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TEÓRICOS E
REFLEXÕES
SOBRE O RACISMO
ESTRUTURAL
NO BRASIL
[ ARTIGO ]
Humberto Bersani
Universidade de São Paulo.
Faculdade de Direito
Humberto Bersani Aportes teóricos e reflexões sobre
o racismo estrutural no Brasil 176
The article intends to analyze the racism as a structural element of oppression in Brazil.
There are considered the theoretical contributions of Jacob Gorender, Clóvis Moura,
Caio Prado Júnior and Nelson Werneck Sodré are taken into account, highlighting
colonial and systematized slavery, colonial economy and the formation of capitalism
in Brazil. From the bibliographical survey and established the relations between the
references, a proposal will be presented to understanding of structural racism.
Keywords: Structural Racism. Slavery. Social Exclusion.
DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2018.148025
capitalista, ou seja, autêntico represen‑ como modo de produção, nota‑se que Mou‑
tante da gênese do capitalismo no Brasil. ra estabelece um diálogo com o pensamen‑
Essa chave é importante, pois ela revela to de Jacob Gorender. Trata‑se, pois, de
a relação intrínseca entre o capitalismo e uma constatação que fortalece o caminho
o escravismo, bem como a influência da escolhido na presente investigação sobre
ideologia advinda do referido processo o modo de pensar o Brasil e a centralida‑
histórico, contribuindo com a construção de das relações raciais enquanto elemento
do racismo no Brasil. fundante da sociedade brasileira.
tados Unidos daquela época –, ser igua‑ No caso particular do Brasil (como tam‑
lada a algumas categorias de trabalha‑ bém nas demais áreas de trabalho es‑
dores livres europeus.12 cravo), para que a divisão desse tipo de
trabalho funcionasse racionalmente,
Verifica‑se, aí, mais uma importante houve a necessidade de uma estratifica‑
chave conferida por Clóvis Moura ao es‑ ção social no interior das relações escra‑
tudar o escravismo: o perigo de se atentar vistas, necessária e que se diferenciava
à forma e não à essência. Fica explícita, no de acordo com o gênero produzido.14
trecho transcrito, a aplicação do materia‑
lismo histórico‑dialético como método de Com a vinda de Dom João VI ao Bra‑
estudo empregado pelo autor. sil, em 1808, o país passou por inúmeras
mudanças. A liberdade de comércio aos
O método já se anuncia no título da poucos foi estabelecida, dando espaço para
obra em estudo. A dialética radical pres‑ o que o autor, partindo do pensamento de
supõe uma postura metodológica que re‑ Caio Prado Júnior, chama de Liberalismo
quer a crítica pela raiz, imanente, ou seja, Escravista. A proclamação da Independên‑
que parte da essência do objeto, e não das cia não inviabilizou o escravismo e a lógica
formas pelas quais ele se manifesta. que ele impunha enquanto modo de pro‑
dução. A mudança mais significante teria
O Escravismo Pleno compreende sido a Lei Eusébio de Queirós, da qual “sur‑
o período que vai desde 1550 (aproxima‑ girá o embrião de uma burguesia epidérmi‑
damente) até 1850, por ocasião da Lei Eu‑ ca que nasce muito tarde como classe e que
sébio de Queirós, que extinguiu o tráfico não podia desempenhar aquelas funções
internacional de africanos escravizados, dinamizadoras atribuídas a uma burguesia
ou seja, passa por todo o período colonial clássica nos moldes europeus.”15 Ressalta,
(reinados de Dom João VI, Dom Pedro I e ainda: “aquilo denominado por Caio Prado
Dom Pedro II). Ele se caracteriza “pelo fato Jr. de O Império escravocrata e a aurora bur‑
de as relações de produção escravistas do‑ guesa (1850‑1889) é o período no qual o es‑
minarem quase totalmente a dinâmica cravismo entra em crise progressiva a que
social, econômica e política”13. denominamos de escravismo tardio.”16
que contribuiu para a formação do cená‑ tados por outros escravocratas, o que seria
rio abolicionista. inadmissível sob a égide da ética escravista.
A Guerra do Paraguai também exer‑ Infere‑se, pois, que a Abolição foi in‑
ceu forte influência no Escravismo Tardio. teressante e útil ao quadro que se desenha‑
Os negros escravizados foram obrigados a va no país. Moura afasta a possibilidade de
lutar, ao lado do Exército brasileiro, con‑ vê‑la como uma revolução democrático
tra um país que não tinha escravização. ‑burguesa21, mas essa questão será apro‑
O próprio governo comprou milhares de fundada oportunamente, por ocasião do
negros escravizados para a guerra20. estudo da obra de Nelson Werneck Sodré.
