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ESTADO E
POLÍTICAS PÚBLICAS
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Daniella Fernandes Haruze Manta
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Mariana de Campos Barroso
Paola Andressa Machado Leal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Siqueira, Estela Cristina Vieira de


S618e  Estado e políticas públicas / Estela Cristina Vieira de
Siqueira – Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A., 2018.
96 p.

ISBN 978-85-522-1319-2

1. Estado. 2. Governo. I. Siqueira, Estela Cristina Vieira


de. II. Título.
CDD 370

Responsável pela ficha catalográfica: Thamiris Mantovani CRB-8/9491

2019
Editora e Distribuidora Educacional S.A.
Avenida Paris, 675 – Parque Residencial João Piza
CEP: 86041-100 — Londrina — PR
e-mail: editora.educacional@kroton.com.br
Homepage: http://www.kroton.com.br/

2
ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS

SUMÁRIO
Apresentação da disciplina 4

Estado e governo: conceito e representações 5

Estado e formação: o Estado brasileiro 20

Globalização: unidade e fragmentação 34

Globalização e suas características na acentuação da desigualdade 49

Democracia e Estado-nação 63

Estado e globalização: por uma outra democracia 80

O multiculturalismo e a ética igualitária 95

Movimentos multiculturais e suas organizações políticas 110

 3
Apresentação da disciplina

A disciplina de Estado e políticas públicas tem como objetivo principal


promover a reflexão acerca da importância exercida pelo Estado na
elaboração de políticas públicas e na organização social, e como essa
instituição, central para a existência de uma sociedade plural e mais
igualitária, surgiu de um contexto histórico de exclusão e dominação,
até que se tornasse concebível um modelo de Estado com amplitude de
acesso a direitos e garantias a todos os seus cidadãos.

Ao passar, aprofundadamente, pelas etapas de evolução do Estado


moderno e perceber seus desdobramentos no mundo contemporâneo,
compreenderemos melhor como se reproduziram as desigualdades
ao longo dos séculos e como o Estado, um dos principais elementos
perpetuadores da dinâmica capitalista de supressão de diversidades,
pode se tornar o oposto: um promotor de políticas sociais bem
engendradas, voltadas a real inclusão de quem mais precisa.

A relação íntima entre Estado e a elaboração de projetos sociais


depende, necessariamente, da compreensão de seus principais
elementos constitutivos e como a construção dos mercados a nível
global influenciou nas dinâmicas sociais desiguais que hoje dão ensejo
a múltiplas atuações, tanto do setor público, quanto do privado, no
sentido de promover espaços mais democráticos de debate e de
inclusão de minorias, antes subjugadas, em um modelo político mais
acessível e igualitário.

Ao longo desta disciplina, com o apoio da bibliografia principal e de


apoio, será possível entender um pouco mais sobre como o Estado
se relaciona com a sociedade e como a fragmentação cultural
artificialmente criada pelo sistema mercantil, e necessária à unificação e
gênese do Estado, pode se tornar a principal fonte de força humana na
promoção de justiça social.

4
Estado e Governo: conceito e
representações
Autora: Estela Cristina Vieira de Siqueira

Objetivos

• Compreender como o Estado moderno se


formou historicamente, conhecer os três
elementos essenciais constitutivos dos Estados,
quais sejam, povo, território e soberania para,
a partir deles, perceber a diferença entre os
conceitos de Estado e governo.

 5
1. Introdução

A instituição Estado, até que chegássemos aos dias atuais, passou por
inúmeras fases de transformação em suas estruturas de organização e
administração, algo que somente foi possível após sucessivas tentativas
históricas, nas quais o seres humanos, tomados por aquilo que seria
chamado na concepção aristotélica de “pulsão de gregária” – uma
propensão ao agrupamento, que tornaria possível a sobrevivência
prolongada dos seres humanos – terminariam por juntar-se ao redor de
instituições hierarquizadas, antes mesmo que as pudéssemos chamar
de Estado e governo, como as conhecemos hoje.

Dizemos “antes mesmo que as pudéssemos denominar Estado”,


pois a utilização moderna da expressão Estado foi cunhada por
Maquiavel, em 15121, em sua obra O Príncipe, publicada após sua
morte, em 1532. Muito embora o florentino não tenha inventado a
palavra, foi a sua utilização que promoveu a guinada semântica que
envolveria a delimitação dos elementos essenciais condicionantes de
existência do Estado moderno.

PARA SABER MAIS


Maquiavel, diplomata nascido em Florença, na Itália, foi
uma figura polêmica para sua época, e imortalizado no
ideário popular através de frases e ideias como “os fins
justificam os meios”, ou sobre um príncipe dever ser temido
e amado na mesma proporção, mas que, na impossibilidade
de ser amado, melhor que seja temido – frases nem
sempre corretamente utilizadas, que deram origem à

1
A primeira utilização da expressão Estado feita na obra O Príncipe aparece no Capítulo I, logo no primeiro pa-
rágrafo, quando Maquiavel afirma que “Todos os Estados, os domínios todos que existiram e existem sobre os
homens foram e são repúblicas ou principados”. In: BONAPARTE, Napoleão; MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe
– comentado por Napoleão Bonaparte. São Paulo: Hemus-Livraria Editora Ltda, 1977. p. 11.

6
expressão maquiavélico, quando se quer denominar alguém
ardiloso, cruel, capaz de agir de má-fé – fama injusta e
anacrônica quando se analisa o imenso legado daquele que
revolucionaria o pensamento político pelos séculos que se
seguiriam. Maquiavel escreveu “O Príncipe” em uma Europa
fragilizada e fragmentada, na qual qualquer análise atual
não prosperaria. DE SANTI, Alexandre. Os fins justificam os
meios. Superinteressante.

O Estado Moderno surge – e alguns autores adotam o marco cronológico


de 1492 para seu início2, coincidindo com a invasão das Américas e as
mudanças estruturais de poder, promovidas pelas novas relações entre
o Antigo e o Novo mundo e o crescente mercantilismo expansionista –
e, com ele, uma pretensão de universalidade dos ideais europeus que
marcaria profundamente o impacto das relações de poder no mundo
contemporâneo.

É importante salientar que, no entanto, o Estado, como pode se


depreender de inúmeras teorias contratuais, não é uma formulação
natural. A convivência harmoniosa entre nós, humanos, dependeria
de mecanismos artificiais de poder, ou seja, da criação de um poder
centralizado e hierárquico, com o qual os seres humanos contratariam.

De forma a justificar a existência do Estado, surgem pensadores que


tentaram teorizar este surgimento em torno da ideia de contrato social:
os seres humanos abririam mão de parte de sua liberdade em troca da
proteção do Estado.

2
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Estado Plurinacional e Direito Internacional. Curitiba: Juruá Editora,
2012. p.19.

 7
Alguns dos principais teóricos do Contratualismo são Thomas Hobbes3,
defensor do absolutismo, que associava o Estado soberano ao Leviatã,
monstro mitológico destruidor, atribuindo à instituição a característica
de ser “um mal”, mas “um mal necessário” e detentor do poder
soberano; John Locke4, que considerava o Estado, cujo representante
seria eleito pelo povo, responsável por proteger as liberdades individuais
e a propriedade privada – essa última tida como direito divino - e Jean-
Jacques Rousseau5, partindo da premissa de que a soberania era do
povo, que a concedia ao Estado em troca da garantia de promoção
daquilo que ele chamava de “vontade geral”.

Também em nome da construção do Estado, seria necessária uma


homogeneização dos elementos internos e uma rejeição a fatores
externos, pois o Estado moderno surge a partir da centralização de
poder em torno de uma unidade soberana6, algo que não era possível
no plural e fragmentado mundo feudal, com seus múltiplos monarcas, e
sem a qual o capitalismo não teria sido viável.

Era necessário criar o nacional, tomando por parâmetro a exclusão


de multiculturalidades, sendo que um dos momentos históricos que
mais contribuíram para essa exclusão do outro foi a expulsão dos
muçulmanos de Granada na Espanha - coincidentemente, também no
emblemático ano de 14927.

Baseada na perseguição de todos aqueles que não professassem a fé


católica, o Estado nesse período surge também como uma estrutura
intimamente ligada à religião, em razão da necessidade de criação de
um ideário comum que permitisse a fácil visualização de que, se havia
algo que era Estado, deveria haver algo que não era, por abstração.

3
HOBBES, Thomas. Leviatã - Ou Matéria, Forma e Poder de Um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo: Edi-
pro, 2015.
4
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. São Paulo: Edipro, 2014.
5
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2013.
6
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Estado Plurinacional e Direito Internacional. Curitiba: Juruá Editora,
2012. p.13.
7
Idem. p.21.

8
Contudo, estamos falando apenas sobre Estado até agora. E o que se
entende por governo? São Estado e governo expressões referentes à
mesma instituição? A confusão entre as expressões é comum e, por isso,
precisamos compreender quais são as suas principais diferenças.

2. Estado e governo: conceitos


Falamos muito sobre o surgimento do Estado moderno, a maneira como
historicamente se compuseram os primeiros Estados conhecidos, e
até mesmo sobre como teria surgido a palavra Estado, mas ainda não
aprendemos a identificar seus principais elementos constitutivos, nem
pudemos compreender qual a diferença entre Estado e governo – uma
linha tênue, mas de fundamental importância para a compreensão das
funções de cada um. Assim, entende-se que existem três elementos
essenciais que todo Estado deve ter: povo, território e soberania
(dividida em duas dimensões, como veremos a frente).

2.1 Elementos essenciais do Estado

Povo compreende a parcela da população de um Estado que possui


vínculo jurídico e político com ele. Ou seja, não se trata apenas de um
conceito demográfico, numérico, pois este seria a população, o número
de habitantes. Povo, necessariamente, possui vinculação com a unidade
política de um determinado território. O que significa que nem todos
os habitantes serão considerados povo, por exemplo. Tal vinculação,
normalmente ocorre através da nacionalidade, cujos critérios variam
de Estado para Estado. Essa definição de quem é nacional ou não
normalmente ocorre dentro da Constituição dos Estados, como ocorre
com a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 12.

Para leitura na íntegra da Constituição da República Federativa do Brasil


de 1988, acesse o site do Planalto.

Território corresponde à porção territorial na qual o Estado está


localizado, sendo contínua ou não (ilhas e territórios ultramarinos, por
exemplo, não estão no mesmo limite territorial, ainda que façam parte
de determinado Estado).

 9
Soberania, confundida erroneamente por alguns autores com a figura de
governo, compreende, segundo Carré de Malberg, a qualidade do poder
de um Estado que não reconhece nenhum poder superior8, nem na
esfera interna, nem na esfera externa. Isso significa dizer que o Estado
tem poder sobre seus indivíduos e também que os outros Estados,
assim reconhecidos, o devem respeito.

ASSIMILE
Estado, portanto, é a estrutura de organização de poder
formada pela junção de três elementos essenciais
condicionantes, sendo estes: povo, território e soberania,
sem os quais, não se pode falar na existência de um Estado.

Sendo assim, somente a representação do Estado pode estabelecer


relações internacionais com outros Estados. Quando vemos o Brasil
participar da Assembleia Geral das Nações Unidas, por exemplo, tal
apresentação é feita enquanto Estado brasileiro.

PARA SABER MAIS


Quanto à abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas,
tradicionalmente, o Brasil costuma ser o primeiro país a
discursar (embora nem sempre tenha sido assim), pois
em 1947, quando ocorreu a primeira reunião deste tipo
na Organização, a delegação brasileira presidiu a sessão,
na pessoa do Embaixador Oswaldo Aranha, que discursou
perante a Assembleia.

8
MALBERG, Carré de. Teoria General del Estado. Cidade do México: UNAM, 2001. p. 83.

10
10
2.2 Soberania e governo

Se o Estado necessita de três elementos essenciais para sua existência,


percebemos que a soberania se configura como sendo a maior escala
de poder reconhecível dentro de um dado Estado. Porém, há que se
distinguir a soberania em seus aspectos externo e interno.

A soberania externa se relaciona às funções de Estado, à unicidade


dos três elementos essenciais que vimos no tópico anterior e,
principalmente, à capacidade de reconhecimento por parte de
outros Estados. A possibilidade que um Estado possui de estabelecer
relações diplomáticas com outros Estados e de ser reconhecido como
semelhante por eles é o seu desdobramento externo de soberania.

Já a soberania interna se relaciona com as funções específicas


e administrativas de um Estado. Tais funções de organização e
hierarquização internas recebem, em nossa disciplina, o nome de
governo. Logo, o governo corresponde à divisão administrativa interna
dos Estados, conforme disposta em sua Constituição - documento no
qual consta a forma de organização dos Estados.

O governo, enquanto forma de organização de poder, pode assumir


duas formas: a monárquica e a republicana. Na República, temos a
transição de lideranças, fundada no princípio da temporalidade, o que
significa que os chefes de governo são eleitos por tempo determinado,
o que não ocorre na Monarquia, com seu poder caracterizado pela
vitaliciedade e hereditariedade9.

Porém, além da forma de governo, a organização administrativa


dos Estados também possui divisão em dois sistemas de governo: o
presidencialista e o parlamentarista10,

9
ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. Niterói: Editora Impetus,
2007. p. 13.
10
Idem.

 11
No parlamentarismo, o governo é exercido através da presença de um
parlamento, órgão representativo responsável pela produção legislativa.
O chefe de governo no Parlamentarismo é o Primeiro-Ministro, havendo
distinção entre as figuras do chefe de Governo e do chefe de Estado.
De forma a tornar a diferença mais visível, o parlamentarismo é mais
frequente em regimes monárquicos, por sua formulação histórica11.

Já o presidencialismo, formulação política surgida nos Estados Unidos


e modelo adotado pelo Brasil em contraposição ao parlamentarismo,
funda-se na presença de um presidente, não havendo divisão das funções
executivas com o parlamento. Assim, as figuras do chefe de Governo e do
chefe de Estado confundem-se na mesma pessoa: o Presidente12.

EXEMPLIFICANDO
Em alguns países, como é o caso do Brasil, as figuras do
Chefe de Estado, responsável pelas relações exteriores, e do
Chefe de Governo, responsável pela administração interna,
são representadas pela mesma pessoa, o que dificulta a
nossa visualização das diferenças entre Estado e Governo.
No entanto, a diferença é mais fácil de ser visualizada
em países que adotam o sistema parlamentarista, onde
Chefe de Governo e Chefe de Estado não são a mesma
pessoa, como é o caso do Reino Unido, onde há um Chefe
de Governo, na figura do Primeiro-Ministro, gabinete
atualmente ocupado por Theresa May, e um chefe de
Estado, responsável pelas relações diplomáticas, posição
ocupada há 65 anos pela Rainha Elizabeth I.

11
BONAVIDES, Paulo. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 416.
12
Idem.

12
12
QUESTÃO PARA REFLEXÃO
Como pudemos perceber, o Estado, desde sua necessidade de ex-
pulsão do diferente em nome da unificação territorial em torno de
um único centro de poder – como no episódio histórico da expulsão
dos muçulmanos de Granada – até os processos de colonização e in-
vasão das Américas, se constituiu sobre uma dinâmica de exclusão e
supressão de diversidades. Reflita sobre os conceitos dos elementos
essenciais que formam o Estado e tente compreender como o surgi-
mento destes influencia as relações de poder até os dias atuais.

3. Considerações finais

• O Estado Moderno, em sua gênese, historicamente, formou-


se através da ideia de exclusão daquilo que lhe era externo:
como o feudalismo não possuía unidade de poder, de forma a
conseguir unir os feudos em torno de um só rei, foi necessário
criar uma identidade unificada. Um dos exemplos, a expulsão dos
muçulmanos de Granada, após a unificação do Estado espanhol.

• A unificação do Estado Moderno passa também por uma fase


mercantil, diante da necessidade de unificação do comércio e
da crescente expansão das navegações. Os Estados precisavam
possuir um único rei, ao qual pudessem responder.

• Para que se possa considerar a existência de um Estado, há


que identificar-se a presença de 3 elementos essenciais: povo,
território e soberania. A expressão povo se refere à parcela da
população que possui vínculo jurídico e político com o Estado,
o território compreende a porção geográfica – contínua ou não
– na qual um Estado se localiza e a soberania é a qualidade do
poder de um Estado que não admite poder superior a si, nem
internamente, nem externamente.

 13
• O conceito de soberania pode ser dividido em duas dimensões:
externa e interna. A soberania, sendo a qualidade do poder
supremo de um Estado, quando se manifesta em sua faceta
externa, tem a ver com as relações internacionais entre os Estados
e a capacidade de um Estado ser reconhecido perante os outros
como tal; já em sua faceta interna, a soberania se manifesta
através da expressão de governo, referindo-se a toda cadeia
hierárquica que compõe os órgãos da administração pública.

Glossário

• Estado: forma de organização de poder aprimorada pelos seres


humanos ao longo da história, composta por instituições adminis-
trativas, com o objetivo de, ao menos dentro da teoria contratu-
alista, permitir-se a proteção de seus indivíduos, diante de amea-
ças externas. Politicamente, deve ser composto por 3 elementos
essenciais: povo, território e soberania.

• Organização das Nações Unidas: organização internacional


entre Estados, de caráter universal, criada em 1945, a partir da
Carta das Nações Unidas, com o objetivo de evitar novas guer-
ras, logo após a Segunda Guerra Mundial, e promover a coope-
ração entre as nações do mundo para os mais diversos assuntos
– daí o nome, Nações Unidas.

• Administração Pública: a expressão Administração Pública se re-


fere à capacidade de gestão que o Estado possui sobre seus órgãos
internos, de forma a promover serviços e ações voltados ao inte-
resse público, em várias áreas, como educação, transporte, saúde,
entre outros, sendo o conjunto de atividades que o Estado imple-
menta ao oferecer serviços essenciais à população que administra.

• Nação: conjunto de pessoas unidas pelos mesmos ideais culturais,


religiosos, étnicos e/ou históricos. Não se confunde com o conceito

14
14
de Estado. Trata-se de um conceito de identidade coletiva de fundo
emocional, etéreo, e não necessariamente relacionado à existên-
cia de um espaço territorial definido, embora, frequentemente, as
nações estejam inseridas em Estados.

VERIFICAÇÃO DE LEITURA

1. O Estado moderno se caracteriza, exceto:

a. Pela centralização em torno da figura do monarca, em


contraste com o que ocorria na fase imediatamente
anterior, o feudalismo, caracterizado pela profunda
descentralização de poder;

b. Pela existência de três elementos essenciais, sem


os quais o Estado não se estabelece: uma dimensão
humana, composta pelo povo; uma dimensão
geográfica, composta pelo território; uma dimensão
político-administrativa, composta pela soberania;

c. Pela homogeneização cultural, realizada em razão


da necessidade de que o povo, parcela humana
da composição do Estado, se identificasse com um
único soberano, a fim de que o poder pudesse ser
centralizado, como fica evidente a partir do episódio
da expulsão dos Muçulmanos de Granada;

d. Pela existência de um contrato social, conforme


disposto pelas teorias contratualistas, nas quais
os seres humanos abririam mão de parcela de sua
liberdade pessoal em troca da segurança do Estado;

 15
e. Pela ausência de centralização de poder, formando-
se por inúmeras unidades pulverizadas de
administração, em razão da maior facilidade para se
garantir a proteção dos indivíduos, algo que Hobbes
denominaria de “mal necessário”, associando-o
ao Leviatã, um monstro mitológico, capaz de a
todos engolir.

2. A evolução histórica do instituto do Estado é muito


mais longínqua do que se pode atribuir à utilização da
expressão Estado como definidora de uma unidade
de poder, composta por elementos condicionantes.
No entanto, a primeira utilização, dentro da Ciência
Política, da expressão Estado, é comumente atribuída
a um famoso diplomata do século XV. De quem
estamos falando?

a. Thomas Hobbes

b. Nicolau Maquiavel

c. John Locke

d. Jean-Jacques Rousseau

e. Aristóteles

3. Com relação aos desdobramentos de soberania, em


seus aspectos interno e externo, pode-se dizer que:

a. A soberania, tanto internamente quanto


externamente, possui as mesmas funções, sendo
reflexo da qualidade do poder supremo de um

16
16
Estado, possuindo como destinatários desse poder os
mesmos órgãos.

b. A soberania, em suas duas dimensões, possui reflexos


que não se confundem, pois a soberania externa,
voltada às relações internacionais e ao caráter de
reconhecimento de Estado, embora também reflexo
da qualidade do poder supremo de um Estado, não
possui como destinatário a mesma parcela política
que a soberania interna, destinada ao governo e à
administração pública.

c. A soberania interna, como a conhecemos, volta-se


especificamente à relação entre os Estados, naquilo
que denominamos de relações internacionais,
conforme disposto na Constituição da República
Federativa do Brasil.

d. A soberania externa, como a conhecemos, volta-


se especificamente à administração doméstica
dos Estados, através do surgimento do instituto
denominado governo, que, embora reflexo do
surgimento do Estado, com ele não se confunde.

e. A ideia de soberania advém de uma interpretação


bíblica, na qual monstros mitológicos eram utilizados
como maneira de se referenciar o poder único dos
Estados, noção que se perpetuou até os dias atuais,
com forte inspiração religiosa, em razão da influência
da Igreja Católica na divisão de poder da Idade Média.

