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Anais do IX Seminário Nacional de

História da Matemática
Sociedade Brasileira de
História da Matemática

Geometria e Aritmetização da Grécia Antiga à Matemática


Moderna; contribuições desta história para a Educação
Matemática atual
Geometry and Aritmetization from Ancient Greece to Modern
Mathematics; contributions from this history to mathematics education
today
Humberto de Assis Clímaco1

Resumo
Este trabalho apresenta o desenvolvimento da geometria e da álgebra, bem como da relação entre elas, da Antiguidade até o início do século
XIX, quando muitos dos conceitos do cálculo diferencial e integral adquiriram a forma que lhes é dada na maioria dos livros de cálculo da
atualidade. É feita uma reflexão sobre como devem ser abordadas noções como abstração e rigor na atualidade.
Palavras-chave: História. Geometria. Aritmetização. Rigor.

Abstract
This paper presents the development of geometry and algebra, and the relation between them, from Antiquity to the early nineteenth century,
when many of the concepts of differential and integral calculus took the form given to them in most books of calculus today. It reflects on
how they should be dealt with notions such as abstraction and rigor today.
Keywords: History. Geometry. Arithmetization. Rigor.

Introdução: Geometria e números na concepção de ciência grega


A relação entre aritmética e geometria na Grécia Antiga está profundamente marcada
pelo que Boutroux (1992), identificou com o ideal científico do pensador grego: ideal de
harmonia, beleza e simetria. O pensador grego não procurava construir teorias que
estabelecessem uma fidelidade aos fatos, e foi em decorrência desta concepção que os gregos

1
Professor do Instituto de Matemática e Estatística, e aluno de doutorado da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Goiás. E-mail: haclimaco@yahoo.com
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excluíram da matemática as chamadas curvas mecânicas e os cálculos 2, bem como o saber


técnico da ciência.
É claro que a matemática que os gregos herdaram do Egito – relacionada, sobretudo, à
medição da terra e ao cálculo de dinheiro, dentre outras aplicações práticas – continuou sendo
desenvolvida paralelamente àquilo que os filósofos consideravam científico.
Então, se de um lado os filósofos não estudaram os cálculos por acreditarem que estes
não eram dignos de serem aceitos na matemática por terem relação com a prática, por outro
lado os calculistas práticos também não estudaram os cálculos de um ponto de vista teórico,
mas apenas o desenvolveram visando maior agilidade, praticidade e aperfeiçoamento técnico.
Foi assim que na Grécia Antiga não se desenvolveu teoricamente um estudo sobre o cálculo, o
que determinou que, enquanto a geometria e os métodos demonstrativos se muito mais do que
nas civilizações egípcia e mesopotâmica (em que não havia a noção de demonstração, mas
apenas um conjunto de ordens que determinavam algoritmos para a realização de operações
para a resolução de problemas), a descrição dos números ainda era feita, antes do século IV,
por meio de uma repetição muito grande de símbolos, e depois do século IV por meio de uma
simbologia que dificultava muito a realização de operações (cf. IFRAH, 1989); os próprios
pitagóricos representavam números com pontos e pedras, juntando-os de forma que
representassem alguma figura geométrica (cf. MATTÉI, 2000 e REALLE, 2005), e as simples
propriedades das operações elementares (soma e multiplicação) não foram enunciadas na
Grécia Antiga.
Com relação à geometria, os gregos admitiram como científicas apenas as curvas
construtíveis com régua sem escala e compasso, bem como sua extensão para as cônicas,
criadas com a revolução destas figuras e sua posterior interseção com o plano. As demais
curvas foram consideradas mecânicas e não foram admitidas na Matemática.
Assim, o ideal científico do pensador grego, bem como a ausência de necessidades
econômicas e sociais que exigissem previsão, medida e quantificação, levaram a que a
matemática grega tivesse como modelo e fundamento a geometria, em detrimento do cálculo
com números (ver STRUIK, 1987; CARAÇA, 2000).
Com relação às ciências empíricas, os gregos – bem como as tradições predominantes
na Idade Média – consideraram impura a utilização de instrumentos mecânicos (as lentes, por
exemplo, das quais se tratará a seguir) para novas descobertas, e também como objeto de
estudo. Além disso, estava completamente excluída dos interesses dos pensadores gregos a

