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VUVUHVUVVGVVNHVONNDDONNGONONFNNNN0N0D NADA BRAHMA A Musica € 0 Universo da Consciéncia Joachim-Ernst Berendt “Este livro analisa @ antiga proposi¢go hindu de que ‘o mundo € som' — Nada Brahma, em sinscrito ctéssico — oferecendo ni merosos exemplos extrafdos de cifncia rodema, da ante, da fi losofia ¢ de varias tradigdes espirituais, Joachim-Emst Berendt é, indubitavelmente, qualificado para conduzir essa andlise, consideran- do-se que dedicou toda a sua vids profissional a misica, com uma longa’e destacada carreira como eritica de proxtutor de dis- os, concertos ¢ prograinas de rédio, Com entusiasmo maravilhoso, ele leva 0 leitor a uma viagem através do micro ¢ do macrocosmo, da ‘harmonia das esferas' as cangdes dos golfinhos, das baleias ¢ a outros ‘sons marftimos’. Esse viegem continua através do entrela- gamento dos padroes ritmicos da comunicagto humana, das vibra Ges das moléculas ¢ dos 4tomos. Berendt esiende a nogdo de ritmo também aos ‘ritmos estéticos" dos cristais. aos padres estruturais regulares dos organismos vivos ¢ & 'geometria sagrada’ presente em c6digo nas grandes catedrais européias. “Para 0 autor, 2 compreensio de que o mundo é som tem implicagbes profundas, ndo 6 para a ciéncia e a filosofia, mas também para a nossa vida cotidiana e para a sociedade. Ele argu- menta que, hé alguns séculos, nossa cultura ocidental vem dando énfase exagerada 2 visio em detrimento da eudic&o. Portanto, a nossa atual mudanga de paradigma inclui, segundo Berendt, uma modifi- cago essencial dessa énfase, da visto para a audig%o. Com energia impressionante, ele mostra que essa modificago ‘dos olhos para os ouvidos' coincide com a mudanga dos valores masculinos para os femininos, que tantas vezes tem sido associada & nossa transforma- ‘80 cultural — ou seja, da andlise para a sintese, do conhecimento racional para 2 sabedoria intuitive, do dominio e da agressividade para a nfo-violéncia € a paz.” Do preiicio de FRITIOF CAPRA EDITORA CULTRIX DOCONDONNONODNDOOVHHNHHOHNN0HNNGBHNNHANF NADA BRAHMA VUUVUBUVVVUOVOVOVOOOHNNDNNDNNN ANAL Joachim-Emst Berendt NADA BRAHMA A Musica ¢ 0 Universo da Consciéncia Tradugso ZILDA HUTCHINSON SCHILD CLEMENTE RAPHAEL MaHL EDITORA CULTRIX Sio Paulo 49% Titulo do original: Nada Brakma Die Welt ist Klang Copyright © 1983 by Insel Verlag, Frankfurt sm Main, Ano 93.9495.96-97 de tradugto para 0 Brasil adquitidos com exchusividade pela EDITORA CULTRIX LTDA. Rua Dr, Miri Vicente, 374 ~ 04270-000 ~ So Paulo, SP ~ Fone: 272-1389 que se reserva a propriedade Interfria desia traduglo, Impresso nas oficinas gréficas da Editora Pensamento, Sobre este livro Hé bem pouco tempo, ficamos sabendo que as particulas do étomo e oxigénio— protons ¢ itutzons — vibram numa escala melédica maior; 1e0$ lalos dos cercais que crescem nos vales, por entre as montanhas, antam” — cada qual sua propria “eangao” — e que, todas essas “can- 82s" dos mithdes de talos de cereais ressoam num unissono harmonio- ; também ficamos sabendo que, 20 surgir o verde vivo feito de luz © de matéria ao processar-se a fotossintese, ouvem-se irftonos, ¢ que a sexualidade ¢ um fenémeno musical... ‘Ao que parece, os conhecimentos que achévamos corretos, © que se referiam a sistemas e mundos inteizos, desmoronavam neste nosso sécu- Jo, © tempo ¢ a marétia, como alicerces dese conhecimento, eram pre- cisamente mensurdveis, avalidveis ¢ previsiveis — ratava-se dos conhe- imentos mais confidveis de que dispinhamos. Hoje, os fisicos esto iante dos destrogos que um dia foram o tempo ¢ a matéria. Nessa si- tuagdo, a natureza sonora do mundo ¢ uma das poucas certezas de que ispomos: 0 mundo & som # ritmo, vibragto. A obra de Berendt € uma viagem pela Asia e pela Europa, pela Africa ‘e pela América Latina; todavia, ela ¢ sobretudo uma viagem através das regies desconhecidas do inconsciente que se apresenta a todos nds como ‘uma paisagem constituida de sons, 10 de um pastor, o professor H.%. Joachim-Emnst Berendt nas- ceu no ano de 1922, em Berlim; cm 1945, foi co-fundador da Rédio Su- doeste; 6 autor de mais de vinte livros, entre eles Das Jazzbuch (0 Livro do Jazz}, a obra musical mais vendida. Berendt criou ¢ dirigiu muitos festivais internacionais de jazz (Berlim, Olimpiadas de Munique, Feira ‘Mundial de Osaka, etc,). E produtor de numerosos discos ¢ representante da Repiiblica Federal da Alemanha na Federago Internacional de Jazz Junto & UNESCO, Recebeu prémios em varias éreas — 0 do cinema ale- iio, duas vezes 0 dos criticos da televisto alem& e o Prémio Polonés °° ° o ° 5 ° ° ° 2 o 2 oO ° ° for} 9 ° ° °° °o S 2 ° 2 ° 3 3 onne0nnn0n0n0 9099 A00¢ 9 de Cultura, entre outros. Em 1983. publicou o su.ssi0 oditorisl Nada Brahma — O Mundo é Som, objeto de instigantes dzbates, e cuja edigto revista e ampliada aprescntamos agora. A Editora Rowohlt, em 1985, publicou o livro mais recente de Berendt: Das Dritte Ohr [A Terceira ‘Audigao). ar me fap en Sumdrio Prefécio de Fritjof Capra \. Introduga 1. © que significa Nada Brahma? Il, Nada Brahma — como koan € como mantra Inclusto de um debate sobre a I IML. No principio era 0 Verbo Sobre 0.s0m, 0 logos € a rosa IV. “Antes de fazer a musica, a misica nos faz" . Do macrocosmo a0 microcosmo Y. © som chama.. Esuelas e pariculas elemeniares. iais e as formas das folhas. O corpo masculino, o corpo feminino ¢ a sexualidade. Catedrais ¢ encruzifhadas. A estru- ura da Terra e a estétua de Memnon no vale do Ni ‘VI. O som é mais certo do que o tempo ¢ a materia. VII, A harmonia como objetivo do mundo. . VIII.O som na barriga : : Do som “masculino” € do eco “feminino”; do Amém ¢ do OM 1X. 0 templo no ouvide mie . Do ato de ouvir, do silencio ¢ do estado de vigildncia X, Nada Brahma: © que dizem os mésicos? Sobre a misica hindu, 0 jazz, 0 rock, € a mi = com um excesto sobre Hermann Hesse XI, As lendas ¢ os mitos dos povos confirmam: Deus eriou 0 mundo a partir dO SOM wn. 116 ui 161 m 190 215 Aptadice.. © Zen ¢ 0 Japto de hoje Pos-escrito sobre a citncia, POSTECIO nnnnmnnnannsrnnnin, = Como cheguei a Nada Brahma e agradecimentos a quem faz jus Fontes — Referéncias Bibliogréficas — Notas... 25 225 241 252 260 Nada Brahma rl podem meis estar separados. Embslarse sensualmente ene (0$ dois mundos, iso tem valor Portento, moverse ene 0 Les Eo methorique se tem a fezer. 0 Oeste Goethe Expagos abertos — nada de sagrado! Bodhidharma ‘Como sto inerivelmente conformados os seres humanos que te ligam a uma Anica religido! Tenho muitasreligiSes, ¢ aquela que ulirapassou todas as outras foi se formando durante 0 curso ds ‘ Elias Canetti & © Universo ¢ cu existimos juntos, ¢ todas as coisas e ev somos uma uunidade. Visto que todas as coisas formem uma unidade, nfo h& mais rezio para © discurso a respeito, Mas visto que acabei de dizer que todas as coisas sio uma lunidade, como é que 0 discurso pode deixar de set importante? Por tis das partes sempre existe algo indivisivel. Por was do que se dscute, sempre existe algo que no admite discussto, Voc# pergunta: 0 qué? O stbio gusrda-o em seu corsgio, Chuang Tee 9 JUGUOCOVUGEGOVGGGOGVGOCCRUGECCGCEGGE ¢ © é c c c & ¢ c c c c c c > 3 > > 2 3 Ut In Memorian de John Coltrane Tean Gebser Hermann Hesse + Sufi Hazrat Inayat Khan Hans Keyser Prefécio de Fritjof Capra As descobertas da citncia moderna ¢ as idéias desenvolvidas em Varios movimentos sociais estio, no momento, mudando radicalmente a nossa visio do mundo. Lentamente, uma nova perspectiva da