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FRAGMENTO DE CASO CLÍNICO

“Clóris veio para a análise, há dezoito anos, um pouco mais, encaminhada por uma colega
psicanalista, ex-analisante minha, que fora amiga dela na infância. Ela perdera o pai havia menos
de um ano. Antes da doença e morte do pai, havia saído de um convento, onde era noviça, por
insistência de um rapaz apaixonado, para casar com ele.
Vinha com um diagnóstico de esquizofrenia paranoide, repetidamente confirmado por
quatro psiquiatras, incluindo dois professores da Universidade Federal. Estava medicada
pesadamente, com todos os efeitos colaterais da chamada impregnação, desde voz pastosa a
descontrole dos esfíncteres, o que, mais de uma vez, causou extremo embaraço para ela, durante
o período inicial de entrevistas. Vinha de uma crise aguda e demorada de eventos alucinatórios e
acabara de deixar um emprego.
Anteriormente a esses diagnósticos, foi diagnosticada disléxica, na infância, e sua
dificuladade de leitura e escrita na infância, lhe renderam momentos de enorme angústia diante
das exigências maternas e da escola na pequena cidade onde morava.
Queixava-se de uma mãe extremamente autoritária e absorvente a quem se referia, sem
expressar nenhum inconformismo, como “um poço sem fundo”. Quanto mais ela fazia pela mãe,
ou de acordo com a vontade da mãe, mais a mãe pedia, mandava, insistia, pressionava,
chantageava, ameaçava. Essa mulher, extremamente obesa, diabética, enfisematosa e fumante
inveterada, esteve em meu consultório duas vezes, antes de morrer, há poucos anos. Nessas
ocasiões pude constatar a origem das queixas de Clóris. As queixas incluíam maus tratos e
espancamentos na infância, além de ameaças e simulações de suicídio. Clóris era
responsabilizada por esses eventos. Seu pai, atemorizado pela dominação da esposa e ocupando
uma posição filial de assujeitamento a ela, muitas vezes, aderia à sanha de culpabilização e
punição de Clóris pelos descontroles da mãe.
Certa ocasião, após tomar uma quantidade considerável de comprimidos e de ter sido
socorrida pela família, Clóris me disse que tinha uma reserva de emergência em casa, para o
caso de não suportar a angústia ou o medo de a angústia retornar, depois de ter ido embora.
Perguntei-lhe do que se tratava. Ela disse que não podia me dizer porque realmente precisava
saber que teria uma saída, um último recurso, em caso de não suportar. Pediu que eu não
perguntasse mais nada e que não tentasse tirar dela essa garantia.
Diante dessa situação, fiz um trato com Clóris. Não perguntaria, não tentaria privá-la de
sua garantia e, segundo ela pedira, não avisaria à família desse recurso que ela guardara. Em
troca, ela se comprometia a vir uma sessão a mais, a cada semana, e a me avisar, caso
resolvesse recorrer àquilo – ao ato. Fiz ver a ela que uma passagem ao ato seria um rompimento
do compromisso de trabalho comigo e que nada seria mais justo que eu fosse comunicado antes
e que me fosse dada a oportunidade de questionar uma decisão daquela. Ela concordou.
Comprometeu-se a me avisar em caso de decidir usar sua solução final, seu holocausto. Passou a
vir duas sessões por semana e, três meses depois me comunicou que não precisava mais do
recurso e que havia entregue à mãe uma caixa de “mil gatos” (veneno para ratos) que estivera
aquele tempo todo presa, com esparadrapo, ao fundo da gaveta de sua mesa de cabeceira.
Depois disso, muitas vezes, em momentos de forte angústia e de ideia suicidas, ela me ligava,
conversávamos o que fosse possível e marcávamos um horário o mais próximo possível.
Por muitos anos, Clóris sofreu de alucinações que, ainda hoje, retornam de tempos em
tempos, cada vez mais esparsas e sob certo controle dela, a ponto de ela se comparar com o
personagem do filme “Mente brilhante”, que convivia pacificamente com suas alucinações. Houve
um momento em que as alucinações se tornaram muito intensas e a medicação idem. Há aí, uma
questão que sempre me chamou a atenção e cujo mecanismo eu nunca soube como
compreender. Suas alucinações não só eram povoadas por personagens recorrentes, como os do
personagem do filme, como, de uma forma razoavelmente clara, faziam alusões a passagens da
vida infantil dela, da vida familiar atual, enfim, pareciam remeter muito sugestivamente a eventos
de sua vida cotidiana. Exemplo disso era uma personagem chamada simplesmente “Mulher do
cabelão” que a perseguia com uma enorme tesoura nas mãos para lhe tosar os cabelos. Ora, sua
mãe havia cortado, na raiz, seus cabelos, quando criança, como castigo por ter atravessado uma
avenida tendo quase sido atropelada.
Havia uma outra alucinação que consistia na presença de uma nave mãe pairando sobre
ela impedindo-a de se mover, por exemplo para apanhar o ônibus quando este chegava ao ponto.
Dessa nave mãe saiam andróginos (sic) que tinham voz mecânica, metálica e vinham em sua
direção. Perguntei a ela sobre andróginos. Ela corrigiu para androides. Depois, associou esse
lapso a uma lembrança sobre seus irmãos sofrerem assédio moral, na infância, sendo chamados
de “mulherzinha”pelos outros meninos na escola (...)”

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