Por isso, algumas medidas foram ado‑ Não podemos negar que o trabalho es‑
tadas, tais como a Lei da Terra (a terra se cravo foi substituído pelo trabalho li‑
apresentava como um obstáculo, e foi con‑ vre. Mas as estratégias de dominação
servada com a edição da referida lei, afastan‑ antecipadamente estabelecidas fizeram
do qualquer ameaça à sua posse), bem como com que o antigo escravo não entrasse
o apoio dado ao movimento imigrantista. sequer como força secundária na di‑
nâmica desse processo, ficando como
O final do Escravismo Tardio teve borra, sem função expressiva. O Brasil
a presença da ética do capitalismo. Ela se arcaico preservou os seus instrumentos
revela, por exemplo, pelo fato de que os es‑ de dominação, prestígio e exploração e
cravizados fugidos passaram a ser contra‑ o moderno foi absorvido pelas forças di‑
nâmicas do imperialismo que também
antecederam à Abolição na sua estraté‑
[20] “Na dinâmica social desenvolvida pela Guerra do
gia de dominação.22
Paraguai durante o seu transcurso podemos ver como
as relações escravistas irão se modificando e se desar‑
ticulando, havendo uma modalidade de dinâmica so‑
cial que irá redundar em um realinhamento de forças
sociais e étnicas que irá caracterizar, cada vez mais, o [21] Ibidem, p. 152.
escravismo desse período como tardio”. Ibidem, p. 144. [22 Ibidem, p. 152.
A questão racial constitui assunto não se fez nesse período de tempo que
que requer amplo aprofundamento sobre prolongá‑lo e o repetir em novas áreas
tal aspecto. E entre as três raças que partici‑ ainda não colonizadas.29
param da formação do Brasil, é necessário
considerar a diversidade nelas presente, O trecho ora transcrito vai ao en‑
de modo que ignorar tais peculiaridades contro da teoria apresentada por Clóvis
prejudicaria a pesquisa que leva em conta Moura, uma vez que Caio Prado também
o processo histórico da colonização. entende que o sistema colonial não teria
sofrido grandes mudanças durante os
A evolução étnica brasileira teve como três primeiros séculos da História do Bra‑
uma de suas principais características a su‑ sil, período este que Moura chamou de
pervalorização do procriador. Não é à toa Escravismo Pleno.
que a expressão “limpar o sangue” referia‑se
à “acentuação do influxo branco”27. A política econômica, portanto, re‑
duziu “o Brasil à simples situação de pro‑
O Brasil colonial teve sua organi‑ dutor de alguns gêneros destinados ao
zação agrária a partir de três elementos comércio internacional”30 durante o perí‑
básicos, o latifúndio, o trabalho escravo e odo de colonização.
a monocultura. Tais elementos compõem
o que Caio Prado chama de “grande ex‑ Pela utilização dos homens e mu‑
ploração rural”, ou seja, “a reunião numa lheres escravizados foi possível viabilizar
mesma unidade produtora de grande nú‑ as atividades mercantis estabelecidas na
mero de indivíduos”28. colônia e obter proveito desse processo na
formação da sociedade brasileira.
Assim, a síntese da economia co‑
lonial brasileira pode ser compreendida A escravização indígena também foi
pelo seguinte: explorada de forma diferente, se compara‑
da à escravização dos negros. A população
De um lado, essa organização da produ‑ indígena teve a influência da educação je‑
ção e do trabalho, e a concentração da suítica e contou com o estatuto dos índios,
riqueza que dela resulta; do outro, a sua o que, embora não tenha afastado os indí‑
orientação, voltada para o exterior e genas da submissão imposta pela coloniza‑
simples fornecedora do comércio inter‑ ção, impediu que eles tivessem contato com
nacional. Nessas bases se lançou a colo‑ as formas mais nefastas da escravização31.
