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SUL-AMERICANA E A
INSERÇÃO DAS II Congresso de Geografia Política,
REGIÕES PERIFÉRICAS Geopolítica e Gestão do Território
Dois bons motivos para recontar uma e diminuição do uso de cada um dos termos e
as diferenças na trajetória em cada língua. Na
velha história segunda parte, esse cenário internacional servirá
É preciso um bom motivo para escrever sobre para analisar o desenvolvimento das distinções e
tema tantas vezes explorado, como é o caso da aproximações entre geografia política e geopolítica
distinção entre geografia política e geopolítica. no Brasil dentro do mesmo espectro temporal.
Diante da ausência da língua portuguesa na
Aqui se apresentam pelo menos dois motivos.
base do Google Ngram Viewer, a hipóteses sobre
O primeiro, de ordem metodológica, é a
trajetória dos termos em nosso idioma resultam
disponibilidade de uma ferramenta bibliométrica
de uma análise qualitativa, baseada numa vasta
inédita que permite analisar a trajetória dos dois
revisão bibliográfica do campo.
termos ao longo de uma série temporal ampla
Esse mesmo tema tem sido objeto de trabalhos
e em diferentes idiomas, oferecida pelo Google anteriores (REGO MONTEIRO, 2013, 2014), que
Ngram Viewer. O segundo, relacionado ao campo se somam a uma consistente bibliografia sobre
acadêmico-disciplinar, é o balanço contemporâneo o campo da geografia política e da geopolítica
que a geografia política brasileira deve fazer em brasileira (COSTA, 1991; MIYAMOTO, 1995;
relação à tradição geopolítica que tantos desafios VLACH, 2003; COSTA; THÉRY, 2012; KAROL,
trouxe ao pensamento geográfico ao longo do 2013; NOVAES, 2015). Aqui retomamos alguns
século XX. argumentos e retificamos outros à luz de novas
Este artigo se desdobra, pois, em duas partes. fontes e metodologias, bem como avançamos
De início, utilizamos a ferramenta do Google especificamente sobre o caso brasileiro. As “linhas
Ngram Viewer para situar a trajetória dos termos cruzadas” presentes no título remetem ao artigo
“geografia política” e “geopolítica” ao longo do “Linhas cruzadas no resgate da geopolítica pós-
século XX, em quatro línguas: alemão, francês, anos 1970” (REGO MONTEIRO, 2013) no qual
inglês e castelhano, localizando no período elaborei minha primeira abordagem sobre o tema.
de cem anos os momentos-chave de aumento Na ocasião, afirmava que era “essa interação entre
os campos ideológicos e ambientes acadêmicos debate sobre geografia política e geopolítica toma
distintos, com apropriações do aparentemente forma em diferentes lugares e tempos. Conforme
mais distante e bloqueios do mais próximo que Livingstone (2003, pp.11-12), a migração de
chamamos de linha cruzada”. Já em 2014, as linhas ideias não é a mesma coisa que sua replicação, é
cruzadas aparecem como “pontos cegos” e “atalhos preciso levar em conta a maneira como a recepção
escondidos”, sendo os pontos cegos “situações das ideias está situada no tempo e no espaço.
em que posições teóricas se desenvolvem de É um debate sobre as “ideias fora e no lugar”
modo mais ou menos simultâneo sem que (MACHADO, 2000), que pode ser apropriado
uma faça qualquer referência à outra” e atalhos para entender a especificidade do Brasil dentro
escondidos “conexões improváveis entre autores da discussão sobre a geopolítica e suas críticas.
aparentemente distantes” (REGO MONTEIRO, Os termos geografia política e geopolítica não
2014, p. 34). Ambas as situações aparecem de são sinônimos nem surgem juntos. Geografia
modo bastante curioso no resgate da geopolítica política é certamente mais antigo, o primeiro
nos anos 1970. registro de destaque é encontrado num texto de
Abordagens como a de Sanguin (2016) Jacques Turgot de 1751. Apesar da longevidade,
identificam questões similares. Ao mapear a só vem a ganhar fundamentos como disciplina
produção internacional da geografia política, com a contribuição decisiva de Friedrich Ratzel,
Sanguin sinaliza que “a compartimentação que publica Politische Geographie em 1897.
linguística, a hegemonia intelectual anglo-
Geopolítica não demora muito a surgir, pela obra
estadunidense e a confusão mental com a
do sueco Rudolf Kjellen, em 1899. As duas criações
geopolítica” (p.44) seriam os principais problemas
novecentistas, no entanto, atingiram seu ápice no
enfrentados pelos estudos de geografia política
século XX. Daí a pertinência de situarmos nosso
desde os anos 1990. Embora a compartimentação
recorte temporal no período entre 1900 e 2000.
linguística possa ser um fator responsável
A presente análise foge de duas atitudes muito
pelos “pontos cegos”, a ideia de “atalhos
comuns quando se trata de geografia política e
escondidos” evidencia uma certa seletividade
na compartimentação - como na apropriação de geopolítica. Uma é a de tomar os dois termos como
Foucault pela critical geopolitics - e até mesmo sinônimos, atitude mais comum nos meios não-
conexões que não passam exclusivamente pelos acadêmicos onde não se demoram nas delimitações
fluxos acadêmicos formais - como é o caso da conceituais precisas. Outra, no extremo oposto, é
influência de Kissinger na política externa a de considerar uma diferença essencial entre os
americana ou das produções midiáticas que traziam dois termos, que servisse para delimitar campos
leituras geopolíticas inovadoras sobre os conflitos epistemológicos bem definidos e mutuamente
no final da Guerra Fria, como registra Lacoste excludentes.