 17
Referências bibliográficas

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado.


Niterói: Editora Impetus, 2007.
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Globo, 2008.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
BONAPARTE, Napoleão; MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe – comentado por
Napoleão Bonaparte. São Paulo: Hemus-Livraria Editora Ltda, 1977.
BONAVIDES, Paulo. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Malheiros, 2000.
HOBBES, Thomas. Leviatã - Ou Matéria, Forma e Poder de Um Estado
Eclesiástico e Civil. São Paulo: Edipro, 2015.
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. São Paulo: Edipro, 2014.
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Estado Plurinacional e Direito Internacional.
Curitiba: Juruá Editora, 2012.
MALBERG, Carré de. Teoria General del Estado. Cidade do México: UNAM, 2001.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2013.

Gabarito

Questão 1 – Resposta: E
A alternativa incorreta é aquela na qual vem disposto que o Estado
Moderno seria caracterizado pela descentralização de poder, o que
não procede: o que caracteriza a transição do feudalismo para o
Estado moderno é exatamente o oposto, a centralização de poder
nas mãos de um único poder soberano, que a todos controlaria.
Questão 2 – Resposta: B
A questão 2 possui como alternativa correta aquela que indica a
utilização da expressão Estado como denotativa de unidade de
poder soberano, composta por elementos condicionantes de sua
própria existência, o diplomata florentino Nicolau Maquiavel, que
utilizou a expressão Estado pela primeira vez, conforme utilizamos
ainda hoje, na obra “O Príncipe”, escrita em 1512, porém publicada
postumamente, em 1532.

18
18
Questão 3 – Resposta: B
A alternativa correta à questão 3 é aquela na qual se encontra
a definição de soberania externa como sendo desdobramento
de relações internacionais e reconhecimento entre os Estados
e a soberania interna como dimensão interna, doméstica e
administrativa, dentro daquilo que denominamos governo.

 19
Estado e formação: o Estado
Brasileiro
Autora: Estela Cristina Vieira de Siqueira

Objetivos

• Compreender como o Estado Brasileiro se formou,


desde sua gênese, iniciando-se nos movimentos
de independentização, que culminaram na
Independência do Brasil de Portugal, em 1822.

• Visualizar como as políticas agrárias e escravagistas


do período do Brasil Império interferiram na
formação das dinâmicas sociais e políticas que se
perpetuam até os dias atuais.

• Entender a influência do movimento político do


Coronelismo, após a Revolução Republicana, sistema
que moldaria profundamente as relações sociais do
início do Século XX, e como a política brasileira sofre
com os reflexos deste sistema.

20
20
1. Introdução

O Estado Brasileiro inicia seu processo de construção e formação a


partir do momento da emancipação político-administrativa causada
pelo movimento de independência, que possuiu sua culminância
no histórico 7 de setembro de 1822, quando o Brasil se torna
independente do Reino de Portugal1.

Apesar das dimensões territoriais continentais, o Brasil – em oposição ao


que havia ocorrido na América Espanhola – não se fragmentou ao deixar
de ser colônia portuguesa, mantendo o poder centralizado nas mãos do
então Imperador, D. Pedro I.

É importante salientar que, concomitantemente à ausência de


fragmentação de poder, o Brasil se configurou como um Estado Unitário,
marcado pela intensa centralização de poder.

O fato de a concentração de poder estar focada na figura do imperador


gozava de garantia constitucional, conforme o texto da primeira
constituição do Brasil, de 1824, que estabelecia uma mínima divisão de
Estado em Províncias, que, no entanto, não gozavam de autonomia.

Além do poder centralizado, o Brasil do século XXI focava a maioria de


sua produção no setor agrícola, sem o qual a colônia portuguesa não
teria se estabelecido nos séculos anteriores, e baseava-se em políticas
exploratórias e escravagistas, cujo impacto da exclusão social gera
reflexos na sociedade até hoje.

Desde o passado brasileiro enquanto colônia, a divisão de terras no Brasil,


para fins de monocultura de café, sempre foi composta por grandes
latifúndios, o que nos remete à força política da classe agroexportadora,
que se constituiria, neste mesmo período, como a classe dominante

1
DE CARVALHO, José Murilo. A Construção da Ordem: a elite política imperial; Teatro das Sombras: A política
imperial. 2.ed. Rio de Janeiro: UFRJ, RelumeDumará, 1996, 436 p.

 21
no cenário nacional, possuindo mecanismos de pressão sobre o
Estado, garantindo a manutenção do status quo colonial, apesar da
independência, e de seus interesses próprios. O Brasil emancipado
era interessante sob o aspecto econômico, mas a classe fundiária não
identificava qualquer relevância em abrir mão de seus privilégios.

E assim, latifundiária e escravagista, segue a produção econômica do


Brasil Império, até o ano de 1888, quando, após anos de revoltas e
insurgências contra o poder central e um movimento abolicionista que
abalava as estruturas da monarquia, a escravidão seria abolida. Tal
cenário construiu-se, em grande parte, do apelo dos revolucionários
republicanos por mudanças no modelo de produção imperial, que se
amoldava ainda ao modelo colonial.

PARA SABER MAIS


Um dos movimentos revolucionários de insurgência contra
a monarquia de maior relevância histórica no Brasil foi a
Revolução Farroupilha, um movimento de matriz liberal e
organizado pela elite fundiária rio-grandense, liderada por
Bento Gonçalves, contra a centralização de poder nas mãos
do governo central, após a morte de D. Pedro I, que deixou
no trono seu filho menor de idade, D. Pedro II – fato que
poderia fragilizar a manutenção de poder. Os 10 anos de
intensa batalha que se seguiram ao ano de 1835 teve como
principal bandeira a alta carga de impostos cobrada pelo a
separação do Rio Grande do Sul do Brasil, chegando ao fim,
após um acordo de paz com Duque de Caxias, através do
Tratado do Poncho Verde, em 1845.

Em pouco tempo, mesmo como Estado emancipado, ficaria claro


que para um país tão grande, governa-lo a partir de uma única fonte
de poder central seria inviável, fazendo-se necessária uma maior

22
22
descentralização de poderes, passando por sucessivas modificações
estruturais, até que assumíssemos a forma federativa, em 1891.

Antes de compreendermos como o poder agrário continuou forte no


Brasil, precisamos entender o que é o Estado Federado, pois este seria o
modelo seguido pelo Estado brasileiro dali em diante.

Dá-se o nome de Federação à forma de Estado na qual há divisão de


poder em unidades que, muito embora não sejam independentes da
união soberana, são autônomas entre si – o que significa que possuem
capacidade de autogoverno e auto-organização. No Brasil atual, ainda
somos uma federação e damos às nossas divisões autônomas o nome
de unidades federativas (UFs) ou estados.

EXEMPLIFICANDO
São Paulo é uma unidade federativa, logo, um estado.
Percebeu a diferença sutil entre as denominações Estado
e estado? Quando falamos em Estado – assim, com a letra
“E” maiúscula – estamos nos referindo à União, ao todo
soberano, que já vimos no tópico anterior. Já a expressão
estado, com “e” minúsculo, será utilizada para referirmo-nos
às unidades federativas – salvo, logicamente, se a palavra
“estado” estiver iniciando a frase.

Assim, nem mesmo a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel,


cedendo aos apelos abolicionistas dos republicanos, seria suficiente para
apaziguar os ânimos dos republicanos, e em 1891, o Brasil sofreria um
golpe de Estado que, embora tenha sido promovido por um grupo de
patente militar, teve como objetivo a mudança do sistema monárquico
ao sistema republicano, nos levando ao período do Brasil República.

 23
No entanto, a forma como o poder estava relacionado às grandes
propriedades de terra durante os séculos anteriores e, principalmente,
nas primeiras décadas do recém emancipado Estado Brasileiro,
seria fundamental para que a nova fase política se formasse, o que
influenciou o pensar representativo do Brasil por todo o século
seguinte, como veremos.

2. Brasil: Estado republicano

Em 15 de novembro de 1891, o Brasil, uma monarquia nas mãos de


Portugal por 3 séculos, e um Império emancipado por 69 anos, tornar-
se-ia uma República. O modelo republicano tem como principal marca,
teoricamente, a garantia de participação dos interesses de todos na
forma de governar.

Enquanto uma forma de governo mais inclusiva, a República contaria


com a presença da representação popular na tomada de decisões, algo
que até então não acontecia a nível nacional, mas apenas para as casas
legislativas, já que não havia um presidente, mas um Imperador.

O Primeiro Presidente Eleito por voto popular no Brasil, Deodoro


da Fonseca, havia sido também presidente durante o período
revolucionário, anterior à constituição de 1891, com a instituição de um
governo provisório. O voto, no entanto, ainda não era universal como
ocorre hoje. A modalidade de sufrágio da época era o voto censitário,
assim como no período do Império, embora mais amplo quanto à
possibilidade de eleger-se um presidente.

Voto censitário é aquele pelo qual vota-se pela aferição de renda, o que
significa que, novamente, a divisão de poder dos grandes latifúndios
seguiria determinante para a nova dinâmica política brasileira. Vale
mencionar, também, que apenas homens poderiam votar, o que
afunilava mais ainda a definição de quem era ou não cidadão em 1891.

24
24
No entanto, a figura do líder regional, que receberia um status maior de
destaque na nova república, ganharia outros contornos, com o poder
de influenciar o voto do povo através de mecanismos de controle que
ficariam conhecidos como “voto de cabresto”2. O período que se segue
entraria para a história da política brasileira através da figura dos
Coronéis, em um período marcado pela profunda dominação política
das classes não-dominantes, delineando a composição representativa e
social do Brasil até os dias atuais.

2.1 República Velha e Coronelismo

É impossível falar sobre práticas de dominação política através dos


meios de produção sem, necessariamente, falar um pouco sobre
exclusão social e as políticas de classe.

Retornando ao período da abolição da escravidão no Brasil, é necessário


salientar que não houve qualquer política social de inserção econômica
da classe recém liberta, em sua maioria formada por índios nativos,
bem como negros e negras trazidos forçosamente do continente
africano ao Brasil. Encontravam-se segregados economicamente, pela
impossibilidade de conseguirem empregos, sem moradia, forçados a
áreas periféricas dos municípios e discriminados racialmente.

Considerando este contexto, a abolição da escravatura, embora


essencial, tendo em vista que o Brasil foi o último país a realizá-la,
não foi bem executada, e gerou problemas sociais que impactariam
os séculos seguintes: a pobreza e a segregação racial. Tal situação
está relacionada à forma como, apesar de constituírem a maioria da
população do Brasil nos dias atuais, os negros ainda sofrem com as
consequências do desprivilégio promovido pelo sectarismo do Brasil
colônia e, posteriormente, Império.

2
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil.
São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1975. p.23.

 25
Os proprietários rurais locais permaneceriam como detentores da maior
parcela do poder no país, e agora ganhariam o nome de Coronéis – em
referência à Guarda Nacional. Quando de sua instituição, a Guarda
Nacional, em excerto das memórias do Barão do Rio Branco3, teria como
principal atribuição manter a ordem pública. Para que isso se realizasse,
cada município possuiria seu próprio regimento da guarda, e o chefe
político da comuna exerceria o papel de comando, o chamado Coronel.

Ocorre que o título era conferido, apesar de ser uma guarda militarizada
e fardada, aos mais ricos fazendeiros da época, o que já nos permite
compreender o porquê do surgimento de famílias tradicionalmente
políticas – se é que assim se pode chamá-las – nos rincões do Brasil.

Difícil compreender, no entanto, como isso seria possível em uma


República, já que o voto, ainda que censitário e masculino, era livre – na
teoria. Porém, apesar de livre, não era secreto, o que permitia fraudes
e trocas de favores, com a pressão por parte do Coronel para que seus
eleitores sempre satisfizessem seus interesses.

ASSIMILE
O Coronelismo, portanto, foi uma prática da política
brasileira, que se estendeu por décadas, na qual o poder
político era exercido por grandes proprietários de terra, que
exerciam pressão sobre as classes dominadas – estas, que
não detinham poder econômico.

Tal dinâmica se perpetuaria no período histórico conhecido como


República do Café com Leite, nos quais, invariavelmente, os líderes

3
PARANHOS, José Maria da Silva. 18 de agosto. In: GARCIA, Rodolfo (org). Obras do Barão do Rio Branco VI:
Efemérides Brasileiras. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2012. p.469.

26
26
políticos seriam definidos pelas lideranças dos Estados com maior
concentração de latifúndios, Minas Gerais e São Paulo, algo que se
findaria apenas em 1930.

A forma como os líderes políticos seriam definidos por Minas Gerais


e São Paulo recebeu o nome de café com leite, por serem estes os
principais produtos de agroexportação dos dois estados, que também
eram os mais populosos e com a economia mais forte do país.

As marcas dessa frágil República se alastrariam pelo cenário político


brasileiro e influenciariam a forma como o poder se divide e se
organiza desde então até o século atual, intervalo no qual passaríamos
por inúmeras trocas de textos constitucionais, totalizando cinco
Constituições (excetuando-se, evidentemente, as duas constituições
do século XIX). Destas cinco, apenas duas foram elaboradas por meios
democráticos, sendo que três foram impostas por regimes ditatoriais,
fortemente influenciadas pelo status quo surgido, em grande parte, no
período das grandes propriedades agrícolas.

Quadro sinótico das constituições brasileiras no século XX

Promulgada no primeiro governo de Getúlio


1934 Vargas, seu texto era progressista, criando direitos
trabalhistas e estendendo o voto às mulheres
Outorgada três anos depois, durante o período ditatorial da
1937
Era Vargas, possuía inspiração fascista e restringia direitos
Promulgada no governo de Gaspar Dutra, retomaria
1946
o caráter democrático do texto de 1934
Outorgada durante o período da Ditadura Militar, no governo
1967
Castelo Branco, consolidava o regime ditatorial no Brasil
Promulgada no governo de José Sarney, no processo de
1988 redemocratização, possui o rol mais extenso de direitos individuais, entre
todas as Constituições, sendo conhecida como a “Constituição-cidadã”.

 27
QUESTÃO PARA REFLEXÃO
A partir da análise do conteúdo apresentado, é possível perceber
como as dinâmicas políticas, fortemente influenciadas pela presença
de grandes propriedades agrárias e do poder político dos latifundiá-
rios, além da ausência de direcionamento social pós-abolição da es-
cravidão, exerce força até hoje, no cenário político e social nacional,
sobre como o status quo segue mantido?

3. Considerações finais

• O Estado brasileiro, em um primeiro momento histórico, após


a Independência de Portugal, em 1822, adota a conformação
de Estado Unitário, com a centralização de poder nas mãos do
monarca, com mínima divisão administrativa em Províncias, sem
que estas, no entanto, possuíssem autonomia política;

• Durante o período do Brasil Império, apesar da emancipação


promovida no processo de Independência, o status quo das
grandes propriedades de terra permanece central à dinâmica
política e a produção agrícola segue fundada na mão de obra
escrava, até que a escravidão fosse abolida, em 1888;

• No entanto, apesar da abolição da escravidão, esta não foi


realizada de maneira bem-sucedida, embora fosse necessária,
gerando um problema social de segregação dos recém-libertos,
que não conseguem se inserir no mercado de trabalho e sofrem
preconceito por serem negros, algo que impacta as estruturas
sociais do Brasil até os dias atuais.

• Mesmo após a Revolução Republicana, a forma como os grandes


latifúndios estão divididos continua a surtir efeitos de pressão
política no Brasil, e o que antes era uma monarquia, passa a ser
uma República fundada em uma falsa ideia de representação

28
28
democrática. Novamente, a classe dominante impõe seus interesses
econômicos a uma classe dominada, privada da possibilidade de se
emancipar através do voto, pois este é censitário e não é secreto,
dando origem ao “voto de cabresto” – dinâmica política que imperou
no Brasil até 1930 e ainda possui reflexos na política nacional,
através da presença de famílias dominantes.

Glossário

• Federação: forma de Estado cuja principal característica é a pre-


sença de descentralização interna de poder, através da existência
de unidades federativas autônomas, dotadas de capacidade de au-
togoverno e auto-organização.

• Cidadania: condição dos indivíduos que gozam de direitos políti-


cos em um determinado Estado com o qual possuam vínculo jurí-
dico e político, sendo garantida a possibilidade de participar ativa-
mente da vida política.

• Sufrágio: mecanismo através do qual uma eleição se opera – em ou-


tras palavras, sufrágio é uma expressão alternativa para falar-se voto.

• Constituição Promulgada: trata-se de Constituição formada por uma


expressão democrática da representação popular, através de uma
Assembleia Constituinte, típica de regimes democráticos e plurais.

• Constituição Outorgada: trata-se de Constituição formada, ao con-


trário da Constituição Promulgada, pela imposição de um regime
não democrático, ausente de representação da vontade popular,
satisfazendo aos interesses de pequenas parcelas da população.

 29
VERIFICAÇÃO DE LEITURA

1. Entre as opções a seguir, quais as principais


características de um Estado Unitário?
a. Descentralização de poder e voto censitário;

b. Centralização de poder e ausência de divisões


administrativas autônomas;

c. Descentralização de poder e divisões administrativas


autônomas;

d. Os estados federados devem se submeter a um poder


central no Estado Unitário;

e. A instituição de uma Guarda Nacional, que deu origem


ao sistema político do Coronelismo.

2. A grande concentração de terras nas mãos de uma


parcela da população, que possuía meios para
pressionar as classes dominadas, influenciou de que
maneira o futuro da política brasileira, considerando-se
o período que ficou conhecido como República Velha?

a. O fato de que os produtores agrícolas exerciam


grande pressão sobre as decisões políticas no país
e considerando-se também o recente passado
escravocrata, fez com que núcleos de poder se
formassem, dificultando que as classes dominadas
ascendessem à política, criando inúmeros dos
problemas sociais existentes até os dias atuais;

b. O fato de que o poder era exercido majoritariamente


por pequenos produtores rurais constituiu-se
como fator positivo para a política brasileira, pois
estes agiam sempre imbuídos de ideais sociais e

30
30
pensavam sempre no bem comum, para além de
interesses de classe;

c. O Coronelismo, criado por Bento Gonçalves, seria


a ordenação política dominante até a década de
30 do século XX, constituindo-se como sistema de
dominação das classes sociais menos abastadas e
impossibilitando o acesso à política por parte dela;

d. Dom Pedro I, sempre se baseando em ideais


revolucionários, acatou os pedidos populares de
transição à república, pois acreditava se tratar da
melhor forma de governo, em razão da possibilidade
de participação popular nas decisões, já que o voto
deveria ser livre e universal;

e. As alternativas A e C estão corretas.

3. Quais características apresentadas pelo Estado


brasileiro, após a transição de Império para a República,
nos deram contornos de Estado Federativo?

a. O fato de que, após 69 anos como Império, a escolha


de representação a nível nacional pode ser feita
através do voto, porém, apenas para o Presidente,
mantendo a centralização de poder, uma das
principais características da Federação;

b. Uma maior aproximação com os Estados Unidos,


a primeira Federação de que se tem notícia
na história, e o estabelecimento de relações
diplomáticas com esta potência;

c. Após a transição, o poder, antes centralizado


em uma única fonte, pulverizou-se por unidades

 31
federativas autônomas, dotadas de auto-organização e
autogoverno, as principais características da Federação;

d. Duque de Caxias tornou-se Presidente do Brasil


por indicação da confiança de D. Pedro II, em clara
demonstração de respeito, apesar da ruptura
constitucional com o regime antecedente;

e. Ao tornar-se uma República, o poder, que antes era


fragmentado em unidades federativas autônomas,
passou a ser centralizado nas mãos do monarca, que
instituiu a guarda nacional apenas com o intuito de
facilitar a administração, sem que estas unidades
possuíssem capacidade de se governarem ou se
organizarem autonomamente.

Referências bibliográficas

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo:


Saraiva, 2016.
DE CARVALHO, José Murilo. A Construção da Ordem: a elite política imperial;
Teatro das Sombras: A política imperial. 2.ed. Rio de Janeiro: UFRJ, RelumeDumará,
1996, 436 p.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime
representativo no Brasil. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1975.
MARTINS, Paulo Emílio Matos; MOURA, Leandro Souza; IMASATO, Takeyoshi.
Coronelismo: um referente anacrônico no espaço organizacional brasileiro
contemporâneo? Organizações & Sociedade, v. 18, n. 58, 2011.
PARANHOS, José Maria da Silva. 18 de agosto. In: GARCIA, Rodolfo (org). Obras do
Barão do Rio Branco VI: Efemérides Brasileiras. Brasília: Fundação Alexandre de
Gusmão, 2012.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. A revolução farroupilha. Boletim Gaúcho de Geografia,
v. 13, n. 1, 1985.
RIO GRANDE DO SUL. História. Disponível em: https://estado.rs.gov.br/historia.
Acesso em: 23 jul. 2018

32
32
Gabarito

Questão 1 – Resposta: B
As principais características de um Estado Unitário são a
centralização de poder e a ausência de divisões administrativas
autônomas, diferentemente do que ocorreria no Federalismo,
sendo correta a alternativa B.
Questão 2 – Resposta: A
O Coronelismo, sistema político surgido em razão das grandes
concentrações de terra, constituiu-se como mecanismo de
dominação das classes mais dominadas por décadas, durante a
nova República; porém, seu surgimento tem relação com práticas
fundiárias e distribuição de postos da Guarda Nacional, e nada tem
a ver com Bento Gonçalves, líder da Revolução Farroupilha. Apenas
a alternativa A está correta.
Questão 3 – Resposta: C
A Federação se caracteriza pela pulverização de poder em
unidades autônomas, dotadas de capacidade de autogoverno e
auto-organização, logo a alternativa que apresentava a resposta
correta é a letra C.