nização brasileira, e nelas se conservará
até o momento que ora nos interessa. Os negros, ao contrário, não re‑
Não há na realidade modificações subs‑ ceberam qualquer proteção, mas foram
tanciais do sistema colonial nos três pri‑ esbulhados em todas as dimensões imagi‑
meiros séculos de nossa história. Mais
náveis, sem que houvesse qualquer pre‑ Portanto, o estudo do racismo estru‑
paro para que adentrassem a sociedade tural não pode ser feito de forma disso‑
que os incorporou compulsoriamente na ciada da análise do capitalismo brasileiro,
condição de autênticos objetos voltados à uma vez que tais elementos estão atre‑
satisfação dos objetivos mercantis. lados entre si e, dessa forma, é possível
afirmar que o racismo está presente nas
Desde o início da formação do Bra‑ estruturas de opressão não apenas do
sil, os negros foram considerados apenas próprio Estado, mas também de todas as
úteis ao modo de produção em que foram relações constituídas a partir da ideologia
inseridos, de forma que compuseram a socioeconômica que teve como funda‑
base da pirâmide social ao longo de toda mento o escravismo colonial e continua a
a história do país, vistos como estranhos e reproduzir seus mecanismos de exclusão
incômodos no âmbito das relações sociais e marginalização.
estabelecidas, eis que não partilhavam
das mesmas identidades culturais, religio‑
sas, entre outras, comparadas às do espec‑
tro hegemônico.
Capitalismo e revolução burguesa
O homem ou mulher escravizado no Brasil – o pensamento de
constitui o elemento central da colônia, Nélson Werneck Sodré
mas foi marginalizado nas relações cons‑
truídas, haja vista que “o trabalho escravo
nunca irá além do seu ponto de partida: o Nélson Werneck Sodré apresenta, na obra
esforço físico constrangido; não educará o “Capitalismo e Revolução Burguesa no
indivíduo, não o preparará para um plano Brasil”33, o olhar sobre a formação do capi‑
de vida humana mais elevado”32. talismo no Brasil, considerando os modos
de produção, a estrutura colonial, o merca‑
A contribuição de Caio Prado na do de trabalho e o que ele considera como
análise do racismo estrutural reside no revolução burguesa no Brasil. Também se
diagnóstico de que o capitalismo brasilei‑ dedica ao estudo de Vargas e de sua rela‑
ro possui uma forma específica de matriz ção com o desenvolvimento do capitalismo
histórica: a escravização. Portanto, não se no Brasil.
pode pensar o capitalismo brasileiro isola‑
damente – e isso pode ser confirmado pela A categoria “modo de produção”
leitura das obras de Jacob Gorender e Cló‑ atua como base da análise feita por Sodré
vis Moura, mas fica mais nítido na obra de sobre a formação do capitalismo no Brasil
Caio Prado, tendo em vista o foco por ele
atribuído à formação do Brasil no estudo Outrossim, o modo de produção
do sentido da colonização. estabelecido na sociedade brasileira dos
A ideologia dos homens e mulheres (...) não ocorreu aqui a passagem do tra‑
escravizados teria se dividido entre o de‑ balho escravo ao livre, mas a substitui‑
sejo pela liberdade e a fuga espiritual. ção daquele por este.
Vê‑se, portanto, que o fim do tra‑ afirma que apenas no século XIX o Brasil
balho escravo não foi uma manifestação teve condições que viabilizariam o capita‑
da “benevolência” do Estado ou um reco‑ lismo. Chama tal fase de Revolução Bur‑
nhecimento do grande erro cometido ao guesa no Brasil, que corresponde à
se apropriar de tal forma de trabalho, mas
sim uma necessidade imposta pelo proces‑ alteração econômica, social e política
so de modernização instaurado. O fato de que, resultante da luta de classes, colo‑
não ter havido uma passagem, mas sim a cou a burguesia no poder e lhe permi‑
substituição abrupta do trabalho escravo tiu, pelo controle do Estado, realizar as
pelo trabalho livre, com o prestígio confe‑ alterações necessárias a restabelecer a
rido à força de trabalho imigrante, reforça adequação entre as novas forças produ‑
ainda mais a exclusão social a ser enfren‑ tivas e as relações de produção.42
tada pelos africanos e seus descendentes.
Alguns dados históricos mencio‑
Com efeito, diante do contexto men‑ nados pelo autor revelam as mudanças
cionado, resta a constatação de que a exis‑ ocorridas e o próprio reconhecimento do
tência e o término do trabalho escravo Estado mediante a tomada de medidas
estiveram totalmente atrelados ao capita‑ condizentes com esse processo. O Código
lismo no Brasil, razão pela qual torna‑se Comercial, de 1850, e o Código Civil, de
imperativa a discussão da exclusão racial 1855, representam dois exemplos de que a
associada ao capitalismo em si e, portanto, sociedade tinha passado por mudanças e
à luta de classes que dele emerge. apresentava outras demandas para aten‑
der a questão da propriedade e a chegada
No início de seu estudo voltado à de empresas comerciais e industriais.