realidade std surgindo e esta seré o alicerce de nossas fuuras ciéneias, da filo- sofia, da tecnologia, das cigncias econémicas. Este novo paradigma & uma visto holistica do mundo. O Universo nfo é mais visio como um sistema mecanico composto de simples blocos de construgdo, mas como uma complexa teia de relacionamentos interdependentes que, além disso, tem sua prOpria dindmica, Todas as formas estio associadas a processos, todas as inter-relagoes estdo ligadas a inieracOes ¢ 0 oposios se aproximam através das oscilag8es, Na Fisica Quintica,cidncia pioneira da nova visto da realidade, as particulas subatémicas s80 reconhecidas como meros padroes, insepardveis do processo eésimico. No nivel subatSmico, a matéria consiste em padrdes de energia que se ransformam continuamente em outros, numa danga continua de energia. ‘Ao que tudo indica, € bastante stil mudar do conceito de estrutura para o de ritmo para obtermos uma descri¢go coerente da realidadc, capaz de integrar as verdades mais recentes da fisica e das ciéncias da vida. Em todo 0 universo hd padrées ritmicos, dos mindsculos aos gi- gantescos. Os dtomos slo padrdes ondulatérios de probabilidades; as moléculas s2o estruturas vibrantes, € 0s ecganismos vivos manifesiam padrécs oscilatGrios maltiplos e interdependentes. As plantas, os animais © 05 seres humanos passam por ciclos de atividade e inatividade; todas 8 suas fun76es fisiolégicas oscilam em ritmos de vérias periodicidades. Os componentes do ecossistema est8o interligados por trocas ciclicas centre a matéria ¢ a energia: as civilizagdes surgem e desaparecem em ciclos de evolugto, ¢ 0 planeta como.um todo tem seus ritmos € re- petigbes, & medida que gira ao redor do seu eixo € se desloca a0 redor do Sol. i Desde a antiguidade se diz que a natureza da realidade esié muito mais préxima da misica do que da mdquina, e essa afirmacto foi com- provada por muitas descobertas da ciéncia moderna. A essBacia de uma ‘melodia ndo est4 nas nolas que a compdem, esié nos relacionamentos entre ‘as nolas, os intervalos, as frequléncias e os ritmos, Quando uma corda comega a vibrar, no ouvimos $6 uma tinica tonalidade; captamos tam- bbém as suas subtonalidades — toda uma escala res:oa, Assim sendo, cada nota subentende todas as outras, da mesma forma como cada particula subat6mica implica todas as demais, segundo as dhtimas postulagdes da fisica das particulas. Este livro analisa a antiga proposigo hindu de que “o mundo é som” —Nada Brahma em sinscrito eldssico — oferecendo numerosos exem- plos da ciéncia moderna, da arte, da filosofia, ¢.de vérias wadigbes espirituais. Joachim-Emnst Berendt € indubitavelmente qualificado para conduzir essa andlise, considerando-se que dedicou toda a sua vida pro- fissional & miisica, com uma longa e destacada carreira como critico de Jazz, produtor de discos, concertos e programas de rédio. Com entusias- mo maravilhoso leva o leitor a uma viagem airavés do micro © do macrocosmo, da “harmonia das esferas” as cang6es dos golfinhos, das baleias © outros “sons maritimos”, A viagem continua através do “entre- lagamento” dos padr8es rimicos da comunicagzo humana, das vibragBes das moléculas dos dtomos. Berendt estende a noglo de ritmo também 40s, ‘ritmos estdticas” dos cristais, aos padrdes estruturais regulares dos ‘organismos vivos, © & “geometria sagrada” presente em eédigo nas gran- des catedrais européias. Portanto, as “érbitas planetirias”, as formas das fothas ¢ dos corpos, das igrejas € dos mosteiros Gbedecem todas as leis da harmonia musical... Na opinio de Joachim Berendt, 0 padrto universal dindmico nao cconsiste somente em vibragao. A palavra & som, porianto isso significa que ele vibra em proporcdes harménicas, O autor nos chama a atenglo ata 0 fato de que 0 universo opta com visivel predilesto — dentre os bilhOes, de vibragSes possiveis — por aquelas poucas mil que tém um sentido harmonica, © que nos leva a questionar: por que o mundo & 140 hacmonioso? Uma resposta surpreendente a essa excitante quesiBo foi roposia por uma teoria recente sobre os sistemas vivos. Segundo essa teoria, nés no percebemos um mundo que existe de forma independente: para sermos mais precisos, nés 0 criamos com os nossos processos de ercepgao ¢ cognigdo. Em organismos vivos diversos, como plantas, animais ¢ seres humanos, esses processos diferem pois disp6em de érgios de percepeo diferentes, 0 que os leva & criag8o de mundos proprios. 2 Desse ponto de =ista, 0 fato de s6 observarmos as vibragdes harmonicas do universo ngo deve nos surpreender. E natural que, se 0s nossos 6rgaos dos sentidos st0 harménicos, o mundo que cles criaram s6 poderé ter um “sentido harménico". Para 0 autor, a compreensto de que o mundo & som tem implica- g0es profundas nao s6 para a ciéncia ¢ a filosofia, mas também para a fossa vida cotidiana ¢ a sociedade, Ele argumenta que hd alguns séculos ‘a nossa cultura ocidental vem dando énfase exagerada 8 visto, em de- tcimento da audigéo, Portanto, a nossa atuaLmudanca de paradigma inclui, segundo Berendt, uma modificagto essencial dessa énfase, da visto para 1 audigho, Com exemplos irspressionantes, ele mosira que essa modifi- cago de “olhos” para “ouvidos” coincide com 2 mudanga dos valores masculinos para os femininos, que tantas vezes tem sido associada & nossa ‘wansformagio cultural — ou seja, da andlise para a sintese, do conhe- cimento racional para a sabedoria intuitiva, do dominio ¢ da agressivi dade para a ndo-violéncia e a paz. Fritjof Capra 13 GEVVCECCECELLOGGCOBEGCOOGLOGEE Gs }GGG c c Cc c c Cc CC ° c c c co c co c . o 2 2 > > ov > Introdugéo 1 Comecei a elaborar Nada Brahma no rdidio — na strie de concertos musicais vespertinos da Sudwesifunk (Rédio Sudoeste]. Creio que isso ficou perceptivel no cardter de colagem, H4 mulias vozes falando. Essa a caracteristica do rédio ¢ ev quis preserva-la. O som, tema deste livro, também € uma consonéncia. Um acorde composto por muitas vozes. De Lao-Tsé a Niels Bohr. De Pitégoras a John Coluane. Dos salmisias 2 Hermann Hesse. Do mesire zen Hakuin a Heisenberg. Quero que fique bem claro que abdico da posig4o de autor. Em determinados capitulos do Nada Brahma, 0 livro se \ansforma numa “composigao”; 0 autor se torna alguém que retine opiniges, Deixa de ser lum mero autor que fala, Hé, na realidade, muitos autores. AS vozes que se manifestam nesta obra ado periencem apenas & cincia moderna, mas também as citncias da antiguidade. Tudo — ou quase do — 0 que esté escrito neste livro sempre fez parte da huma- nidade. Acontece que a humanidade reprimiu esse conhecimento, ndo quis mais saber dele. A Sidwestfunk roceties intimeras cartas depois das transmissoes de Nada Brahma; na verdade, foi 0 maior yplume de correspondéncia jd registrado no amblto dos pregramas culturais. Surpreendente foi o niime- 0 de ouvintes que nos excreveu sobre o fato de sempre terem tido “a impressto de conhecer tudo aquilo no seu intimo” © que as transmissbes na verdade serviram para que tomassem consciéncia do fato. Por con~ seguinte, Nada Brahma talvez seja 0 sinal do processo de conscientiza- 80 que ocorte-nesia geragio, 1s I Este livro trata de uma nova consciéncia, cuja presenga crescente € sentida até mesmo por aquelas pessoas que a recusam, Os futurdlogos, os ecologistas, os defensores da paz, os cientistas com orientagao cibernética que ainda nao estio sufocados em sua espe- cializago, os médicos que enxergam além do véu que encobre sua medicina acedémica, sempre tomam