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APORTES

TEÓRICOS E
REFLEXÕES
SOBRE O RACISMO
ESTRUTURAL
NO BRASIL

[ ARTIGO ]

Humberto Bersani
Universidade de São Paulo.
Faculdade de Direito
Humberto Bersani Aportes teóricos e reflexões sobre
o racismo estrutural no Brasil 176

[   R ES U MO AB STR AC T RESUME N ]

O artigo pretende analisar o racismo enquanto um elemento estrutural de opressão


no Brasil. Para tanto, são consideradas as contribuições teóricas de Jacob Gorender,
Clóvis Moura, Caio Prado Júnior e Nelson Werneck Sodré, destacando-se o escra-
vismo colonial e sistematizado, a economia colonial e a formação do capitalismo no
Brasil. A partir do levantamento bibliográfico e estabelecidas as relações entre os
referenciais, será apresentada uma proposta de compreensão do racismo estrutural.
Palavras­‑chave: Racismo Estrutural. Escravismo. Exclusão Social.

The article intends to analyze the racism as a structural element of oppression in Brazil.
There are considered the theoretical contributions of Jacob Gorender, Clóvis Moura,
Caio Prado Júnior and Nelson Werneck Sodré are taken into account, highlighting
colonial and systematized slavery, colonial economy and the formation of capitalism
in Brazil. From the bibliographical survey and established the relations between the
references, a proposal will be presented to understanding of structural racism.
Keywords: Structural Racism. Slavery. Social Exclusion.

El artículo pretende analizar el racismo como un elemento estructural de opresión


en Brasil. Para ello, se consideran las contribuciones teóricas de Jacob Gorender, Cló-
vis Moura, Caio Prado Júnior y Nelson Werneck Sodré, destacándose el esclavismo
colonial y sistematizado, la economía colonial y la formación del capitalismo en Bra-
sil. A partir del levantamiento bibliográfico y establecidas las relaciones entre los
referentes, se presentará una propuesta de comprensión del racismo estructural.
Palabras clave: Racismo Estructural. Esclavismo. Exclusión Social.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2018.148025

Extraprensa, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 175 – 196, jan./jun. 2018 [ EXTRAPRENSA ]


Humberto Bersani Aportes teóricos e reflexões sobre
o racismo estrutural no Brasil 177

Introdução Elementos do racismo


estrutural brasileiro

A opressão perpetrada pelo racismo no Bra‑


sil se traduz numa exclusão social identifica‑ Em face do pressuposto de que o racismo
da nos mais diversos espectros sob os quais atua enquanto estrutura de opressão, se‑
se vise compreender os entraves que persis‑ rão consideradas as obras de quatro auto‑
tem na estrutura da sociedade brasileira. res que contribuíram para o debate sobre
formação do Estado, sua transformação
O presente artigo se dedica ao estu‑ e sobre como o processo de colonização e
do dos elementos concernentes ao racis‑ o escravismo interferiram na história do
mo enquanto estrutura de opressão no Brasil e na consolidação da exclusão social
Estado brasileiro, identificando as raízes como característica inerente ao país.
históricas que lhe deram sustentação e
propiciaram a cristalização desse elemen‑ Primeiramente, será explorada a
to excludente na sociedade brasileira. obra “O Escravismo Colonial”, de Jacob
Gorender, seguida da “Dialética Radical do
Para tanto, serão resgatadas as Brasil Negro”, de Clóvis Moura, passando­
contribuições de Jacob Gorender, Clóvis ‑se, posteriormente, à “Formação do Bra‑
Moura, Caio Prado Júnior e Nelson Wer‑ sil Contemporâneo”, de Caio Prado Júnior.
neck Sodré, de modo a estabelecer um
arcabouço teórico voltado à compreensão Por fim, a obra de Nelson Werneck
do racismo estrutural. Sodré, “Capitalismo e Revolução Burguesa
no Brasil”, fechará o eixo teórico que contri‑
Assim, pretende­‑se, a partir dos teó‑ buirá para a noção de racismo estrutural.
ricos aqui apontados, questionar a origem
do racismo no Brasil, bem como de que A escolha das quatro obras mencio‑
forma os modos de produção praticados no nadas se deu em função da crítica nelas
país atuaram na cristalização de uma forma contida e da contribuição fundamental que
de opressão tão profunda, desdobrando­‑se deram à construção de uma teoria para o
nas diversas faces pelas quais a marginali‑ debate da questão racial no Brasil, dotada
zação social não apenas se consolidou, mas de peculiaridades a serem consideradas.
se reconfigura diariamente. Não se pode ignorar, ainda, que a metodo‑
logia norteadora da presente investigação
requer um referencial teórico que dialogue
com os seus pressupostos, o que fortalece a
escolha do mencionado conjunto de obras.

Com a análise de cada uma das


obras, far­‑se­‑á, num momento posterior,
um traçado conglobado dos autores estu‑
dados para buscar uma proposta concei‑
tual acerca do racismo estrutural.

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O “escravismo colonial” como de modos de produção preexistentes,


modo de produção e o pensamento no caso do Brasil. Seu surgimento não
de Jacob Gorender encontra explicação nas direções uni‑
laterais do evolucionismo nem do di‑
fusionismo. Não que o escravismo co‑
A obra “O Escravismo Colonial”1, publicada lonial fosse invenção arbitrária fora de
em 1978, foi escrita antes e durante a pri‑ qualquer condicionamento histórico.
são de Jacob Gorender, no período da dita‑ Bem ao contrário, o escravismo colonial
dura militar. surgiu e se desenvolveu dentro de de‑
terminismo socioeconômico rigorosa‑
A tese sustentada pelo autor promo‑ mente definido, no tempo e no espaço.
veu uma grande transformação no olhar Deste determinismo de fatores comple‑
sobre a formação social brasileira, sob a xos, precisamente, é que o escravismo
ótica de que esta fora marcadamente es‑ colonial emergiu como um modo de
cravista colonial, expressão que atribui o produção de características novas, an‑
título à obra. tes desconhecidas na história humana.3

A partir de categorias como modo Com efeito, a afirmação de que “a


de produção e formação social, Gorender formação social escravista teve no Brasil
traça sua perspectiva sobre o processo peculiaridades que só nele se encontra‑
de colonização no Brasil e o significado rão”4 revela uma possibilidade de posição
de suas práticas. Segundo ele, “o modo na luta antirracista: a de que é preciso
de produção é um modo de reprodução investigar o Brasil desde sua formação,
continuado das relações de produção e considerando­‑se todas as suas peculiari‑
das forças produtivas”2. Recorre, pois, a dades, ou seja, o grande desafio é buscar
Marx para destacar alguns conceitos fun‑ soluções próprias e específicas, sem que
damentais de sua obra e estabelecer um haja uma importação desmedida das sa‑
diálogo com a teoria por ele apresentada. ídas apresentadas em (e/ou por) outros
modelos. Até porque, como ressalta Go‑
Ao abordar o escravismo colonial render, “justamente aqui o escravismo
como modo de produção do Brasil, aponta colonial teve duração e riqueza de deter‑
que não houve uma reprodução do modo minações maiores do que em qualquer
outrora existente em Portugal, tampouco outra parte”5.
daquele estabelecido até então no Brasil.
Por isso, entende que: O escravo constitui propriedade de
seu dono e, por isso, deve se sujeitar à au‑
Impõe­‑se, por conseguinte, a conclusão toridade de seu proprietário – isso o coloca
de que o modo de produção escravis‑
ta colonial é inexplicável como síntese

[1[ GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São [3] Ibidem, p. 84.


Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2010. [4] Ibidem, p. 88.
[2] Ibidem, p. 58. [5] Ibidem, p. 88.

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como coisa ou “bem objetivo”6. Apresenta­ ral na Plantagem Escravista” (denomina


‑se, aí, a contradição apontada por Brion a correlação estudada mediante o empre‑
Davis sobre o escravo: “ser coisa e ser ho‑ go do termo ‘bissegmentação’) e, por fim,
mem”. É possível pensar também que tal a “Lei da População Escrava” (observa a
contradição revela a existência concomi‑ relação estabelecida entre o movimento
tante de um bem objetivo paradoxalmente populacional, o tipo de formação social e o
internalizado em um ser humano que, por modo de produção, sendo posteriormente
tal condição, é dotado de subjetividade. marcada pelo tráfico interprovincial, pois
foi necessário redistribuir, para a região
A primeira forma de reconhecimen‑ do café, os homens e as mulheres escra‑
to do escravo como homem (e não coisa) vizados explorados nas regiões do açúcar
pela legislação se dá com a responsabili‑ e do algodão.
dade penal7.
Nos Estados Unidos, viu­ ‑se uma
O escravismo colonial é estudado a situação diferente, pois seu principal
partir da escravização negra como pres‑ produto de exportação era o tabaco, su‑
suposto, já que, segundo Gorender, ela pérfluo e menos rentável se comparado
teria proporcionado estabilidade ao modo ao açúcar. Isso refletia numa demanda
de produção8. menor do número de homens e mulhe‑
res escravizados, inclusive porque o preço
Apresentam­ ‑se algumas leis espe‑ deles foi aumentando com o passar dos
cíficas do modo de produção escravista anos. Dividiram­‑se, assim como no Brasil,
colonial, as quais não devem ser vistas as funções entre regiões exportadoras e
dissociadas umas das outras, mas sim importadoras de homens e mulheres es‑
organicamente articuladas. São identi‑ cravizados. Houve, pois, a criação de ho‑
ficadas, na obra, pela “Lei da Renda Mo‑ mens e mulheres escravizados para fins
netária” (processo de transformação do específicos de comercialização.
excedente em dinheiro), “Lei da Inversão
Inicial de Aquisição do Escravo” (aponta A sociedade escravista era basica‑
as três principais formas de aquisição do mente formada pela classe dos homens e
escravo, ou seja, captura, compra e cria‑ mulheres escravizados e os plantadores
ção na unidade escravista), “Lei da Rigidez (seus exploradores diretos). Na verdade,
da Mão de Obra Escrava” (compreendida no gênero dos exploradores diretos men‑
no sentido de que, “se o escravo não se li‑ cionados por Gorender há, ainda, uma ou‑
berta do senhor, tampouco este se desfaz tra categoria, a dos mercadores.
do escravo”9), “Lei da Correlação entre a
Economia Mercantil e a Economia Natu‑ O modo de produção escravista
apresentado por Gorender pode, também,
ser lido como a gênese do modo de produ‑
ção capitalista estabelecido concomitan‑
[6] Ibidem, p. 92.
temente no Brasil. É possível entendê­‑lo
[7] Ibidem, p. 94.
como uma formação social dotada de par‑
[8] Ibidem, p. 172.
[9] Ibidem, p. 245.
ticularidades que o situam em um viés

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capitalista, ou seja, autêntico represen‑ como modo de produção, nota­‑se que Mou‑
tante da gênese do capitalismo no Brasil. ra estabelece um diálogo com o pensamen‑
Essa chave é importante, pois ela revela to de Jacob Gorender. Trata­‑se, pois, de
a relação intrínseca entre o capitalismo e uma constatação que fortalece o caminho
o escravismo, bem como a influência da escolhido na presente investigação sobre
ideologia advinda do referido processo o modo de pensar o Brasil e a centralida‑
histórico, contribuindo com a construção de das relações raciais enquanto elemento
do racismo no Brasil. fundante da sociedade brasileira.

A sociedade de classes à época do


Escravismo Pleno era composta basica‑
mente por duas classes: senhores e es‑
O escravismo sistematizado e o cravizados. Dessa dicotomia, era possível
pensamento de Clóvis Moura observar os comportamentos e todas as
imagináveis formas e espaços sociais para
os quais ela poderia irradiar11.
A primeira edição da obra “Dialética Radi‑
cal do Brasil Negro”10 foi lançada em 1994. As contradições estabelecidas en‑
Contribuição fundamental ao estudo dos tre senhores e homens e mulheres es‑
elementos do racismo estrutural brasilei‑ cravizados representam, pois, o principal
ro, a obra guarda total pertinência com componente estrutural do modo de pro‑
a reflexão sobre os elementos do racismo dução escravista.
estrutural brasileiro, tendo em vista a es‑
truturação nela contida e a perspectiva A condição de ser escravo, apontada
metodológica empregada pelo autor. pelo autor, remete ao fato de que

O escravismo brasileiro se divide, O problema do escravo, ou seja, a sua


segundo o autor, nas fases de Escravismo caracterização essencial (de essência)
Pleno e Escravismo Tardio, sendo a extin‑ não pode ser conceituado pela forma
ção do tráfico internacional de homens e como ele (o escravo) é tratado por al‑
mulheres escravizados, promovida pela guns senhores, alimentado, vestido e
Lei Eusébio de Queirós, no ano de 1850, o educado. Sua condição podia – mesmo
marco histórico que determina a passagem em certas circunstâncias – e esta par‑
de uma fase à outra e possibilita o impulso ticularidade foi muito explorada pela
para a construção teórica de Clóvis Moura. literatura escravagista, daqui e dos Es‑

O Escravismo Pleno pode ser identi‑


ficado pelo predomínio do modo de produ‑ [11] “Os antagonismos sociais, econômicos e étnicos
verificados nessa época, as convergências e divergên‑
ção escravista. E ao enxergar o escravismo
cias ideológicas e de comportamento que surgiram
nessa sociedade são, fundamentalmente, decorrentes
das posições estruturais e do dinamismo dessas duas
[10] MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil ne- classes no espaço social. São conflitos antagônicos ou
gro. 2ª ed. São Paulo: Fundação Maurício Grabois co­ parciais, conscientes ou inconscientes nas suas carac‑
‑edição com Anita Garibaldi, 2014. terísticas de ação social”. Ibidem, p. 36.