 33
Globalização: unidade e
fragmentação
Autora: Estela Cristina Vieira de Siqueira

Objetivos

• Compreender como os processos de industrialização


levaram à fragmentação territorial de continentes
menos industrializados, o que foi essencial ao
surgimento da globalização, séculos depois;

• Perceber que essa mesma fragmentação criaria


um regime mundial de mercado que favoreceria
o surgimento de grandes desigualdades no
campo social;

• Visualizar a transição entre o período anterior, com


um Estado forte e de poder centralizado, para um
Estado mais flexível, com maior circulação de bens e
serviços entre fronteiras, permitindo o surgimento e
desenvolvimento do livre mercado, que provocaria o
processo de globalização.

34
34
1. Introdução

Dentro de toda a conceituação de Estado exposta até o presente momento,


vimos que a centralização de poder foi fundamental ao surgimento do
Estado e favoreceu a expansão mercantilista, em razão da necessidade de
unificação da moeda e de regras comerciais dentro dos Estados.

Havia, sobretudo, uma vinculação ao território, algo que se expressaria de


diversas formas, como na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789, ao definir a noção de soberania como necessariamente
vinculada à ideia de nação, e da qual não poderia se desvincular.

No entanto, nos séculos que se seguiram, o mundo passou por


inúmeras revoluções no campo da indústria, que modificaram a forma
como a produção de bens e serviços se organizava. A produção em larga
escala, gradualmente foi substituindo os processos de manufatura, e o
implemento de máquinas a vapor garantiu agilidade nos transportes de
longa distância, com o surgimento de navios e trens muito mais velozes,
permitindo maior integração entre regiões da Europa – e do restante do
mundo –, facilitando o comércio.

Assim, pouco a pouco, a maneira de pensar a economia também se


transformou, e o século XIX foi palco para o surgimento de teorias
econômicas formuladas a partir da crítica ao controle estatal sobre
o sistema econômico1, contrariando a noção de desenvolvimento
econômico nacional, fortemente defendido até então, e se voltando
ao livre mercado.

A essa nova forma de pensamento econômico deu-se o nome de


Liberalismo, com seu Laissez-faire – em tradução livre, “deixar fazer”
–, preconizando pela mínima interferência do poder Estatal nas

1
HOBSBAWN, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. São Paulo: Paz e Ter-
ra, 2016. p. 39-40.

 35
decisões econômicas, algo que teria muito impacto nas décadas que
se seguiriam. Teóricos como Adam Smith e sua “mão invisível”, em A
Riqueza das Nações2, estabeleceriam que o mercado não dependeria
do Estado e possuía mecanismos de autorregulação, razão pela qual a
economia deveria ser livre.

De estatal e regionalizado, o mercado, capaz de se autorregular,


passaria a ser mundial. O termo “nação” desaparece da literatura
francesa sobre economia, a partir de 18903. Em razão desse
rompimento com o paradigma anterior, o capital, fortalecido pela
ampliação dos mercados, ganha mais fluidez e circulação, o que gera
uma relativização das fronteiras em nome da universalização do
comércio – ainda que apenas a título de economia.

Além disso, a facilidade de se produzir mais e em larga escala,


rapidamente geraria excedentes de produção, cujo escoamento seria
complexo se os mercados permanecessem restritos à Europa do século
XIX. Era necessário encontrar outros lugares para onde a produção
pudesse ser direcionada. Era preciso colonizar e fragmentar o mundo,
no maior número de mercados quanto fosse possível.

ASSIMILE
A necessidade de expandir territorialmente o alcance do
Estado, em razão da necessidade de escoamento dos
excedentes de produção, levou a um dos últimos ciclos de
colonização da história, primando sempre pela máxima
fragmentação possível, como forma de facilitar a dominação
sobre os povos.

36
36
Tal fragmentação gerou, inicialmente, um grande fluxo de migração
dos “pontos quentes da modernização”4, ou seja, das regiões mais
industrializadas, para as menos desenvolvidas, “ainda intocadas
pelos processos modernizantes”, às quais eram vistas pelo
colonizador como “vazias”5, onde se operaria uma colonização
maciça, fundada no extermínio daquilo que fosse diferente e
problemático aos anseios das metrópoles. A homogeneização que
criaria uma sociedade de consumidores não poderia incluir quem
não se pudesse colonizar de forma lucrativa.

Tal fragmentação e a busca desenfreada por mercados levariam


à Primeira Guerra Mundial, uma disputa pela supremacia entre as
potências imperialistas da época sobre as colônias no continente
africano. Ao fim do conflito, a divisão territorial continuaria como
motivo de insatisfação, principalmente para os Estados que perderam
colônias quando da assinatura do Tratado de Versalhes, como
aconteceu com a Alemanha.

PARA SABER MAIS

O Tratado de Versalhes, documento responsável pelo


surgimento da Sociedade das Nações, foi o acordo de paz
que resultou no fim da Primeira Guerra Mundial, no qual
se determinou a cessão de inúmeros territórios dominados
pela Alemanha a outros países, como França e Dinamarca,
o que gerou insatisfação em parcela da população alemã,
culminando no sentimento de nacionalismo exacerbado
que levaria a Europa à Segunda Guerra Mundial.

4
BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p.50.
5
BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 51.

 37
O descontentamento gerado pelo fim da Primeira Guerra seria
a motivação para Segunda Guerra, um conflito que surgiria,
novamente, como meio de se estabelecer a supremacia territorial
sobre os mercados. No entanto, o conflito de 1939 assumiria
contornos de limpeza étnica, sob o regime do III Reich da Alemanha
nazista – uma tentativa de segregar e exterminar aqueles que não
eram semelhantes aos alemães considerados puros e, portanto,
superiores, pelas políticas de governo.

Ao chegar-se em 1945, com o fim da guerra, o nacionalismo


exacerbado se tornaria tabu, e o mundo assistiria ao fim da
hegemonia das potências europeias: surge um mundo bipolar,
dominado por Estados Unidos e União Soviética6, em um período que
ficaria conhecido como Guerra Fria.

PARA SABER MAIS

A expressão Guerra Fria refere-se ao período da história


mundial no qual o mundo, dividido entre duas potências
hegemônicas, Estados Unidos e União Soviética, foi palco
de disputas que ocorreram exclusivamente através de
estratégias, ao invés de levar a uma guerra, de forma
declarada. Chegou ao fim no ano de 1991, com a extinção
da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Surge também a Organização das Nações Unidas e com ela inúmeras


organizações de cunho econômico, como o Fundo Monetário
Internacional (FMI), facilitando o fluxo de capitais. O capitalismo, sistema
econômico da parcela do mundo influenciada pelos Estados Unidos,
em contraposição à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, onde o

38
38
socialismo era o modelo adotado, tornar-se-ia cada vez mais intenso e o
mundo conheceria um novo processo, denominado globalização.

2. Globalização

Entende-se por globalização o período após a década de 60 do século


XX, no qual a livre circulação de serviços e bens atingiu níveis históricos,
ampliando cada vez mais o consumo, em uma sociedade fortemente
influenciada pela terceira revolução industrial, tecnológica e científica7.
O Estado, já relativizado anteriormente pela fluidez do livre mercado,
passa ao posto de sustentáculo do grande capital8. A escolha da
expressão globalização para caracterizar ao período se refere à
tendência ao global, ao mundial, e a uma pretensão de universalidade
do capitalismo.

Coincide também, apesar de ser fruto da fragmentação territorial do


mundo no século anterior, com um processo de universalização, no
pós Segunda Guerra, que se reflete no surgimento de normas a nível
internacional – a despeito de sua força coercitiva ou da ausência dela –,
como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e a Carta
das Nações Unidas, de 1945, com a criação da Organização das Nações
Unidas (ONU), auxiliando a percepção de que havia uma sociedade global,
horizontalizada, na qual os Estados soberanos eram iguais entre si.

A nível político, princípios como a não intervenção, a não agressão e a


autodeterminação dos povos, criavam a impressão de que, cada vez
mais, tratava-se de uma nova era, mais igualitária, mais inclusiva. No
entanto, no cenário econômico, a realidade era outra.

7
COUTINHO, Luciano. A terceira revolução industrial e tecnológica. As grandes tendências das mudan-
ças. Economia e sociedade, v. 1, n. 1, p. 69-87, 1992.
8
VALENTE, Valdemar. GLOBALIZAÇÃO, FRAGMENTAÇÃO, EXCLUSÃO. VIDYA, v. 19, n. 34, p. 14, 2015.

 39
O ser humano universal dos discursos políticos encontraria limites na
expansão econômica, de cunho segregador, algo que reflete o processo
pelo qual o surgimento de grandes multinacionais, pulverizadas nos
países menos modernizados, criariam uma periferia global dependente
dos bens de consumo, e fornecedora de mão de obra barata e
produtora de matéria-prima, pois não tendo como investir na própria
industrialização, viam-se obrigados a comprar produtos dos países do
centro global9 e, ao comprá-los, cada vez mais teriam que produzir e
fornecer matérias-primas para pagá-los10.

Mais do que isso, o Estado, enquanto produtor de normas relativas às


regulamentações das relações de trabalho, passaria a produzir leis que
favorecessem a acumulação de capital por parte das empresas, sem
que, no entanto, estes trabalhadores fossem incorporados ao processo
de consumo11 e, em razão da fragmentação dos setores da sociedade, a
luta de classes ficasse prejudicada.

Tal segregação, portanto, contraditoriamente, partiria da tentativa de


homogeneização e universalização promovida pela fragmentação da
sociedade em grupos sociais, áreas de interesse, setores da indústria e
blocos econômicos – algo que se reflete até mesmo na forma como as
cidades do centro global se organizaram no último século.

EXEMPLIFICANDO
Ao promover a segregação da sociedade em setores e
grupos, contraditoriamente, essa segregação só é possível

9
A expressão “centro global”, aqui utilizada, refere-se às regiões do mundo compostas pelos países economi-
camente dominantes, centrais à economia mundial, e não ao centro geográfico, literal.
10
ESLAVA, Luis; OBREGÓN, Liliana; URUEÑA, René. Imperialismo(s) y derecho(s) internacional(es): ayer y
hoy. In: ANGHIE, A.; KOSKENNIEMI, M.; ORFORD, A. Imperialismo y derecho internacional: historia y legal.
Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad de los Andes, Pontificia Universidad Javeriana, 2016. p. 11-94.
11
Idem.

40
40
através da homogeneidade que há entre esses grupos: nas
periferias, permanece o que é periférico; nos centros, o
que é de centro; Na União Europeia, o que é europeu; No
MERCOSUL, o que é das Américas; e assim, sucessivamente.

A relativização das fronteiras por força da circulação de bens e serviços


não se opera apenas sobre o tema de migração, por exemplo, embora
seja necessário mencionar o fluxo de pessoas das regiões mais pobres
do mundo para as mais abastadas.

Opera-se, também, sobre as duas realidades urbanísticas


absolutamente distintas convivendo nos mesmos espaços, como
na “metacidade desterritorializada”, de Paul Virilio12, “cujo caráter
totalitário, ou antes, globalitário, não escapa a ninguém”, e onde,
no mundo inteiro, há uma parcela da sociedade que é servida pelos
mesmos arquitetos, as mesmas empresas, o mesmo fluxo de capital,
e do outro lado, há conflitos, pobreza e desigualdades, embora não
necessariamente apenas em países de terceiro mundo, mas dentro das
próprias capitais-centro13.

Além disso, ocorre uma massificação com relação aos padrões de


mercado, uniformizando a parcela da população global dotada de poder
aquisitivo: multinacionais dos mais diversos setores passam a se instalar
por países do mundo inteiro, ocupando espaços de consumo comuns,
como os programas televisivos, o que colabora para o sentimento de
exclusão social daqueles que permanecem à margem de tais padrões,
vivendo uma realidade radicalmente distinta daquela da televisão e das

12
VIRILIO, Paul. A bomba informática. São Paulo: Estação Liberdade, 1999. p.18.
13
AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: Edufal/Unesp, 2010. p.43.

 41
campanhas publicitárias14. Assim, povos das mais diferentes origens
étnicas, históricas, culturais, passaram a adotar os mesmos hábitos.

EXEMPLIFICANDO

Há obras de arquitetura do brasileiro Oscar Niemeyer,


com seus mosaicos assimétricos e curvas sinuosas, no
mundo todo, desde a capital do Brasil, Brasília, até o Líbano,
Espanha, Portugal, Noruega e outros, entre residências
e prédios públicos, incluindo o prédio-sede das Nações
Unidas, em Manhattan, nos Estados Unidos. Um outro
exemplo seria a presença das mesmas marcas por todo o
globo, provenientes de grandes conglomerados industriais,
desde gigantes do setor alimentício e de vestuário, até a
área de informática.

14
AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: Edufal/Unesp, 2010. p.52-54.

42
42
QUESTÃO PARA REFLEXÃO
Após compreender como a fragmentação territorial, que levou aos
dois maiores conflitos do século XX, foi gerada com o objetivo de am-
pliação de mercados, percebemos como a dinamização das frontei-
ras e de circulação de bens foi essencial para que o capitalismo e o
livre mercado se desenvolvessem; o que se refletiria no surgimento
da ONU e na produção normativa a nível internacional. No entanto,
também percebemos que se iniciou uma separação da sociedade,
da política e dos fluxos econômicos em blocos, compartimentando
iguais em grupos de iguais, e gerando mais segregação, ao contrário
da pretensão de universalidade advogada na seara política. Reflita
como essa segregação pode ter favorecido o aprofundamento das
desigualdades sociais, nosso próximo capítulo.

3. Considerações finais

• A evolução nos meios de produção, com aumento de


velocidade da indústria, promoveu a expansão de mercados e
também a facilidade de trânsito de produtos, através de novos
meios de transporte, o que proporcionou maior integração
comercial a nível global;

• Em razão disso, surgem teorias econômicas que advogam pela


diminuição da intervenção do Estado na economia, rompendo
com o paradigma político anterior, do Estado centralizador
e absoluto, dando espaço a um novo modelo de Estado, que
interfere na economia quando é necessário favorecê-la;

• No entanto, excedentes de produção, em razão do aumento


de velocidade, precisavam ser escoados para novos mercados,
o que gerou disputas por territórios, em um novo período de
colonizações, fazendo das colônias, polos fornecedores de
matéria-prima, também consumidores – dividindo tais nações

 43
entre as que eram mercados em potencial e as que possuíam
alguns obstáculos a essa modalidade de imperialismo de mercado,
determinante para o seu desenvolvimento;

• As disputas por esses novos territórios estariam entre as causas


da Primeira e da Segunda Guerra e, em razão disso, o mundo
adotaria, a nível político, discursos de universalidade entre os
povos, algo que se refletiria no surgimento da ONU, por exemplo.
Iniciava-se a Guerra Fria, com um mundo bipolarizado, dividido
entre duas potências, Estados Unidos e União Soviética;

• Contudo, tal pretensão de uniformização não atingiria o campo


econômico, que seguiria segregador e adentraria um novo
período, altamente tecnológico, denominado globalização, no qual,
mais uma vez, a pretensão global dependeria, paradoxalmente, a
divisão do mundo em blocos econômicos, entre periferia e centro,
entre consumidores e não consumidores.

Glossário

• Liberalismo: doutrina fundada na noção de liberdade dos indiví-


duos, em contraponto ao absolutismo estatal e sua intensa cen-
tralização de poder, idealizada por John Locke, em seu “Segundo
Tratado sobre o Governo Civil”, e aprofundada por Adam Smith
em “A Riqueza das Nações”, sendo esse último a principal obra
para o surgimento do liberalismo econômico, no qual o Estado
não deve intervir na economia, que possuiria mecanismos para se
autorregular, em caso de crise do sistema.

• Blocos econômicos: grupos formados por países com interesses


comuns, com o objetivo de promover a integração econômica e
aduaneira, através da gradual supressão de barreiras para o co-
mércio entre os membros do bloco, através da implementação
de 5 fases: zona de livre comércio, união aduaneira, mercado co-
mum, união monetária e união política.

44
44
• Capital: é a expressão utilizada para definir recursos que sejam
utilizados na aquisição e produção de bens e serviços, passíveis
de acumulação e considerada a atribuição de lucro proveniente
da mais-valia15.

• Autodeterminação dos povos: princípio definido na Carta das


Nações Unidas, de 1945, como sendo a possibilidade que os po-
vos têm de determinar livremente sua política, seu desenvolvi-
mento econômico, cultural e social, sem interferência externa.

VERIFICAÇÃO DE LEITURA

1. Adam Smith, ao elaborar sua obra a Riqueza das


Nações, desenvolveu conceitos significativos para os
estudos em economia, como sobre quem pertenceria
a titularidade do poder de regulação do mercado, algo
que se eternizou na literatura especializada como “a mão
invisível do mercado”. Neste contexto, em que consiste o
liberalismo econômico?

a. Trata-se de um sistema econômico baseado na


concentração de poder do Estado, que o exerce sobre
a economia, regulando preços e fluxo de bens;

b. Trata-se da total supressão das fronteiras territoriais,


permitindo o livre fluxo de pessoas, juntamente com
seus bens, sem que sequer haja a necessidade de
visto de entrada nos países;

c. Trata-se de um sistema econômico baseado na ideia


da não-intervenção por parte do Estado na economia,
garantindo a capacidade de se autorregular do
livre mercado;

 45
d. Trata-se de um sistema econômico no qual o Estado
se responsabiliza pela diminuição das desigualdades,
distribuindo as riquezas produzidas entre todos os
seus habitantes;

e. Trata-se de um sistema econômico caracterizado pela


monocultura agrícola e forte investimento do Estado
na pecuária.

2. A velocidade de produção em larga escala gerou


excedentes de bens no mercado europeu, o que fez
com que alguns países transformassem os processos
colonizatórios em uma busca por novos mercados e
fornecedores de matéria-prima. Contudo, os conflitos
acerca da distribuição destes territórios culminariam em
2 guerras de gravíssimas proporções, sendo estas:

a. Primeira Guerra Mundial e Segunda Guerra Mundial;

b. Segunda Guerra Mundial e Guerra Fria;

c. Revolução Francesa e Primeira Guerra Mundial;

d. Guerra Fria e Guerra da Coreia;

e. Segunda Guerra Mundial e Guerra da Coreia.

3. Em um mundo cada vez mais veloz e informatizado,


o trânsito de bens e serviços atingiu níveis históricos
desde a década de 1960, permitindo negociações entre
as mais distantes parcelas do mundo e o consumo dos
mesmos produtos por povos que sequer compartilham a
mesma cultura, em uma espécie de homogeneização. Ao
fenômeno econômico responsável por tal massificação,
dá-se o nome de:

46
46
a. Liberalismo;

b. Socialismo;

c. Comunismo;

d. Globalização;

e. Militarização.

Referências bibliográficas

AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: Edufal/Unesp, 2010.


BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
COUTINHO, Luciano. A terceira revolução industrial e tecnológica. As grandes
tendências das mudanças. Economia e sociedade, v. 1, n. 1, p. 69-87, 1992.
ESLAVA, Luis; OBREGÓN, Liliana; URUEÑA, René. Imperialismo(s) y derecho(s)
internacional(es): ayer y hoy. In: ANGHIE, A.; KOSKENNIEMI, M.; ORFORD, A.
Imperialismo y derecho internacional: historia y legal. Bogotá: Siglo del Hombre
Editores, Universidad de los Andes, Pontificia Universidad Javeriana, 2016. p. 11-94.
HOBSBAWN, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e
realidade. São Paulo: Paz e Terra, 2016.
SMITH, Adam. A riqueza das nações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
VALENTE, Valdemar. Globalização, Fragmentação, Exclusão. VIDYA, v. 19, n. 34,
p. 14, 2015.
VIRILIO, Paul. A bomba informática. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.