a nos di fa nfo chegou a hora. Nesta época em que a humanidade gasta milhoes de ddlares por ‘minuto para sua possfvel extingto, pode-se prever 6 fim de todos n6s. E € essa a nossa experiéncia: seja 0 que for que o ser humano possa zer", ele acaba por realizé-lo, Os indicios de que ocorrerd algo horrivel se acumulam, Antes, s6 as pessoas intuitivas sabiam disso: agora, quase todos sabem — e quem ndo sabe pode ler nos jornais, pode sentir em seu local de trabalho (ou no fato de ter perdido o emprego), no bolso, na sai- de e na qualidade de vida, em todos os “sinais” que nos so dados cons- tantemente (¢, que, com a mesma consténcia, desprezamos). A cada ano, uma frea do tamanho da Repdblica Federal da Alemanha se transforma ‘em deserio; até 0 final do século, de 60 a 70% das florestas que até hoje formaram a paisagem nfo-urbana terdo desaparecido: dos 437 mil (no m(- ‘nimo) a 1.400 mil de espécies bioldgicas — ou soja, 60% das que exis- tem — estardo iremediavelmente extintas até 0 ano 2000 (tendo-se em vista que, desde o despontar do século XVI até o comeso da Segunda Guerra Mundial, foram exterminadas 100 espécies de mamfferos ¢ 150 de pissaros por interfertncia do homem!). E causa espécie 0 otimismo dos homens; na realidade, é bastante incompreensivel que a maioria das pessoas ainda acredite que a morte v4 se deter exatamente diante da sua Dropria espécic, numa época em que 0 conceito de hecatombe — 1 mi- Ingo de mortos! — ¢ largamente incutido no raciccfnio dos politicos ¢ Jornalistas pela eérebro perverso dos militares. Como diz Christa Wolf: “Encarar a verdadeira situagto do mundo é psiquicamente insuporiével." Nos anos 60 divulgou-se através da imprensa mundial 0 que os membros do Peace Corps americano haviam constatado na Tanzinia ‘em outros Estados da Africa Oriental: apesar de todo 0 dinheiro gasto € de todos os esforgos despendidos, sé colheram resultados negativos. A situago dos paises que 0 Peace Corps sc propés ajudar, na verdade piorou ~tanto do ponto de vista econdmico, como agrondmica, industrial, social e ecolégico. Os membros do Peace Corps elimentaram computadores com (8 dados de problemas ¢ de algumas solugdes, mudangas e propostas para ‘melhorias bem amplas, de acordo com as recomendag6es de cientistas € 16 politicos. Resposta do computador para qualquer proposta que se Ihe apresentasse: “deterioragio!" Respostas semelhantes foram obtidas de ‘computadores consultados acerca do crescente descontrole nas metr6po- les americanas, afticanas e asidticas. A cada medida cientifica sugerida, cles simplesmente respondiam com ume negativa, © matemético, fsico ¢ pedagogo Claudio Hoffmann cscreve em sou conciso ¢ polémico livro sobre a ciéncia moderna: “O raciocinio cien- fico esid diretamente relaci¢nado com as graves ameacas & humanida- de, causadas pelas catéstrofes ecol6gicas, pelo armamento nuclear, pelos males sociais, econdmicos, fisicos e psiquicos. Contudo, no & possivel deniso das diteirizes essenciais da ciéncia moderna, criar solugoes ef ccazes para a eliminagdo dessas ameacas. Na verdade, qualquer proposta descnvolvida € executada com os meios ciemlficos aluais & disposiguo ‘ngs aproxima ainda mais da catéstrofe." Na ocasitio em que li 0 artigo sobre os resultados do Peace Corps, perguntci-me de imediato por que os computadores ndo cram também alimentados com “modificagbes de consciéncia” — com esse novo racio- cinio € esse novo semtimento cristalizados em nossa época ¢ que, com certeza, sto mais “anti” do que “pés-cientificos”. De uma coisa.tenho certeza: se tivesse havido pessoas capazes de implantar-Ihes programas com essa significativa possibilidade, 0s computadores teriam respondido afirmativamente, indicando-a como a tnica saida ainda possivel. Enquanto isso, 0 fantasma da ingovernabilidade também surgiu nos pafses industrializados, ¢ alguns deles tém hoje problemas ainda maiores o que os do Terceico Mundo. Em meados dos anos 80, liamos todas as ‘semanas as manifestagbes de politicos ativistas que declaravam estar con- lando com a guerra atOmica; ¢, a0 que parece, os preparativos esto avangando "a todo vapor". O que até agora era tide como um absurdo arsenal defensivo do mundo ocidental, foi transformado, ¢ isto sem que 8 opinifo pablica tivesse sido informada a respeito, em “capacidade de iniciativa de ataque”, portanto, em ofensiva aiémica. Mesmo que sej ‘mos poupados da morte por agressto atdgica, a catdstrofe na Terra parece estar antecipadamente programada. Nests tiltimos anos, todos nés temos ouvido dizer, ou lido, dizias de vezes, que s6 uma nova consciéncia é capaz de nos salvar. No entanto, também ouvimos reiteradamente a seguinte pergunia: de que adianta eu desenvolver essa consciéneia em mim (por meio de uma mudanga ou revisko em minhas idéias, através da meditagto ¢ de vérias outras pos- idades que a vida oferece), de que adianta cu fazer isso, de que adianta eu retirar-me a fim de construir a minha prépria evolugao, se Id fora, no "1 ¢ ¢ < q q & 3 3 2 oo o o 5 ° °° 2 o ° ° 3 2 600 VUULCUUVUVYUBDVVVDOVEODOHNO0G000 mundo exterior, as circunstincias de vida vém puorando progressivemen- te? Numa situapto dessas, nao serd preferivel ajudar os outros em vez e pensar em mim mesmo? Porventura nflo seri narcisismo e egocenttis« Mo eu me ocuper 0 tempo todo com meu préprin bem-estar? Também para essas quesiGes hd rospostas, dadias por virios dos sdbios que serto Citados nesta obra, desde os pensadores asidticas e os mestres zen do Japso, ‘até Hermann Hesse, Sderates ¢ Erich Fromm, Nés somos 0 mundo. 1ss0 significa que néo podemos mudé-lo, a menos que antes modifiquemos a 6s mesmos. Qualquer outro caminho é absurdo. O mundo ndo esté ‘melhorando; ao contrério, esté cada ver pior, porque tentamos introduzit znas solugdes politicas, econdmicas e sociais, aquilo que nem sequer se enconira em ordem dentro de nds mesmos. E por isso que — como disse Hans Magnus Enzensberger em ceria ocasito — “os projetos do século XIX foram todos falsificados pela histéria do século XX". Inimeras tentativas para solucionar determinadas situagOes ge risco e de erise — desde a Segunda Guerra Mundial — por mais promissoras que pudessem parecer a principio, comprovam um resultado de miséria ¢ desilusio. Revoluciondrios bem-sucedidos, passado algum tempo, assemelharam-se Aqueles que queriem destituir. Como se sabe, os computadores responder — inclusive no munido ocidental — com a palavra “deterioracgo!" Mas até que pono podemos mudar 0 mundo, modificando a nés ‘mesmos? Dorante séculos no houve resposta a essa questio. Simples- ‘mente aceitava-se esse estado de coisas. Todas as mudangas radicais em pocas histéricas ao alcance de nossa visto foram, principalmente, mudangas radicais de consciéneia. E Cécil reconhecer iss0 na época da Renascenga e da Reforma, mas também antes, por ocasido das mudangas ‘scorridas na Epoca de Transigdo quando, do mundo antigo, surgiu um novo mundo. Guerras, revolugtes, novos estilos de vida, novas formas de sociedade, descobertas — sto, processos que comegam na cabega, ‘Tudo o que se modificou profundamente mudou primeiro na cons- ciéncia de cada ser humano, $6 depois ¢ que se vansformou o mundo ‘em que vive a coletividade humana. Talvez hoje saibamos a razto de isso ser assim, 0 que também fez parte da temética deste livro. Os sdbios asiéticos e as antigos egipcios diziam “que tudo é um", Tanto se podia acreditar nessa afirmag30 como ‘nao. Nesse meio tempo, a moderna fisica at6mica, a