(2012). Quanto à hegemonia anglo-estadunidense, Ora, como podem ser sinônimos dois termos
se ela pode ser válida para a geografia política que, como veremos, possuem trajetórias tão
produzida na maioria dos países, não é o caso do distintas? E, por outro lado, como podem guardar
que ocorre no Brasil, onde a geografia política e a uma diferença de essência se, vias de regra,
geopolítica permanecem bastante ancoradas numa grande parte dos principais autores do campo
influência francesa. Por fim, a confusão mental ampliado circularam entre os dois mundos,
com a Geopolítica não chega a ser um problema habitando fronteiras entre teoria e prática,
real para aqueles que veem na interação entre ambições científicas transcendentes e interesses
os dois campos uma possibilidade profícua de mundanos, espaço nacional e internacional,
renovação mútua. cátedra universitária e conselhos de governo – para
As proposições aqui expostas buscam ensaiar ficar em algumas das clivagens mais comuns na
um caminho de análise sobre a maneira como o diferenciação entre geografia política e geopolítica?
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século XIX, ganhando um impulso considerável em uma pequena onda no termo Politische Geographie.
sua última década, especialmente com a publicação Entre 1920 e 1935, a Geopolitik conhece um
do livro de Ratzel sobre o tema, lançada em 1897. crescimento vertiginoso, ao que se sucede uma
Apesar de conhecida, alguma polêmica reside grande queda. O principal nome associado a essa
tanto na datação quanto na paternidade da onda é o do general Karl Haushofer, editor da
origem da geopolítica, uma confusão que se dá famosa Revista de Geopolítica (Zeitschrift für
em torno de coisas e palavras. Raffestin, Lopreno e Geopolitik), publicada entre 1924 e 1944.
Pasteur (1995) registram que a tradução de Ratzel O fato mais curioso trazido à tona pelas
para o francês por François Ewald, em 1988, linhas do Ngram Viewer é que o descenso da
erroneamente substituiu em certo trecho o adjetivo Geopolitik alemã ocorreu uma década antes do
politisch-geographisch por géopolitique, gerando fim da guerra, logo após o pico em 1935 (ver
uma potencial confusão sobre a paternidade do Gráfico 1). O imaginário dominante sobre a
uso do termo. A data de difusão do termo em geopolítica no período nazista costuma associá-
alemão seria 1917, ano em que Der Staat als la ao expansionismo militar alemão que originou
Lebensform (1916), de Kjellen, foi traduzido para a II Guerra Mundial. No entanto, a principal linha
o alemão. Além disso, a adoção de Ratzel como de defesa de Haushofer para negar essa influência
precursor da geopolítica, mesmo que este nunca direta na guerra foi justamente a alegação de que
tenha utilizado o termo, pode ser vista como uma nos anos anteriores ao início do conflito e durante
tentativa de atenuar a ausência de fundamentos o mesmo pouca atenção foi dada às ideias de
científicos da geopolítica, capturando os estudos Haushofer e a seu grupo. Em que pese o conteúdo
da geografia política de Ratzel para um campo que expansionista preconizado nos tempos áureos
originalmente lhe seria alheio. Raffestin, Lopreno da Geopolitik de Haushofer, a geopolítica nazista
e Pasteur (1995) criticaram essa apropriação de aplicada se distanciou dos rumos estratégicos
Ratzel pelos geopolíticos franceses ligados à delineados pelo general geopolítico.
Hérodote nos anos 1980. Duas revisões históricas complementares
É somente em 1920 que surge a primeira grande ganham força a partir dos anos 1980 em relação
onda do uso do termo Geopolitik, acompanhada de a essa polêmica. A primeira é a reabilitação de
Gráfico 1. Incidência dos termos Politische Geographie e Geopolitik na base do Google Books em alemão.
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Gráfico 2. Incidência dos termos géographie politique e géopolitique na base do Google Books em francês.
inglês, por exemplo, essa passagem para a versão considerada como “um desvio não-científico na
traduzida da palavra já se dá no final da década evolução da geografia política”. (COSTA, 1991,
de 1930. p. 221).