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Ao utilizar o termo „cálculo‟ no contexto da Grécia Antiga, não se está fazendo referência ao Cálculo
Diferencial e Integral, mas àquilo que hoje chamamos de contar e realizar operações.
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noção de experimentação e observação de experiência controlada. Mesmo o pré-socrático,


que „observava‟ a natureza, não o fazia no sentido moderno que atribuímos ao termo
„observação‟. Melhor seria dizer que ele contemplava a natureza e, ao contemplá-la, buscava
revelar qual seria a arkhé do universo, qual seria o princípio que o regeria, o elemento único e
permanente por trás de toda a diversidade aparente das coisas. Mesmo a noção pitagórica de
que “tudo é número” (cf. IFRAH, 1989) tem menos em comum com a concepção moderna de
medir, prever e controlar do que pode parecer à primeira vista, na medida em que a noção
pitagórica se enquadrava totalmente na busca por mostrar como os fatos se adequavam a uma
harmonia preestabelecida da beleza dos números, e não na busca por adequar a teoria
matemática aos fatos empíricos ou à experimentação controlada, que caracterizariam a ciência
moderna.
Há, sobre esta questão, três aspectos da matemática pitagórica que precisam ser
esclarecidos, para evitar possíveis (e comuns) confusões: o primeiro é que eles de fato
realizaram estudos sobre a música e sobre os astros que descreviam o funcionamento de
aspectos da natureza; o segundo, é que seu método de busca era o do ideal da perfeição, e
portanto sua escala musical não foi feita para ser prática, mas os sons empíricos foram
encaixados dentro de seu ideal de harmonia, de encontrar os sons equivalentes a uma corda,
depois à metade da corda, depois aos quartos, etc.; o mesmo se pode dizer com relação à sua
aritmética dos astros: não buscavam „descrever de forma acurada‟ o movimento dos astros,
mas conciliar a descrição e o movimento com as formas mais belas, harmoniosas e simétricas
da geometria.
A numeração dos gregos não se destinava “a efetuar operações aritméticas, mas a
fazer abreviações para anotar e reter os números” (IFRAH, 1989, p. 185). Os pitagóricos
chegaram a representar os números por pontinhos dispostos em forma geométrica, o que fazia
atribuir ao número um „caráter‟ muito mais concreto do que aquele que lhe seria dado na
álgebra moderna (cf. MATTÉI, 2000). Por fim, e talvez o mais importante, é que o número
tinha para os pitagóricos, e Platão retomará este aspecto (ver REALE, 2005), um caráter
metafísico. Não pretendia explicar o universo por meio dos números usando uma álgebra
universal utilizável em qualquer área do conhecimento, como Descartes (1596-1650), mas
acreditava que a origem e o princípio das coisas eram o número em si, por sua vez criado por
uma fusão do ilimitado com o limitante (cf. REALLE, 2005, MATTÉI, 2000): ou seja, era a
arkhé dos pitagóricos.
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A relação entre números e objetos geométricos na revolução científica


Uma parte importante da ciência grega seria desconhecida do Ocidente durante a
maior parte da Idade Média (ver RUBENSTEIN, 2005). Os árabes continuariam, durante a
Idade Média, a desenvolver os cálculos práticos herdados dos gregos, que por sua vez eram
continuidade da ciência egípcia, e lhe dariam nova feição – sob influência também dos
métodos dos matemáticos hindus – buscando resumir e simplificar sua realização: é com os
árabes que, por exemplo, se inicia a prática de fazer termos de uma igualdade mudarem de
sinal quando são transferidos para o lado oposto (ao que está) da igualdade, ou seja, a noção
de anular termos de mesmo valor mas sinais opostos (cf. BOUTROUX, 1992, p. 81).
Uma das características fundamentais do conhecimento criado com a revolução
científica foi a tentativa de romper com a separação entre o cálculo e a geometria, bem como
com a rígida distinção entre os saberes considerados práticos e os teóricos, entre o
instrumental e o racional3. Não que a matemática tenha deixado de ser teórica, mas ela passou
a incorporar e estudar teoricamente aquilo que os gregos consideraram meramente utilitário e,
portanto, impuro e indigno de ser estudado e de pertencer à matemática. Para isso, foi
necessário realizar uma verdadeira ruptura com os escrúpulos dos gregos, que os levavam a
rejeitar da ciência o que derivasse da prática (em detrimento da busca por um ideal de beleza e
de simetria).
Sem essa incorporação à ciência teórica dos instrumentos e dos cálculos práticos (que
não deve ser confundida com a errônea afirmação de que a ciência moderna foi construída por
engenheiros e técnicos superiores (cf. REALLE, 2005), não teria sido possível que Galileu
(1564-1642) estudasse o funcionamento das lentes e ampliasse suas potencialidades muito
além do que os trabalhadores que usavam lentes (cujo trabalho era considerado inferior, como
algo de quem trata de doentes, idosos e crianças). Não teria sido possível que os cientistas do
século XVI e sobretudo os do século XVII, desenvolvessem algumas das mais importantes
características da ciência e da matemática criadas a partir de então: a observação controlada, a
experimentação, a álgebra e a frutífera tentativa de unificar o estudo dos números com a
geometria.