complexa teoria da relatividade de Jean E. Charon, as descobertas de um grupo de fisicos de Pasadena e de Princeton, a chamada Fisica bootstrap, o fendmeno da holografia, ¢ outros de que ainda iremos falar, comprovaram que de fato “tudo € um", de tal forma que 0 nosso intelecto pode compreendé-Io 20 18 ‘mesmo temo cientifica, matemdtica ¢ experimentalmente, Contudo, se “do € um", @ conscientizagdo de uma pessoa modifica a consciéncia de milhares de pessoas; a conscientizaclo de um milhto de pessoas pode modificar a consciéncia de 100 milhtes de individuos, ¢ a conscitncia desies 100 milhdes pode modificer a de um bilhto de seres humanos.O fisico atémico francés Jean-E..Charon.diz que os verdadeiros substratos do espirito s8o 0s nossos elétrons € tons: “Somos os nossos elétrons” no dizer de Charon. "O que nos faz raciocinar sio 0s nossos eléirons.” ‘Uma pessoa que pese 60 quilos subsiste gragas a um doterminado niime- ro de eléwrons que podem ser represeniados pelo nimero 4 seguido de 28 zeros. Hé muito mais elétrons no universo do que esuelas. E, conside- rando-se que os fisicos calcularam que, em cada um de nés, ainda exis- tem elévons expirados por Buda, por Jesus, por Lao-Tsé e por Maomé, ‘do restam mais dividas: os “elétrons pensantes" que estio em voc®, esto fem mim e os meus “elétrons pensantes” também estfo dentro de voct. Hi, pois, indicios — tanto fisicos como cientificos — de que a nossa consciéncia pode realmente modificar o mundo: basta analisar a histéria ara constatar esse fato. Todavia, visto que nio existe um caminho al- ternativo, e considerando que os politicos, os cientistas e os economistas Jf nfo sabem mais o que fazer (€ até os mais conscientes dentre eles dmitem que nao véem safda), convém seguir o caminho da nova cons- citncia, Ao menos, valeré a pena tentar. m1 Muitos pensadores, cinntistas, psic6logos, fil6sofos ¢ escritores de destaque descreveram e ciscunscreveram a nova consciéneia. Existe todo tum acervo literdrio sobre ovassunto, Mas existe um aspecto do tema que ‘ngo ¢ mencionado em nenhum lugar: que hé uma consciéncia das pes- 5085 que ouvem. Os olhos nko terdo mais um predomfnio em relagto aos « ouvidos, como acontece hoje, mas, a0 conigério, estes predominartio sobre agueles. O audfvel, 0 som, seré mais importante do que o visivel. (Trata- se Wo-somente da relagto desproporcional com que favorecemos nossos ‘olhos em detrimento de nossos ouvidos: pois tanto estes quanto aqueles ‘slo drgos nobres, indispensdveis ao organismo human.) A pessoa que vé, analisa, separa as coisas em partes. Isto se torn tansparente quando se dé importincia méxima & visto, olhando, por exemplo, um objeto através de um microscdpio eletrénico. Nesse aso, até coisas que pareciam indivisveis, tomam-se divisiveis, Os olhos sto tgtos maravilhosos e, quanto melhores, mais “penetrantes” ficam. Ser 9 ortante”, “penetrante" é propriedade das facas ¢ das tesouras. O horsem da visdo acumulou de tal sorte a racionalidade que, hoje, estamos assis- tindo & sua rufna. Na era da televisto, as pessoas que sé véem se deixam conduair ad absurdum (para o absurd). Elas jé ro enxergam mais 0 mundo, véem apenas suas imagens ¢, embora pareca incompreensivel, ‘contentam-se com elas, Ou, num tom mais provocador (ao longo do livro tudo hé de ficar mais claro): o ideal mais estupendo e elevado da visto humana s80 os, “olhos de guia", A guia espreita sua presa, langa-se sobre cla e a arrebata, Esse é um ideal que corresponde ao homem ocidental, ao homem ‘que se acostumou a considerar todo o mundo como sua presa. um ideal bonito, mas agressivo, ou seja, um ideal cheio de perigos em nossos dias. © s{mbolo dos ouvidos é'2 concha que também simboliza 0 érgio sexual ferinino — simbolo da receptividade e do aconchego. A vida nfo 6 analisada; é aceita em si como um todo, no sentido que Ihe atribui o fil6sofo sufgo Jean Gebser: ela ¢ a “realidade” que esté af. Por outro lado, os ouvides também tm sua percepeto e até mais acurada que os olhos e 0 tato — como se comprovou fisiolégica, fisica © matematicamente (¢ como demonstraremos neste livro). Os antigos ehjneses consideravam os olhos um érgio Yang dos sentidos, ou sei ‘masculino, agressivo, dominador e orientado para a azo, para a super- ficialidade e para a andlise, 20 passo que 0 ouvido é-um érgto Yin fe- minino, receptivo, prestativo, intuitivo e espiritual, que perscrula 0 in- terior € que encara 0 todo como Um. 1 Exige-se 0 tipo Yin de percepelo para entender este livro, Nada Brahma, oferecido como um trabalho Yin, visto que se destina 20 ser hhumato que Youve”, Para este, o todo é mais importante do que as pares. Ajsintese € mais importante do que a andlise, Os inter-relacionamentos sip ais importantes do que a especializacto, 1 sMesmo assim, é preciso ter consciéncia das muitas partes para poder petceber 0 “todo”, O conhecimento de uma pessoa isolada sobre as, “partes” € necessariamente limitado, Preciso confessar, no entanto, que {sg nfo nos deve levar — como tem acontecido com muita freqléncia ‘ng passado — a dar a palavra aos especialistas, pois eles, facilmente, petdem de vista o todo. Também a nossa incapacidade nzo nos deve impedir de compreender “O todo como Um" e de apresenté-1o como tal, “Por tris das partes sempre existe algo indivistvel. Por wis do que se discute sempre existe algo que nto & passivel de discussi Meu interesse pela audig8o foi um bom ponto de partida: minha cexperitncia me diz que o homem modemno se perdeu devido & hipertrofia a . da visto, © que j& ndo consegue ouvir de modo adequado. Eu queria escrever um livro sobre a aulligdo, mas eu mesmo fiquei surpreso porque ele também acabou se tornando um livro espiriwal. Inda vai ficar bem claro por que € assim e por que tem de ser assim. A deterioragao do nosso sentido auditivo desenvolveu-se paralelamente 20 processo de seculati- zagdo, a que nos referimos como “o distanciamento do homem ocidental em relagdo & visto de Deus”. Que 0 homem moderno “nto dé mais ouvidos a Deus” jé € fato de conhecimento geral, que eu nem mencionaria aqui, nZo fosse verdade que a expressio "dar ouvidos 2 Deus” também é dificil de ser deixada de lado. © homem moderno nfo ouve mais a Deus. O homem moderno simples- mente nfo ouve mais. A primeira afirmagdo & teoldgica: a segunda pode ser comprovada, por exemplo, pelo faro de que, a despeito de toda a nossa avangada tecnologia, nés evidentemente no achamos necessério acres- centar aos nossos aparelhos de televisto um sistema de som que refi as nossas possibilidades técnicas. As duas afirmagdes esto intcr-relacio- nadas. Isso ficaré bem claro mais adiantc ‘Sempre que Deus se revelou aos seres humanos, Ele foi ouvido. Ele pode ter aparecido como luz. Todavia, para sor cntcndido, Sua vor teve de ser ouvida, A expressto “E Deus disse", est em todas as escrituras sagradas. Os ouvidos sto 0 meio de acesso do receptor. © Ambito da visto ¢ a superticie, O Ambito da audicto € a profun- didade. Os olhos vem o superficial. No entanto, nada do que é perce- bido peta audicgto deixa de penetsar a fundo. Sim, mesmo quando ouvi- mos algo superficialmente, hi maior penetragto do que quando apenas vemos algumma coisa, pois 0 olhar que s6 detecta a superficie nao vé além dela. A pessoa que ouve tem mais oportunidades de aprofundar-se do que aquela que apenas vé. ‘Tudo 0 que lem sido dito nos dltimos anos sobre a nova conscién- cia & correto € relevante, mas deixou-se de dar atengo 4 um ponto: 0 novo homem terd de