiana. A terapia parece, neste caso,
uma tentativa de recuperar ou inventar uma narrativa da história familiar e de
alguma forma, entender seu conflito.
164
E, por fim, um recomeço
José Saramago30
30 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.143.
165
166
E, POR FIM, UM RECOMEÇO
169
A dificuldade da língua portuguesa é definida pela quantidade de regras
das gramáticas normativas. Esse conhecimento de gramáticas e dicionários
são verdades construídas sobre a língua, e isso culmina no estabelecimento do
que pode ou não ser dito e da forma como pode ser dito em determinados
contextos, de acordo com uma língua portuguesa que não pertence a todos os
falantes, mas apenas aos mais escolarizados e socialmente reconhecidos, e,
dessa forma, autorizados a dizer algo sobre as línguas.
A qualificação difícil que se atribui à língua portuguesa é materializada
quando o sujeito, ao justificar sua posição, dá ênfase às regras gramaticais
que, para ele, são impossíveis de serem colocadas em uso. A percepção de
que há muitas regras e não são utilizadas pelos falantes faz com que veja sua
língua portuguesa como incompleta, na ilusão de que apenas as gramáticas e
dicionários a teriam em sua completude. Esses enunciados revelam a falta
constitutiva do enunciador, assim como seu desejo por uma língua “perfeita”.
Essa língua “perfeita” pertenceria, de acordo com os sujeitos desta
pesquisa, a indivíduos especiais como escritores e intelectuais. Ao se referir a
esses supostos falantes dessa língua “perfeita”, faz-se uma comparação com
os falantes comuns, que conforme os enunciadores, não a possuem. Dessa
forma, observa-se um deslize do domínio da língua para a posição que esse
falante ocupa na sociedade, o que mostra que olhar para língua é também
olhar para o enunciador e tudo o que simbolicamente a ele está relacionado,
seu status, profissão e prestígio, dentre outros aspectos. Esse olhar para quem
enuncia é determinado pelas identificações do sujeito que são interpeladas
pelo inconsciente do enunciador, ancorando suas representações de língua
ideal. Essa língua ideal passa a fazer parte do imaginário do sujeito que
começa a desejá-la, e dessa forma, seu desempenho linguístico é visto como
insuficiente e inacabado, sempre, vislumbrando uma falta que é constitutiva ao
sujeito.
Esta sensação de falta fez com que esses sujeitos construíssem
próteses com o intuito de supri-la ou compensá-la (prótese derridiana). Neste
caso, a prótese manifestou-se a partir da exigência compulsiva de uma pureza
da língua, ou seja, uma preocupação exacerbada com a correção linguística.
170
A terceira pergunta objetivava entender como esses sujeitos ao se
enunciarem constroem imagens de si e do Outro.
Observa-se, entre as narrativas selecionadas, a presença de identidades
sociais virtuais que são constituídas pelas afirmativas em relação àquilo que o
indivíduo outro deveria ser, ou seja, de como um brasileiro ou um latino deveria
ser. Essa discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social
real foi responsável pela produção do estigma identificado entre os
participantes. Os sujeitos participantes desta pesquisa têm consciência de que
possuem atributos que os diferenciam dos americanos, mas também não se
identificam com o rótulo de latino ou de brasileiro. Verifica-se, entre os sujeitos,
uma tentativa de constituir sua própria identidade, uma busca em tentar ser
completo na língua do outro e um sentimento de identidade que emana
necessariamente do outro.
Outro ponto importante é a dificuldade dos sujeitos desta pesquisa de se
verem como bilíngues. Embora observe-se, no Brasil, uma crescente
valorização da língua inglesa e uma significativa penetração do inglês por meio
de músicas e da tecnologia, indivíduos que aprendem inglês não se enxergam
como bilíngues. Vigora, ainda, no Brasil, o ideal monolíngue, dessa forma, ser
bilíngue exige definições e justificativas como se nota entre as narrativas dos
participantes, que tentam buscar, na teoria, explicações para a aceitação de
sua condição. É como se o sujeito não fosse autorizado a falar sobre sua
condição de bilíngue, o que faz com que procure, em enunciadores que
considere autorizado, uma justificativa para seu sentir ou pensar. Novamente,
verifica-se um deslocamento para a posição que o falante ocupa na sociedade,
o que divide os sujeitos em autorizados ou não autorizados a discorrer sobre o
tema.
Ademais, observou-se a dificuldade em se classificar bilíngue, que
decorre também da representação social que se tem a respeito do bilinguismo.
Essa classificação é feita ao se comparar pessoas a um protótipo aceito como
representante de uma classe, no caso, a de indivíduos que falam duas línguas.
Percebeu-se, nesta pesquisa, que o protótipo mais aceito para a denominação
bilíngue é a de alguém que utiliza as duas línguas com a mesma naturalidade.
Somando-se a isso, a língua estrangeira não é um sistema vazio de sentido,
171
pois traz consigo uma carga ideológica que coloca o aprendiz em conflito
permanente com a ideologia da língua materna. Outros sujeitos, ao narrarem
aspectos relacionados à sua bilingualidade, apresentam, dentro de suas
formações discursivas, marcas de tensão que demonstram que a língua deixa
marcas, traços e instaura a falta e o desejo do sujeito de “dominá-la” por
completo, como se isso lhe fosse possível.