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tados Unidos daquela época –, ser igua‑ No caso particular do Brasil (como tam‑
lada a algumas categorias de trabalha‑ bém nas demais áreas de trabalho es‑
dores livres europeus.12 cravo), para que a divisão desse tipo de
trabalho funcionasse racionalmente,
Verifica­‑se, aí, mais uma importante houve a necessidade de uma estratifica‑
chave conferida por Clóvis Moura ao es‑ ção social no interior das relações escra‑
tudar o escravismo: o perigo de se atentar vistas, necessária e que se diferenciava
à forma e não à essência. Fica explícita, no de acordo com o gênero produzido.14
trecho transcrito, a aplicação do materia‑
lismo histórico­‑dialético como método de Com a vinda de Dom João VI ao Bra‑
estudo empregado pelo autor. sil, em 1808, o país passou por inúmeras
mudanças. A liberdade de comércio aos
O método já se anuncia no título da poucos foi estabelecida, dando espaço para
obra em estudo. A dialética radical pres‑ o que o autor, partindo do pensamento de
supõe uma postura metodológica que re‑ Caio Prado Júnior, chama de Liberalismo
quer a crítica pela raiz, imanente, ou seja, Escravista. A proclamação da Independên‑
que parte da essência do objeto, e não das cia não inviabilizou o escravismo e a lógica
formas pelas quais ele se manifesta. que ele impunha enquanto modo de pro‑
dução. A mudança mais significante teria
O Escravismo Pleno compreende sido a Lei Eusébio de Queirós, da qual “sur‑
o período que vai desde 1550 (aproxima‑ girá o embrião de uma burguesia epidérmi‑
damente) até 1850, por ocasião da Lei Eu‑ ca que nasce muito tarde como classe e que
sébio de Queirós, que extinguiu o tráfico não podia desempenhar aquelas funções
internacional de africanos escravizados, dinamizadoras atribuídas a uma burguesia
ou seja, passa por todo o período colonial clássica nos moldes europeus.”15 Ressalta,
(reinados de Dom João VI, Dom Pedro I e ainda: “aquilo denominado por Caio Prado
Dom Pedro II). Ele se caracteriza “pelo fato Jr. de O Império escravocrata e a aurora bur‑
de as relações de produção escravistas do‑ guesa (1850­‑1889) é o período no qual o es‑
minarem quase totalmente a dinâmica cravismo entra em crise progressiva a que
social, econômica e política”13. denominamos de escravismo tardio.”16

Tudo o que se conhecia na sociedade Apesar das peculiaridades regionais,


brasileira da época tinha como essencial o autor aponta quais seriam, segundo sua
o modo de produção estabelecido entre as perspectiva metodológica, os “rasgos fun‑
classes vigentes: senhores e escravizados. damentais do escravismo pleno”:

A estratificação social também foi 1) Monopólio comercial da Metrópole


observada nesse período, conforme apon‑ (1808).
tado pelo autor:

[14] Ibidem, p. 71.


[12] Ibidem, p. 48. [15] Ibidem, pp. 78­‑79.
[13] Ibidem, p. 80. [16] Ibidem, pp. 78­‑79.

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2) Produção exclusiva de artigos de a) os escravos que continuavam sem


exportação para o mercado mundial, nenhum direito e possibilidades de mo‑
salvo a produção de subsistência pou‑ bilidade quase igual a zero;
co relevante e que somente era sufi‑
ciente em face do baixíssimo nível do b) uma população camponesa composta
poder aquisitivo (poder de compra) de mestiços e negros livres sem terra;
dos consumidores.
c) a população composta de imigrantes
3) Tráfico de escravos da África de cará‑ que já possuíam terra, constituindo­‑se em
ter internacional e o tráfico triangular uma camada de pequenos proprietários.
como elemento mediador e mecanismo
de acumulação na Metrópole. Na dinâmica desse processo que cul‑
minará com a Abolição em 13 de maio,
4) Subordinação total da economia de diminui a população escrava, aumenta
tipo colonial à Metrópole e impossibili‑ a de camponeses sem terra, descenden‑
dade de uma acumulação interna de ca‑ tes de negros e índios – mestiços de um
pitais em nível que pudesse determinar modo geral – e articula­‑se uma cama‑
a passagem do escravismo para o capi‑ da que se destaca da população de imi‑
talismo não dependente. grantes e se constitui em pequenos gru‑
pos proprietários. O direito do acesso à
5) Latifúndio escravista como forma terra é portanto excluído na prática das
fundamental de propriedade. duas primeiras populações, permitindo­
‑se, através da poupança individual, ou
6) Legislação repressora contra os es‑ do apoio institucional, a posse da terra
cravos, violenta e sem apelação. aos imigrantes bem­‑sucedidos.18

7) Os escravos lutam sozinhos de forma Surgiram, nesse período, os morado‑


ativa e radical contra o instituto da es‑ res de condição, submetidos aos senhores
cravidão.17 de engenho que não tinham mais con‑
dições de comprar homens e mulheres
O escravismo tardio se faz presente, escravizados. Esses moradores permane‑
portanto, concomitantemente com a for‑ ciam na propriedade do senhor de enge‑
mação tardia da burguesia na sociedade nho e, em troca de moradia, trabalhavam
brasileira, que se inicia neste segundo pe‑ para a fazenda.
ríodo do escravismo.
Moura afirma que o Escravismo Tar‑
Já no Escravismo Tardio era percep‑ dio descambou no capitalismo dependen‑
tível a visualização de te19. Viu­‑se, em tal período, a coexistência
de relações escravistas e capitalistas, o
três níveis de estratificação principais:

[18] Ibidem, pp. 116­‑117.


[17] Ibidem, pp. 82­‑83. [19] Ibidem, p.121.

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que contribuiu para a formação do cená‑ tados por outros escravocratas, o que seria
rio abolicionista. inadmissível sob a égide da ética escravista.

A Guerra do Paraguai também exer‑ Infere­‑se, pois, que a Abolição foi in‑
ceu forte influência no Escravismo Tardio. teressante e útil ao quadro que se desenha‑
Os negros escravizados foram obrigados a va no país. Moura afasta a possibilidade de
lutar, ao lado do Exército brasileiro, con‑ vê­‑la como uma revolução democrático­
tra um país que não tinha escravização. ‑burguesa21, mas essa questão será apro‑
O próprio governo comprou milhares de fundada oportunamente, por ocasião do
negros escravizados para a guerra20. estudo da obra de Nelson Werneck Sodré.

Com efeito, a Guerra do Paraguai Ademais,


onerou o Brasil de forma substancial, o
que contribuiu para que o sistema escra‑ A Abolição não mudou qualitativa‑
vista fosse decomposto. mente a estrutura da sociedade brasi‑
leira. Substituiu o senhor de escravos
Assim, o processo de transição do Es‑ pelo fazendeiro de café, sendo que
cravismo Pleno para o Escravismo Tardio os últimos tomaram o lugar dos pri‑
foi propiciado pelo bloco de poder escra‑ meiros como seus herdeiros diretos e
vista. O trabalho escravo seria substituído continuadores, cristalizando­ ‑se, por
pelo livre e, por isso, fez­‑se necessária a outro lado, as oligarquias regionais do
busca por alternativas que viabilizassem Nordeste e Norte também apoiadas no
a permanência da elite em sua posição so‑ monopólio da terra, como os antigos
cial privilegiada. senhores de escravos.

Por isso, algumas medidas foram ado‑ Não podemos negar que o trabalho es‑
tadas, tais como a Lei da Terra (a terra se cravo foi substituído pelo trabalho li‑
apresentava como um obstáculo, e foi con‑ vre. Mas as estratégias de dominação
servada com a edição da referida lei, afastan‑ antecipadamente estabelecidas fizeram
do qualquer ameaça à sua posse), bem como com que o antigo escravo não entrasse
o apoio dado ao movimento imigrantista. sequer como força secundária na di‑
nâmica desse processo, ficando como
O final do Escravismo Tardio teve borra, sem função expressiva. O Brasil
a presença da ética do capitalismo. Ela se arcaico preservou os seus instrumentos
revela, por exemplo, pelo fato de que os es‑ de dominação, prestígio e exploração e
cravizados fugidos passaram a ser contra‑ o moderno foi absorvido pelas forças di‑
nâmicas do imperialismo que também
antecederam à Abolição na sua estraté‑
[20] “Na dinâmica social desenvolvida pela Guerra do
gia de dominação.22
Paraguai durante o seu transcurso podemos ver como
as relações escravistas irão se modificando e se desar‑
ticulando, havendo uma modalidade de dinâmica so‑
cial que irá redundar em um realinhamento de forças
sociais e étnicas que irá caracterizar, cada vez mais, o [21] Ibidem, p. 152.
escravismo desse período como tardio”. Ibidem, p. 144. [22 Ibidem, p. 152.