ser um ouvinte — ou entdo nao serd nada. Ele serd capaz de perceber sons de um modo que Abje nem sequer podemos Binar, Esses sto 08 sons abordados em Nada Brakma, Esses sons sto Nada Brahma. E certo que leitores ¢ ouvinies me lembraram — ¢ com razto — de que também teremos de reaprender a ver corretmente. Contudo, j& sofremos com a énfase exagerada dada & visto, No mundo ocidental existe ‘uma tradigéo admirdvel e um culto aos olhos, & visto e & luz: essa ua digdo remonta & Renascenga ¢ até 20 mundo grego. Nao hé nada no mundo que se compare Aquilo qué se refere & audigto. a SCVCVUGBECEGEGECEGLCEGCOGCELGEGAEG eee u OnNnN00bg0: VUUVUUUYVOVOVUBBVONHOOO00NN HOE A profunda modifica: dz nossa censciéncia (e 6 incontestével que Precisamos de uma nova consciéncia, de uma nova percepsdo de mundo, serd alcangada quendo aprendermos a usar inteiramente 0 nosso sentido da audigZo, tal como vimos usando nossos olhos © nosso sentido de visto ha séculos, 5 og and? tivermos reaprendido a ouvir também poderemos corrigir 8 nossa hipertrofia dos olhos. $6 ento compreenderemos — como disse Goethe (um homem de visio) — que “os olhos do esptrite tém de ver em unissono com os olhos fisicos, caso contrdrio hd o riseo de ficarmos othando ©, no entanto, as coisas passarem despersebidas”, Iv Em tés grandes viagens para apresentar o livro Nada Brahma na Alemanha, na Su(ga ena Ausiria ouvi muitas peesoas me dizerem que olivro “é volumoso demais". Essa critica partu principalmente de gente Jovem, exatamente daqueles que se sentiram mais atingides por Nada Brahma. Foi com 0 coragao partido que decici eliminar dois grandes capttalos, “Os miisicos como cidadaos do mundo” “A india e 0 jazs" que continham dados especificos. Muitos leitores das cinco primeiras ‘edigdes deixaram de Ie-los. No entanto, na edigto encademada eles foram mantidos, <=n2Contudo, € compreensivel que'a parte relativa a Nada Brahma nso {enka sido reduzida; so contrério, foi complementada com muilas sepbes ovas, vérias correcdes ¢ inimeras anotagbes. Agradego principalmente a Rudolf Haase, 0 mestre vienense da pesquisa das bases dos harméni- Cos, as sugesibes para 0 aperfeigoamento do livro. ‘Ao escrever Nada Brahma, eu n&o podia imaginar como setia gran- do-a sua repercussto, Ao contrério, pensei que, depois de ter escrito tanto sobre jazz, teria ocasito de escrever apenas para um pequeno efrculo de Teitores, E este trabalho € fruto de um caminho espiritual pelo qual caminho desde 0 inicio dos anos 60 — desde quando encontrei o musico de jazz John Coltrane ¢ depois de minhas viagens & Asia. Na ocasigo me surpreendi — ¢ continuo me surpreendendo até hoje — com 0 fato de © chreulo de leitores de Nada Brahma ter se tomado maior nos limos ‘anos do que 0 dos leitores dos meus livros sobre jazz, O capitulo que mais chamou a atengio fol aquele sobre a audigzo: “O templo no ouvido," Nenhum deles foi tio comentado, debatido, {ado'e mencionado como esse. Os leitores entenderam ‘a mensage “Ouca, pois assim a sua alma viverdl" (Fesaja). Ougam ¢ assim sobre- 2 viverdo! Esse capiuite for ampliado e se tornou o “trampolim” para um ovo livro: 4 Terceira Audi¢do— Ouvindo o Mundo (Rowoblt, Reinbek de Hamburgo, 1985). Nele tentei responder as perguntas provocadas por Nada Brahma, tanto para mim mesmo como, 20 que sei, para muitos Ritores, Por que a evoluglo diferenciou com tanto cuidado 0 nosso sentido a audigto? Por que ela ocultou precisamente no sentido da audiglo a capaci- dade de avaliagdo — a matemdtica? E por que € que nessa evolugto se cults, a0 mesmo tempo, a capacidade da transcendéncia e, acima de tudo, 4 capacidade do equilforio? Por que os dados que recebemos dos ouvidos sto to mais exatos 0 que os da visio? Por que 0 alcance do que podemos ouvir é to maior — exalamente dez vezes — do que 0 alcance do que podemos ver?‘O que esse fato sinaliza para nés? Por que, nesses iltimos wezentos anos, ou seja desde Galileu, Descartes, Bacon, deixamos de compreender esses sinais Qual seré a nossa vantagem se voltarmos a entender esses sinais? Qual a vantagem de trabalhar cuidadosa € conscientemente com as con- tribuigdes da biologia, da teoria evolucionisia, da antropologia, da lin- _istica ¢ da sociologia usando 0 nosso ouvido, tal como os cientistas ue usamn predominantemente a visio desde Aristételes? © que a linguagem nog ensina? Por exemplo, o que significa o fato de Veraunfi (Jufzo) — ina das palavras mais apreciadas pela nossa ivilizagao — vir de Vernehmen (captar), portanto, de um proceso auditivo, enquanto que 0 termo Versehen (equivocar-se), oriundo do ‘mesmo radical, designa precisamente um engano, uma ilusto? Por que os homens no dio atengao ao que dizem as mulheres? Por que eles gostam de inverrompé-las com tanta frequéncia? Depois de cuidadosas pesquisas numa Universidade americana, constalou-se que o$ homens interrompem as mulheres 25 vezes muis do que esias, quando eles esto dizendo alg © Por que a frase.""Vocé nem est me ouvindo!” tornou-se (So carac- teristica nos relacionamentos atvais? De que forma a sociedade (e tam- bbém a politica) mudaria se uma frase como essa fosse proferida cada vez ‘menos? Por que as vozes femininas so mais agudas do que as masculinas? Por que motivo a ciéncia convencional ignorou o {ato to evidente de que, ¢m qualquer parte da natureza e da miisica, as vozes agudas tm uma fungao de lideranga? Os insurumentos cuja tonalidade é mais aguda (vio- B linos, flautas, pistdes) tocam a melodia, enquanto que os de tonalidade mais grave (na escala “masculina" — violoncelos, baixos, trombones, tubas) em geral tocam 0 acompanhamento, Estes s6 podem ser conside- rados como instrumentos melédicos quando os mais agudos se mantém em siléncio. Também para se destacar em meio 20 rutdo do winsito es- colhemos instrumentas com tonalidade aguda, “feminina", quando se trata da nossa sobrevivencia: carros de policia, ambuldncias, ¢ outros sinais de alerta. Na verdade, até mesmo os sargentos do exército elevam 0 tom da-voz. quando querem ser obedecidos: “Apresentar armas!” (De cert forma, esses militares simbolizam a supremacta patriarcal.) Na maioria dos casos, a palavra “armas” é emitida em timbre mais alto do que a voz normal do militar, O que seré que a natureza ¢ a evolugdo estfo tentando nos dizer com esse fen6meno? Por que o campo cienufica, dominado pelos homens, deixou de ver, deixou de “ouvir” essas quesiGes? Por que, em geral, a citncia tende a ignorar as questdes relacionadas com a audigio, apesat do ter diligentemente estudado 0s problemas dpticos durante sé- culos? “tinePor que a linguagem criou a palavra CESSAR? Por que ela iden- lifica-o final, 0 término, o “estar pronto” cessando o processo de audi- ‘marcando o'fim' da prépria audigto? ‘Todas essas perguntas também fazem parte da temética deste livro. a v *5°Niina’colegto de’ koans do Zen, compllada m 1783 pelo monge iponés Genro, em Quioto, encontra-se a seguinte sentenga: “Uma dou- trina que'ignora a vida cotidiana nfo 6 uma verdadeira doutrina.” Tudo 0'@ue paréter teGrico demais neste livro adquitird vida nos dois capttulos 46 Apéndice, 2 * Quem ainda nfo tiver compreendido, na pior das hipéteses, com- préenderd no capitulo "0 Zen ¢ 0 Japto de Hoje" que Nada Brahma nto 4 nada esotérico, Pode-se viver o “Nada Brahma”. E preciso vive-lo, Taimbém para o autor, o caminho para o “Nada Brahma” teve de ser vvivido; Apenas posteriormente a experitncia de vida foi seguida pela leitura e pela compreensto teérica Neste