Gabarito

Questão 1 – Resposta: C

 47
O liberalismo econômico possui como principal característica a
não intervenção do Estado na economia, o que significa que o
mercado, através de seus próprios mecanismos, possui meios para
se auto-organizar e regular, algo que se consagrou na literatura
sobre economia como o princípio da “mão invisível do mercado”. A
alternativa correta é a letra C.
Questão 2 – Resposta: A
A distribuição de territórios, em um período no qual havia
intensa disputa por novos mercados entre os países europeus,
causou insatisfação em países que se sentiram desfavorecidos
em sua parcela de colônias, fato que provocou a Primeira
Guerra Mundial. Ao fim da Primeira Guerra, com a assinatura do
Tratado de Versalhes, novamente, a Alemanha perderia alguns
de seus territórios para países como França e Dinamarca, o que
esteve entre as motivações para o surgimento de movimentos
nacionalistas radicais, que culminaram na Segunda Guerra Mundial.
A alternativa correta é a letra A.
Questão 3 – Resposta: D
Dá-se o nome de globalização ao processo de aceleração da
produção de bens e serviços em escala global, internacionalizando
o mercado e permitindo que países em regiões distintas do globo
façam parte de um mesmo padrão de consumo, incentivados pelas
grandes corporações. A alternativa correta é a letra D.

48
48
Globalização e suas características
na acentuação da desigualdade
Autora: Estela Cristina Vieira de Siqueira

Objetivos

• Compreender como os processos de aceleração


da produção e do consumo durante o período da
globalização contribuíram para a acentuação de
desigualdades;

• Perceber que a expressão “desigualdade” possui


dimensões mais profundas do que apenas a
discrepância de renda entre países desenvolvidos e
subdesenvolvidos;

• Analisar como a massificação do consumo leva a


graves problemas sociais na periferia do mundo,
excluída socialmente da metacidade global,
integrada pelos mesmos hábitos e padrões
de mercado.

 49
1. Introdução

A globalização foi responsável por integrar economicamente diferentes


regiões do globo terrestre, permitindo a padronização de hábitos de
consumo entre países que não compartilhariam traços culturais, não
fosse a necessidade do mercado. O momento histórico no qual tal
processo de massificação se intensificou foi acompanhado por uma
intensa revolução tecnológica, encurtando distâncias para a difusão de
informações, bens e serviços.

A criação de meios de transporte mais velozes permitiu que regiões


do globo que até então não poderiam ser acessadas tão facilmente
figurassem, enfim, entre as nações passíveis de fazer parte do grande
mercado global. Um dos mecanismos tecnológicos que permitiu essa
integração – a menos em um aspecto físico e territorial – foi a criação do
avião, pelo brasileiro Alberto Santos Dumont.

Dumont, filho de franceses e engenheiro de formação, fazia parte de


uma elite latifundiária que se estabeleceu no Brasil durante o século
XIX, garantindo a estabilidade financeira que permitiu que o mineiro
concluísse seus estudos na França, onde também ocorreu o primeiro
voo autônomo de seu 14-Bis, o primeiro avião a ter um voo homologado
na história da aviação1.

O que o pai da aviação não poderia prever, para além da utilização bélica
de seu invento, causa da angústia que tragicamente o levou ao suicídio,
era que os avanços em engenharia aeronáutica permitiriam um acesso
ainda maior a todas as regiões do globo e, consequentemente, uma
ampliação substancial de mercados.

O capitalismo, fundado na noção de propriedade privada e fluxo


de capital, em detrimento da classe trabalhadora, desprovida dos
meios de produção, promoveu a expansão industrial para além de

1
BARROS, Henrique Lins de. Alberto Santos-Dumont: pioneiro da aviação. Exacta, v. 4, n. 1, p. 35-46, 2008.

50
50
fronteiras, pois a vida econômica não poderia se confinar a apenas
uma sociedade delimitada e “desde suas origens, o capitalismo é
internacional em escopo”2.

Até mesmo a vida local, nas cidades, passa a ser influenciada pelos
padrões de transformação visíveis no restante do mundo, como as
dinâmicas de mercado e o consumo de bens. Isso significa dizer,
por exemplo, que as zonas mais prósperas das grandes metrópoles
mundiais fazem parte da “metacidade”3 de Paul Virilio, já mencionada
anteriormente, para a qual não há fronteiras físicas, mas econômicas,
delineadas por diferenças sociais abissais, para aquela parcela da
população que não é vista como consumidora em potencial, nem produz
competitivamente para ser percebida pelo mercado.

Após inúmeras conquistas sociais concebidas no século XX, como


ampliação de direitos trabalhistas e maiores possibilidades de acesso a
saúde e educação, a globalização se reveste de uma face universal que,
no entanto, não supre tais demandas sociais, pois a produção assume
uma velocidade incompatível com a amplitude de direitos do Estado de
Bem-Estar Social, período imediatamente anterior à globalização.

Para justificar o neoliberalismo e o retorno ao capitalismo obstinado,


cria-se um mito de mundialização “racionalizado e cínico”4, que mantém
o status quo de países dominantes, que necessitam controlar mercados
e, para isso, valem-se de sistemas jurídicos flexíveis e dos meios
de comunicação em massa5, proporcionando o alcance a países de
economia menos modernizada, provedores de mão de obra barata.

2
GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991. p.69.
3
VIRILIO, Paul. A bomba informática. São Paulo: Estação Liberdade, 1999. p.18.
4
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998. p. 50.
5
Idem. p. 53.

 51
Dessa forma, a discrepância entre países desenvolvidos e pobres
se acentua, ao mesmo passo em que eufemismos para tratar a
desigualdade se proliferam: não há países subdesenvolvidos, mas “em
desenvolvimento”, o trabalho noturno ou aos finais de semana, passa a
ser “trabalho flexível” – ideias de um patronato arcaico, mas revestidas
de uma “mensagem muito chique”6. Ao mesmo tempo, em dados do
Banco Mundial para o ano de 2015, 700 milhões de pessoas ao redor do
mundo todo viviam abaixo da linha da pobreza7.

PARA SABER MAIS


A Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu uma série
de metas, denominadas Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável, para serem atingidas até o ano de 2030, dentre
as quais figuram a obrigação dos Estados de cooperarem
com a diminuição da pobreza. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS. Sustainable Development Goals.

No entanto, o próprio fato de existir uma indexação de pobreza


não significa que tal aferição seja suficiente para definir onde há
desigualdade ou não, pois, além de tratar-se de uma linha imaginária,
como definiria o economista indiano Amartya Sen, há mais elementos
definidores de pobreza do que apenas a possibilidade de ganhar mais
de 2 dólares por dia, o que significa dizer que

Não se pode estabelecer uma linha de pobreza e aplicá-la rigidamente


a todos da mesma forma, sem levar em conta as características e
circunstâncias pessoais. Certos fatores geográficos, biológicos e sociais
multiplicam ou reduzem o impacto exercido pelos rendimentos sobre cada
indivíduo. Entre os mais desfavorecidos faltam em geral determinados
elementos, como instrução, acesso a terra, saúde e longevidade, justiça,

52
52
apoio familiar e comunitário, crédito e outros recursos produtivos, voz
ativa nas instituições e acesso a oportunidades8.

Dessa forma, podemos perceber que a desigualdade, no plano da


globalização, é muito mais do que apenas uma questão de renda
e possui outras facetas, menos visíveis do que apenas a questão
monetária dos indivíduos. Trata-se de uma disparidade sistemática
entre padrões de consumo, capacidade laborativa e acesso ao
conhecimento e a direitos básicos, como saúde e educação.

2. A acentuação de desigualdades na globalização

A globalização, portanto, gerou mais do que apenas desenvolvimento


econômico e científico: criou uma cisão entre espaços de consumo e
não-consumo. Os lugares que não são atingidos pela supermodernidade
e sua economia passam a ser vistos como não lugares pelo sistema.

O urbano deixa de ser apenas o local, e a cidade toma proporções


universais, em uma espécie de metacidade virtual, que espelha a
massificação do consumo a nível global. Não se fala mais em urbanismo
sem integração global: as grandes megalópoles estão em uma
rede mundial de comunicação e circulação9, que compartilha a vida
econômica, artística, cultural e científica de todo o planeta10.

8
SEN, Amartya. Amartya Sen e as mil facetas da pobreza. In: BID AMÉRICA (Banco Interamericano de De-
senvolvimento). Amartya Sen e as mil facetas da pobreza. Disponível em: http://www.iadb.org/pt/noticias/arti-
gos/2001-07-01/amartya-sen-e-as-mil-facetas-dapobreza,9286.html Acesso em 19 ago. 2018.
9
AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: Edufal/Unesp, 2010. p.38.
10
Idem. p.40.

 53
PARA SABER MAIS
Assim como o prédio sede da Organização das Nações
Unidas em Nova York foi projetado pelo brasileiro Oscar
Niemeyer, o painel duplo de 14 metros que decora o hall
de entrada do prédio é de autoria do também brasileiro
Cândido Portinari, denominado “Guerra e Paz”. (PORTINARI,
Cândido. Guerra e Paz. 1957. Original de arte. Óleo sobre
madeira. Acervo da Organização das Nações Unidas.)

Do outro lado desse espaço urbano global, no entanto, está a cidade-


mundo descrita pelo antropólogo francês Marc Augé11: não virtual,
marcada pela extrema pobreza, os conflitos e todas as contradições
sociais que marcam os processos globalizatórios.

Os fluxos do mercado de ações e de capital especulativo promoveram


uma grande mobilidade de riquezas no mundo, o que não significa
desenvolvimento ordenado e igualitário: os países com maior renda
per capita do mundo abrigavam 1 bilhão de pessoas, em conjunto,

11
Idem. p.43.

54
54
nos primeiros anos do século XXI, o que correspondia a apenas um
sexto da população mundial12.

Entre os principais problemas sociais apontados como sendo


resultados da globalização estão o desemprego, a acentuação da fome
e até mesmo a violência, em alguns aspectos. A globalização, portanto,
é um forte elemento de universalização no que diz respeito a uma
elite econômica global que compartilha dos mesmos ideais e padrões,
porém promove a fragmentação abordada no capítulo anterior, para
os países menos modernizados.

ASSIMILE

Um dos fundamentos da globalização é a pretensão de


universalidade de padrões de consumo, instrumentos
normativos a nível jurídico, hábitos de mercado, que,
no entanto, não atingem a parcela da população
mundial com índices mais reduzidos de modernização,
exatamente em razão das políticas excludentes de
fragmentação em busca de novos mercados ocorridas no
século XIX e início do século XX.

Isso significa dizer que, em algum momento, o acirrar de desigualdades


traria consequências trágicas, novamente, à humanidade: se a
fragmentação do mundo em mercados no século XIX deixou uma
Europa descontente e serviu de estopim aos dois maiores conflitos
armados da história, a industrialização e barateamento do aparato de
guerra e a velocidade de movimentação por entre os espaços estaria

12
TUROLLA, Frederico Araujo. Globalização e desigualdade. GV-executivo, v. 2, n. 4, p. 17-21, 2004.

 55
entre os elementos facilitadores dos conflitos armados modernos, que
sempre se operam nos não-lugares, onde impera a desigualdade.

Ainda nesse sentido, o fato de que os padrões de consumo amplamente


difundidos não se espalham de maneira igual, a despeito da pretensão
de universalidade da globalização, por todo o espaço geográfico do
planeta, mas exclui os lugares de não-consumo, surge uma rivalidade
entre o centro e a periferia – entre os subúrbios e os bairros, entre
a classe dominante e a dominada, entre a religião prevalente e as
secundárias, entre o mundo ocidental e o oriental.

Os subúrbios do mundo nem sempre possuem contato entre si,


mas interagem pelos noticiários, comumente de forma trágica e
marginalizada, também conforme o pensamento de Marc Augé. A
televisão e as redes sociais, espaços de marketing internacional,
bombardeiam seus usuários com propagandas e anúncios que
refletem positivamente o interesse da elite global, ocupando a grande
maioria da programação e divulgação de ampla escala, o que gera nos
subúrbios um desejo de também fazer parte desse centro, “um centro
descentrado e multiplicado”13, onde se veicula a arte, ciência, o esporte
e a política da metacidade global, elitizada.

EXEMPLIFICANDO
O subúrbio ocupa as telas apenas em momentos de
crise: quando se revolta, quando algo negativo ocorre,
testemunhando “o sentimento de exclusão de uma
parte da juventude fechada num protesto sem conteúdo

13
AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: Edufal/Unesp, 2010. p.53.

56
56
ideológico particular”14, que somente se vê representada
nos espaços de consumo quando subverte a ordem. (AUGÉ,
Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: Edufal/
Unesp, 2010. p.54).

O progresso desenfreado da globalização gera ao sistema um excedente


de pessoas – uma consequência inescapável da globalização15. Se
antes os fluxos de migração eram dos centros às periferias, nos fluxos
colonizatórios que foram necessários ao fortalecimento do capitalismo,
como vimos, hoje ocorrem em sentido inverso: as periferias querem
viver a realidade dos centros. Buscam melhores condições de vida do
que aquelas encontradas no país de origem. Migram por sobrevivência,
entre fronteiras ou para além delas.

Ou seja: a colonização fragmentadora dos séculos anteriores, que


freou o desenvolvimento dos Estados de menor modernização, para
que estes fossem produtores de matéria-prima e fornecedores de
mão de obra barata às grandes metrópoles, gerou um terceiro mundo
empobrecido, de industrialização cedida temporariamente e Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH)16 baixo. E essa população hoje
busca os grandes centros de capital, que as consideram uma questão
de “segurança nacional”, excluindo-os mais uma vez, do projeto de
prosperidade do mundo globalizado.

14
Idem. p.54.
15
BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p.12.
16
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é um critério de classificação utilizado pelo Programa de Desen-
volvimento das Nações Unidas (PNUD) para, através de indicadores como acesso a serviços básicos, urbanização,
renda e expectativa de vida da população, comparar o nível de desenvolvimento dos países.  O ranking atualiza-
do pode ser acessado em: http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/idh0/rankings/idh-global.html

 57
QUESTÃO PARA REFLEXÃO
Reflita sobre como as desigualdades sociais surgiram no contexto
da globalização, a despeito da pretensão de universalidade dos
hábitos e práticas a nível mundial, pois o universal encontraria
limitação nas áreas que não eram consideradas regiões de
consumo, os não lugares do subúrbio global, alheios à cultura,
à arte, à ciência e ao entretenimento das grandes metrópoles,
asseverando a rivalidade entre os polos da sociedade: periferia e
centro, ocidente e oriente, norte e sul global.

3. Considerações finais
• A globalização, enquanto processo de integração a nível global,
fundado na expansão de capital e de mercados, possuía uma
pretensão de universalidade de hábitos de consumo, que
influenciou até mesmo a disposição das cidades no espaço;
• Surge uma espécie de “metacidade”, na qual, a despeito de
fronteiras, há um compartilhamento cultural, artístico e científico,
significando que as áreas elitizadas das grandes metrópoles se
assemelham, em nome da modernização;
• No entanto, essa pretensão de universalidade não atinge regiões
inaptas aos padrões de consumo, figurando como não-lugares do
sistema capitalista, onde impera a desigualdade;
• Tal dinâmica promove um fluxo migratório inverso ao do século
XIX e início do século XX, pois os habitantes das regiões exploradas
do globo anseiam participar dos espaços de consumo, em busca
de uma vida melhor.

Glossário
• Linha de pobreza: expressão utilizada para designar o índice pelo
qual se define quando a renda de um indivíduo, durante um ano, é
insuficiente à garantia de sua sobrevivência digna;

58
58
• Renda per capita: expressão em latim que significa renda “por ca-
beça”, trata-se da renda média dos indivíduos, quando se conside-
ra um determinado contexto, como o país. Assim, a renda per capi-
ta de um país é o índice de renda média por pessoa naquele lugar;

• Marketing internacional: trata-se do processo de análise, pes-


quisa e gerenciamento de mercado, em prol de viabilizar a troca
de valores entre indivíduos e grupos, de forma voluntária, in-
corporando-se a este sistema a criação e a oferta de produtos,
como mecanismo de atingir objetivos estratégicos das empresas,
porém a nível global.

VERIFICAÇÃO DE LEITURA

1. A modernização promoveu o compartilhamento de


informações e bens a nível global, em uma espécie
de metacidade. No entanto, para além dos grandes
centros, a desigualdade predomina onde o consumo
não chega. Embora não seja a única forma de se aferir
a desigualdade, um dos índices que pode ser utilizado
no estudo da discrepância econômica entre as áreas do
globo é a:

a. globalização;

b. renda per capita;

c. metacidade global;

d. supermodernidade;

e. Europa.

 59
2. O fato de que os padrões de consumo a nível global
não se espalham uniformemente por todos os espaços
é um dos elementos ensejadores de rivalidades entre
classes, regiões do mundo e culturas diferentes porque
as classes dominadas desejam se ver nos espaços de
consumo, normalmente ocupados pelas elites.

a. as duas afirmações são verdadeiras e a segunda


justifica a primeira;

b. as duas afirmações são verdadeiras e a segunda não


justifica a primeira;

c. a primeira afirmação é verdadeira e a segunda é falsa;

d. a primeira afirmação é falsa e a segunda é verdadeira;

e. as duas afirmações são falsas.

3. “Todos os anos, exposições de peso se espalham ao


redor do mundo. Em 2018 não será diferente. Fique de
olho e programe-se! Uma coisa é certa em 2018: não há
escassez de boa arte para se ver. Desde a primeira grande
exposição nos EUA da pintora abstrata Hilma af Klint e
a maior mostra britânica do videoartista pioneiro Joan
Jonas, até as pinturas apaixonadas do início do século XX
de Egon Schiele e a primeira escultura espacial do mundo,
do artista contemporâneo Trevor Paglen, aqui está uma
lista com 12 mostras que acontecem em todo o mundo
– e além – que você não vai querer perder.” (TOUCH OF
CLASS. Pelo mundo: 12 exposições imperdíveis em
2018. Disponível em: www.touchofclass.com.br/index.
php/2018/01/17/pelo-mundo-12-exposicoes-imperdiveis-
em-2018/. Acesso em: 19 ago. 2018.).

60
60
A que fenômeno econômico, que se reflete também na
difusão de arte, em razão da padronização de hábitos ao
redor do mundo todo, o trecho acima se relaciona?

a. Feudalismo;

b. Fragmentação territorial;

c. Rivalidade entre subúrbio e periferia;

d. Globalização;

e. Estado de Bem-Estar Social.

Referências bibliográficas

AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: Edufal/Unesp, 2010.


BANCO MUNDIAL. FAQS: Global Poverty Line Update. Disponível em: www.
worldbank.org/en/topic/poverty/brief/global-poverty-line-faq Acesso em: 19
ago. 2018.
BARROS, Henrique Lins de. Alberto Santos-Dumont: pioneiro da aviação. Exacta, v.
4, n. 1, p. 35-46, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p.12.
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 53.
GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Editora Unesp,
1991. p.69.
SEN, Amartya. Amartya Sen e as mil facetas da pobreza. In: BID AMÉRICA (Banco
Interamericano de Desenvolvimento). Amartya Sen e as mil facetas da pobreza.
Disponível em: http://www.iadb.org/pt/noticias/artigos/2001-07-01/amartya-sen-e-
as-mil-facetas-dapobreza,9286.html Acesso em 19 ago. 2018.
TUROLLA, Frederico Araujo. Globalização e desigualdade. GV-executivo, v. 2, n. 4, p.
17-21, 2004.
VIRILIO, Paul. A bomba informática. São Paulo: Estação Liberdade, 1999. p.18.

 61
Gabarito

Questão 1 – Resposta: B
A única das expressões apresentadas como alternativas à questão
1 que representa um índice de desigualdade é a aferição de
renda per capita, ou renda “por cabeça”, através da qual é possível
compreender os padrões de renda média dos indivíduos em um
determinado local, anualmente. Logo, a alternativa B está correta.
Questão 2 – Resposta: A
De fato, um dos elementos ensejadores de rivalidades entre classes
é o desejo das classes dominadas de figurarem em espaços de
consumo como a televisão e as redes sociais, assim como as classes
dominadoras, fazendo com que, na hipótese da questão, não
apenas as duas afirmativas sejam verdadeiras, mas que a segunda
afirmativa justifique a primeira. A alternativa A está correta.
Questão 3 – Resposta: D
O trecho apresentado na questão se relaciona à globalização e
ao processo de massificação dos hábitos das elites a nível global,
algo que se manifesta também através das artes, pois as mesmas
exposições artísticas viajam pelo mundo todo, de museu em
museu, nos remetendo à ideia de metacidade global. A alternativa
correta, portanto, é a letra D.

62
62
Democracia e Estado-nação
Autora: Estela Cristina Vieira de Siqueira

Objetivos

• Compreender como o conceito de Estado-nação


difere do conceito de Estado, propriamente dito,
no sentido de que a ideia de nação implica em uma
noção de pertencimento e identidade coletiva, que
vai além da própria percepção de Estado;

• Perceber como a ascensão da burguesia permitiu


uma nova dinâmica de poder dentro dos Estados
modernos: a soberania popular;

• Analisar a relação entre as formas de poder


estruturadas nos Estados nos períodos
imediatamente anteriores ao Estado democrático.