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Algumas particularidades podem ser – conduz à premissa de que o racismo está


identificadas no racismo brasileiro, a co‑ na essência do capitalismo brasileiro.
meçar pelo fato de que ele, segundo Moura,
não foi “codificado e institucionalizado”23.

A discriminação racial constituiu


estratégia apropriada pelas classes do‑ A economia colonial como sentido
minantes desde a época do escravismo e, da colonização e o pensamento de
embora não se tenha admitido de forma Caio Prado Júnior
explícita o racismo atrelado às institui‑
ções, não se pode afastar tal premissa,
uma vez que se pretende colaborar, na A obra “Formação do Brasil Contemporâ‑
presente pesquisa, com a noção de racis‑ neo: Colônia”24 busca compreender alguns
mo estrutural, que transcende as institui‑ elementos essenciais presentes nesse pe‑
ções, passando inclusive por elas. ríodo da História do Brasil, a iniciar pelo
sentido da colonização, com posterior es‑
O modo escravista retirou dos ne‑ tudo sobre como o povoamento se deu,
gros a sua ancestralidade, violentando abrangendo a questão racial.
toda uma população e subjugando­‑a aos
interesses inerentes àquele modo de pro‑ A busca pelo sentido da História
dução, de forma que acarretou à popula‑ requer a análise do “conjunto dos fatos e
ção a anulação de sua condição humana, acontecimentos essenciais que a consti‑
mediante o esfacelamento das referências tuem num largo período de tempo”25.
que trazia consigo em todas as dimensões,
tais como a família, o território, a perso‑ O resgate à essência da formação do
nalidade, o idioma, a religião e todo es‑ Brasil revela que este foi constituído de
tigma criado em torno das práticas dela forma vinculada ao comércio, e não para
constantes, entre outras. o povoamento. O interesse era por açúcar,
tabaco, ouro, diamante, algodão, café; en‑
É inquestionável a contribuição que a fim, o olhar estava voltado para fora do
obra de Clóvis Moura dá ao estudo da ques‑ país, de modo que o Brasil atenderia às de‑
tão racial no Brasil, mas não apenas a ela, mandas surgidas em torno desse contexto
pois ele fornece elementos em sua teoria comercial. Toda a formação da sociedade
para que se pense o Brasil. Sua insistência e economia brasileiras estará adstrita aos
no fato de que o estudo do negro no Brasil interesses da colônia sob a ótica do co‑
deve ser feito levando­‑se em conta tanto mércio, o que refletirá nos mais diversos
as particularidades do escravismo prati‑ âmbitos sociais.26
cado como as relações estabelecidas pelo
modo de produção – relações essas atrela‑
das à constituição de uma ideologia racista [24] PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil con-
temporâneo: colônia. São Paulo: Companhia das Le‑
tras, 2011.
[25] Ibidem, p. 15.
[23] Ibidem, p. 217. [26] Ibidem, p. 123.

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A questão racial constitui assunto não se fez nesse período de tempo que
que requer amplo aprofundamento sobre prolongá­‑lo e o repetir em novas áreas
tal aspecto. E entre as três raças que partici‑ ainda não colonizadas.29
param da formação do Brasil, é necessário
considerar a diversidade nelas presente, O trecho ora transcrito vai ao en‑
de modo que ignorar tais peculiaridades contro da teoria apresentada por Clóvis
prejudicaria a pesquisa que leva em conta Moura, uma vez que Caio Prado também
o processo histórico da colonização. entende que o sistema colonial não teria
sofrido grandes mudanças durante os
A evolução étnica brasileira teve como três primeiros séculos da História do Bra‑
uma de suas principais características a su‑ sil, período este que Moura chamou de
pervalorização do procriador. Não é à toa Escravismo Pleno.
que a expressão “limpar o sangue” referia­‑se
à “acentuação do influxo branco”27. A política econômica, portanto, re‑
duziu “o Brasil à simples situação de pro‑
O Brasil colonial teve sua organi‑ dutor de alguns gêneros destinados ao
zação agrária a partir de três elementos comércio internacional”30 durante o perí‑
básicos, o latifúndio, o trabalho escravo e odo de colonização.
a monocultura. Tais elementos compõem
o que Caio Prado chama de “grande ex‑ Pela utilização dos homens e mu‑
ploração rural”, ou seja, “a reunião numa lheres escravizados foi possível viabilizar
mesma unidade produtora de grande nú‑ as atividades mercantis estabelecidas na
mero de indivíduos”28. colônia e obter proveito desse processo na
formação da sociedade brasileira.
Assim, a síntese da economia co‑
lonial brasileira pode ser compreendida A escravização indígena também foi
pelo seguinte: explorada de forma diferente, se compara‑
da à escravização dos negros. A população
De um lado, essa organização da produ‑ indígena teve a influência da educação je‑
ção e do trabalho, e a concentração da suítica e contou com o estatuto dos índios,
riqueza que dela resulta; do outro, a sua o que, embora não tenha afastado os indí‑
orientação, voltada para o exterior e genas da submissão imposta pela coloniza‑
simples fornecedora do comércio inter‑ ção, impediu que eles tivessem contato com
nacional. Nessas bases se lançou a colo‑ as formas mais nefastas da escravização31.
nização brasileira, e nelas se conservará
até o momento que ora nos interessa. Os negros, ao contrário, não re‑
Não há na realidade modificações subs‑ ceberam qualquer proteção, mas foram
tanciais do sistema colonial nos três pri‑ esbulhados em todas as dimensões imagi‑
meiros séculos de nossa história. Mais

[29] Ibidem, p. 129.


[27] Ibidem, p. 116. [30] Ibidem, p. 131.
[28] Ibidem, p. 127. [31] Ibidem, p. 292.

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o racismo estrutural no Brasil 186

náveis, sem que houvesse qualquer pre‑ Portanto, o estudo do racismo estru‑
paro para que adentrassem a sociedade tural não pode ser feito de forma disso‑
que os incorporou compulsoriamente na ciada da análise do capitalismo brasileiro,
condição de autênticos objetos voltados à uma vez que tais elementos estão atre‑
satisfação dos objetivos mercantis. lados entre si e, dessa forma, é possível
afirmar que o racismo está presente nas
Desde o início da formação do Bra‑ estruturas de opressão não apenas do
sil, os negros foram considerados apenas próprio Estado, mas também de todas as
úteis ao modo de produção em que foram relações constituídas a partir da ideologia
inseridos, de forma que compuseram a socioeconômica que teve como funda‑
base da pirâmide social ao longo de toda mento o escravismo colonial e continua a
a história do país, vistos como estranhos e reproduzir seus mecanismos de exclusão
incômodos no âmbito das relações sociais e marginalização.
estabelecidas, eis que não partilhavam
das mesmas identidades culturais, religio‑
sas, entre outras, comparadas às do espec‑
tro hegemônico.
Capitalismo e revolução burguesa
O homem ou mulher escravizado no Brasil – o pensamento de
constitui o elemento central da colônia, Nélson Werneck Sodré
mas foi marginalizado nas relações cons‑
truídas, haja vista que “o trabalho escravo
nunca irá além do seu ponto de partida: o Nélson Werneck Sodré apresenta, na obra
esforço físico constrangido; não educará o “Capitalismo e Revolução Burguesa no
indivíduo, não o preparará para um plano Brasil”33, o olhar sobre a formação do capi‑
de vida humana mais elevado”32. talismo no Brasil, considerando os modos
de produção, a estrutura colonial, o merca‑
A contribuição de Caio Prado na do de trabalho e o que ele considera como
análise do racismo estrutural reside no revolução burguesa no Brasil. Também se
diagnóstico de que o capitalismo brasilei‑ dedica ao estudo de Vargas e de sua rela‑
ro possui uma forma específica de matriz ção com o desenvolvimento do capitalismo
histórica: a escravização. Portanto, não se no Brasil.
pode pensar o capitalismo brasileiro isola‑
damente – e isso pode ser confirmado pela A categoria “modo de produção”
leitura das obras de Jacob Gorender e Cló‑ atua como base da análise feita por Sodré
vis Moura, mas fica mais nítido na obra de sobre a formação do capitalismo no Brasil
Caio Prado, tendo em vista o foco por ele
atribuído à formação do Brasil no estudo Outrossim, o modo de produção
do sentido da colonização. estabelecido na sociedade brasileira dos