final do século XX, a.citncia tomou-se parte da nossa vida, ‘lids, uma de suas partes mais importantes, O “Pds-escrito sobre a citn- cla’ mostraré como suas exiglncias sto relativas e, embora no geral Nada Brahria “seja um livro muito pacifico, aqui é possivel sentir uma t6nica ‘un tanto agressiva, Precisemos de cientistas da mesma forma que temos a necessidade de carpinteiros e de funileios. O que passar disso obra do mal, pois j4 aprendemos: a ciéneia também pode-ser algo perigoso. Ela nto deve mais ser 0 fator determinante de nossa vida, Esses “excessos” também podem levar-nos a uma nova ciéneia, a uma ciéncia de totalidade ¢ de participagto. Ela é 0 meu ponto de re- feréncia, Os grandes fisicos do nosso século foram os primeiros que a revelaram. E por isso que considero a fisica tao valiosa — embora haja ainda outro motivo: a fisica foi a primeira citncia a que me dediquei quando jovem, antes de me dedicar & misica. ‘A imisica € os sons sto importantes, inclusive no cere desta obra. Eu gostaria de ter anexado um disco a este livro, mas isso no foi possivel devide a vérios problemas autorais. Existem porém fitas grava- das: 1. Uma fta eassete dupla “Nada Brahma” (de Wergo, editora Schott, Mogiincia), gravada durante uma apresentagdo no antigo Teatro Munici- pal de Frankfurt, com o cantor ¢ saxofonista Roberto Laneri, o mestre de sarod ¢ abla, Kamalesh Maitra, e Gert Wesiphal ¢ eu mesmo como narra- dores, execulando pegas de Bach, Hacndel, Coltrane, bem como os sons dos planctas, dos pulsares, etc, 2. Duas fitas cassctes “Tons primevos” (ditora Bauer, Freiburg) com os sons da Terra, do Sol, da Lua, bem como 0s sons Shiva-Shakti da tradicSo hindu que também sc prestam a medita- G40 (esses whtimos apenas para meditagto em pares, no sentido do tanttis~ mo), Ambas as fitas vém acompanhadas de um rico texto explicativo. Para ndo tornar a leitura magante, evite as notas de rodapé. Mesmo im, aconselho o uso da segio sobre as fontes de referencia. Além disso, © livro também apresenta uma referéncia bibliografica que contém quase tudo o que vale a pena ser lido a respeito da esfera espiritual de Nada Brahma. vi Para encerret esta introdugto, gostaria de expor alguns pensamen- tos que hé vinte anos carrego junto com $$ meus livros: no devo ter conseguido ficar isento de erros: espero, comtudo, que minhas convicgdes sejam entendidas por parte de cada um. Creio que justamente este livro, mais do que qualquer outro que escrevi, € muito pessoal, Fico muito grato aqueles que me acompanham, mas respeito os que se negam a fazé-lo, IGOOEGSCOCUCGGL CGECGEGCEVELGCVLVZOGGER eo0000n0ncnr oO DOCHONCHOVGOGHHHBHNNN000D ‘ O que Significa Nada Brahma? ‘Nada Brahma & um vocsbulo primitivo da espiriwalidade hindu. B também um vocdbulo antiquissimo da mdsica classica da india, ¢ € a parr desse pais que ele tem de sey explicado. Mas, antes de dar uma expli- cacao, € imprescindivel dizer que este livro nao € sobre a india, a no ser na medida em que sua tradigo espiritual serve de parimetro para a experiéncia espiritual de toda a humanidade, Este livro trata sobre nds mesmos. Ele diz respeito 20 homem ocidental moderno. © que dissermos sobre paises e tempos retnotos — desde que corretamente interpretado — é congruente com os conhecimentos cientificos modernos no campo da cosmologia, da morfologia, da biologia, da mitologia, do harménico, da astronomia ¢ da fisica quintica. Os sdbios da Asia jé hd cerca de ues mil anos conheciam muitas coisas de que ainda iremos falar ¢ que sao ondossadas pela cigncia moderna, Portanto, Nada Brahma. Nada, em sBnscrito, significa “som”. Nos dicionétios, a palavra também & definida como “tom estridente, barulho, ruldo, gritaria”, Além disso, nadd também significa “touro", touro que “do “grito", ampliou-se a acepga0 que, de “som, passou a significar “touro". Antes disso, houve uma outra mudanga de sentido, por semelhanga com o vocdbulo addi, que significa “corren- "mas também “murmurante, ressonante, sonoro". Do murmiirio 4o rio para 0 murmdrio do som, Foi assim que do “tio” surgiu 0 “so ‘Nadi também & usado como significado de “correnteza da consciéncia™ no Rigveda, 0 mais antigo dos livros sagrados dos vedas indianos, que data de mais de quatro mil anos. A relacdo entre som e consciéncia, tema deste livto, j6 havia sido documentada pela linguagem escrita. E 0 con- a ceito de “correnteza-som” & antighissimo, existe desde que nasceu a primeira linguagem. Martin Buber o define numa tinica frase: “Podemos ouvir 0 nosso eu interior, ¢ mesmo assim no sabemos qual é 0 oceano que marutha em nés.” ‘Num tinico pardgrafo “juntamos” os elementos tom, som, sussurro, touros berrantes, rios murmurantes ¢ 0 marulho do mar. A palavra grega para “unit €-symbdilein, Ela também significa ir & luta, empresiar di- nheiro, pagar uma conta, imerpretar, explicar, encontrar, esbarrar, trocar ‘murros, lutar, e, Finalmente, entender. A palavra simbolo vem de sym- ‘béllein. Criamos simbotos. Para qué? A resposta a essa questio esté no segundo vocdbulo do titulo: Braima. Brahma é, 20 lado de Shiva ¢ de Vishnu, uma das u8s principais divindades do Hindusmo, As outras, hierarquicamente inferiores, na ver- dade nfo passam de reencamagdes dessas trés. Os hindus falam em Trimurti, 9 trindade constituida por seus tr8s deuses principais, Os te6- logos cristios wagaram paralelos com 2 irindade integrada pelo Pai, pelo Filho e pelo Espirito Santo, ¢ com todas as demais trindades espathadas pelo mundo. 7 Falar da trindade significa — tanto no Hiridufsmo como no Cris- tianismo, bem como em todas as outras religibes em que cla exisia — dizer que, em ikima andlise, ela é uma unidade. Quem fala em Cristo std se referindo a Deus; quem fala de Deus, esté incluindo-na definigio © Espfrito Santo; e, quem menciona o Esplrito Santo est se referindo a Cristo © a Deus, Quem fala em Brahma, ou Shiva;ou Vishnu, na verdade ‘est mencionando © Maior Prinefpio Divino do mundo hindu, Nese sentido, o Hindusmo também nao deixa de ser uma religigo monotetsta, {sso:fica bem claro, entre outras coisas, na forma especial do “Hinduls- ‘mo primevo” que era seguido em Bali; pode-se sentir que o grande nimero deideises principais, auxiliares ¢ subordinados (cuja origem & anim(sti- 2; bem como hindu) “amelgamado” num s6 Deus. ‘Em um dos dicionérios que consultei encontrei 0 seguinte: “Brah- ma (sinscrito) originalmente, uma f6rmula magica hindu, posteriormen- te entendido como um vocEbulo primitivo eriativo, alicerce do mundo e da sabedoria sagrada, Brahma tomou-se 0 conceito central da cosmovi- sto hindu, Ele € Um com a consciéncia interior do homem,” Pertanto, ‘em primeiro lugar, Nada Brahma significa: som & Deus, ou, em inglés (vamos descobrir que a tradugdo 6 bastante significativa): Sound is God. , vice-versa: Deus € som, No entanto, Brahma, 0 Criador de Tudo, é mais do que Deus. Ele 6 idéntico ao que criou e em que esid constantemente presente. E por isso 28 que Ele € muitas vezes representado com quatro cabegas que olham para ‘9s quatro pontos cardeais do mundo, Dessa forma, Brahma também sig- nifica 0 universo. Brahma & 0 cosmos. ‘Como prinefpio, Brahma, o assim-chamado Brahman, é 0 poder primeiro do cosmos, a consciéncia interior do homem ¢ de todas as coisas vvivas. Os Upanishades que juntamente com os Vedas — dos quais fazem parte — formam o mais antigo ¢ importante documento escrito da filo- sofia hindu — tém um nico tema central, incessantemente remodelado com uma grande riqueza