 63
1. Introdução

Partindo do momento histórico do surgimento do Estado, com todas


as suas especificidades, vimos que a tendência ao agrupamento
apresentada pelos seres humanos nem sempre recebeu a
denominação Estado – algo que somente ocorreu na literatura
mundial quando Maquiavel relacionou as estruturas hierarquizadas
de poder dentro de um determinado território à expressão Estado,
em 1512, em sua obra O Príncipe1.

Da mesma forma, o Estado moderno, cujo marco inicial na literatura


especializada vai de encontro ao surgimento dos primeiros Estados
centralizados, surge através da ideia de exclusão daquilo que é externo,
diferente, estrangeiro. Os antigos feudos se aglutinam ao redor de um
poder central. Para que se criasse uma identidade ao redor de um único
soberano, em torno do qual todo o Estado pudesse se unificar, era
necessário criar um mito de pertencimento – uma identidade nacional.

Um dos acontecimentos históricos que já estudamos e que nos


permite ver com bastante clareza essa dinâmica de exclusão é a
expulsão dos muçulmanos de Granada, em 14922, em nome da
unificação do território espanhol, cuja principal identidade coletiva, à
partir da li, além da investidura da monarquia, seria a religião católica,
a qual não se poderia contestar. Essa, no entanto, não seria a única
hipótese histórica de exclusão, como veremos.

Embora já tenhamos visto os desdobramentos históricos de formação


do Estado, ainda não demos um nome à noção de pertencimento
coletivo que move a unificação em torno de um único soberano, um
sentimento que una uma população em torno de uma só identidade.

1
BONAPARTE, Napoleão; MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe – comentado por Napoleão Bonaparte. São Pau-
lo: Hemus-Livraria Editora Ltda, 1977. p. 11.
2
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Estado Plurinacional e Direito Internacional. Curitiba: Juruá Editora,
2012. p.21.

64
64
O francês Ernest Renan faz em Qu’est-ce qu’une nation? 3 a primeira
tentativa de se conceituar esse sentimento, dividindo-o em duas
partes: uma, referente à memória coletiva daquele povo, e a segunda,
referente à perpetuação da história coletiva deste grupo, de forma
indivisível. Às duas facetas juntas, incorporadas às percepções de
Estado, Renan deu o nome de nação.

A nação era, portanto, uma manifestação do inconsciente


coletivo, uma indicação de vínculo grupal, que nem sempre
corresponderia a etnicidade ou a uma língua comum4, mas que
seria construída através de um sentimento de pertencimento, que
seria posteriormente utilizado por líderes com interesses diversos,
nem sempre de forma correspondente e adequada, para construir a
unicidade em torno do Estado – algo que, no futuro, muitos séculos
depois, se apresentaria problemático.

EXEMPLIFICANDO
Os países localizados na região dos Balcãs até hoje têm
problemas de identificação coletiva, após sucessivas guerras
e processos de emancipação de Estados, situações que
antecedem o surgimento do Império Austro-Húngaro, em
1867, e que perduram até os dias atuais, após a Guerra
da Bósnia, em 1994, que terminou com acusações de
genocídio, após também a guerra por independência
de Kosovo, em 2000, que ainda não obteve o resultado
desejado, e a separação de Montenegro da Sérvia, em 2009.
Nunca houve um período bem sucedido de unificação no
local, ainda que inúmeras tenham sido as tentativas.

3
RENAN, Ernest. Qu’est-ce qu’une nation? (Conférence prononcée le 11 mars 1882 à la Sorbonne). Paris:
Presses Pocket, 1992. p. 54.
4
HOBSBAWN, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2013. p.33.

 65
Em um primeiro momento, a burguesia, a classe mercantil crescente
durante o período, financiou a ascensão dos monarcas soberanos
e inúmeras foram as teorias que objetivaram justificar o poder do
monarca, como foi o caso do próprio Maquiavel e de Thomas Hobbes,
com seu Leviatã5. O Estado era um mal necessário.

Uma outra característica marcante dos primeiros séculos que se


seguiram aos processos de unificação dos Estados, que colocaram fim
às invasões bárbaras, foram as guerras6 – desta vez, sob o comando
de unidades soberanas. A expansão territorial veio através de buscas
incessantes por novos mercados7, sob os quais era necessário obter
subordinação. Ao mesmo tempo, a Europa vivia em guerras internas por
divisão de territórios, necessitando dos recursos que eram extraídos das
novas colônias para financiá-las.

BORCH, Gerard ter. The Ratification of the Treaty of Münster.


1648. Original de arte. Óleo sobre cobre. Acervo da National Gallery,
Reino Unido.

No entanto, com o passar do tempo, os gastos começaram a superar


os benefícios de se empreender tantas guerras em tão curto espaço de
tempo – algumas com duração de mais de um século, como foi o caso da
Guerra de Cem Anos8, entre a Inglaterra e a França, que durou 116 anos,
entre 1337 e 1453.

Chegou-se a um momento no qual foi necessário se estabelecer um


acordo de paz que garantisse a soberania dos Estados, de forma

5
HOBBES, Thomas. Leviatã - Ou Matéria, Forma e Poder de Um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo: Edi-
pro, 2015.
6
SCHNEIDER, Luíza Galiazzi. O papel da guerra na construção dos Estados modernos: o caso da Etiópia,
2010. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Programa de Pós Graduação em Ciência Política, Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.
7
CHINAGLIA, Pedro Henrique. VIANA, Waleska Cariola. Estado Westfaliano versos Estado-nação e seus refle-
xos nas colônias da América Latina. In: II Simpósio Pensar e Repensar a América Latina, 2016, São Paulo. Anais.
8
NAVARRO, Roberto. O que foi a Guerra dos Cem Anos? Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-
-estranho/o-que-foi-a-guerra-dos-cem-anos Acesso em: 28 ago. 2018.

66
66
a que se colocasse fim às inúmeras guerras ocorridas no período.
Surge um tratado que mudaria a história das relações entre Estados
para sempre: a Paz de Westfália, em 1648, composta pelos Tratados
de Münster e Osnabruque.

BORCH, Gerard ter. The Ratification of the Treaty of Münster. 1648.


Original de arte. Óleo sobre cobre. Acervo da National Gallery, Reino Unido.

2. O declínio do modelo Westfaliano de estado e o


surgimento do estado democrático

Na Paz de Westfália, composta pelos Tratados de Münster e


Osnabruque, foi reconhecido pela primeira vez o princípio da
igualdade formal dos Estados europeus9, atestando sua soberania:
nenhum Estado poderia ser superior ao outros, pois a soberania é
característica do poder supremo que não reconhece nenhum poder

9
MAZUOLLI, Valério. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p.72.

 67
superior a si, nem na esfera interna, nem na esfera externa. Isso
depende, necessariamente, de um limite de território – a circunscrição
na qual esse poder soberano será exercido e poderá ser facilmente
reconhecido por outros Estados.

ASSIMILE

A soberania nos moldes do Estado westfaliano é, portanto, a


qualidade do poder do Estado que não reconhece nenhum
poder superior a si, nem na esfera interna, nem na esfera
externa, partindo do pressuposto de que há um limite
territorial demarcado, no qual esse poder será exercido.

No entanto, com a evolução da sociedade, principalmente após a


Revolução Francesa, em 1789, a balança de poder se altera e um novo
elemento de soberania emerge, alterando os rumos do Estado nos
próximos séculos: a soberania popular10. A burguesia se incorpora
dos anseios populares por melhorias sociais e econômicas e investe
em revoluções que, por fim, culminaram com o enfraquecimento do
poder absoluto dos monarcas, que, especialmente no caso francês,
morreram guilhotinados.

As sublevações que ocorreram na Europa no período colocaram os


seres humanos em posição de grande importância frente ao Estado, e
cartas garantindo-os extensivos direitos surgiram como consequência

10
CHINAGLIA, Pedro Henrique. VIANA, Waleska Cariola. Estado Westfaliano versos Estado-nação e seus re-
flexos nas colônias da América Latina. In: II Simpósio Pensar e Repensar a América Latina, 2016, São Paulo.
Anais.

68
68
desses movimentos. Uma delas, a Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão11, fruto da Revolução Francesa, traria em seu texto que
“o princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação.
Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que
dela não emane expressamente”.

PARA SABER MAIS


No ano de 1791, paralelamente ao surgimento da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, surge
um importante documento para a afirmação dos direitos
das mulheres, com redação da ativista Olympe de Gouges,
a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. O texto
original não contemplava as mulheres. (GOUGES, Olympe
de. Declaração dos direitos da mulher e da cidadã de 1791.
Tradução: Selvino José Assmann. Revista Interdisciplinar
Interthesis, v. 4, n. 1.)

Para romper ainda mais com a tranquilidade e a territorialidade da Paz


de Westfália, apenas uma década após a Revolução Francesa ocorreria o
golpe de 18 de Brumário12, em 1799, levando ao poder o general francês
Napoleão Bonaparte, apoiado pela burguesia. O regime bonapartista,
profundamente expansionista, despedaçou a Europa westfaliana, de
forma a que a ideia de Estados soberanos, nos quais não se poderia
intervir, ficaria prejudicada.

11
DO NASCIMENTO BRANCO, Francisco José. Declaração dos direitos do homem e do cidadão. Intervenção
Social, p. 133-135, 2014.
12
MONDAINI, Marco. Guerras napoleônicas. In: MAGNOLI, Demétrio. História das guerras. São Paulo: Contex-
to, 2006. P.189.

 69
Além de Bonaparte, as Revoluções Industriais que se seguiram e a
necessidade de expansão para novos mercados, nos séculos XIX e
XX, que culminariam nas duas grandes Guerras, em 1914 e 1939,
terminariam por reduzir ainda mais a figura do Estado estritamente
territorial em sua dinâmica de soberania nas relações internacionais.

Os Estados começam a se pautar pela garantia de direitos mais


amplos a seus cidadãos e por uma noção, ainda que embrionária,
de representatividade democrática, e isso se consolida com alguns
textos jurídicos muito importantes, como a Constituição de Weimar,
da Alemanha, em 1919. No entanto, a Europa, após a primeira guerra,
passava por uma crise econômica que, somada ao sentimento de perda
experimentado por algumas nações, como a própria Alemanha, levariam
ao sentimento de nacionalismo e xenofobia da Segunda Guerra Mundial.

A guerra de 1939 não seria apenas uma guerra marcada pelos anseios
de expansão territorial dos países que compuseram o eixo – Alemanha,
Itália e Japão. A Segunda Guerra deixaria um rastro de destruição
com motivações étnicas, com o extermínio de 6 milhões de judeus em
campos de concentração, em um dos mais trágicos capítulos da história
da humanidade, o holocausto.

Um forte impacto na imagem do Estado, a política nazista de


limpeza étnica demonstrava que nem sempre seus representantes
teriam condições de saber o que era melhor para o povo, o que
significa também afirmar que a decisão da maioria nem sempre será
democrática. A garantia de manutenção da vida de todos os cidadãos,
por exemplo, deveria estar acima da capacidade de decisão do Estado e
até do próprio povo.

De maneira ainda mais profunda, apesar de ter convertido seu


governo em uma ditadura, Adolf Hitler fora eleito através do
voto popular, e nunca escondeu seus objetivos, conhecidos da

70
70
população desde a publicação de Mein Kampf13 – do alemão, Minha
Luta – em 1925, livro escrito por Hitler quando esteve na prisão,
após a Primeira Guerra, e no qual deixava bastante claro que não
simpatizava com inúmeras minorias.

Assim, ficava mais perceptível que a simples decisão da maioria não


poderia ser parâmetro para a tomada de decisões, pois nem sempre
decidiria em favor de toda a população14, e a soberania popular deveria ser
exercida em abstrato, em favor de todos. O princípio democrático, para as
próximas décadas, fundar-se-ia nessa percepção de inclusão e igualdade.

Com o fim da guerra, em 1945, tendo sido a primeira a utilizar


armas de destruição em massa, como bombas nucleares, e com o
surgimento das Nações Unidas, a humanidade compreende que uma
nova guerra levaria a espécie humana à extinção e para se evitar que
episódios como o holocausto voltassem a ocorrer, era necessário
cercar a comunidade internacional com meios para que a dignidade
da pessoa humana não pudesse ser violada.

O que fica, enquanto mensagem sobre o Estado, após tantos conflitos,


é o fato de que era necessário haver mecanismos de garantia de
pluralidade política que permitissem que nem mesmo o Estado,
nem mesmo a maioria, promovessem novas catástrofes de tão
graves proporções. Dessa forma, o que se percebe é que a soberania
popular precisaria de uma outra dimensão, que possuísse um viés de
transformação social e representasse, de fato, a presença de todos os
seres humanos, sem distinção.

13
CAETANO, Tiago Lemanczuk Fraga. Mein kampf e o ideário nazista. Consilium Revista Eletrônica de Direi-
to, Brasília, v. 1, n. 4, 2010.
14
BOBBIO, N. Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos. Organizado por Michelan-
gelo Bovero. Tradução de Daniela B. Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 426-7

 71
PARA SABER MAIS
Também em razão do fim da Segunda Guerra, surge a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que
estabelece inúmeras garantias fundamentais à manutenção
da vida e da dignidade dos seres humanos. (UNICEF.
Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Assim, delineia-se uma nova dimensão de Estado: o Estado democrático.


Nele, estabelecer-se-iam garantias civis e liberdades individuais a todas
as pessoas, como resultado de um longo processo de evolução histórica
e construção de direitos básicos, que não poderiam ser usurpados das
pessoas, nem mesmo pelo Estado, nem mesmo por outros semelhantes.
O Estado moderno se relaciona à democracia nesse sentido, por ser
um reflexo do fim dos regimes fascistas do século XX15, após inúmeras
tentativas de organização de Estado pelas quais a humanidade passou.

Esse viés de transformação social e representatividade se consolidaria


em algumas Constituições de Estados, como foi o caso da Constituição
de Portugal, de 1976 e, de forma mais próxima, da Constituição da
República Federativa do Brasil, em 1988, que firma logo em seu
preâmbulo a definição de que o Brasil se instituiria como

[...] um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos


direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia

BOBBIO, Norberto. Do Fascismo à Democracia: os regimes, as ideologias, os personagens e as culturas


15

políticas. Trad. Daniela Versani. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

72
72
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias16.

Nesse sentido, a democracia no Estado moderno haveria de se relacionar


à limitação do poder do próprio Estado e de seus subordinados, evitando-
se arbitrariedades e abusos, submetendo indivíduos e entidades, sem
distinção, ao império de garantias fundamentais.

QUESTÃO PARA REFLEXÃO


Note como a evolução histórica do Estado através dos séculos,
permeada por episódios trágicos de exclusão de minorias e
ausência de representatividade, em contraposição a um Estado
forte, absoluto e totalitário, deram origem a anseios por maiores
direitos por parte de uma sociedade oprimida por tempo mais
do que suficiente para perceber que alguns direitos e garantias
deveriam ser inalienáveis e superiores a quaisquer indivíduos e até
mesmo ao próprio Estado, limitado pela impossibilidade de cometer
abusos contra seu povo.

3. Considerações finais

• Dentro da perspectiva de evolução histórica do Estado, a


elaboração do conceito de soberania passaria por inúmeras
alterações, sendo que a Paz de Westfália, composta pelos Tratados
de Münster e Osnabruque, a definiria como qualidade do poder
dos Estados que possui nenhum poder superior a si, em qualquer
nível, legitimando a igualdade dos Estados;

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.


16

br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 28 ago. 2018.

 73
• No entanto, essa noção ainda seria fortemente ligada à
territorialidade, algo que em pouco tempo se dissolveria,
literalmente, após inúmeras guerras que colocaram em
questionamento a posição territorial dos Estados europeus,
principalmente após as invasões napoleônicas;

• Ainda, a burguesia financiaria inúmeras revoluções que


permitiriam a queda de regimes absolutistas e totalitários e
permitiriam o surgimento de novas formas de poder fundadas
na soberania popular, ainda que essa fosse limitada à vontade da
maioria, sem que se fizessem maiores considerações;

• Trágicos episódios subsequentes, como o holocausto, em meio


a Segunda Guerra Mundial, trariam à tona a necessidade de
se expandir o conceito de soberania popular, de forma a que
se abrangesse mais do que apenas a vontade da maioria, pois
existem garantias e direitos que não podem ser retirados dos
seres humanos, a despeito da intenção majoritária e de forma
superior até mesmo ao Estado.

Glossário

• Sublevação: a expressão sublevação se refere a um momento


social de inquietação e revolta, seja essa coletiva ou individual, ca-
paz de provocar turba em um determinado espaço-tempo, como
por exemplo, a Sublevação Húngara, de 1956, entre tantas outras.

• Holocausto: a expressão holocausto, relacionada ao momen-


to histórico do extermínio de judeus durante a Segunda Guerra
Mundial, possui uma construção bastante trágica, porém de es-
sencial compreensão. O termo deriva de duas expressões gregas,
҅
ο' λος e καυστός, que juntas significam “todo queimado”, conforme
a tradução da primeira bíblia hebraica para o grego, ao referir-se

74
74
a sacrifícios realizados através do fogo, conforme pode-se identi-
ficar no livro de Deuteronômio, 12:31, por exemplo. Por sua cono-
tação religiosa e contraditória ao que ocorreu durante a Segunda
Guerra, a expressão não é utilizada pela comunidade judaica. In:
HISTORIA LIVRE. Mudando conceitos: “holocausto” vs. “shoáh”.

VERIFICAÇÃO DE LEITURA

1. Dentro da evolução histórica das formas de


agrupamento experimentadas pelos seres humanos,
compreende-se como sendo o conceito de nação, dentre
as alternativas seguintes:

a. O território no qual um Estado se insere, confundindo-


se com o próprio Estado, do qual é indissociável;

b. O sentimento de identidade coletiva de um povo,


que nem sempre possui vinculação territorial ou até
mesmo étnica, desde que presente um inconsciente
coletivo que os una;

c. O sentimento radical de pertencimento que permitiu


que fenômenos políticos atuassem de forma negativa
e xenofóbica contra parcelas da sociedade, como o
nazismo e o fascismo;

d. A organização política em torno de três elementos


essenciais: povo, território e soberania;

e. O conjunto de órgãos destinados a realizar a


administração pública, dentro de um determinado
território, limitado por tratados, como a Paz de Westfália.

 75
2. A Paz de Westfália foi um divisor de águas para a
composição dos Estados e suas relações uns com os
outros, na Europa de 1648. Dentre as inovações trazidas
pelos tratados que a compuseram, encontra-se:

a. O reconhecimento de Napoleão Bonaparte como


único soberano de toda a Europa, redefinindo o mapa
do continente como se conhecia até então, através de
inúmeros esforços expansionistas;

b. O surgimento dos primeiros territórios, algo que não


acontecia desde o feudalismo, marcado pela profunda
centralização de poder nas mãos de um único soberano;

c. A afirmação do poder da burguesia, pois os tratados


de Münster e Osnabruque seriam os primeiros a
definir o capital especulativo como forma legítima de
financiamento das contas do Estado;

d. O princípio da igualdade formal dos Estados,


reconhecendo a equivalência entre de soberania entre
eles, como sendo a qualidade do poder supremo,
que não reconhece outro maior que si nem na esfera
interna, nem na esfera externa;

e. O princípio democrático, que se refere à presença de


representatividade e multiculturalismo nas sociedades,
com a garantia de direitos individuais a todos os seres
humanos, de forma a que eventos trágicos como a
Guerra dos 100 anos não retornem a ocorrer.

3. Quais eventos históricos ocorridos durante o século XX -


principalmente a metade do século - colaboraram com o
surgimento do Estado democrático?

76
76
a. A Segunda Guerra Mundial e a gravidade das
agressões étnicas perpetradas por um governo que,
embora tenha se convertido em uma ditadura, teve
início em uma eleição, submetendo-se ao voto da
maioria, permitindo que a humanidade percebesse
que havia direitos que nem mesmo a vontade
majoritária, e até mesmo a vontade do Estado,
poderiam retirar do povo;

b. A Guerra dos 100 anos, considerada a primeira


guerra moderna, por ter sido a primeira a utilizar
exércitos criados já sob a égide de Estados
centralizados, tornando Joana D’Arc, revolucionária
republicana, a primeira líder eleita popularmente
para chefiar um Estado, consolidando o princípio da
soberania popular;

c. A Primeira Guerra Mundial - e a letalidade dos


instrumentos de guerra utilizados - provocou uma
preferência mundial a optar por regimes totalitários
de Estado que, embora não fossem eleitos através do
voto popular, comprometiam-se com a salvaguarda de
ideais democráticos e igualitários;

d. A Segunda Guerra Mundial - e a letalidade dos


instrumentos de guerra utilizados - provocou uma
preferência mundial a optar por regimes totalitários
de Estado que, embora não fossem eleitos através do
voto popular, comprometiam-se com a salvaguarda de
ideais democráticos e igualitários;

e. A Primeira Guerra Mundial e a gravidade das


agressões étnicas perpetradas por um governo que,
embora tenha se convertido em uma ditadura, teve
início em uma eleição, submetendo-se ao voto da

 77
maioria, permitindo que a humanidade percebesse
que havia direitos que nem mesmo a vontade
majoritária, e até mesmo a vontade do Estado,
poderiam retirar do povo.