[33] SODRÉ, Nélson Werneck. Capitalismo e revo-


lução burguesa no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de
[32] Ibidem, p. 364. Livros, 1990.

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Humberto Bersani Aportes teóricos e reflexões sobre
o racismo estrutural no Brasil 187

primeiros tempos corresponde principal‑ são as primeiras peculiaridades constata‑


mente ao escravismo, pelo qual se nota das pelo autor, das quais emerge o fato de
que o Brasil pode ser entendido como uma ser temerário importar, para o estudo do
“sociedade transplantada: uns chegaram Brasil, modelos estabelecidos na análise
para serem escravizados; outros, para se‑ de outros países, pois as particularidades
rem senhores, ou encontraram condições presentes na sociedade brasileira impe‑
para tal”34. O escravismo é o modo respon‑ dem que se faça uma importação automá‑
sável pelo desenho de uma sociedade de tica, sob pena de se fragilizar a qualidade
classes no Brasil, representada pelos do‑ do estudo a um universo de classificações
minantes (senhores de escravos) e domi‑ e compartimentos. Ressalta que “o nosso
nados (homens e mulheres escravizados). país é um mosaico e não se distingue nele,
senão por força de fantasia, processos pu‑
Contudo, o escravismo não teria sido ros e uniformes, generalizados”37.
o modo de produção exclusivo em todo o
território brasileiro, haja vista o emprego Com efeito, a estrutura colonial
do feudalismo em áreas secundárias. Sodré, guarda origem no despreparo de Portugal
assim, afasta a tese de que seria incompatí‑ para colonizar, pois isso requer múltiplas
vel a coexistência de tal modo de produção intervenções, seja no comércio, na ocupa‑
com o escravismo pelo fato do primeiro ser, ção, na organização do sistema produtivo
normalmente, um processo de desdobra‑ ou no povoamento.
mento e continuidade que se faz ao longo
da história. Para ele, a forma feudal se deu A produção tinha de ser grande e,
“na área vicentina, na área pastoril serta‑ consequentemente, demandava conside‑
neja, na área amazônica, na área pastoril rável contingente de força de trabalho.
sulina, na área mineradora, depois da der‑ Para isso, encontrou­‑se no tráfico negrei‑
rocada da economia aurífera”35. ro uma saída.

A simultaneidade dos modos de pro‑ Sodré aponta as grandes peças da


dução vigentes e a dificuldade de se estabe‑ estrutura colonial como sendo a terra, o
lecer, de forma estanque, a passagem das capital e a força de trabalho38. Ele com‑
relações escravistas às relações feudais36 partilha da afirmação no sentido de que o
Brasil destinava sua produção ao mercado
externo, sustentando que a colonização
[34] Ibidem, pp. 11­‑12.
tinha, como linhas definidoras, “a especia‑
[35] Ibidem, p. 21.
[36] “No Brasil, não poderia ocorrer identidade de
processo, o que não significa que tenha havido ausên‑
cia de processo. Os casos apresentaram, ainda aqui, [37] Ibidem, p. 28.
diversidades, conforme a área e o tipo de produção. [38] “As grandes peças da estrutura estavam, pois,
De modo mais amplo, é possível distinguir as rela‑ dispostas: a terra, que era virgem e extensa, ecologi‑
ções feudais originárias, isto é, datadas dos primeiros camente favorável; o capital, levantado na área mer‑
tempos, e aquelas que surgiram da decomposição do cantil holandesa e ainda na portuguesa, e levantado
escravismo, a partir do simples povoamento da área, pelo que poderia ter sido, então, conhecido como ‘ini‑
que permaneceram mais ou menos estáveis ao longo ciativa privada’; a força de trabalho, transferida da
dos tempos, até o quadro já complexo derivado de al‑ África, aproveitando a prática das empresas negrei‑
terações significativas”. Ibidem, p. 23. ras, largamente lucrativas”. Ibidem, p. 38.

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o racismo estrutural no Brasil 188

lização ecológica; a ausência inicial de va‑ do consigo um sentimento de repulsa por


lor da terra e sua ampla disponibilidade; o questões relativas à cor e às religiões dos
regime de monopólio comercial”39. homens e mulheres escravizados e, ao mes‑
mo tempo, apresenta o anseio por mudança,
A concentração da renda proporcio‑ haja vista a dificuldade de ascensão social.
nada pela colônia no exterior caracteriza
a economia colonial, sendo a sociedade Com o advento da república, é pos‑
colonial composta basicamente por duas sível notar o crescimento das relações
classes (já mencionadas, mas convém res‑ capitalistas e a gradativa aniquilação dos
saltar): “a dos senhores, que são os proprie‑ elementos presentes na colonização.
tários da terra e dos que nela trabalham,
e são poucos, e a dos homens e mulheres A sociedade brasileira ainda repro‑
escravizados, que fornecem o trabalho e duzia, mesmo após o domínio colonial, o
estão presos ao engenho”40. reconhecimento dos senhores, mas vê
a formação de uma classe média, que se
O Estado colonial é dividido basica‑ projetava naqueles.
mente em duas fases, sendo a primeira refe‑
rente ao período em que se delegou poderes O sistema colonial estava em crise e,
à esfera privada e, a segunda, o período em com ele, o escravismo passa a ser um verda‑
que se retomou os poderes, com a concen‑ deiro problema. Conforme observa Sodré,
tração deles, desde o advento da mineração
até a vinda de Dom João VI ao Brasil. O Brasil se modernizava e essa moder‑
nização correspondia ao avanço das
As ideologias coloniais são identifi‑ relações capitalistas. Ora, tais relações
cadas como as seguintes: a da metrópole, exigiam a força de trabalho livre, isto é,
vinculada à classe dominante, que in‑ o trabalho assalariado.
corpora a discriminação e o racismo em
suas práticas, inclusive com o respaldo (...) Por diversos motivos – e não os
da legislação; e aquela vinculada à classe genéricos, como uma ciência manca
dominada (homens e mulheres escraviza‑ pretende estabelecer – o rendimento
dos e servos) e, ainda, a ideologia da classe do trabalho escravo, além de tudo, era
média ou pequena burguesia. mais baixo do que o do trabalho livre.

A ideologia dos homens e mulheres (...) não ocorreu aqui a passagem do tra‑
escravizados teria se dividido entre o de‑ balho escravo ao livre, mas a substitui‑
sejo pela liberdade e a fuga espiritual. ção daquele por este.