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Aristóteles, autor de grande influência sobre a escolástica, dividia os saberes entre teoréticos, práticos e
poiéticos. Nos primeiros, encontravam-se a Física, a Matemática e e Metafísica; dentre os práticos, a política e a
ética; dentre os poiéticos, os conhecimentos referentes à produção. A incorporação à ciência de instrumentos não
é, portanto, resultante da reunião entre os saberes práticos e teoréticos de Aristóteles, mas sim da ruptura da
separação rígida entre conhecimento poiético e conhecimento teorético.
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É assim que o cientista moderno realiza a ruptura com a noção grega predominante até
o século XV – e mesmo parte do XVI – de que as artes mecânicas eram “baixas” e “vis”,
dignas de servos ou escravos, indignas do homem livre.
O cientista do século XVII frequentemente trabalhava fora, ou até mesmo contra, as velhas
instituições do saber (as universidades), muitas delas presas à escolástica e a seus métodos, herdeiras das
concepções gregas. Sobretudo com a revelação copernicana de que a Terra girava em torno do Sol, mudou
a imagem do universo, as ideias sobre a ciência, sobre o trabalho científico e sobre as instituições
científicas, as relações entre ciência e sociedade e entre saber científico e fé religiosa. Não é que o cientista
se opusesse por princípio à fé cristã ou ao poder da Igreja Católica: assim como, ainda no século XV,
Colombo apresentou seus planos de como chegar à Índia a um comitê eclesiástico; no século XVII a Igreja
procurava melhorar os calendários, bem como as rotas dos navegantes; o próprio Galileu, antes de sua
condenação, chegou a ser premiado pela Igreja devido à sua descoberta de instrumentos científicos (cf.
Realle, 2005, p. 196), o que ocasionaria uma verdadeira revolução científica, embora ainda houvesse quem
não aceitasse seu uso como uma forma legítima de se obter conhecimento.