de idéias. Brahman € wdo. “Brahman 6 0 absoluto, Tudo o que existe 6 Brahman ou a Palavra Sagrada, que nto pode ser explicada, Ela ¢ incondicional ¢ indefinivel. # a alma do mundo que contém em si todas as almas individuais, assim como o oceano contém todas as gotas de gua que © compoem, Brahman € vid Brahman ¢ alegi Brahman € 0 vazio. Alegria, na verdade, 6 0 mesmo que vazio. E vazio ¢ © mesmo que alegria.” Seguindo a tipica racionalidade oculental, meu dicionério 4 a seguinte defigicdo: “Brahman: elemento bisico interior e forga ativa de todas as coisas ¢ de todos os acontecimentos matutais © hist6ricos. E Brahma diz. sobre si mesmo (nos Upanishades): “Bu sou 0 criador, 0 ttero do universo: fui criado a partir da minha propria gsséncia. Sou 0 tnico Senhor, sou a palavra mais elevada sem comego, ‘Quem me adorar como tal serd salvo. Concedo a todos os deuses 0 préprio existir © ponho fim as suas obras , em lugar algum do mundo encontrario ‘quem seja maior do que eu.” 29 | i PCCVUSEOCECEGELGLLGEGCOECECOOQGDG00GREG e Cc N0n0NnKGee GCBPNHGe0C en9HNHFgnnnnAAAANnoO A: As palavras Brahma ¢ Brakman vém do radical sdnserito bri, que significa “‘crescer". Tudo 0 que cresce, tudo 0 que tiver vida —- © nas ‘cosmologias dos antigos sdbios brimanes, bem como nas dos modernos astrofisicos, tudo esté crescendo, até mesmo o universo — tudo é Brahe ma e Brahman: a indivisivel unidade de todos os seres. Portanto, Nada Brahma ni significa apenas Deus, 0 Criador. E som, mas também, ¢ acima de tudo: a criagdo, 0 cosmcs. O mundo € som. E © som € 0 mundo, Mas Nada Brahma também significa o som 6 alegria. & até 0 6 som, Enfim: o espirito e a alma sto som, © vocébulo Nada, som, ¢ to importante como 0 vacdbulo Brahma; assim como o princ{pio eésmico Brahman significa a palavra Deus, ‘Agora ja ficou claro que 0 som & um conceito central do mundo- ‘Nada, O Nada-mundo. O som-Brahma. A palavra-som, O verbo é, do “mundo” “som”, pode ser deixado de lado, Nada Brahma € U som primevo do ser. Eo proprio ser, E neste ponto que sc inicin a nossa “viagem™, 4 tomamos conheci- mento do que ¢ Nada Brakma, iniciamos a viagem auravés do macrocosmo ‘do microcosmo e por toda a parte deste mundo em que vivemos pergun- tamos 20s fisicas at6micos, astrdnomos, cosmélogos, mateméticos, biélo- -g0s € evolucionistas, bem como a quimicos, boténicos, metafisicos, estu- 4iosos da cibernética, misticos ¢ racionolistas, conhecedores do Budismo © do Zen, do Hindufsmo, do Istamismo e do Cristianismo; perguntamos 4205 musicistas, aos mésicos orienta ¢ ocidentais, aos etnélogos, aos lin- ‘ists, 20s especialistas em lendas, mitos e contos de fadas dos povos do mundo; inquirimos cientisias e também os que recusam a ciéncia por con- siderd:la um perigo: perguntamos aos homens de hoje bem como 20s s4- bios orientais e ocidentais do passado: perguntamos aos que viajaram pelo ‘Japtoe pela China, que passaram por Bali e pelasithas polinésias; fizemos ‘4 pergunta no interior da India ¢ no Tibete, na Pérsia € no Egito, na Amé- rica do Sul, do Norte e na Africa: O mundo 6 som? Em caso afirmativo, até ue ponto ele é som? Até que ponto o mundo serd um grande, inimagindvel instrumento musical osmico? E aestrutura do microcosmo, com seus clé- trons ¢ fétons, ser, antes de mais nada, som? Porventura as formas das folhas ¢ dos cristais, o§ corpos dos hagnens € dos animais, também ser8o som? Ea palavra ea linguagem serio também som, num sentido privilegia- 0? E nés? Somos som? Também temos os conceitos de espirito ¢ alma. Eles sto igualmente som? E a relagao interpessoal que denominamos amor, serd que ela se concretiza mediante efldvios sonoros? Somos nds 0s exe- cutantes do instrumento? Ou serd 0 acaso? Ou quem mais poderd s8-lo? ° 30 II Nada Brahma — Como Koan e Como Mantra Inclusdo de um Debate sobre a Légica ‘© mundo é som. Imediatamente, pOe-se a questo: que tipo de som? ‘Trata-se de uma questto-chave, pois, pelo fato de o mundo ser som, fazer ssa perguna significa o mesmo que perguntar qual a substncia prime- ‘va do mundo — no sentido da Fisica, que coloca quest6es sobre os étomos, ‘95 neutrons e prétons, os f6tons, os quarks e as Iéptons ¢ todas as outras particulas elementares de que se compde 0 nucleo atémico, o qual cons- titui © universo © a nés mesmos. Como veremos, existe uma intima correlagto entre essas duas quesides. (Os mesires zen japoneses costumiam fazer a seguinte pergunta a seus discipulos: "Se vocd anular os seus sentidos € 0 som, ‘0 que € que voct ouve?” ‘ Um dos grandes mesures zen do século XI formulou essa questto. Ela ¢ feita hd séculos nos mosteiros zen do Japio. &, portanio, uma Pergunta tradicional. Os japoneses conhecem-na por koan. Kean, em chinés kung-an, significa, originalmente, “documento piblico” ou “de- clarago publica”; por certo o koan usado pelo Zen nao é mais um “boletim” pibiice, mas coavém guardar esse conceito na meméria. Koans so matiers of fact; sto dados & pessoa que medita, que terd de se orlen- tar por eles e ver como consegue resolver o enigma, 1 a Koans sto férmulas, indagagdes, incumbéncias que despertam a ‘apartncia da racionalidade ¢ que, no entanto, no podem ser resolvidas racionalmente. Esses aspectos 86 podem encontrar solugdo através da meditagtio, Cada qual s6 pode solucioné-los para si mesmo. Ninguém pode ‘tomar sobre sia solugto encontrada por outrem, Se eu tivesse a resposta a registrasse aqui, ela nfo teria nenhum sentido para os outros, muito ‘embora possa ler modificado a minha vida. A resposia a um koan produz © efeito de modificar uma vida E necessirio fazer essa pergunta — ou formular esse koan — muitas ‘vezes, Questionar é mais importante do que dar uma resposta, A pergun- ‘1a jd implica uma resposta, Os mestres zen dizem: a pergunta 6 0 cami- nho. A palavra “caminho”; tao para os chineses, do para os japoneses, ‘sempre teve conotagSo espiriwal, mesmo antes de se dizer de que cami- nho se trata e para onde ele conduz. Convém meditar sobre isso. © discipulo zen esté “no” caminho, Ele se faz freqilentes indaga- ‘gbes, Ele se senta para meditar , uma vez na postura correta, contempla ‘© koan que Ihe foi dado. Se meditar no m{nimo meia hora todos os dias, fard a pergunta cem vezes ou até cento e cingllenta vezes. Se, porém, meditar quatro horas por dia (aa maioria das vezes, medita durante muito mais tempo), 0 disc{pulo enuncia a indagac8o até mil.e duzentas vezes. ‘HA coniemplativos que precisam de um ano ou até mais, para, por assim dizer, “explodir” seu koan, Continuando o.cdlculo que vinhamos fazen- do, durante um ano-essas pessoas fariam a si mesmas a indagagfo 20 menos meio milhlo de vezed: “Se voo8 anular os seus sentidos ¢ o som, © que & que voc# ouve?” ‘A arte da indagago pode durar uma vida inteira. A resposta, quar do se consegue encontrd-la, nZo necessita mais do que alguns segundos. Muitas vezes a resposta ¢ descrita como uma “intuigfo-relampago”. Durante séculos discutiu-se uma questdo central quanto a manifestagbes do Zen: tem-se uma consciéncia gradual da resposta, ou entfo a solugfio vem instantaneamente como um raio, Finalmente, prevaleceu hipétese da luz ropentina e retumbante de um relémpago, Hakuin, o grande mestre zen japonés, nascido em 1685, que desen- volveu a técnica do koan que hoje atingiu sua perfeigdo, escreveu 0 seguinte: “Quando voce escolhe um koan ¢ 0 fica pérquirindo com persistén- cia, 0 seu espirito morre € 0 seu ego & 10. & como se um imen- surdvel abismo vazio se abrisse diante de vocé ¢ as suas maos ¢ 0s scus ‘és nto tivessem mais onde se apoiar. Voct onuio tem a impressto de estar encarando a face da morte ¢ 0 seu coraclo parece explodir em cchamas. A pair daf, no mais que dc repentc voc® se torna um com 0 oan, libertando-se do corpo ¢ do espfrio... o que significa olhar para ‘sua prOpria natureza, Voce precisa continuar sem cessar, com esta praxe, hd de chegar sem erro a0 principio primevo da sua prépria natureza...” Daisetz Suzuki, jf em nosso século, dedicou-se muito, especialmente ‘nos EUA, a difundir a compreensto do Zen. Ele compara 0 koan com ‘uma bola de fogo. O contemplativo engole a bola c, assustado, quer expeli- Ja imediatamente, mas a bola cresce sem parar, até assumir proporges sigantescas, transformando o ego numa bola incandescente, “Por fim, © ego transforma-se no kosn.” £ assim que ele passa pela “grande morte” que, na linguagem pica do Zen se chama iaishi, ¢ passa para o “grande nascimento” (em japonts, daigo). “O ego explode como uma bolha de vou falar de um com 0 qual obtive um certo resultado 20 fazer minha experiéncia pes- soal, embora nto compardvel 20 dos mais bem-sueedidos mestres zen. Recebi-o-do meu primeiro mestre zen no Japo, o mesue de Qu “Nada de bom. Nada de mau, Af esth, agora, a minha face original Ou, mais precisamente: "Nao pense no mal, mas também nao pense. no bem, Apenas tente isto: descubra qual cra a sua imagem antes de entrar neste mundo. Como era antes desta encamagto. Tente descobrir isto agora! ‘O-que acontece, 0 que pode acontecer quando alguém assume essa‘ incumbéncie? De imediato, algo nos chama a stenfto: ninguém deve pensar no mal, Contudo, € preciso entender que nao se deve fazer isso s6 para dar ugar a0 bem, para pensar mais ncle. Nao, ¢ € isso © que nos transfere a incumbéncia e af est4 0 principio do absurdo do Zen: na verdade, apenas © seu infcio — voce também ndo deve pensar no bem. A equiparagdo das duas expresses, “nada de bom/nada de mau” — ‘acaba por nos parecer I6gica depois que passarmos bastante tempo pen- sando no kosn, embora, a0 mesmo tempo, a.consideremos “ilégica”. Sa- biamente, isso s6 pode significar que a equiparagdo entre o bem e 0 mal IUBVCCOSOGELGGEGELLGECCCLESGGLGEEEE VOOOGOSCPNSCHHOHOODOHHNNOCONDNDOBNNNDHE — segundo 0 koan — ¢, de igual modo, sem importancia, dependendo do que se wala, O'bem eo mal compdem, no minimo, uma das polaridades mais importantes — a polaridade primordial. Isto significa, pois, o passo ‘seguinte: as polaridades ndo tém imporuincia, Sua existéncia ¢ apenas aparonte, Se vocd se preocupar demasiado com as tensbes em que esta envolvido, cstard dando importincia a banalidades: bem ¢ mal, luz ¢ trevas, deus e 0 diabo, céu e inferno, superior e inferior, quente e fri esquega tudo isso. Voct tem de se esquecer das polaridades porque a segunda parte da ‘incumbéncia por certo fara com que vocé se desenvolva: sua face pri- mordial! Qual era, afinal, a sua aparéncia primeva? E, em seguida, ‘brigatoriamente, vem a questio: quai era a sua face antes disso, e antes ainda... Primeiramente, voc’ realmente csté & procura de uma imagem. Durante meses, talvez. Vocé mergulha cada vez. mais no passado, v8 indimeros rostos, Intui sua presenga, Mas, diante de cada imagem que ve, ou que imagina, deve ter havido outra antes. AS que no haja mais imagens. Afinal, voct sabe porque aprendcu na escola, existem rostos humanos hé tantos é tantos milénios! Mas o que hy sia antes disso? Genes? Células? E, antes, moléculas? Avomos? E, antes dos étomos, particulas? Pariculas elementares? Fétons? A luz primeva, da qual fala a cosmolo- gia da fisica moderna ou a Bfblia? No inicio era a luz. O caldo de [étons. A massa de luz. ‘Talvez voc escotha este caminho, embora, naturalmente, possa trithar outro, Se caminhar por ele, em algum ponto —, gradativa ou repentinamente — achar a luz tornar-se-4 essencial. Seu rosto original serf luz? Voc8 se aprofunda, se concentra na procura ininterrupta, na ‘busca da luz! ~ ~ Talvez se trate apenas de uma busca. Mas também é possivel que alcance o que almeja, Talvez voc ndo tenha muita certeza eo seu resultado fique estagnado em algum lugar entre a busca e a experiéncia, Os mestres tém certeza. Voc8 no é um mestre. Voce, porém, pode dizer a si mesmo: ‘se os mestres tém certeza, por que no eu? Eu também quero ter a certeza, —E € assim que voc8 nfo desiste e prossegue nas suas buscas. ‘Assim sendo, prossigo com a minha descrigdo, Mas 0 que estou descrevendo? Basicamente, excluindo-se as dores pelo fato de eu ficar parado ¢ sentado, escrevendo, apenas descrevo o que jd cheguei a pen- sar, Isto, porém, & exatamente o que nfo tem muita importincia. E exatamente 0 pensamenio que se espera que vocé ultrapasse! 4 Vocé esté dentro do seu koan como se fosse 0 Ieito de um rio. O koan arrasta voe# na sua correnteza, Deitado de costas, rodeado pelas Aguas do sew koan, s6 a boca e o nariz ficam de fora para que vocé possa respirar. Respirar idéias, Todas as outras partes do seu corpo — do seu ser, da sua esstncia — esto cercadas pelas éguas densas ¢ envolventes do koan, de tal sorte que os pensamentos nem conseguem alcangar vos. E pre. ccisamente essa a relagdo entre os seus pensamentos ¢ todas as outras coisas ‘que voce nto consegue descrever: a relagio entre a ponta do seu nariz © 0 resto do seu corpo. Ou a relagdo entre os dez minutos necessérios para ler o que estou tentando descrever aqui e os dois anos que passei lidando com este koan; tr8s seshins,* um em Quioto ¢ dois na Alemanha, com oito horas didrias de meditago. No resto do tempo meditei sobre esse koan durante tinta minutos dirios, na posigao sentada, tanto em casa, em Baden-Baden, como nas viagens profissionais e de interesse pessoal pata fazer conferéncias ¢ concertos, para participar de festivaise de palestras ‘na Europa e nos Estados Unidos e por duas semanas no Brasil: Nada-de- ‘bom-nada-de-mau-minha-face-original-agoral Em algum ponto do percurso, voce descobre que esté fazendo algo ‘bem comum, O mestre zen est longe, em Quioto. Vocé consegue esque- cerse dele, Quando crianga, voce ouviu uma méxima dita pelo seu professor de grego — ou mesmo nto tendo aprendido essa lingua na escola, voce conhece a recomendagto de Sécrates: Gnorhi seautén: Conhece-te a ti mesmo, Voct a ouviu ou leu e pensa: ouvi-a vezes de- mais, Voce ambém pode se esquecer de Sécrates, mas depois se lemb hd uma presérigtio muito moderna nese sentido. Freud, Jung, Adler, Reich, Fromm, Fritz Perls — a psicologia, a psicandlise e a psicoterapia — chegaram todos & mesma conclusio, quer o coloquem no diva, ou na berlinda da gestaltterapia, no quarto escuro para o seu grito primal: Conhece-te a ti mesmo. Nesse sentido, embora se trate de um Sngulo di- ferente, voce acaba por se Yer diante da mesma pergunia que o vem atormentando hé meses: Quem € voc? Com quem vocé se parece real- mente? Como era a sua face original? Néo dé para responder. Ainda no, Sim, hd uma resposta que voct poderia dar: nada. H4 cerias coisas em ue voe$ pensa, Afinal, voce & um ser pensante. Nao hi como vocé exist sem pensar — ¢, contudo, 0 pensamenio durante meditagto € diferente do seu pensamento cotidiano, e diferente também do raciocinio intelec- tual, Ele sempre é “pensado na posiggo semtada”. Vocé se dedicou a ele © 56 por isso ele jd se relaciona com a experiéncia, Assim, vocé pensa: ‘* Reuniées destinadas A meditagto, com virios dias de duragio, (N, do T.) 35

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