As respostas obtidas por meio das minhas perguntas de pesquisa
suscitaram-me um movimento que me faz pensar em como a escola ou
institutos de idiomas poderiam trabalhar o ensino de língua estrangeira
focalizando a concepção de identidade do sujeito e das diversidades, tendo em
vista a importância da relação língua e identidade a partir da dimensão da
alteridade discursiva.
Primeiramente, acredito ser importante o entendimento de que o
encontro da língua materna com a língua estrangeira pode gerar um confronto,
pois à medida que mecanismos psíquicos na aprendizagem da língua
estrangeira são acionados, mecanismos inconscientes remetem a
particularidades específicas que o sujeito mantém com a língua materna. Como
afirma Coracini (1998), a aprendizagem de uma língua estrangeira ocorre na
rede emaranhada de confrontos tecidos a partir da língua materna, urdindo o
inconsciente e alterando sua configuração pela problematização do outro e da
diferença.
Além disso, considero importante o entendimento de que aprender uma
língua estrangeira implica sempre em um questionamento e uma perturbação
do conhecimento adquirido sobre o mundo, dos valores e ideologias inscritos
no sujeito. Se, como Revuz (1995) postula, a língua é o material fundador do
psiquismo humano, aprender uma segunda língua é um processo delicado,
pois significa além da relação com o saber, a relação com nós mesmos.
Dessa forma, se, como defendido ao longo deste trabalho, ao aprender a
falar se aprende, sobretudo, um conjunto de crenças e desejos das pessoas
que cercam esse sujeito, aprender a falar é, em meio ao desejo do outro,
formular hipóteses partindo de seu próprio desejo. Assim, pode-se assumir que
alguns aprendizes monitoram seu aprendizado aceitando esse novo modo de
vislumbrar o mundo; enquanto outros, inconscientemente, podem bloquear sua
172
aprendizagem, rejeitando-a, uma vez que aceitar a nova língua significa um
deslocamento das ideologias que já estavam internalizadas no indivíduo.
Perante a tais premissas, acredito que a pergunta que se segue a este
estudo é: Quais são os desdobramentos para se pensar o ensino-
aprendizagem de língua estrangeira a partir das considerações tecidas aqui?
Creio que, primeiramente, haja a necessidade de se redefinir a questão
do ensino de línguas. De forma geral, observa-se um grande descompasso
entre “para que”, “por que” e “como” ensinar a língua inglesa no Brasil. Para
tanto, um aspecto fundamental que merece ser repensado é a formação de
professores de língua inglesa. Esses profissionais, na maioria das vezes, com
uma visão de mundo monocultural e monolíngue, apenas, corroboram a
reprodução do pensamento vigente. No Brasil, os professores de língua não
são instrumentalizados para pensar meios de tornar a língua inglesa um
instrumento de singularização dos sujeitos-alunos dentro do sistema
dominante. Dessa forma, as aulas de inglês, que seriam um cenário propício
para embates culturais e políticos, dessa maneira, possibilitando a tematização
de um mundo multicultural construído em outra língua, transformam-se, na
melhor das hipóteses, em um mero local para memorização de estruturas
linguísticas. Tais práticas só se fariam possíveis por meio de uma formação
que possibilite ao professor compreender os sentidos da presença da língua
inglesa no cenário brasileiro atual, conhecendo os modos de subjetivação
daqueles em contato com essa língua e, consequentemente, avançando na
reflexão sobre o binômio língua e identidade.
Nesse sentido, ainda há um longo caminho a percorrer. Ao final desta
pesquisa, pergunto-me: Como concluir este trabalho? São tantas ainda as
perguntas que me perturbam. Talvez, possam ser respondidas em uma
próxima pesquisa. Quem sabe? Aprendi mesmo que a pesquisa nunca chega
realmente ao fim; tendo-se de forçar, em meio à violência da palavra, um ponto
final.
173
Referências Bibliográficas
174
175
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
176
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http://www.mcescher.com/Gallery/switz-bmp/LW320B.jpg
http://www.mcescher.com/Gallery/switz-bmp/LW320E.jpg
http://www.mcescher.com/Gallery/recogn-bmp/LW401.jpg
183
Olhar para trás após uma longa caminhada pode fazer perder
a noção da distância que percorremos, mas se nos detivermos
em nossa imagem, quando a iniciamos e ao término,
certamente nos lembraremos o quanto nos custou chegar até
ponto final, e hoje temos a impressão de que tudo começou
ontem. Não somos os mesmos, mas sabemos mais uns dos
outros. E é por esse motivo que dizer adeus se torna
complicado! Digamos então que nada se perderá. Pelo menos
dentro da gente..."
Guimarães Rosa
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Apêndice A
185
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO
Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem
Parte II - Questionário
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3. Em quais situações você utiliza cada uma destas línguas?
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4. Em que língua você se sente mais confortável nas seguintes situações:
9. Como você se relaciona com os dois grupos sociais referentes às línguas que utiliza?
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10. Como você acha que é visto por estes grupos sociais?
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11. Você se preocupa com seu sotaque? ( ) sim ( ) não. Por quê?
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12. Você acha que crianças devem aprender outras línguas, além da primeira língua da família?
( ) sim ( ) não. Por quê?
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