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História da Matemática
Sociedade Brasileira de
História da Matemática
Resumo
Este trabalho apresenta o desenvolvimento da geometria e da álgebra, bem como da relação entre elas, da Antiguidade até o início do século
XIX, quando muitos dos conceitos do cálculo diferencial e integral adquiriram a forma que lhes é dada na maioria dos livros de cálculo da
atualidade. É feita uma reflexão sobre como devem ser abordadas noções como abstração e rigor na atualidade.
Palavras-chave: História. Geometria. Aritmetização. Rigor.
Abstract
This paper presents the development of geometry and algebra, and the relation between them, from Antiquity to the early nineteenth century,
when many of the concepts of differential and integral calculus took the form given to them in most books of calculus today. It reflects on
how they should be dealt with notions such as abstraction and rigor today.
Keywords: History. Geometry. Arithmetization. Rigor.
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Professor do Instituto de Matemática e Estatística, e aluno de doutorado da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Goiás. E-mail: haclimaco@yahoo.com
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Ao utilizar o termo „cálculo‟ no contexto da Grécia Antiga, não se está fazendo referência ao Cálculo
Diferencial e Integral, mas àquilo que hoje chamamos de contar e realizar operações.
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Aristóteles, autor de grande influência sobre a escolástica, dividia os saberes entre teoréticos, práticos e
poiéticos. Nos primeiros, encontravam-se a Física, a Matemática e e Metafísica; dentre os práticos, a política e a
ética; dentre os poiéticos, os conhecimentos referentes à produção. A incorporação à ciência de instrumentos não
é, portanto, resultante da reunião entre os saberes práticos e teoréticos de Aristóteles, mas sim da ruptura da
separação rígida entre conhecimento poiético e conhecimento teorético.
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É assim que o cientista moderno realiza a ruptura com a noção grega predominante até
o século XV – e mesmo parte do XVI – de que as artes mecânicas eram “baixas” e “vis”,
dignas de servos ou escravos, indignas do homem livre.
O cientista do século XVII frequentemente trabalhava fora, ou até mesmo contra, as velhas
instituições do saber (as universidades), muitas delas presas à escolástica e a seus métodos, herdeiras das
concepções gregas. Sobretudo com a revelação copernicana de que a Terra girava em torno do Sol, mudou
a imagem do universo, as ideias sobre a ciência, sobre o trabalho científico e sobre as instituições
científicas, as relações entre ciência e sociedade e entre saber científico e fé religiosa. Não é que o cientista
se opusesse por princípio à fé cristã ou ao poder da Igreja Católica: assim como, ainda no século XV,
Colombo apresentou seus planos de como chegar à Índia a um comitê eclesiástico; no século XVII a Igreja
procurava melhorar os calendários, bem como as rotas dos navegantes; o próprio Galileu, antes de sua
condenação, chegou a ser premiado pela Igreja devido à sua descoberta de instrumentos científicos (cf.
Realle, 2005, p. 196), o que ocasionaria uma verdadeira revolução científica, embora ainda houvesse quem
não aceitasse seu uso como uma forma legítima de se obter conhecimento.
No entanto, a Igreja não podia aceitar que Galileu apresentasse a matemática como
uma fonte de verdades mais legítima do que as Escrituras, nem mesmo em assuntos que nos
dias atuais seriam considerados estritamente científicos. Cassirer (1997) chega a afirmar que o
próprio heliocentrismo não era tão insuportável para a Igreja, quanto o era a existência de uma
fonte de verdades que dispensava a autoridade da igreja e das Escrituras, que aparecia como
mais limpa, menos sujeita a arbitrariedades e mais facilmente comunicável.
Galileu, Descartes, Fermat (1601-1665) e Cavallieri (1598-1647), conhecedores da
obra dos gregos, retomaram muitos dos problemas não resolvidos, incorporando gradualmente
as novas ferramentas e abandonando progressivamente o ideal científico grego. Fermat
introduziu a linguagem algébrica, Descartes as coordenadas e o plano para localizar os pontos
e curvas, e Cavallieri (e também Torriceli) „redescobriram‟ os métodos infinitesimais dando-
lhes não apenas uma conotação heurística como lhes dera Arquimedes, mas também uma
formalização do método (MANCOSU, 1996, p. 35). Assim, se inicia a aritmetização da
geometria e a introdução de métodos infinitesimais, dois elementos fundamentais que
marcariam o desenvolvimento da matemática no século XVII (MANCOSU, 1996, p. 34).
Com a incorporação do cálculo à matemática, os números ganham direito de serem
estudados como ciência. Sobretudo com Descartes, se desenvolvem as propriedades das
operações, se cria uma notação que permite economia de pensamento, agilidade e precisão,
garantindo assim uma ampla generalização e uma busca por aplicações da matemática a uma
quantidade crescente de áreas. Descartes aplicou a crítica filosófica aos fundamentos da
matemática, mas acreditou muito cedo ter encontrado os fundamentos, e deixou o que
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considerou “operações braçais” para outros. Embora Descartes procurasse reduzir tudo ao
“mais simples”, seu simples era apoiado em complexa álgebra geométrica (cf. RUSNOCK,
1997), e portanto deixou diversas questões relativas a fundamentos sem desenvolvimento. No
entanto, sua afirmação de que a 'multiplicação' de dois segmentos de reta resultava num
segmento de reta (e não numa área, como se acreditava antes) já significou uma revolução
suficiente para que os matemáticos posteriores pudessem prosseguir no caminho da
aritmetização (não sem contradições, como será mostrado por ocasião das críticas aos
fundamentos do início do século XIX).