Referências bibliográficas
BOBBIO, N. Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos.
Organizado por Michelangelo Bovero. Tradução de Daniela B. Versiani. Rio de
Janeiro: Campus, 2000.
BONAPARTE, Napoleão; MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe – comentado por
Napoleão Bonaparte. São Paulo: Hemus-Livraria Editora Ltda, 1977.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 28
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CAETANO, Tiago Lemanczuk Fraga. Mein kampf e o ideário nazista. Consilium
Revista Eletrônica de Direito, Brasília, v. 1, n. 4, 2010.
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Pensar e Repensar a América Latina, 2016, São Paulo. Anais.
DO NASCIMENTO BRANCO, Francisco José. Declaração dos direitos do homem e do
cidadão. Intervenção Social, p. 133-135, 2014.
GOUGES, Olympe de. Declaração dos direitos da mulher e da cidadã de 1791.
Tradução: Selvino José Assmann. Revista Interdisciplinar Interthesis, v. 4, n. 1.
HISTORIA LIVRE. Mudando conceitos: “holocausto” vs. “shoáh”. Disponível em:
http://www.historialivre.com/fanzine/fanzine_holocausto_shoah.pdf. Acesso em: 28
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HOBBES, Thomas. Leviatã - Ou Matéria, Forma e Poder de Um Estado
Eclesiástico e Civil. São Paulo: Edipro, 2015.
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MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Estado Plurinacional e Direito Internacional.
Curitiba: Juruá Editora, 2012.
MAZUOLLI, Valério. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2015.
MONDAINI, Marco. Guerras napoleônicas. In: MAGNOLI, Demétrio. História das
guerras. São Paulo: Contexto, 2006.
NAVARRO, Roberto. O que foi a Guerra dos Cem Anos? Disponível em: https://
super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-a-guerra-dos-cem-anos. Acesso em:
28 ago. 2018.

78
78
RENAN, Ernest. Qu’est-ce qu’une nation? (Conférence prononcée le 11 mars 1882
à la Sorbonne). Paris: Presses Pocket, 1992.
SCHNEIDER, Luíza Galiazzi. O papel da guerra na construção dos Estados
modernos: o caso da Etiópia, 2010. Dissertação (Mestrado em Ciência Política)
– Programa de Pós Graduação em Ciência Política, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.

Gabarito

Questão 1 – Resposta: B
O conceito de nação corresponde ao sentimento de pertencimento
coletivo experimentado por uma dada população e independe
do vínculo territorial ou mesmo da presença de um Estado. A
alternativa B está correta.
Questão 2 – Resposta: D
Uma das inovações contidas na Paz de Westfália foi o surgimento
do princípio da igualdade formal dos Estados. A partir de então,
haveria equivalência de soberania entre os Estados na esfera
internacional, não existindo sobreposição hierárquica, por ser a
soberania a qualidade do poder do Estado que não reconhece
outro poder superior a si, nem internamente, nem externamente.
A alternativa D está correta.
Questão 3 – Resposta: A
O aprofundamento da proteção de garantias individuais a
todos os seres humanos se deu, entre outros fatores históricos
ocorridos durante o século XX, em razão das atrocidades
cometidas durante o período da Segunda Guerra Mundial, em
trágicos episódios como o holocausto, perpetrados por regimes
que ainda que totalitários, foram eleitos democraticamente em
um primeiro momento. Direitos como a vida não mais poderiam
estar sujeitos apenas aos anseios da maioria ou mesmo do
Estado. A alternativa A está correta.

 79
Estado e globalização: por uma
outra democracia
Autora: Estela Cristina Vieira de Siqueira

Objetivos

• Compreender como a construção histórica de


democracia se manifestou em prol da diversificação
de direitos, até o período da humanidade
denominado “globalização”;

• Visualizar como a contextualização da democracia,


dentro do período referente à globalização, se
relaciona com a aquisição de direitos políticos – ou
a ausência deles, em razão de critérios de atribuição
de nacionalidade;

• Notar como todos esses processos de dinamização


do poder político e de mercado aconteceram,
desde o período do surgimento do Estado
moderno até os dias atuais.

80
80
1. Introdução

Com o fim do absolutismo monárquico, marcado pela Revolução


Francesa, em 1789, e os desdobramentos políticos e jurídicos que se
seguiram desde então, a forma como o Estado se relaciona com os
indivíduos que nele habitam – e com os que não habitam também –
foi modificada inúmeras vezes, em razão de diversos acontecimentos
históricos, como as duas grandes guerras mundiais.

A tomada de decisões a nível político, antes de atribuição exclusiva do


soberano, passa a envolver também a vontade do povo, trazendo à
dinâmica de poder um elemento distinto do que se passava nos séculos
anteriores: a soberania popular1. Através da representatividade e da
tomada coletiva de decisões, o poder político era legitimado através da
vontade coletiva. Até então, tomava-se o conceito de democracia por
uma concepção restrita, vinculada à vontade da maioria.

Contudo, episódios históricos como o holocausto permitiram que se


chegasse à conclusão de que nem sempre a maioria decidirá da forma
mais democrática, em razão de interesses particulares que influenciam
o posicionamento político das pessoas. A democracia, portanto, não
poderia mais ser tomada como um fim em si mesma, senão pela
priorização de certos direitos garantidos a todos os seres humanos,
sem exceção, contra os quais nem mesmo o Estado, nem mesmo outros
indivíduos, poderiam se opor.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, inicia-se um processo de


coletivização de hábitos a nível internacional, e apenas duas décadas
depois, o mundo entraria em uma fase denominada Globalização,
fundada em uma ampliação desenfreada do alcance do capital
especulativo, que flexibilizaria ainda mais as fronteiras, já fragilizadas
por séculos de guerras e revoluções, que pulverizaram o modelo
westfaliano de soberania estritamente territorializada.

1
CHINAGLIA, Pedro Henrique. VIANA, Waleska Cariola. Estado Westfaliano versos Estado-nação e seus refle-
xos nas colônias da América Latina. In: II Simpósio Pensar e Repensar a América Latina, 2016, São Paulo. Anais.

 81
Para além da flexibilização de fronteiras, apesar de ser fruto da
fragmentação territorial em mercados e zonas de influência,
a existência de uma economia global de mercado dependeria,
necessariamente, da homogeneização de hábitos de consumo, que,
como já vimos, refletiria na construção dos espaços urbanos, na arte,
na música, entre outros aspectos2.

Novamente, o Estado se fragilizaria, colocado em segundo plano, e


distanciado do plano econômico, salvo quando para regulá-lo em prol
do próprio capital. Assim, com a expansão dos mecanismos de mercado,
pulverizados por todos os cantos do globo, a economia passa, cada vez
mais, a ser um espaço no qual o Estado não intervém, um espaço de
“não-política”, segundo Zygmunt Bauman3.

Abandonam-se, pouco a pouco, as comunidades locais4, pois a


desterritorialização econômica cria uma percepção virtual de unidade
global, rompendo de vez com a unicidade artificialmente gerada no
contexto do surgimento do Estado moderno, condição essencial à
sua própria existência. Tal relativização dos espaços na economia,
no entanto, distancia-se da política, na qual as regras de participação
democrática e representativa vinculam-se ao conceito de nacionalidade.

Surgem discussões acerca da real dimensão de cidadania, entendida


até então como sendo a existência de direitos e obrigações com relação
a um determinado Estado5, com o qual se possui vínculo jurídico e
político, e que passa pelo direito de participação na condução dos
assuntos públicos.

2
AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: Edufal/Unesp, 2010. p.52-54.
3
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 74-75.
4
STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livra-
ria do Advogado, 2003. p. 123.
5
VIEIRA, Liszt. Notas sobre o conceito de cidadania.  Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em
Ciências Sociais, p. 35-48, 2001.

82
82
Essa representatividade se manifesta de forma direta ou através da
eleição de representantes, sendo a possibilidade de ter acesso aos
cargos públicos do país de sua nacionalidade, conforme disposto
no Pacto de Direitos Civis e Políticos, um tratado multilateral entre
Estados que compõe a trilogia de documentos constituintes da Carta
Internacional dos Direitos Humanos, composta também pelo Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e pela
Declaração Universal de Direitos Humanos6.

Para conhecer melhor o texto do Pacto de Direitos Civis e Políticos,


acesse o site do Planalto.

Porém, para além dos reflexos estritamente relacionados à seara


política e de nacionalidade, acrescentar-se-iam outros contornos, mais
emancipatórios, ampliando a percepção de cidadania como sendo
simplesmente um elemento político, mas também como reflexo da
garantia de outros direitos, como o acesso à educação pela classe
trabalhadora, pois, historicamente, a concessão de cidadania era feita a
grupos específicos e restritos7.

EXEMPLIFICANDO

Na Grécia antiga, por exemplo, a cidadania era concedida


apenas a homens livres, uma parcela específica da
sociedade, não contemplando com direitos políticos as
mulheres, os escravos e os estrangeiros. Quanto ao último
grupo, o dos estrangeiros, há debates até os dias atuais
sobre a ampliação de direitos políticos a quem migra,
como reflexo do esforço acadêmico em valorizar e ampliar

6
UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/
pt/resources_10133.htm Acesso em: 25 set. 2018.
7
VIEIRA, Liszt. Notas sobre o conceito de cidadania.  Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em
Ciências Sociais, p. 35-48, 2001.

 83
a autonomia dos sujeitos8, em um século que conta,
hoje, com o maior fluxo de refugiados desde a Segunda
Guerra Mundial.

Nesse sentido, partindo do pressuposto de que a humanidade vivenciou,


em períodos muito recentes da história, experiências de totalitarismo
e restrição de direitos, como se relacionam democracia e globalização,
seja no aspecto de desterritorialização e pluralismo de garantias e
direitos, seja no aspecto normativo e institucional, ainda vinculado a
uma percepção regionalizada de cidadania?

2. Cidadania e globalização

A tendência à universalização de hábitos promovida pelos processos


de globalização, seja em aspectos culturais ou de consumo, também
se ocorreria a nível jurídico. Surge juntamente com o texto da
Declaração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
19489, um homem universal, cujos direitos não podem ser violados,
nem mesmo pelo Estado.

8
MEZZADRA, Sandro. Multidão e Migrações: a autonomia dos migrantes. Revista ECO-Pós, v. 15, n. 2, p. 70-
107, 2012.
9
UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/
pt/resources_10133.htm Acesso em: 25 set. 2018.

84
84
PARA SABER MAIS
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH),
adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 10 de
dezembro de 1948 – e traduzida para mais de 500 idiomas
desde então – foi fundamental à consolidação de direitos
fundamentais a todos os indivíduos, conferindo aos sujeitos
caráter de universalidade quanto a própria proteção e
resguardo por parte dos Estados, cujas constituições
modernas seriam influenciadas pelo texto da DUDH. In:
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://
nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/ Acesso em:
25 set. 2018.

Fonte: cristianl/iStock.com.

Em seu preâmbulo, de caráter interpretativo, a Declaração contemplaria


“o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família
humana”10, uma transição histórica do espaço ocupado pelo indivíduo
em seu meio, desde a Grécia antiga, até o declínio do Estado-nação, e
que agora considerava a humanidade em conjunto.

10
Idem.

 85
A aceleração dos processos globais de consumo favoreceu também a
aproximação dos espaços e os fluxos migratórios, antes decorrentes
apenas de processos bélicos, e que agora passam a se intensificar com
motivação econômica, em razão da busca por melhores condições de
trabalho realizada por aqueles que, provenientes de regiões menos
favorecidas do globo, em razão de séculos de exploração, sonhavam
com uma vida diferente – a vida global dos espaços de consumo,
invocando mais uma vez a noção de compartilhamento e universalidade
do capitalismo do fim do século XX.

O Estado-nação deixa de ser um ambiente de cidadania homogênea,


em razão da realidade migratória vivenciada pela humanidade11 -
dentro da mesma fronteira, inúmeras nacionalidades passam a se
encontrar e, com elas, discussões políticas sobre ampliação de direitos e
representatividade, o que nem sempre ocorre de forma pacífica.

Tal aproximação difere substancialmente da forma como os migrantes


eram recebidos pelos países no início do Século XX, pois um modelo
de cidadania ancorado em “noções territorializadas de pertencimento
cultural”12 foi predominante no pensamento de Estado que esperava
que estrangeiros se moldassem em cidadãos nacionais, ignorando suas
identidades próprias e a multiculturalidade que com eles chegava. Isso,
em um primeiro momento histórico.

No entanto, conforme o comércio se intensificou e, com ele, o fluxo


transnacional de bens que se tornaria o reflexo mais aparente da
globalização, os instrumentos de atribuição de cidadania e soberania de
Estado13 não acompanhariam a velocidade de produção, e as populações,
cada vez mais, permaneceriam vinculadas à exclusão do humano
estrangeiro – embora não dos produtos estrangeiros – e à cidadania
nacional. O fluxo de capital é facilitado. O de pessoas, nem tanto.

11
VIEIRA, Liszt. Notas sobre o conceito de cidadania.  Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em
Ciências Sociais, p. 35-48, 2001.
12
SOYSAL, Yasemin. Limits and Citizenship: Migrants and Postnational Membership in Europe. Chicago:
University of Chicago Press, 1994. p.4.
13
Idem. p.14.

86
86
ASSIMILE

Embora tenha ocorrido um crescimento na velocidade


do trânsito de bens e serviços, o trânsito de pessoas
não acompanharia tal processo na mesma proporção,
e o controle de fronteira adquire o viés de demarcação
de soberania – o padrão de consumo é compartilhado
globalmente, mas o humano que é estrangeiro não
pertence ao tecido nacional.

Ocorreria, então, o desacoplamento entre cidadania e identidade14,


pois mesmo que o estrangeiro se identifique com o local onde se
insere, ele não terá os mesmos direitos que um nacional. A retórica
do Estado-nação sobre direitos humanos universais e soberania de
Estado geraria um paradoxo de difícil supressão, uma tensão dialética
entre a universalização desterritorializada no plano de garantias e a
territorialização exacerbada da cidadania15.

Tal retórica encontraria fundamento em posicionamentos políticos


massificados, tendentes à marginalização do diferente, do
estrangeiro, que dificilmente se veria representado nos programas
de entretenimento televisivos, nos informes publicitários, mas que
seria figura cativa dos noticiários policiais, pois “as ‘façanhas’ dos
revoltados”16 seriam notadas e, subsequentemente, rechaçadas,
como expressão de xenofobia e exclusão.

14
VIEIRA, Liszt. Notas sobre o conceito de cidadania.  Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em
Ciências Sociais, p. 35-48, 2001.
15
SOYSAL, Yasemin. Limits and Citizenship: Migrants and Postnational Membership in Europe. Chicago:
University of Chicago Press, 1994. p.14.
16
AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: Edufal/Unesp, 2010. p.54.

 87
PARA SABER MAIS
O fenômeno da xenofobia, historicamente, esteve
presente em inúmeras fases da existência humana, mas
tem se fortalecido nas últimas décadas em razão de uma
vinculação equivocada de que atos de violência sempre
estejam relacionados à figura dos migrantes. Episódios
como o ato racista no qual torcedores do time espanhol
Vilarreal atiraram bananas ao brasileiro e lateral-direito
Daniel Alves, então jogador do Barcelona, no ano de
2014. Revelam a proporção do sentimento de ódio a
estrangeiros, que se intensifica em momentos de crise
e possui desdobramentos psicológicos muito sérios a
quem sofre com tal preconceito, podendo desencadear
episódios psiquiátricos nas vítimas, como depressão e
síndrome do pânico.

Fonte: tzahiV/iStock.com.

Assim, se a universalidade buscaria legitimidade em uma ordem


crescentemente transnacional, a individualização de tais direitos no plano
interno continua a ser organizada de forma distinta, dentro do cenário
político-normativo nacional – o que, além de contraditório, sob certo

88
88
aspecto, também faz uso de uma vinculação de soberania Estatal muito
própria do Estado-nação, uma percepção superada para o mercado a
nível transnacional, mas arraigada às noções de pertencimento de uma
sociedade conservadora, que tende, desde o advento do Estado moderno,
a excluir indivíduos para além de suas fronteiras.

QUESTÃO PARA REFLEXÃO


Pense sobre como a noção de cidadania é, cada vez mais, vinculada
a uma percepção territorializada de Estado, em detrimento das
políticas de mercado, crescentemente transnacionais. Reflita acerca
de quais são os potenciais motivos para a existência de políticas
fronteiriças e de garantias de direitos excludentes, ao invés de
munir-se da força emancipatória a qual a comunidade internacional
confere à universalização dos seres humanos.

3. Considerações finais

• A queda do absolutismo marcou, juntamente com a Revolução


Francesa, uma transformação na maneira como o poder se
organizava, rompendo com o modelo anterior de soberania,
estritamente vinculada ao Estado, e permitindo o surgimento
da representatividade política da vontade do povo, denominada
soberania popular;

• A evolução histórica que se seguiu, no entanto, demonstraria


que a tomada do conceito de vontade do povo em sentido
amplo, sem que houvesse garantias que protegessem os seres
humanos dos desígnios do Estado e até mesmo de outros
indivíduos, seus semelhantes, representantes da maioria,
poderia gerar graves consequências, como ocorreu com as
duas grandes guerras mundiais;

 89
• O período histórico imediatamente seguinte ao início da
década de 1940 consolidou o posicionamento político a nível
global no sentido de elevar o ser humano ao status de sujeito
internacional, universal, o que se refletiria na redação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos e a formulação em
seu texto sobre a “família humana”;

• Economicamente, o mesmo período também delineou o início de


uma expansão comercial que culminaria no processo denominado
globalização, marcado pela transnacionalidade do fluxo de bens
e capitais, o que poderia ter se refletido nas políticas de Estado
quanto ao trânsito de pessoas, com uma subsequente ampliação
emancipatória dos conceitos de cidadania e pertencimento;

• No entanto, o que ocorreu foi exatamente o inverso: a expressão


normativa interna acerca de cidadania e soberania sofreria
um recrudescimento, em contraponto à transnacionalidade do
mercado, municiada por práticas xenofóbicas do povo e dos meios
de comunicação, e de uma noção de pertencimento e exclusão,
imbuída na própria gênese do Estado moderno.

Glossário

• Migrante: a expressão se refere a toda e qualquer pessoa em


estado de deslocamento de seu lugar de origem, em direção a
outro, qualquer que seja o status jurídico que a qualifique. Por
exemplo, todo refugiado é migrante, mas nem todo migrante é
refugiado – a expressão refugiado se refere apenas aos indivídu-
os que se deslocam de seu país de origem em fuga de conflitos
ou perseguições de cunho étnico, político ou religioso.

• Xenofobia: expressão de origem grega, formada pelas palavras


xenós, que significa “estrangeiro”, e phóbos, que significa “medo”,
“horror”, a palavra xenofobia diz respeito à aversão dirigida por
populações locais a estrangeiros.

90
90
VERIFICAÇÃO DE LEITURA

1. Como se comporta o Estado com relação à diferença


entre a trasnacionalidade do mercado e o livre fluxo
de pessoas?
a. O Estado se relaciona da mesma forma com
relação ao livre fluxo de bens e capital e ao fluxo
de pessoas, não havendo qualquer relação entre
a entrada de estrangeiros no país e questões de
segurança ou soberania;

b. A relação que o Estado possui com relação ao fluxo


de capital é sob a perspectiva de segurança, não
permitindo o livre fluxo de bens, ao passo que permite
o livre fluxo de pessoas, por entender que seres
humanos são universais;

c. Embora haja um incentivo ao livre fluxo de capital e de


bens, relacionado à aceleração de produção promovida
pela globalização, o trânsito de pessoas não acompanha
o processo, e as fronteiras passam a ser espaços de
soberania e segurança nacional para os Estados;

d. O Estado não possui qualquer espécie de relação,


nem no que diz respeito ao fluxo de capital, nem com
o trânsito de pessoas, abstendo-se de interferir em
temas relacionados à economia e à migração;

e. Todas as alternativas estão incorretas.

2. A relação entre o Estado-nação e a amplitude de direitos


humanos universais esbarra com os desdobramentos
de soberania, enquanto característica de poder supremo
dos Estados, horizontalizados no plano internacional

 91
Porque

Há uma universalização que não leva em consideração


a territorialidade ao nível de direitos, mas ao mesmo
tempo uma forte perspectiva de territorialização quanto
à cidadania e vinculação de indivíduos ao ente nacional.
a. As duas afirmações são verdadeiras e a segunda
justifica a primeira.

b. A primeira afirmação é verdadeira e a


segunda é falsa.

c. A primeira afirmação é falsa e a segunda é verdadeira.

d. As duas afirmações são verdadeiras e a segunda não


justifica a primeira.

e. As duas afirmações são falsas.

3. Identifique se são (V) verdadeiras ou (F) falsas as


afirmativas abaixo:

( ) A universalidade dos direitos humanos é o que


legitima o fortalecimento de leis que dificultem o
trânsito migratório.