A classe média tende a se projetar na Essas transformações exerceram enor‑


ideologia da classe dominante, carregan‑ me influência no processo de liquidação
do trabalho escravo.41

[39] Ibidem, p. 40.


[40] Ibidem, p. 44. [41] Ibidem, p. 66.

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Humberto Bersani Aportes teóricos e reflexões sobre
o racismo estrutural no Brasil 189

Vê­‑se, portanto, que o fim do tra‑ afirma que apenas no século XIX o Brasil
balho escravo não foi uma manifestação teve condições que viabilizariam o capita‑
da “benevolência” do Estado ou um reco‑ lismo. Chama tal fase de Revolução Bur‑
nhecimento do grande erro cometido ao guesa no Brasil, que corresponde à
se apropriar de tal forma de trabalho, mas
sim uma necessidade imposta pelo proces‑ alteração econômica, social e política
so de modernização instaurado. O fato de que, resultante da luta de classes, colo‑
não ter havido uma passagem, mas sim a cou a burguesia no poder e lhe permi‑
substituição abrupta do trabalho escravo tiu, pelo controle do Estado, realizar as
pelo trabalho livre, com o prestígio confe‑ alterações necessárias a restabelecer a
rido à força de trabalho imigrante, reforça adequação entre as novas forças produ‑
ainda mais a exclusão social a ser enfren‑ tivas e as relações de produção.42
tada pelos africanos e seus descendentes.
Alguns dados históricos mencio‑
Com efeito, diante do contexto men‑ nados pelo autor revelam as mudanças
cionado, resta a constatação de que a exis‑ ocorridas e o próprio reconhecimento do
tência e o término do trabalho escravo Estado mediante a tomada de medidas
estiveram totalmente atrelados ao capita‑ condizentes com esse processo. O Código
lismo no Brasil, razão pela qual torna­‑se Comercial, de 1850, e o Código Civil, de
imperativa a discussão da exclusão racial 1855, representam dois exemplos de que a
associada ao capitalismo em si e, portanto, sociedade tinha passado por mudanças e
à luta de classes que dele emerge. apresentava outras demandas para aten‑
der a questão da propriedade e a chegada
No início de seu estudo voltado à de empresas comerciais e industriais.
Revolução Burguesa no Brasil, o autor
afastou a ideia difundida, inclusive, en‑ Aliadas, a Crise de 1929 e a chama‑
tre pensadores marxistas, de que o Brasil da Revolução de 1930 contribuíram para
era capitalista desde a etapa colonial. Ele a consolidação do capitalismo no Brasil.
alegou, inicialmente, ser curiosa tal afir‑ Resta nítido que Sodré, ao utilizar o mate‑
mação por um aspecto cronológico, eis rialismo dialético como método de análise
que a Revolução Francesa, bem como a da historiografia do Brasil, elucida, de for‑
Revolução Inglesa, datam de um período ma fundamentada e contundente, o per‑
posterior ao século XVI. Explorou este curso histórico que trouxe o capitalismo
argumento, considerando que a burgue‑ como sistema socioeconômico ao Brasil,
sia da colônia teria antecedido, seguindo sem ignorar, contudo, as peculiaridades
aquela linha criticada, as próprias bur‑ que caracterizam a formação socioeconô‑
guesias francesa e inglesa. Resgata, ainda, mica do país.
o entendimento de Marx segundo o qual
nem todo dinheiro é capital. É indubitável, pois, ao partir de sua
obra como contribuição à formulação de
Admite, entretanto, a coexistência
de mais de uma forma de produção no
Brasil durante o período colonial, mas [42] Ibidem, p. 91.

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Humberto Bersani Aportes teóricos e reflexões sobre
o racismo estrutural no Brasil 190

uma teoria do racismo estrutural brasilei‑ concluir o contrário, consoante leciona


ro, que o capitalismo e a ideologia racista Kabengele Munanga:
são indissociáveis. Sabe­‑se que a utilização
do trabalho escravo para a formação de ex‑ A realidade da raça não é mais biológi‑
cedentes viabiliza o capitalismo mercantil. ca, mas sim histórica, política e social.
A palavra continua sendo usada como
Por fim, cumpre indagar – e este é uma categoria de análise para enten‑
um questionamento propiciado por Sodré der o que aconteceu no passado e o que
em sua obra – o que restou como herança acontece no presente.
colonial, ou seja, aquilo que, não obstan‑
te todas as transformações pelas quais o O nó central do problema não é a raça
país passou, persiste difundido na socie‑ em si, mas sim as representações dessa
dade. Isso fornecerá recursos para expor palavra e a ideologia dela derivada. Se
a manutenção da desigualdade como um até o fim do século XIX e início do sécu‑
resultado da própria atuação do Estado e lo XX, o racismo dependeu da raciona‑
das formas pelas quais ele se revela a seus lidade científica da raça, hoje ele inde‑
membros, sobretudo os marginalizados pende dessa variante biológica. Ou seja,
desde os tempos longínquos. o racismo no século XXI se reconstrói
com base em outras essencializações,
notadamente culturais e históricas e
até aquelas consideradas politicamente
corretas como a etnia, a identidade e a
Racismo estrutural diferença cultural43.

Segundo Antonio Sérgio Alfredo


O percurso teórico até aqui construído, Guimarães,
com o auxílio dos referenciais analisados,
possibilita que se estabeleça uma reflexão O conceito de “raça” não faz sentido
acerca do racismo estrutural em si. senão no âmbito de uma ideologia ou
teoria taxonômica, à qual chamarei de
Antes disso, já que o presente objeto racialismo. No seu emprego científico,
de estudo corresponde ao racismo estru‑ não se trata de conceito que explique
tural, é necessário registrar a pertinência fenômenos ou fatos sociais de ordem
da utilização do termo “raça”. institucional, mas de conceito que aju‑
de o pesquisador a compreender certas
A biologia afasta a existência de ra‑ ações subjetivamente intencionadas,
ças na classificação da espécie humana,
pois não há evidências biológicas que cor‑
roborem essa subdivisão.
[43] MUNANGA, Kabengele. Teoria social e relações
Contudo, ao transcender o olhar raciais no Brasil contemporâneo. Cadernos Penesb–
puramente biológico, passando ao as‑ Periódico do Programa de Educação sobre o Negro na
Sociedade Brasileira (Especial curso ERER), n. 12, p.
pecto histórico­
‑sócio­
‑político, é possível 1­‑384, 2010. p. 11.