Mas, se por um lado Descartes revolucionou a matemática e também a filosofia – ao
buscar a certeza do conhecimento no sujeito cognoscente transformando a filosofia na busca
da certeza do saber, deixando de ser a busca das essências –, por outro seu racionalismo
propunha uma razão que tudo abarcava e explicava, princípios que abarcariam todos os fatos.
E quanto mais Descartes se aproximava dos fatos, mais se enredava em complicados
princípios metafísicos (Cassirer, 1997), não conseguindo, neste aspecto, acompanhar as
tendências mais importantes da nova ciência, que caminhavam exatamente no sentido, que
Newton daria expressão consciente mais tarde (no ano 1687, a publicação do Principia
Mathematica Philosophiae Naturalis marcaria o auge da Revolução Científica), de valorização
dos fatos e da experiência controlada, recusa a qualquer teoria que fosse construída em
oposição aos ou ignorando os fatos, decomposição de fenômenos complexos em fenômenos
mais simples; recomposição do fenômeno complexo; e da matemática como instrumento ou
linguagem que permitia, a partir dos fatos, construir leis.
Mas, uma compreensão mais profunda da diferenciação e da integração, bem como
um método geral para aplicação destes conceitos, derivado da compreensão de que um
processo é inverso do outro, somente pôde ser descoberto por homens que dominaram o
método geométrico dos gregos e de Cavalieri, assim como os métodos algébricos de
Descartes e Wallis. Esses homens só poderiam ter aparecido depois de 1660, e na realidade
surgiram com as figuras de Newton e Leibniz (STRUIK, 1987, p. 177)
A matemática de Newton e Leibniz seria marcada pela exploração, aplicação e ampla
generalização dos método ligados aos infinitesimais, e a consciência da inversabilidade entre
derivadas e integrais facilitou a exploração do importante instrumento para medir, prever e
matematizar – como era o objetivo de Descartes – que eram as equações diferenciais, bem
como para compreender e traduzir – ou descrever – analiticamente as relações geométricas
entre derivadas e integrais. No entanto, e embora tenham feito amplo uso das séries infinitas e
mostrado como elas facilitavam os processos de integração e de derivação, além de
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fundamentação das ciências, sobretudo da biologia – como também Lagrange, que percebeu
que os principais resultados clássicos da geometria e da física tinham sido revelados pelos
matemáticos, chegaram a prever que a matemática estava esgotada (cf. Cassirer, 1997).
Aritmetização, rigor e didática
Bertrand Russell (1981) afirma que há duas direções distintas em que se realiza o
estudo da matemática: uma é a mais comum, que ele chama de construtiva; a outra é a
menos familiar, que avança, pela análise, para a abstração e a simplicidade lógica sempre
maiores; indaga-se que mais ideias e princípios gerais podem ser encontrados, em função dos
quais o que fora o ponto de partida possa ser definido ou deduzido (RUSSEL, 1981, p. 11),
e caracteriza esta segunda direção como “o que caracteriza a Filosofia Matemática, em
contraste com a Matemática comum” (RUSSEL, 1981, p. 11).
A filosofia, que no século XVII tinha sido estreitamente ligada à matemática e que
contribuiu para o estudo crítico dos seus fundamentos, vivia no início do século XIX um
contexto “dominado pelo idealismo de Fichte e Hegel e, de maneira crescente, pelas
interpretações psicológicas das doutrinas kantianas (Herbart, Benecke)” (LAPOINTE, 2003,
p. 6), o que não contribuiu para a resolução dos problemas de fundamentos pelos quais
passava a matemática da época.
Se tomarmos como parâmetro a distinção feita por Russell, a preocupação dos
matemáticos do século XIX foi bastante filosófica, pois foi por meio da análise dos
fundamentos do que já era conhecido, e não pela busca de novas aplicações ou descobertas,
que surgiu um outro olhar, uma nova abordagem, que transformariam o modo de encarar a
matemática. A análise matemática passou a ter, neste período, o objetivo de elaborar uma
estrutura dedutiva e conceitual de seus objetos.
Assim, a análise filosófica passou a ser uma busca por fundamentos últimos, e essa é a
razão pela qual Bolzano – um dos poucos que, no início do século XIX, tinha conhecimento
matemático e filosófico suficiente para compreender as contradições e necessidades de sua
época, além de preocupações educacionais – se sentiu impulsionado a desenvolver teorias de
conjuntos, dos inteiros e dos números (entre outros) para fundamentar proposições da teoria
das funções reais (cf. RUSNOCK, 1997, e BOLZANO, 1980, 1991).
Mas a busca de fundamentos empreendida por Bolzano não tinha pretensões
unicamente lógicas. Bolzano era padre e professor. No século XIX, as necessidades de
comunicação aumentaram, havia cada vez mais matemáticos profissionais, professores em
universidades, e crescia rapidamente o número de Escolas Politécnicas, que em geral
copiavam o modelo da École Polytechnique de Paris, criada em 1794, durante a Revolução
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