No entanto, a Igreja não podia aceitar que Galileu apresentasse a matemática como
uma fonte de verdades mais legítima do que as Escrituras, nem mesmo em assuntos que nos
dias atuais seriam considerados estritamente científicos. Cassirer (1997) chega a afirmar que o
próprio heliocentrismo não era tão insuportável para a Igreja, quanto o era a existência de uma
fonte de verdades que dispensava a autoridade da igreja e das Escrituras, que aparecia como
mais limpa, menos sujeita a arbitrariedades e mais facilmente comunicável.
Galileu, Descartes, Fermat (1601-1665) e Cavallieri (1598-1647), conhecedores da
obra dos gregos, retomaram muitos dos problemas não resolvidos, incorporando gradualmente
as novas ferramentas e abandonando progressivamente o ideal científico grego. Fermat
introduziu a linguagem algébrica, Descartes as coordenadas e o plano para localizar os pontos
e curvas, e Cavallieri (e também Torriceli) „redescobriram‟ os métodos infinitesimais dando-
lhes não apenas uma conotação heurística como lhes dera Arquimedes, mas também uma
formalização do método (MANCOSU, 1996, p. 35). Assim, se inicia a aritmetização da
geometria e a introdução de métodos infinitesimais, dois elementos fundamentais que
marcariam o desenvolvimento da matemática no século XVII (MANCOSU, 1996, p. 34).
Com a incorporação do cálculo à matemática, os números ganham direito de serem
estudados como ciência. Sobretudo com Descartes, se desenvolvem as propriedades das
operações, se cria uma notação que permite economia de pensamento, agilidade e precisão,
garantindo assim uma ampla generalização e uma busca por aplicações da matemática a uma
quantidade crescente de áreas. Descartes aplicou a crítica filosófica aos fundamentos da
matemática, mas acreditou muito cedo ter encontrado os fundamentos, e deixou o que
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considerou “operações braçais” para outros. Embora Descartes procurasse reduzir tudo ao
“mais simples”, seu simples era apoiado em complexa álgebra geométrica (cf. RUSNOCK,
1997), e portanto deixou diversas questões relativas a fundamentos sem desenvolvimento. No
entanto, sua afirmação de que a 'multiplicação' de dois segmentos de reta resultava num
segmento de reta (e não numa área, como se acreditava antes) já significou uma revolução
suficiente para que os matemáticos posteriores pudessem prosseguir no caminho da
aritmetização (não sem contradições, como será mostrado por ocasião das críticas aos
fundamentos do início do século XIX).
Mas, se por um lado Descartes revolucionou a matemática e também a filosofia – ao
buscar a certeza do conhecimento no sujeito cognoscente transformando a filosofia na busca
da certeza do saber, deixando de ser a busca das essências –, por outro seu racionalismo
propunha uma razão que tudo abarcava e explicava, princípios que abarcariam todos os fatos.
E quanto mais Descartes se aproximava dos fatos, mais se enredava em complicados
princípios metafísicos (Cassirer, 1997), não conseguindo, neste aspecto, acompanhar as
tendências mais importantes da nova ciência, que caminhavam exatamente no sentido, que
Newton daria expressão consciente mais tarde (no ano 1687, a publicação do Principia
Mathematica Philosophiae Naturalis marcaria o auge da Revolução Científica), de valorização
dos fatos e da experiência controlada, recusa a qualquer teoria que fosse construída em
oposição aos ou ignorando os fatos, decomposição de fenômenos complexos em fenômenos
mais simples; recomposição do fenômeno complexo; e da matemática como instrumento ou
linguagem que permitia, a partir dos fatos, construir leis.
Mas, uma compreensão mais profunda da diferenciação e da integração, bem como
um método geral para aplicação destes conceitos, derivado da compreensão de que um
processo é inverso do outro, somente pôde ser descoberto por homens que dominaram o
método geométrico dos gregos e de Cavalieri, assim como os métodos algébricos de
Descartes e Wallis. Esses homens só poderiam ter aparecido depois de 1660, e na realidade
surgiram com as figuras de Newton e Leibniz (STRUIK, 1987, p. 177)
A matemática de Newton e Leibniz seria marcada pela exploração, aplicação e ampla
generalização dos método ligados aos infinitesimais, e a consciência da inversabilidade entre
derivadas e integrais facilitou a exploração do importante instrumento para medir, prever e
matematizar – como era o objetivo de Descartes – que eram as equações diferenciais, bem
como para compreender e traduzir – ou descrever – analiticamente as relações geométricas
entre derivadas e integrais. No entanto, e embora tenham feito amplo uso das séries infinitas e
mostrado como elas facilitavam os processos de integração e de derivação, além de
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permitirem um tratamento algébrico de funções não algébricas, ainda estavam a mais de um