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Humberto Bersani Aportes teóricos e reflexões sobre
o racismo estrutural no Brasil 191

ou o sentido subjetivo que orienta cer‑ É inafastável, portanto, que, se há dis‑


tas ações sociais. criminações que guardam origem em um
olhar racial sobre os seres humanos, elas
Tal conceito é plenamente sociológico devem ser estudadas a partir desse cenário.
apenas por isso, porque não precisa es‑
tar referido a um sistema de causação Ademais, o fato de os movimentos
que requeira um realismo ontológico. sociais se mobilizarem na luta antirracis‑
Não é necessário reivindicar nenhuma ta, apresentando suas demandas ao Estado
realidade biológica das “raças” para fun‑ para um debate público sobre a exclusão
damentar a utilização do conceito em social que atinge determinado grupo, bem
estudos sociológicos.44 como de o Estado reconhecer a desigual‑
dade racial e estabelecer políticas públicas
Ainda sobre a questão conceitual, voltadas à correção das distorções, con‑
Colette Guillaumin afirma que “a inven‑ ferem uma dimensão política à noção de
ção da natureza não pode ser separada da raça. Isso sem deixar de lado o fato de que,
dominação e da apropriação dos seres hu‑ no Brasil, o racismo esteve a serviço do sis‑
manos”45. Segundo a socióloga: tema colonial, pois os negros escravizados
foram dominados e apropriados durante
Se a raça não existe, isso não elimina a tal período e, para além dele, atuaram na
realidade social e psicológica do fato da transição do país para o capitalismo e no
raça. Reconhecimento que não deve se próprio fortalecimento desse sistema so‑
confundir com a admissão da realidade cioeconômico, sempre em uma posição
racial como realidade biológica; isso se‑ marginalizada. Mais uma razão para não
ria condenar a ver uma realidade mate‑ se ignorar a dimensão política do racismo.
rial que não contempla a influência das
diferenças culturais sobre o funciona‑ Outrossim, as raças existem em fun‑
mento social.46 ção do racismo enquanto ideologia. O sen‑
tido de se falar na existência de raças está
atrelado ao diagnóstico de que, no Brasil, a
raça ainda confere uma situação privilegia‑
da ou não, sendo um elemento que fortale‑
[44] GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo ce a exclusão social, segregando o grupo que
e antirracismo no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Editora 34, foi ignorado durante toda a história do país.
2009, pp. 30­‑31.
[45] “L’invention de la nature ne peut pás être séparée
Pois bem. Partindo­‑se dos elemen‑
de la domination et de l’appropriation d’êtres humains”.
GUILLAUMIN, Colette. L’idéologie raciste. Paris: Éti‑ tos do racismo estrutural brasileiro,
tions Gallimard, 2002, p. 352. emergem quatro constatações básicas que
[46] “Si la race n’existe pas, cela n’en détruit pas pour au‑ evidenciam a consolidação da ideologia
tant la realité sociale et psychologique des faits de race.
racista no Brasil e as formas pelas quais
Reconnaissance qui ne doit pas se confondre avec l’ad‑
mission de la realité raciale comme réalité biologique; ce ele se manifesta.
serait se condamner à voir dans une réalité matérielle qui
ne recouvre pas les divergences culturelles l’origine d’un Primeiramente, considera­‑se a pre‑
fonctionnement social”. GUILLAUMIN, Colette. L’idéo‑
logie raciste. Paris: Étitions Gallimard, 2002, p. 92.
missa de que o Brasil teve, como modo de

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Humberto Bersani Aportes teóricos e reflexões sobre
o racismo estrutural no Brasil 192

produção original, o escravismo colonial. como construção a partir de uma estrutura


Trata­‑se da peculiaridade que informa o racista, o que faz com que o racismo seja
papel desempenhado pelos africanos na um elemento estruturante do capitalismo
formação do Brasil, bem como a gênese da brasileiro, enquanto os dois últimos auto‑
ideologia racista aqui constituída. res (Caio Prado Júnior e Nélson Werneck
Sodré) veem o racismo como uma manifes‑
Em segundo lugar, o olhar para o tação da estrutura capitalista.
racismo sistematizado na obra de Clóvis
Moura aponta para a necessidade de se Com efeito, o Estado age sobre o ra‑
verificar as variações das práticas escra‑ cismo quer pela sua presença, mediante
vistas ao longo da História do Brasil e a leis, políticas segregacionistas e de higie‑
atuação do Estado nos divisores encon‑ nização, entre outras medidas, quer pela
trados. Uma demonstração desse argu‑ sua ausência, pois não enfrentou a ques‑
mento é a afirmação de Moura de que a tão racial em seu cerne, enraizada no país
Lei Eusébio de Queirós teria sido o marco desde o período colonial.
de passagem do Escravismo Pleno para o
Escravismo Tardio, ou seja, trata­‑se da in‑ Quando se trabalha a partir de polí‑
gerência do Estado sobre a questão racial. ticas de ações afirmativas, como o sistema
de cotas (nos âmbitos da educação e do tra‑
Um terceiro ponto a ser menciona‑ balho), ou mediante a criação de um órgão
do corresponde à economia colonial como com status de ministério (Secretaria de Po‑
sentido da colonização e da importância líticas de Promoção da Igualdade Racial)
dos africanos trazidos como homens e para tratar as políticas públicas voltadas à
mulheres escravizados na formatação da questão racial, o Estado revela o tratamen‑
colônia e, consequentemente, na conse‑ to do assunto no âmbito institucional.
cução dos seus objetivos.
Por outro lado, o racismo também
O quarto marco teórico fortalece a apresenta sua face institucional, seja pela
noção de que não houve qualquer projeto violência praticada pelo Estado diariamen‑
de inclusão, por parte do Estado, referen‑ te à população negra, pela Polícia Militar,
te aos africanos e seus descendentes que seja pela forma como o Estado se revela em
aqui vieram trabalhar como escravizados, sua composição mediante a dificuldade de
com a anulação de toda a identidade e a acesso ao poder e aos espaços de que dispõe
posterior exclusão social decorrente do (e isso será objeto de estudo oportunamen‑
descarte pela inutilidade ao sistema colo‑ te) ou, ainda, pela dificuldade de acesso a
nial durante sua fase de modernização e políticas públicas de qualidade.
depois dela, com a vinda dos imigrantes
e a preferência pelo trabalho assalariado Contudo, no presente estudo impõe­
exercido por estes últimos. ‑se a transcendência ao âmbito institucio‑
nal, pois, além de a instituição constituir
É importante registrar que os dois verdadeiro aparelho ideológico, é indubi‑
primeiros autores (Jacob Gorender e Clóvis tável que a mudança das instituições não
Moura) entendem o capitalismo no Brasil implica o término automático e perma‑

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Humberto Bersani Aportes teóricos e reflexões sobre
o racismo estrutural no Brasil 193

nente do racismo. É muito mais comple‑ estabelecida pelo escravismo colonial, sen‑
xo tratar questões que se revelam como do, portanto, o elemento que permaneceu
autênticas manifestações ideológicas e, desde a gênese do Brasil, sobrevivendo a
como o racismo é uma delas, sedimentado todas as transformações ocorridas, até o
por séculos na história do país, aí reside atual modelo neoliberal. O racismo está,
um grande desafio no tocante à promoção assim, na essência do próprio Estado.
dos Direitos Humanos.
Segundo Dennis de Oliveira,
Ressalta­‑se, dessa forma, que o ra‑
cismo revela­‑se como um sistema que, no No caso específico de países que foram
Brasil, por toda a sua história, está atrela‑ colonizados, como os da América Lati‑
do à luta de classes. na, que construíram sua base primiti‑
va de acumulação com base no traba‑
lho escravo de negros e indígenas; que
passou por uma revolução burguesa
de caráter conservador, que manteve
Em busca de uma proposta estruturas aristocráticas e escravistas
conceitual quase que intactas, a adoção deste mo‑
delo neoliberal aumenta um processo
de exclusão que já existia, praticamente
O racismo estrutural corresponde a um condenando ao extermínio os ocupan‑
sistema de opressão cuja ação transcen‑ tes deste segmento populacional. Este
de a mera formatação das instituições, eis aumento se dá de duas formas:
que perpassa desde a apreensão estética até
todo e qualquer espaço nos âmbitos público a) de forma extensiva, ao ampliar o nú‑
e privado, haja vista ser estruturante das mero de pessoas que entram na zona da
relações sociais e, portanto, estar na confi‑ exclusão social, num processo que po‑
guração da sociedade, sendo por ela natu‑ demos denominar de democratização
ralizado. Por corresponder a uma estrutura, da senzala;
é fundamental destacar que o racismo não
está apenas no plano da consciência – a b) de forma intensiva, ao intensificar os
estrutura é intrínseca ao inconsciente. Ele mecanismos de exclusão daquelas pesso‑
transcende o âmbito institucional, pois está as que já estavam na zona dos excluídos,
na essência da sociedade e, assim, é apro‑ num processo complementar que deno‑
priado para manter, reproduzir e recriar minaremos de extermínio da senzala.
desigualdades e privilégios, revelando­ ‑se
como mecanismo colocado para perpetuar Os dois processos – democratização e
o atual estado das coisas. extermínio da senzala – praticamen‑
te destroem a já combalida sociedade
De todas as transformações ocorri‑ civil e transformam a cidadania num
das com os modos de produção ao longo da privilégio cada vez mais inacessível
história, o racismo no Brasil pode ser con‑ à maioria. Os direitos sociais, embora
siderado como produto desta ordem social previstos legalmente, transformam­ ‑se