( ) A xenofobia não possui qualquer tipo de relação


com a resistência apresentada pela população a
estrangeiros e não pode ser utilizada para definir
movimentos sociais de exclusão.

( ) A cidadania se relaciona ao vínculo jurídico e político


que indivíduos possuem com determinado Estado,
no qual são considerados como parte do elemento
de Estado denominada povo, podendo participar
livremente da condução de temas de ordem pública.

92
92
Assinale a alternativa que apresenta a sequência
CORRETA, respectivamente.
a. F - V - F;

b. V - F - V;

c. F - F - F;

d. V - V - F;

e. F - F - V.

Referências bibliográficas
AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: Edufal/Unesp, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1999.
CHINAGLIA, Pedro Henrique. VIANA, Waleska Cariola. Estado Westfaliano versos
Estado-nação e seus reflexos nas colônias da América Latina. In: II Simpósio
Pensar e Repensar a América Latina, 2016, São Paulo. Anais.
MEZZADRA, Sandro. Multidão e Migrações: a autonomia dos migrantes. Revista
ECO-Pós, v. 15, n. 2, p. 70-107, 2012.
STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência Política e Teoria Geral do
Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em:
https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm. Acesso em: 25 set. 2018.
VIEIRA, Liszt. Notas sobre o conceito de cidadania. Revista Brasileira de
Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, p. 35-48, 2001.

Gabarito

Questão 1 – Resposta: C
A alternativa correta é a letra C. O livre fluxo de pessoas não é uma
realidade, a despeito do livre fluxo de bens e capitais promovido

 93
pelos processos de globalização, havendo questões de segurança e
soberania envolvidas quanto ao posicionamento do Estado sobre a
temática de migração.
Questão 2 – Resposta: A
A alternativa correta é a letra A. A universalização de direitos, que
não considera a territorialidade, em contraponto ao fortalecimento
da soberania em razão da territorialidade, gera o paradoxo no qual
a soberania, de fato, esbarra com a amplitude de garantias. Uma
frase justifica a outra.
Questão 3 – Resposta: E
A alternativa correta é a letra E. A universalidade desconsidera
a noção de território, não possuindo relação com as políticas de
fronteira, mais relacionadas a questões de segurança nacional;
A xenofobia é a resistência por parte da população a tudo aquilo
que é estrangeiro; A cidadania, de fato, está relacionada ao vínculo
jurídico e político que indivíduos possuem com determinado
Estado, no qual exercem seus direitos civis e políticos.

94
94
O multiculturalismo e a ética
igualitária
Autora: Estela Cristina Vieira de Siqueira

Objetivos

• Compreender melhor como o multiculturalismo


contribui para a manutenção dos Estados
democráticos;

• Perceber o fenômeno do multiculturalismo


como reflexo da globalização e da aproximação
dos espaços;

• Entender a importância da presença de múltiplos


atores da sociedade civil para a composição do
conceito de cidadania.

 95
1. Introdução

Os ciclos enfrentados pela história da humanidade até que chegássemos


aos dias atuais, desde as grandes revoluções até as grandes guerras,
passando pelas crises até o auge do capitalismo moderno, nos ensinaram
muito sobre a convivência em sociedade e também sobre como,
rapidamente, regimes restritivos de direitos e discursos totalitários podem
inflamar seres humanos uns contra os outros. A história se divide em
episódios de abundância, escassez e/ou moderação.

O poder, desde a Revolução Francesa1, de inspiração iluminista, tem se


desenvolvido de forma indissociável à figura dos indivíduos, e a vereda
evolutiva do regime democrático se relacionou sempre, em menor
ou maior escala, à vontade do povo. Ao que se entende por povo, já
tratado em temas anteriores, aliou-se o conceito de cidadania, qual
seja: o vínculo de pertencimento concedido a seres humanos dentro de
um determinado Estado a que façam parte, por elo de nacionalidade,
conferindo-os a possibilidade de se autodeterminar politicamente.

Essa autodeterminação a nível político, para além do fator de


nacionalidade, lança o cidadão, antes restrito a um espaço de
coadjuvante no cenário do Estado, à posição de destaque, de
centralidade. No entanto, conforme episódios como o Holocausto
acabariam por demonstrar, de forma trágica, nem sempre a maioria
teria condições de se posicionar favoravelmente aos interesses de todos.
A regra majoritária não era igualitária.

Assim, com o passar das décadas, após o surgimento da Declaração


Universal dos Direitos Humanos2, o mundo conheceria o processo
mercadológico de globalização que, como estudamos até agora,

1
CHINAGLIA, Pedro Henrique. VIANA, Waleska Cariola. Estado Westfaliano versos Estado-nação e seus refle-
xos nas colônias da América Latina. In: II Simpósio Pensar e Repensar a América Latina, 2016, São Paulo. Anais.
2
UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/
pt/resources_10133.htm Acesso em: 10 out. 2018.

96
96
influenciaria muito mais do que apenas os hábitos de consumo dos seres
humanos, mas encurtaria os espaços e promoveria o acesso a cantos do
planeta Terra que, até então, não teriam a possibilidade de se conhecer
– reflexo também do aprimoramento de elementos da engenharia
aeronáutica, permitindo viagens mais curtas a lugares mais distantes.

O avião, em si, embora anterior à globalização, já nasceu global:


criado por um brasileiro, Santos Dumont, o protótipo Demoiselle3
faria seu voo inaugural no Campo de Bagatelle de Paris, e contribuiria
tanto para o caos aéreo da guerra, que dizima semelhantes, quanto
para aproximar distâncias e distribuir conforto humanitário, nas
grandes missões pós-guerra.

Em nenhum outro momento da história da humanidade tantos seres


humanos se deslocaram de seus lugares de origem, por motivos
econômicos ou não; e estima-se que, atualmente, segundo dados da
ONU, haja 258 milhões de migrantes no mundo todo4, dentre os quais
68,5 milhões encontram-se em situação de deslocamento forçado, por
conflitos e perseguições.

Esse caráter plural das sociedades no mundo atual, no entanto, não


é reflexo apenas das relações provenientes de migração das últimas
décadas, ainda que tais processos tenham se intensificado. Há
dinâmicas raciais internas que refletem os processos de colonização aos
quais os Estados mais jovens foram submetidos, como é o caso do Brasil
– em nosso exemplo, de forma específica, a supressão de caracteres
étnicos, em uma pretensa “democracia racial” é reflexo da inabilidade
em visualizar o diferente e admitir a desigualdade proveniente do
regime escravocrata que se instalou no Brasil por séculos, até 1888,
quando a Lei Áurea seria assinada pela Princesa Isabel.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Migration Report, 2017. Highlights. Disponível em:http://www.un.org/
4

en/development/desa/population/migration/publications/migrationreport/docs/MigrationReport2017_Highli-
ghts.pdf Acesso em: 13 out. 2018.

 97
PARA SABER MAIS
A Lei Áurea, assinada pela
Princesa Isabel em 13 de maio
de 1888, colocava fim a séculos
do tráfico de escravos, trazidos
da África para trabalhar nas
lavouras de cana-de-açúcar e
nas minas de ouro, durante o
período colonial. Ainda que sua
importância histórica seja
Fonte: JDawnInk/iStock.com.
incontestável, principalmente
quando nos recordamos que o Brasil foi o último país da
América Latina a abolir a escravidão, a Lei Áurea não foi
acompanhada de políticas públicas voltadas à população
liberta, tornando a abolição um processo imperfeito, como
veremos mais a frente.

Nesse sentido, para além do exemplo brasileiro, os regimes


democráticos, em geral, veem-se diante de uma multiculturalidade
que servirá de combustível para o surgimento de ONGs e cooperativas
sociais5, uma nova realidade de participação popular com a qual os
Estados, necessariamente, precisariam lidar. O regime democrático,
vinculado à percepção estritamente territorial de cidadania, precisaria se
adaptar ao multiculturalismo da globalização.

2. O multiculturalismo no regime democrático

Em Os Argonautas da Cidadania, Liszt Vieira inclui múltiplos atores no


espectro da cidadania, enquanto reflexo da sociedade civil, enfatizando

5
SCHERER-WARREN, Ilse. Democracia e cidadania global. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 48,
2002.

98
98
que, para além da vinculação política atribuída exclusivamente pelo
Estado, são os membros da sociedade, reunindo-se em formas de
participação coletiva – como as organizações sem fins lucrativos –
aqueles que “com o seu trabalho, fertilizam a construção do futuro”6.

Retornamos ao conceito de cidadania e à noção de representatividade


formal: quem é cidadão possui plenos direitos políticos e possui deveres
e garantias no cenário interno dos Estados, adstritos pelo texto de
uma Constituição que delimita quem é nacional, quem pode se tornar
nacional e quem não o é, de forma permanente ou temporariamente.

No entanto, os fluxos migratórios, cada vez mais tornam o ambiente


dos Estados multicultural, com a coexistência de diferentes culturas
sob a mesma fronteira física, o que gera impactos acerca da percepção
de cidadania, superando a visão do Estado-nação como um lugar
de homogeneização de identidades, herança jacobina7, desde a
Revolução Francesa.

ASSIMILE

Essa percepção de cidadania como sendo a unificadora


da identidade interna, criando apenas um ideal nacional,
no qual há cidadãos e não-cidadãos, relaciona-se a uma
proposta de coletividade e identidade surgida na Revolução
Francesa, que, embora fruto do pensamento jacobino,
mais revolucionário, ainda incorporava uma parcela muito
restrita de indivíduos no espectro da cidadania.

6
VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. A sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro/São Paulo, Edi-
tora Record, 2001. p.26.
7
GAGNON, Alain-G; IACOVINO, Raffaele. Interculturalism: expanding the boundaries of citizenship. In:
MAÍZ, Ramon; REQUEJO, Ferran (org.). Democracy, Nationalism and Multiculturalism. Nova York: Frank Cass
Publishers, 2005.

 99
A supressão das identidades próprias dos indivíduos, em nome da
equalização do nacional, passa a ser vista, com o avanço da globalização,
como uma espécie de violência simbólica, pois o reconhecimento da
identidade própria é pré-requisito para a realização pessoal8. Dessa
forma, “o ideal de igualdade não poderá ser alcançado se os indivíduos
forem forçados a se conformar a uma identidade cívica”9, o que significa
que a cidadania, muito mais do que uma vinculação territorial, possui
caracteres externos à representatividade formal, meramente jurídica. A
realidade da sociedade é, em si, plural.

Esse pluralismo não se dá apenas em função dos fluxos migratórios


contemporâneos, mas também em razão de diferenças étnicas
promovidas pela própria formação da sociedade local, principalmente
em contextos históricos de colonização, o que nos remete às
questões raciais sobre representatividade democrática, que passam,
primariamente, pelo reconhecimento do diferente10.

Quanto à experiência brasileira em lidar com as diferenças, a expressão


“Democracia Racial” se refere a uma forma de visualizar a questão étnica
no Brasil através do mito, historicamente construído, de que o racismo
não é um problema central no país – um conceito aplicado pelas elites,
de forma a suprimir a relevância da desigualdade social em função das
dinâmicas raciais no Brasil, de caráter hegemônico, e que vem sendo
denunciada pela academia no Brasil11.

8
Idem. p.26
9
Idem. p. 27
10
DA COSTA, Alexandre Emboaba. Reimagining Black Difference and Politics in Brazil: from Racial Demo-
cracy to Multiculturalism. Nova York: Palgrave Macmillan, 2014. p.23.
11
Idem. p.4.

100
100
PARA SABER MAIS
A Lei de Terras, criada em 1850, foi o primeiro documento
normativo acerca da distribuição agrária no Brasil, e surgiu
como reação ao crescente movimento abolicionista no país.
Como a abolição da escravatura parecia ser questão de
tempo, latifundiários precisavam garantir, de alguma forma,
que os negros libertos não tivessem mecanismos para
adquirir terras, restringindo também, pelo mesmo motivo, a
aquisição de propriedade por estrangeiros, de forma a que
não ascendessem socialmente, o que garantia que, mesmo
livres, permaneceriam dependentes dos grandes senhores12.

Questões como o racismo e a desigualdade no Brasil se relacionam com


o processo imperfeito de abolição da escravatura, iniciado em 13 de
maio de 1888, através da assinatura da Lei Áurea, mas que, no entanto,
não se refletiram em representatividade democrática, nem em políticas
públicas que garantissem a integração à sociedade dos escravos recém-
libertos. Enquanto recém-libertos, desprovidos de propriedades em seu
nome e impossibilitados de adquiri-las, em razão da lei de terras,

Esses trabalhadores negros foram, então, à busca do resto, dos piores


terrenos, nas regiões íngremes, nos morros, ou nos manguezais, que não
interessavam ao capitalista. Assim, tiveram início as favelas. A lei de terras
é também a “mãe” das favelas nas cidades brasileiras13.

12
GADELHA, Regina Maria d’Aquino Fonseca. A lei de terras (1850) e a abolição da escravidão: capitalismo e
força de trabalho no Brasil do século XIX. Revista de História, n. 120, p. 153-162, 1989.
13
STEDILE, João Pedro (org.) A Questão Agrária no Brasil. O debate tradicional 1500-1960. São Paulo: Ex-
pressão popular, 2005. pp. 15-31.

 101
EXEMPLIFICANDO

A distribuição social da população no Rio de Janeiro se


relaciona à distribuição de terras e a ausência de políticas
de inclusão desde o período pós-colonial e pós-escravagista.
Impossibilitados de adquirir propriedades nas regiões
nobres e urbanizadas do Rio, os recém-libertos, foram
criando moradia nos morros, que hoje compõem uma das
mais conhecidas imagens da capital fluminense, a favela da
Rocinha, com suas íngremes habitações multicoloridas – a
segunda maior favela do mundo.

Fonte: UrsaHoogle/iStock.com.

Dessa forma, percebe-se que muitas das questões sociais enfrentadas


pelos Estados, até os dias atuais, consistem exatamente em não
visualizar a pluralidade étnica e cultural a ocupar o mesmo espaço
territorial, o significando também, com o avanço dos processos de
globalização, que essa multiculturalidade tende a se ampliar, em razão
dos processos migratórios, cada vez mais intensos, e que a ideia de
cidadania, em nome da manutenção do regime democrático, precisa de
uma revisão mais inclusiva.

102
102
Nesse sentido, surge a necessidade de combinar os múltiplos atores
sociais voltados não apenas a uma visão vertical de cidadania, entre
Estado e indivíduos, mas também uma visão horizontal, entre indivíduos
e indivíduos, reforçando a ideia de comunidade, de composição social, e
encampando os agentes de mudança14.

Fonte: PeopleImages/iStock.com.

Esses novos atores, representados em cooperativas, em sindicatos,


em movimentos sociais, em ONGs, em coletivos, contribuem com
o regime democrático, no sentido de vocalizar as angústias de
minorias que, muitas vezes, não estão abraçadas pelo espectro da
cidadania em sentido restrito.

Se o Estado-nação homogeneizante, jacobino, já está superado, até


mesmo pela supressão das distâncias, em razão da globalização, a
democracia precisa reconhecer os diferentes aspectos de identidade e
não promover a cidadania com critério de exclusão do diferente, mas de
inclusão e engajamento.

SCHERER-WARREN, Ilse. Democracia e cidadania global. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 48,
14

2002.

 103
QUESTÃO PARA REFLEXÃO
Reflita sobre a necessidade de ampliação da noção de
cidadania, de forma a incorporar mecanismos mais inclusivos de
representatividade, que não apenas os formais, ligados às restrições
de nacionalidade, mas uma forma mais ampla, relacionada aos
múltiplos atores sociais que compõem a atual realidade dos
regimes democráticos.

3. Considerações finais

• Sob a égide do Estado-nação, a cidadania era um conceito


homogeneizante, de inspiração francesa, que não incorporava a
crescente diversidade que se apresentava nos Estados, fruto, em
grande parte, dos intensos fluxos migratórios e das dinâmicas de
colonização dos séculos anteriores;

• A forma como o poder se organizou historicamente dentro dos


Estados, como ocorreu com o Brasil, se deu de forma a suprimir
questões de desigualdade e diferenças étnicas, o que se traduziu
em escassas políticas públicas de inclusão, como se desenvolveu
com o processo falho de abolição da escravatura, em 1888;

• Em razão de tais processos, a necessidade de revisão de


cidadania tem se mostrado mais presente, principalmente
através de esforços da academia, no sentido de incorporar
uma maior multiplicidade de atores sociais, tais como ONGs,
cooperativas e coletivos, proporcionando maior acesso de
minorias, antes esquecidas, à cidadania.

• A revisão da noção de cidadania deve ir além da perspectiva


verticalizante, que se relaciona ao diálogo de direitos apenas
entre Estado e seus indivíduos, mas também ampliá-la no

104
104
sentido de promover o diálogo democrático entre indivíduos
em uma visão mais inclusiva.

Glossário

• Hegemonia: o conceito de hegemonia se relaciona à supremacia


de um grupo, um país, uma visão de mundo, sobre outros grupos,
outros países ou outras visões de mundo, de forma a consolidar-
-se, através das estruturas de dominação, como única forma de
poder possível, dado um determinado contexto.

VERIFICAÇÃO DE LEITURA

1. O fato de que a Lei Áurea promoveu a abolição da


escravatura em 1888 contribuiu para o surgimento de
uma sociedade mais igualitária, fundada na ideia de
Democracia Racial

Porque

Não houve a promoção de políticas públicas de inclusão


social dos ex-escravos, condicionados a novas formas
de dominação pela classe dominantes, e relegados à
condição de marginalidade, pela impossibilidade de
adquirir propriedades.

Analisando as afirmações acima, conclui-se que:

a. As duas afirmações são verdadeiras e a segunda


justifica a primeira.

b. A primeira afirmação é verdadeira e a


segunda é falsa.

 105
c. A primeira afirmação é falsa e a segunda é verdadeira.

d. As duas afirmações são verdadeiras e a segunda não


justifica a primeira.

e. As duas afirmações são falsas.

2. Dentre as opções abaixo, de que formas a supressão de


identidades a nível interno se manifestam, através da
representação formal de cidadania, enquanto vinculação
político e jurídica dos indivíduos com os Estados com os
quais possuem vínculo de nacionalidade?

I. Através da restrição de direitos políticos a


estrangeiros, que não possuem a possibilidade de se
ver representados na política local;

II. Através da forma como a regra majoritária da


democracia não garante a inclusão de representação
de minorias no cenário político;

III. Através da necessidade de suprimir identidades


individuais, em prol de um ideal de Estado unificado,
no qual só exista uma nacionalidade;

IV. Através da priorização do caráter vertical da


cidadania, entre o Estado e os indivíduos, ao invés
de considerar sob o aspecto formal opções mais
inclusivas, como as ONGs e os coletivos, reforçando
uma tendência à reformulação do conceito de
cidadania, de forma a tornar-se mais inclusiva.

Assinale a opção que contém as alternativas corretas:

106
106
a. Apenas as alternativas I e III estão corretas;

b. Apenas as alternativas II e III estão corretas;

c. Apenas a alternativa I está correta;

d. Estão corretas as alternativas I, II e IV;

e. Todas as alternativas estão corretas.

3. A democracia, enquanto regime que compreende, direta


ou indiretamente, a participação do povo na tomada
de decisões, ainda se restringe em grande parte pela
vinculação extremamente territorializada que se faz
sobre quem poderá dispor desses direitos políticos,
no cenário interno. A essa vinculação de povo a um
Estado, através da nacionalidade, conferindo-o direitos e
obrigações, dá-se o nome de:
a. Soberania;

b. Estado-nação;

c. Política;

d. Poder;

e. Cidadania.

Referências bibliográficas

CHINAGLIA, Pedro Henrique. VIANA, Waleska Cariola. Estado Westfaliano versos


Estado-nação e seus reflexos nas colônias da América Latina. In: II Simpósio
Pensar e Repensar a América Latina, 2016, São Paulo. Anais.

 107
DA COSTA, Alexandre Emboaba. Reimagining Black Difference and Politics
in Brazil: from Racial Democracy to Multiculturalism. Nova York: Palgrave
Macmillan, 2014. p.23.
GADELHA, Regina Maria d’Aquino Fonseca. A lei de terras (1850) e a abolição da
escravidão: capitalismo e força de trabalho no Brasil do século XIX. Revista de
História, n. 120, p. 153-162, 1989.
GAGNON, Alain-G; IACOVINO, Raffaele. Interculturalism: expanding the
boundaries of citizenship. In: MAÍZ, Ramon; REQUEJO, Ferran (org.). Democracy,
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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Migration Report, 2017. Highlights.
Disponível em: http://www.un.org/en/development/desa/population/migration/
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Acesso em: 13 out. 2018.
RODRIGUES, Luiz Eduardo Miranda José. Demoiselle – O Melhor Projeto de Santos
Dumont. Revista Eletrônica Aero Design Magazine, v. 1, n. 1, 2009.
SCHERER-WARREN, Ilse. Democracia e cidadania global. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, v. 17, n. 48, 2002.
STEDILE, João Pedro (org.) A Questão Agrária no Brasil. O debate tradicional
1500-1960. São Paulo: Expressão popular, 2005. pp. 15-31.
UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em:
https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm. Acesso em: 10 out. 2018.
VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. A sociedade civil na globalização. Rio
de Janeiro/São Paulo, Editora Record, 2001. p.26.