século do tratamento rigoroso das séries infinitas, e sua linguagem matemática ainda é
surpreendentemente geométrica (ver NEWTON, 2.002). Trataremos brevemente no próximo
item o debate em torno da coerência do uso dos infinitésimos.
A Matemática teria se esgotado?
Os matemáticos do século XVIII, como Euler (1707-1783) e Lagrange (1736-1813),
foram progressivamente abandonando a linguagem geométrica – Lagrange, por exemplo, se
orgulhava de não usar em seu Mechanique Analytique nenhuma figura geométrica (cf.
BOYER, 1974) – ainda presente nos escritos de Newton, bem como a vinculação cartesiana
do número ao segmento de reta. Com eles, a matemática se tornaria cada vez mais o estudo
das séries, das funções e das equações diferenciais. Além disso, eles tratariam de provar, cada
vez mais analiticamente, os principais resultados clássicos da matemática, da mecânica e da
física celeste, inclusive reescrevendo aqueles encontrados por Newton.
Os objetos de maior preocupação destes matemáticos eram a criação e o
desenvolvimento da matemática, e não sua fundamentação. O que não significa que não se
tenha tratado do rigor e nem se criticado a fragilidade da base sobre a qual se assentava o
enorme edifício matemático do século XVIII. Se por um lado é inquestionável a
grandiosidade dos avanços da matemática deste século, por outro, os questionamentos de
Berkeley às noções de infinito e infinitésimo continuavam sem resposta satisfatória, e o
caráter contraditório das explicações que os matemáticos tentavam dar para estas noções foi
colocado em evidência pelas críticas do bispo, e também pela manipulação sem cuidado de
séries infinitas, que levou Euler a generalizar resultados particulares a ponto de afirmar como
1
verdadeira a igualdade  1  x  x 2  ...  x n  ... para valores quaisquer, como x  1 ,
1 x
x  1 , x  2 etc (cf. RUSNOCK, 1997, p. 73). Assim, no final do século XVIII, estes
conceitos (infinito, infinitésimo, continuidade), ou eram explicados em termos metafísicos, ou
em termos de explicações geométricas, ou que envolviam as noções de espaço e de tempo
(BOYER, 1949 p. 287).
Assim, como os fundamentos dos principais conceitos usados na linguagem analítica –
que o século XVIII pretendeu que substituísse a linguagem geométrica – continuavam sem
uma aritmetização clara, importantes resultados, como o Teorema do Valor Intermediário,
continuavam sendo „provados‟ com a ajuda da geometria
Os matemáticos do século XVIII provaram e descobriram tanto, que não apenas o
biólogo Diderot – pretendendo limitar os poderes da matemática como modelo de
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fundamentação das ciências, sobretudo da biologia – como também Lagrange, que percebeu
que os principais resultados clássicos da geometria e da física tinham sido revelados pelos
matemáticos, chegaram a prever que a matemática estava esgotada (cf. Cassirer, 1997).
Aritmetização, rigor e didática
Bertrand Russell (1981) afirma que há duas direções distintas em que se realiza o
estudo da matemática: uma é a mais comum, que ele chama de construtiva; a outra é a
menos familiar, que avança, pela análise, para a abstração e a simplicidade lógica sempre
maiores; indaga-se que mais ideias e princípios gerais podem ser encontrados, em função dos
quais o que fora o ponto de partida possa ser definido ou deduzido (RUSSEL, 1981, p. 11),
e caracteriza esta segunda direção como “o que caracteriza a Filosofia Matemática, em
contraste com a Matemática comum” (RUSSEL, 1981, p. 11).
A filosofia, que no século XVII tinha sido estreitamente ligada à matemática e que
contribuiu para o estudo crítico dos seus fundamentos, vivia no início do século XIX um
contexto “dominado pelo idealismo de Fichte e Hegel e, de maneira crescente, pelas
interpretações psicológicas das doutrinas kantianas (Herbart, Benecke)” (LAPOINTE, 2003,
p. 6), o que não contribuiu para a resolução dos problemas de fundamentos pelos quais
passava a matemática da época.
Se tomarmos como parâmetro a distinção feita por Russell, a preocupação dos
matemáticos do século XIX foi bastante filosófica, pois foi por meio da análise dos
fundamentos do que já era conhecido, e não pela busca de novas aplicações ou descobertas,
que surgiu um outro olhar, uma nova abordagem, que transformariam o modo de encarar a
matemática. A análise matemática passou a ter, neste período, o objetivo de elaborar uma
estrutura dedutiva e conceitual de seus objetos.
Assim, a análise filosófica passou a ser uma busca por fundamentos últimos, e essa é a
razão pela qual Bolzano – um dos poucos que, no início do século XIX, tinha conhecimento
matemático e filosófico suficiente para compreender as contradições e necessidades de sua
época, além de preocupações educacionais – se sentiu impulsionado a desenvolver teorias de
conjuntos, dos inteiros e dos números (entre outros) para fundamentar proposições da teoria
das funções reais (cf. RUSNOCK, 1997, e BOLZANO, 1980, 1991).
Mas a busca de fundamentos empreendida por Bolzano não tinha pretensões
unicamente lógicas. Bolzano era padre e professor. No século XIX, as necessidades de
comunicação aumentaram, havia cada vez mais matemáticos profissionais, professores em
universidades, e crescia rapidamente o número de Escolas Politécnicas, que em geral
copiavam o modelo da École Polytechnique de Paris, criada em 1794, durante a Revolução
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Francesa. Nestas escolas eram formados engenheiros e artilheiros de guerra e os