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o racismo estrutural no Brasil 194

em letra morta diante da incapacidade qual os afro­‑brasileiros se beneficiaram,


dos poderes públicos garanti­ ‑los sem constatamos que ainda há um grande
uma ruptura com todo o sistema social. contraste entre a precariedade da situ‑
A tendência à concentração de renda ação dos negros brasileiros e o eleva‑
faz agravar ainda mais os problemas e, do crescimento econômico do país. Os
assim, a resolução destes exige cada vez afro­‑brasileiros não serão integralmen‑
mais investimentos vultuosos que sig‑ te considerados como cidadãos plenos
nificariam uma mudança dos rumos do sem uma justa distribuição do poder
desenvolvimento capitalista atual.47 econômico, político e cultural.48

No dia 13 de dezembro de 2013, o De fato, o racismo estrutural é ní‑


Grupo de Trabalho das Nações Unidas tido e não demanda grande esforço para
sobre Afrodescendentes divulgou um co‑ ser visualizado. Ele está difundido na
municado acerca da visita oficial feita ao sociedade, na ordem social vigente e a
Brasil durante o período de 3 a 13 de de‑ serviço dos privilégios que demarcam as
zembro daquele ano. classes sociais. Enfrentá­‑lo é uma forma
de discriminação positiva e necessária, e
O Grupo concluiu, em sua visita, não um racismo na mesma intensidade,
aquilo que muitos pesquisadores dos mais ao contrário do que muitos dizem, pois
diversos campos do saber já têm apontado trata­
‑se da busca por mecanismos que
há anos: promovam a desconstrução da ideologia
que se traduz em inúmeras práticas dis‑
Os afro­‑brasileiros constituem mais da criminatórias diariamente, chancelando
metade da população brasileira, no en‑ a exclusão de um grupo social específico.
tanto, são sub­‑representados e invisí‑
veis na maioria das estruturas de poder, Ao conceituar a cultura, John
nos meios de comunicação e no setor Thompson afirma que uma de suas for‑
privado. Esta situação tem origem na mas simbólicas é a estrutural e, para isso,
discriminação estrutural, que se baseia reflete acerca da estrutura. Aduz que:
em mecanismos históricos de exclusão
e estereótipos negativos, reforçados Analisar a estrutura de uma forma sim‑
pela pobreza, marginalização política, bólica é analisar os elementos especí‑
econômica, social e cultural. ficos e suas inter­‑relações que podem
ser discernidos na forma simbólica em
Embora o Brasil tenha avançado na re‑ questão; analisar o sistema corporifi‑
dução da pobreza, da pobreza extrema e
das taxas de desigualdade, processo do
[48] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. GRU‑
PO DE TRABALHO DAS NAÇÕES UNIDAS SO‑
BRE AFRODESCENDENTES. Grupo de trabalho da
[47] OLIVEIRA, Dennis de. Racismo estrutural – ONU sobre afrodescendentes divulga comunicado
apontamentos para uma discussão conceitual. Dis‑ final sobre visita ao Brasil. Disponível em: <http://
ponível em: <http://movimientos.org/es/dhplural/ nacoesunidas.org/grupo­‑de­‑trabalho­‑da­‑onu­‑sobre­
foro­‑ racismo/show_text.php3%3Fkey%3D371>. ‑afrodescendentes­‑ divulga­‑ comunicado­‑ final/>.
Acesso em: 5 maio 2015. Acesso em: 30 abr. 2015.

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Humberto Bersani Aportes teóricos e reflexões sobre
o racismo estrutural no Brasil 195

cado em uma forma simbólica é, por exercido pelo racismo na constituição da


contraste, abstrair a forma em questão sociedade brasileira para, como consequ‑
e reconstruir uma constelação que se ência inevitável, transpassar a essência
exemplifica em casos particulares. A es‑ do Estado enquanto forma política a ser‑
trutura de uma forma simbólica é um viço do modo de produção imposto.
padrão de elementos que podem ser dis‑
cernidos em casos concretos de expres‑ O racismo institucional se apre‑
são, em efetivas manifestações verbais, senta, nesse sentido, como uma das pos‑
expressões ou textos.49 sibilidades para a leitura dessa forma de
opressão, mas destaca­‑se que ele limita o
Portanto, a perspectiva traçada horizonte de compreensão apenas ao pla‑
pelo racismo estrutural confere a possi‑ no das instituições.
bilidade de se tratar o racismo pela raiz,
atentando­‑se à sua essência e às peculia‑ Se, por um lado, é inquestionável o
ridades desde a formação do país, ou seja, fato de que as instituições desempenham
da mesma maneira pela qual ele tem se papel fundamental nas práticas racistas,
revelado, significado e ressignificado ao por outro é imprescindível buscar a ori‑
longo da História do Brasil. É enxergá­‑lo gem do sistema excludente e indagar se
não apenas pela forma como ele se mos‑ ele não transcende o viés institucional.
tra, mas sim pelo que ele é.
Com efeito, o olhar para o racismo
enquanto elemento estrutural da socieda‑
de brasileira representa uma perspectiva
de ampliação do horizonte anteriormen‑
Considerações finais te mencionado, revelando no campo da
teoria um cenário perceptível na prática:
de que o racismo se encontra nas mais
O estudo ora realizado não teve como ob‑ diversas relações estabelecidas no Brasil,
jetivo o esgotamento da compreensão de sejam elas sociais, econômicas, políticas,
como o racismo se opera na sociedade bra‑ culturais, entre outras. Não está apenas no
sileira, mas sim a elaboração de um resgate plano da consciência, mas também da in‑
teórico para o apontamento de possíveis consciência. Em outras palavras, se biolo‑
caminhos à análise. gicamente se refuta a existência de raças, o
racismo, enquanto metáfora desse campo
Diante disso, o olhar para as raízes do saber, corresponde ao DNA do Brasil.
históricas que propiciaram a consolidação
de um elemento que atua decisivamen‑
te na exclusão social consolidada no país
possibilita a noção do caráter intrínseco
[  HUM BERTO BERSA N I  ]
Doutor em Direitos Humanos pela Faculdade de
[49] THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moder- Direito da Universidade de São Paulo – USP.
na: teoria social crítica na era dos meios de comunica-
E-mail: hbersani@gmail.com
ção de massa. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011. pp. 187­‑188.

Extraprensa, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 175 – 196, jan./jun. 2018 [ EXTRAPRENSA ]


Humberto Bersani Aportes teóricos e reflexões sobre
o racismo estrutural no Brasil 196

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