Revolução Burguesa no Brasil, o autor
afastou a ideia difundida, inclusive, en‑ Aliadas, a Crise de 1929 e a chama‑
tre pensadores marxistas, de que o Brasil da Revolução de 1930 contribuíram para
era capitalista desde a etapa colonial. Ele a consolidação do capitalismo no Brasil.
alegou, inicialmente, ser curiosa tal afir‑ Resta nítido que Sodré, ao utilizar o mate‑
mação por um aspecto cronológico, eis rialismo dialético como método de análise
que a Revolução Francesa, bem como a da historiografia do Brasil, elucida, de for‑
Revolução Inglesa, datam de um período ma fundamentada e contundente, o per‑
posterior ao século XVI. Explorou este curso histórico que trouxe o capitalismo
argumento, considerando que a burgue‑ como sistema socioeconômico ao Brasil,
sia da colônia teria antecedido, seguindo sem ignorar, contudo, as peculiaridades
aquela linha criticada, as próprias bur‑ que caracterizam a formação socioeconô‑
guesias francesa e inglesa. Resgata, ainda, mica do país.
o entendimento de Marx segundo o qual
nem todo dinheiro é capital. É indubitável, pois, ao partir de sua
obra como contribuição à formulação de
Admite, entretanto, a coexistência
de mais de uma forma de produção no
Brasil durante o período colonial, mas [42] Ibidem, p. 91.
nente do racismo. É muito mais comple‑ estabelecida pelo escravismo colonial, sen‑
xo tratar questões que se revelam como do, portanto, o elemento que permaneceu
autênticas manifestações ideológicas e, desde a gênese do Brasil, sobrevivendo a
como o racismo é uma delas, sedimentado todas as transformações ocorridas, até o
por séculos na história do país, aí reside atual modelo neoliberal. O racismo está,
um grande desafio no tocante à promoção assim, na essência do próprio Estado.
dos Direitos Humanos.
Segundo Dennis de Oliveira,
Ressalta‑se, dessa forma, que o ra‑
cismo revela‑se como um sistema que, no No caso específico de países que foram
Brasil, por toda a sua história, está atrela‑ colonizados, como os da América Lati‑
do à luta de classes. na, que construíram sua base primiti‑
va de acumulação com base no traba‑
lho escravo de negros e indígenas; que
passou por uma revolução burguesa
de caráter conservador, que manteve
Em busca de uma proposta estruturas aristocráticas e escravistas
conceitual quase que intactas, a adoção deste mo‑
delo neoliberal aumenta um processo
de exclusão que já existia, praticamente
O racismo estrutural corresponde a um condenando ao extermínio os ocupan‑
sistema de opressão cuja ação transcen‑ tes deste segmento populacional. Este
de a mera formatação das instituições, eis aumento se dá de duas formas:
que perpassa desde a apreensão estética até
todo e qualquer espaço nos âmbitos público a) de forma extensiva, ao ampliar o nú‑
e privado, haja vista ser estruturante das mero de pessoas que entram na zona da
relações sociais e, portanto, estar na confi‑ exclusão social, num processo que po‑
guração da sociedade, sendo por ela natu‑ demos denominar de democratização
ralizado. Por corresponder a uma estrutura, da senzala;
é fundamental destacar que o racismo não
está apenas no plano da consciência – a b) de forma intensiva, ao intensificar os
estrutura é intrínseca ao inconsciente. Ele mecanismos de exclusão daquelas pesso‑
transcende o âmbito institucional, pois está as que já estavam na zona dos excluídos,
na essência da sociedade e, assim, é apro‑ num processo complementar que deno‑
priado para manter, reproduzir e recriar minaremos de extermínio da senzala.
desigualdades e privilégios, revelando ‑se
como mecanismo colocado para perpetuar Os dois processos – democratização e
o atual estado das coisas. extermínio da senzala – praticamen‑
te destroem a já combalida sociedade
De todas as transformações ocorri‑ civil e transformam a cidadania num
das com os modos de produção ao longo da privilégio cada vez mais inacessível
história, o racismo no Brasil pode ser con‑ à maioria. Os direitos sociais, embora
siderado como produto desta ordem social previstos legalmente, transformam ‑se
Referências
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GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. 3ª ed. São Paulo:
Editora 34, 2009.
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. 2ª ed. São Paulo: Fundação Maurício
Grabois; Anita Garibaldi, 2014.
OLIVEIRA, Dennis de. Racismo estrutural: apontamentos para uma discussão conceitual.
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PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia
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THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios
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