desenvolvimentos teórico e prático da matemática caminhavam juntos. Também foi nelas que
ocorreram as primeiras experiências de matemática avançada ensinada em larga escala. E foi
justamente este ensino em larga escala o fator decisivo para a necessidade de uma linguagem
menos pessoal, intuitiva e subjetiva; com as necessidades colocadas por esta forma de ensino
não mais era suficiente uma linguagem que bastasse ao matemático para sua própria
descoberta (e que já dava sinais de esgotamento mesmo para descobertas). Foi assim que se
fez necessário criar mecanismos que buscassem generalidade e objetividade, e esse esforço
resultou na criação da matemática pura tal qual a conhecemos hoje, por homens como
Bolzano, Gauss, Cauchy e outros.
A necessidade de comunicação e didática coincidiu com a necessidade de
fundamentação surgida com a crise nos fundamentos da matemática, que – como vimos –
passava exatamente pela falta de cuidado e de definições rigorosas dos principais conceitos
que fundamentavam as grandes descobertas dos dois séculos anteriores: aqueles ligados ao
infinito, ao infinitésimo e à continuidade, e que tinham sua expressão, sobretudo, nas
dificuldades dos matemáticos em manipular processos infinitos.
A definição de ciência de Bolzano, bem como seu ideal de fornecer à matemática
provas “puramente analíticas”, mostram em que grau Bolzano compreendeu as necessidades
de sua época. Por exemplo, Bolzano definiu ciência (Wissenschaft) como “o conjunto de
verdades de certo tipo que tem a qualidade de merecer ter apresentada num livro particular
sua parte já conhecida e importante”, e de livro didático de uma ciência como “aquele livro...
escrito por alguém com o propósito determinado de representar todas as verdades de uma
ciência numa maneira para serem entendidas o mais facilmente possível” (WL § 1); e
Doutrina ou Ensino da Ciência (Wissenschaftslehre) como “aquela ciência que nos ensina
como apresentar alguma ciência num livro didático” (WL § 1).
O paradoxo que envolve Bolzano e a Educação Matemática consiste em que a
linguagem formal da matemática foi criada com o objetivo de facilitar o ensino e a
comunicação de conceitos e, portanto, para evitar os erros oriundos da possibilidade de que
cada um possa ver os conceitos de acordo com seu próprio arbítrio, mas passou a ser vista
como obstáculo para o ensino, na medida em que a formalidade da linguagem matemática é
apresentada com frequência como a responsável pelas dificuldades de ensino ou pelo
desinteresse, por parte dos estudantes, pela matemática.
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É verdade que os proponentes da Reforma da Matemática Moderna levaram aos


extremos e transformaram em pedantismo antididático sua insistência na linguagem formal,
bem como no abandono da geometria.
No entanto, sua busca por levar a matemática da atualidade para as escolas, seu
repúdio por um ensino caracterizado por eles como semelhante ao dos livros de Euclides ou
da matemática que se ensinava há 200 anos atrás (cf. WAGNER, 2007), bem como sua busca
pela interdisciplinaridade da Educação Matemática, não podem deixar de ser valorizados.
E a abstração e a generalidade eram exatamente aquilo a que se referiam ao tratar da
matemática „atual‟. Generalidade que só foi possível alcançar por meio de uma linguagem
aritmética, por sua vez só possível de se realizar devido ao programa de abandonar a
fundamentação em particularidades, representadas pela geometria. E, como foi visto, a
fundamentação na geometria correspondia ao ideal matemático dos gregos, mas arrastou sua
influência a ponto de dificultar a aritmetização até inícios do século XIX.
Se a Educação Matemática atual não quiser repetir os erros do passado e reviver
dilemas superados, é necessário compreender as raízes da evolução histórica da Matemática
Pura e procurar tratar a história recente da Educação Matemática com maior profundidade.
Se o “Fora Euclides” da Reforma da Matemática Moderna e a busca por ensinar já na
infância as estruturas matemáticas mais gerais mostraram-se um exagero com graves
consequências nas escolas, o “Fora o rigor”, bem como a ênfase no particular – característicos
de algumas publicações recentes – pode ter consequências ainda mais prejudiciais, sobretudo
se se deixar enquadrar no contexto das políticas educacionais que pretendem reduzir a escola
(sobretudo a pública) a mera reprodutora do contexto cotidiano.
Compreender a história dos conceitos matemáticos, bem como as ideias e problemas
relacionados a eles - nas palavras de Otte (1993), adquirir metacognição matemática – pode
contribuir mais para o professor do que buscar milagrosas construções e desconstruções por
meio de slogans que se pretendem radicais, mas que enfatizam apenas um dos aspectos da
matemática.
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