Gabarito

Questão 1 – Resposta: C
A alternativa correta é a letra C, a primeira afirmação é falsa e a
segunda é verdadeira. Não houve promoção de políticas públicas
de inclusão dos ex-escravos na sociedade brasileira, o que gerou
inúmeras questões sociais nos séculos seguintes, e a Lei Áurea,
apesar de se configurar como um marco histórico na conquista
de direitos sociais pelos negros, após séculos de escravidão, não
foi suficiente para promover uma sociedade mais igualitária e
livre de preconceitos.

108
108
Questão 2 – Resposta: D
A alternativa D está correta. Entre todas as alternativas, apenas
a opção III está incorreta, pois a tendência de supressão de
identidades a nível interno já tende a, cada vez mais, ser superada
por uma perspectiva mais inclusiva e igualitária de cidadania, de
forma a abranger grupos que ou não teriam possibilidade de se
ver abrangidos pelo conceito formal de cidadania, ou, ainda que
abrangidos, não possam se ver representados, em razão da regra
majoritária dos regimes democráticos.
Questão 3 – Resposta: E
A alternativa E está correta. Dá-se o nome de cidadania à
garantia de direitos civis e políticos conferida aos nacionais de
um determinado Estado, com o qual possuem vinculação de
nacionalidade, em uma perspectiva profundamente territorializada.

 109
Movimentos multiculturais e suas
organizações políticas
Autora: Estela Cristina Vieira de Siqueira

Objetivos

• Compreender como a globalização contribuiu para


a evolução da participação da sociedade civil no
regime democrático;

• Perceber como os movimentos sociais e


multiculturais contribuem para o fortalecimento da
democracia nos Estados;

• Visualizar os movimentos multiculturais da


sociedade como mecanismos de promoção da
equidade e da justiça social.

110
110
1. Introdução

O novo século trouxe novos desafios e profundas transformações


nas dinâmicas de poder, conferindo à sociedade, antes um sistema
limitado no espaço-tempo, novas possibilidades de interação através da
distância1. O Estado, da mesma forma, vê-se confrontado com a ampliada
complexidade de relações sociais, não mais apenas locais – enfim, a
globalização é a “intensificação das relações sociais em escala mundial”2.

Em termos de mobilidade humana, a migração – uma constante


nos séculos anteriores – foi responsável, entre outros fatores – pela
promoção de inúmeros grupos identitários a conviver no mesmo
espaço dos Estados nacionais, através da atribuição ou não de direitos
políticos, fazendo com que, na hipótese de nãoatribuição, os grupos
excluídos daquilo que chamamos de cidadania, tivessem que buscar
outros mecanismos de se inserir na sociedade e de participar da
tomada de decisões.

O estudo das modalidades de transformação global deve levar


em consideração que, não importa em qual parte do globo
esteja localizada uma cidade, ela sofrerá influência de outros
espaços, por vezes geograficamente remotos a ela, o que insere a
transformação local no espectro de renovação social promovido
pela globalização – algo que já estudamos como sendo parte de um
fenômeno de virtualização dos espaços, denominado “metacidade
desterritorializada”3, conceito criado por Paul Virílio, e que se refletiria
na arquitetura, na música, nas artes e na forma como o conhecimento
se expande, sob os mais diversos aspectos.

1
GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991. p.75-76.
2
Idem. p.76.
3
VIRILIO, Paul. A bomba informática. São Paulo: Estação Liberdade, 1999. p.18.

 111
Chegamos à culminância de séculos de promoção de um homem
universal, que, no entanto, embora universal em direitos, é multicultural
em suas origens: inclusive em nível de Estado, a diversidade surgiria
como fator determinante de organização da sociedade global, e o
princípio da autodeterminação dos povos, como reflexo do movimento
de descolonização, intensificado no século – uma evolução no sentido
democrático4, reafirmando a igualdade entre Estados e povos, um dos
requisitos necessários à construção de um espaço mundial mais igualitário.

2. Relações entre os movimentos multiculturais


e equidade

O capitalismo globalizado da indústria caminha no mesmo espaço que o


capitalismo globalizado da informação, embora nem sempre na mesma
direção – esse último parece mais favorável à multiplicação de movimentos
sociais5. Contudo, independentemente dessa divisão, compreende-se que
apenas o capitalismo foi capaz de penetrar em localidades onde os Estados
não puderam fazer valer sua influência política6.

Em razão disso, nunca antes na história, o fluxo de dados fora tão


intensificado, o que significa que as alternativas pós-modernas
e pós-militarizadas, frente às tendências totalitárias do último
século, encontrariam conforto em uma sociedade internacional e
multicultural, cuja solidariedade global advém, em grande parte,
dos “internacionalismos de comunicação”7 – o compartilhamento de
informações em nível global faz com que mais indivíduos, em diferentes
lugares do mundo, sintam-se parte das mesmas estruturas.

4
ACIOLLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, Geraldo Eulálio do; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito
Internacional Público. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. p.962.
5
VIEIRA, LISZT. Cidadania e Globalização. Rio de Janeiro: Editora Record, 1997. p.115.
6
GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991. p.79.
7
WATERMAN, Peter. Globalization, social movements & the new internationalisms. Londres: Mansell,
1998. p.215.

112
112
PARA SABER MAIS
Um dos mecanismos
de compartilhamento
de informação a nível
internacional é a mídia,
que goza de um dos
mais importantes
princípios à salvaguarda
da democracia: a
Fonte: Mihajlo Maricic/iStock.com.
liberdade de imprensa.
Tal expressão se refere à garantia de atuação dos órgãos
de informação, sem que haja interferência do Estado
sobre seus conteúdos – salvo quando estes forem nocivos
à população, um conceito ainda assim, muito tênue e
delicado. Segundo dados liberados em 2016, pela ONG
Repórteres Sem Fronteiras, o Brasil se encontra em 104º lugar
no mundo, com relação à liberdade de ação da imprensa,
em um ranking estabelecido de acordo com o número de
ataques a repórteres, interferência na produção de mídia e
leis de restrição ao conteúdo.

A aparente contradição8 entre as políticas centralizadas dos Estados e


o multiculturalismo a nível mundial é relativizada pela organização da
sociedade civil, que, através do exercício da cidadania em sentido pleno,
como estudamos no capítulo anterior, contribui com a promoção da
equidade e da justiça social.

8
VIEIRA, LISZT. Cidadania e Globalização. Rio de Janeiro: Editora Record, 1997. p.114-115.

 113
ASSIMILE
Logo, não há necessária contradição entre as políticas
dos Estados e a possibilidade de agir democrático da
sociedade civil, que relativiza a relação tradicional entre
a função pública, soberana e estatizante, e a canalização
da vontade comunitária, através de organismos sociais de
promoção da equidade.

A função pública deve se aliar a essa função social, cada vez mais
fortalecida pelo regime democrático. Um padrão de interdependência
fica cada vez mais evidente com o surgimento de organizações
intergovernamentais9, como a Organização das Nações Unidas - o que
não reduz o Estado a um mero “ator de conexão”10, pois há relações
sociais que não se enquadram nas relações entre a função pública, as
ONGs e as organizações.

Um exemplo é a atuação de organismos internacionais, em grande


parte da sociedade civil, quanto a questões ambientais e seu potencial
de transformação política, quanto à vinculação da atuação dos Estados
a documentos internacionais que sejam fruto de pressão da sociedade
internacional, no sentido de que

A tentativa de chamar a atenção para a ameaça ao meio ambiente através


de uma política de desenvolvimento sustentável pode se tornar o veículo
central de tal desenvolvimento, uma vez que esta tentativa - empreendida
com seriedade - implica em uma nova ordem econômica e social em
todo o mundo.11

“La tentativa de conjurar la amenaza al medio ambiente mediante una política de desarrollo duradero puede
11

convertirse en el vehículo central de un desarrollo semejante, pues esa tentativa - emprendida en serio - implica
un nuevo orden económico y social a nivel mundial” In: HEIN, Wolfgang. El fin del Estado-Nación y el nuevo orden
mundial. Las instituciones políticas en perspectiva. Nueva Sociedad, Nro.132 Julio- Agosto 1994. p. 82-99.

114
114
EXEMPLIFICANDO

A atuação de organismos
como a ONG holandesa
Greenpeace ou a suíça
World Wildlife Fund for
Nature (WWF) serve
como mecanismo de
pressão quanto à atuação
sustentável dos Estados e Fonte: Tom Goossens
Photography/iStock.com.
à elaboração de políticas
públicas nesse sentido, além de promover a nível
internacional a conscientização da sociedade civil quanto à
necessidade de conservação e recuperação ambiental.

Os momentos de crise do sistema de capital, como ocorre desde


2008, nos propõem a reflexão acerca da insuficiência do Estado e da
economia para solucionar tais crises, algo que fortalece a atuação
de ONGs e movimentos sociais, que passam, na atualidade, por
um momento de construção de sua identidade política12. Esses
organismos, dada a sua crescente participação política, conseguem,
inclusive, influenciar a tomada de decisões em organizações
internacionais como a ONU, fazendo lobby e criando um novo cenário
institucional quanto à política global.

12
VIEIRA, LISZT. Cidadania e Globalização. Rio de Janeiro: Editora Record, 1997. p.117.

 115
PARA SABER MAIS
No Brasil, a expressão
lobby adquiriu contornos
negativos, em razão de
situações nas quais a
pressão política exercida
por elementos externos
à função pública é feita
Fonte: Neydtstock/iStock.com.
através do poder
econômico e do tráfico de influência, como modalidade de
corrupção. No entanto, o lobby não possui essa conotação
e, de forma saudável à participação democrática, trata-
se apenas da pressão realizada pelo contato de grupos
de interesse com os grupos responsáveis pela tomada
de decisões. Para compreender melhor como funcionam
esses mecanismos de pressão, como o lobby e a advocacy,
acesse o site: http://www.cause.net.br/ainda-e-necessario-
esclarecer-conceitos-lobby-x-advocacy/

Tal possibilidade vai ao encontro a documentos internacionais que


possuem como objetivo, entre outras prioridades semelhantes,
promover o direito ao desenvolvimento, através de mecanismos de
cooperação econômica e social13, conforme ficaria evidenciado na Carta
das Nações Unidas, pressupondo uma aproximação integrada entre
Estado e sociedade, em seu artigo 55, ao mencionar que,
Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às
relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao
princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as
Nações Unidas favorecerão:

PERRONE-MOISÉS, Claudia. Direito ao Desenvolvimento e Investimentos Estrangeiros. São Paulo: Edito-


13

ra Oliveira Mendes, 1998. p.48.

116
116
a. níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e
desenvolvimento econômico e social;
b. a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e
conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e
c. o respeito universal e efetivo raça, sexo, língua ou religião.

Em síntese, há mais do que apenas a atuação do Estado e do mercado


quanto às novas dinâmicas de poder do século XXI, o significando que,
por mais utópica que pareça a inclusão de atores não governamentais e
dos indivíduos, isoladamente, no debate político, ainda trata-se de um
espaço necessário de construção, vital ao regime democrático.

Fonte: Rawpixel/iStock.com.

O Estado continua sendo o espaço onde vivem os cidadãos, mas estes,


antes de tudo, são seres humanos e, enquanto tais, enquadram-se em
grupos étnicos ou religiosos – o que significa que muitas vezes estarão
inseridos no espectro das relações sociais, mas não da conceituação
formal de cidadania, enquanto vinculação à possibilidade de adquirir
direitos políticos formalmente, através do voto e da elegibilidade.

A esses grupos, outros mecanismos de acesso ao debate político


deveriam ser garantidos, e é nesse sentido que surgem os coletivos
sociais, os movimentos multiculturais e as organizações não
governamentais – os outros atores, complementares à função pública,
a quem, de forma bastante lúdica, Lizst Vieira chamaria “Os Argonautas

 117
da Cidadania”, pois a maneira com a qual conduzem as novas formas de
participação popular nos destinos coletivos se assemelha, na concepção
do autor, aos argonautas da mitologia grega, que heroicamente
conduziam sua nau em busca do Tosão de Ouro sagrado – assim como
os ativistas buscam a cidadania14.
Nas sociedades multiculturais, a diferença torna-se fonte de identidade
às pessoas humanas15. A privação de cidadania, nesse sentido, afeta o
direito de ser humano, colocando em contestação o fato de que todos
os seres humanos nascem iguais em direitos perante o Estado – “o
tratamento igual é injusto num meio social de desigualdades”16.

SITUAÇÃO-PROBLEMA
O país X, em um esforço recente para efetivar a disposição presente
na Carta das Nações Unidas no sentido da promoção do Direito ao
Desenvolvimento, dentro das hipóteses de criação de mecanismos
de cooperação econômica e social, resolve, voluntariamente, criar
um órgão consultivo com o objetivo de engajar sociedade civil e
poder público na promoção do direito à diversidade, através do
incentivo à organização de movimentos negros.
Tal atividade se insere no contexto de promoção da igualdade racial
e diminuição do preconceito, pois o país X possui altos níveis de
discriminação e constantes ataques violentos a minorias étnicas,
colocando-o em uma posição bastante delicada quanto ao cenário
internacional e causando inúmeras obrigações de reparar danos e
indenizar vítimas, após julgamentos na Corte Regional de Direitos
Humanos da qual o país X faz parte.
Além disso, dentro do contexto de colonização e formação
social, político e cultural do país X, as minorias étnicas se
enquadram em contexto de vulnerabilidade ampliada, pois

14
VIEIRA, Liszt. Os Argonautas da Cidadania. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.
15
Idem. p.233-234.
16
Idem. p.236.

118
118
sempre estiveram à margem dos processos decisórios,
passando, inclusive, por um longo período de escravidão, motivo
pelo qual os movimentos negros no país ainda estão, passo
a passo, construindo suas identidades e promovendo uma
existência mais justa e equânime.
Considerando seus conhecimentos adquiridos a partir do conteúdo
apresentado, elabore o texto da resolução que dará origem ao
órgão consultivo, contendo tudo aquilo que você crê ser necessário
à justificação e estruturação do órgão, preenchendo os requisitos
de: 1) representatividade; 2) participação da sociedade civil; 3)
participação da função pública; 4) necessidade da criação do órgão;
5) importância para a realização do ideal democrático de igualdade,
porém, respeitando as diferenças.
Como forma de auxiliá-lo na elaboração da tarefa, você pode se
utilizar de exemplos bem-sucedidos de criação de conselhos e outros
órgãos consultivos relacionados ou não aos movimentos negros, e
também relacionados ou não à experiência do Brasil. Mãos à obra!

QUESTÃO PARA REFLEXÃO


Reflita sobre a maneira com a qual o Estado se constituiu ao
longo dos últimos séculos, como as dinâmicas de mercado e a
globalização, e como o empoderamento de inúmeros setores
da sociedade, até que se chegasse a um conceito mais amplo
de sociedade, permitiu que os movimentos multiculturais se
tornassem, cada vez mais, mecanismos de promoção da justiça
social e da equidade.

 119
3. Considerações finais

• A promoção da existência teórica de um homem universal nos


séculos anteriores não foi acompanhada pelo conceito formal
de cidadania, ao qual foram acrescidos outros contornos, mais
sociais, de participação coletiva, como a existência de movimentos
multiculturais e organizações não governamentais;

• A aproximação dos espaços promovida pela globalização permitiu


o aumento do fluxo de migração e, com isso, o multiculturalismo
no interior dos Estados se expandiu, algo que também se refletiu
nos debates sobre cidadania e sua amplitude;

• Neste sentido, grupos excluídos do conceito formal de cidadania


passaram a buscar refúgio em outros mecanismos de participação
popular, como as organizações, os coletivos e os movimentos
sociais, garantindo a influência na tomada de decisões sobre
questões referentes à sua própria existência;

• Isso se relaciona também à garantia do direito ao desenvolvimento,


que não envolve apenas os Estados, mas também os indivíduos,
pois desde a Carta das Nações Unidas, compreende-se que
a cooperação entre função pública e sociedade é vital para a
manutenção do regime democrático nos Estados.

Glossário

• Argonauta: a expressão, utilizada no texto na concepção de Lizst


Vieira, quando o autor trata dos atores sociais, possui origem gre-
ga, nos personagens mitológicos denominados Argonautas, que,
munidos de informações astronômicas, conduziam a nau Argo,
heroicamente, em busca do Tosão de Ouro - um pedacinho da
pelagem dourada da ovelha alada Crisómalo, vinculada à conste-
lação zodiacal de Áries. Para mais informações sobre a sagrada
missão dos argonautas.

120
120
VERIFICAÇÃO DE LEITURA

1. A internacionalização da comunicação e a redução de


distâncias através do compartilhamento de informações
conferiram uma nova dimensão de solidariedade às
relações entre seres humanos, o que significa que:

a. Indivíduos de regiões remotas do globo podem


conhecer realidades distintas à sua, promovendo uma
nova dimensão de interação política e social;

b. Indivíduos de regiões remotas do globo podem


conhecer realidades distintas à sua, com o objetivo de
exterminá-las ou colonizá-las, retornando ao período
colonizatório e expansionista a nível mundial;

c. Será possível retornar ao passado colonizatório,


ainda que indivíduos de regiões remotas do
globo desconheçam o que se passa em regiões
igualmente remotas;

d. Não há qualquer espécie de relação proporcionada


pela aproximação de espaços, tanto físicos, quanto
comunicativos, na era da globalização, apesar de um
crescimento espontâneo das relações entre os seres
humanos, sem relação com a internacionalização dos
meios de comunicação;

e. Não há qualquer espécie de relação proporcionada


pela aproximação de espaços, tanto físicos, quanto
comunicativos, na era da globalização.

 121
2. Os seres humanos são iguais em termos de direitos,
em razão da promoção da universalidade de direitos
humanos, que não podem ser retirados de nenhum
indivíduo, mas são diferentes em suas características
especiais e identitárias

porque

o fato de que há inúmeros seres humanos convivendo


no mesmo espaço, e que estes são influenciados pela
aproximação espacial da globalização, e também da
padronização de hábitos a nível mundial, promovida pelo
fluxo permanente de bens, garante que essa diversidade
estará presente, independentemente da distância.

Analisando as afirmações acima, conclui-se que:

a. As duas afirmações são verdadeiras e a segunda


justifica a primeira.

b. A primeira afirmação é verdadeira e a


segunda é falsa.

c. A primeira afirmação é falsa e a segunda é verdadeira.

d. As duas afirmações são verdadeiras e a segunda não


justifica a primeira.

e. As duas afirmações são falsas.

3. Em que consiste o lobby realizado por organismos


não governamentais e outros atores da sociedade
civil, quanto à elaboração de políticas públicas ao nível
de Estado?

122
122
a. O lobby consiste na prática fraudulenta de influência
política através da atribuição de valores à tomada
de decisões na esfera pública, pelos denominados
“grupos de pressão”;

b. O lobby é uma prática regulamentada e estabilizada


de pressão política, padronizada no mundo todo e,
exatamente pela garantia de regulamentação precisa,
muito bem vista pela sociedade brasileira;

c. O lobby é um mecanismo de pressão política, através


de reuniões, destinado a exercer influência sobre
a tomada de decisões quanto a um determinado
assunto, não consistindo em prática de corrupção;

d. O lobby é um mecanismo de pressão política, através


de reuniões, destinado a exercer influência sobre
a tomada de decisões quanto a um determinado
assunto, consistindo em prática de corrupção;

e. Nenhuma das alternativas anteriores.

Referências bibliográficas

ACIOLLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, Geraldo Eulálio do; CASELLA, Paulo


Borba. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Editora Saraiva, 2016.
GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Editora
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VIRILIO, Paul. A bomba informática. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.
WATERMAN, Peter. Globalization, social movements & the new
internationalisms. Londres: Mansell, 1998.

Gabarito

Questão 1 – Resposta: A
A alternativa A está correta, pois, de fato, as novas relações entre
seres humanos, proporcionadas pelas novas relações políticas
e sociais, em razão da maior velocidade de informações e o
encurtamento relativo das distâncias entre lugares remotos,
permitiram novas dinâmicas de interação, ampliando experiências
como a solidariedade entre os povos.
Questão 2 – Resposta: D
A alternativa D está correta, pois as duas afirmativas estão
corretas, mas não há relação de complementaridade entre
elas, pois a segunda afirmação apenas explica a existência
de diversidade dentro do mesmo espaço, não evidenciando
complementar a primeira frase.
Questão 3 – Resposta: C
A alternativa C está correta, pois o lobby não consiste em prática
fraudulenta ou relacionada à corrupção, sendo apenas um
mecanismo político de influência sobre a tomada de decisões,
através da pressão realizada por determinados grupos, como as
organizações não governamentais.

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