A polêmica no caso da geografia política e da O termo “géographie politique” aparece pela
geopolítica na língua francesa é sua relação mal primeira vez em francês no século XVIII, com a
resolvida com os alemães. A versão da geografia publicação de Jacques Turgot (1750). Durante
francesa tipo exportação buscou relegar a geografia o século XIX ocorre uma difusão no âmbito da
política alemã ao segundo plano. Mesmo geógrafos geografia, mas só no século XX ganha contornos
explicitamente políticos como Camille Vallaux mais definidos. O grande crescimento da curva da
(1911), precisavam demarcar suas diferenças geopolítica dificulta observar as variações da curva
teóricas em relação a Ratzel, a quem dizia diferir no da geografia política, mas é possível notar um
método e na inspiração, afirmando que o alemão aumento entre 1970 e 1990. Embora geopolítica
não era nem objetivo nem livre da preocupação e geografia política se misturem na geografia
com o momento presente, e que era preciso acadêmica francófona, autores como Raffestin,
separar a geografia política do “jornalismo” de Lopreno e Pasteur (1995) permanecem com uma
Ratzel. Outros, como Lucien Febvre, explicitavam visão bastante reticente em relação à geopolítica,
uma má vontade francesa em relação tanto à mantendo a distância reivindicada pela geografia
geografia política quanto à geografia alemã, ao francesa anterior à II Guerra.
desaconselhar qualquer abordagem política da O impulso da geopolítica francesa pós anos
geografia, afirmando que era “o solo, não o Estado” 1970 foi capturado por geógrafos como Yves
o que deveria interessar ao geógrafo (LOROT, Lacoste, que rompem com um certo mal-estar
1995, p. 53) ou no enquadramento dos alemães na adesão ao termo nos meios acadêmicos. Apesar
como deterministas. (FEBVRE, 1922). Já no de o lançamento da revista Hérodote, marco
momento posterior ao crescimento da Geopolitik, dessa virada no âmbito da geografia francesa,
Demangeon (1932) foi um dos primeiros a ter ocorrido em 1976, a difusão do termo ocorre
expressar seu desacordo com a geopolítica alemã, nesse momento primeiramente fora da geografia
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e da academia. É o próprio Lacoste (2012) quem Géographique, em 1971, traz uma aproximação
retrospectivamente registra o ano de 1979 como o da geografia com a política. No entanto, essa
momento em que ele tem seu interesse atiçado pelo aproximação não ensejou o fortalecimento de
uso do termo difundido pela imprensa. E somente um campo próprio da geografia política.
em 1982 a revista Hérodote passa a incluir como Em busca de uma síntese possível entre a
subtítulo “revue de géographie et géopolitique”. retomada da geopolítica pós-anos 1970 e a
Nessa trajetória recente da emergência e da renovação teórica da geografia francesa, Rosière
disseminação da geopolítica na França, Lacoste chama atenção para a confluência de alguns fatores
possui uma participação relevante. Mesmo que alimentariam a busca de uma nova abordagem
sem poder ser considerado o impulsionador do contemporânea da geografia política francesa: a
movimento de difusão da géopolitique, certamente influência da geografia política e da geopolítica
contribuiu para vencer as barreiras acadêmicas no anglo-saxônica e suas revoluções epistemológicas
uso do termo ao escolher adotar o maldito termo mais recentes, a renovação teórica na geografia,
na academia. ocasionando uma mutação de vocabulário,
Também aqui uma polêmica relacionada à preocupações e conceitos que afetam também
disputa sobre o passado ganha destaque com o estudo do político e o interesse do grande
Lacoste. Em seu livro de 1976, Lacoste constrói público pela geopolítica. (ROSIÈRE, 2007). A
uma imagem de um Vidal de la Blache avesso à revista L’Espace Politique, criada em 2007, traz
geografia política, que teria influenciado a academia em seu bojo o desafio de confluir os interesses
francesa a negligenciar a dimensão política da recíprocos entre geografia política e geopolítica. O
geografia e assumir uma postura anódina em balanço de uma década de publicações da revista
relação às questões do poder. Esse pensamento traz uma avaliação de que esse intento tem sido
é contrabalançado pelo próprio Lacoste ao bem-sucedido. (ROSIÈRE, 2017).
redescobrir o livro La France de L’Est, de Vidal
de La Blache e fazer uma breve autocrítica numa Political Geography, Geopolitics
nova edição do livro em 19821. A “redescoberta”
de um La Blache político enseja, no entanto, outro O gráfico em inglês (Gráfico 3) apresenta as
mito, o de que este tenha sido a única e tardia trajetórias mais impressionantes. A variação da
incursão de La Blache no âmbito político. Essa geopolítica se inicia nos anos 1930, uma década
hipótese tem sido refutada por diversos autores depois do início da mesma curva em língua alemã,
(SANGUIN, 1988; PEREIRA, 2012), que afirmam numa ascensão vertiginosa até 1945, quando
a diversidade de abordagens geográfico-políticas logo se segue uma queda também acentuada. Os
de La Blache ao longo de sua trajetória acadêmica, anos 1930 e 1940 foram também prolíficos para
o que não corresponde nem à primeira nem à a political geography americana, superando seu
segunda imagens construídas por Lacoste. patamar médio, com as contribuições de autores
Quanto à geografia política na França, ela teve como Isaiah Bowman, Richard Hartshorne e
importantes aportes na primeira metade do século Derwent Whittlesey. A diferença de picos entre
XX, com Jacques Ancel e André Siegfried, mas a Geopolitik – por volta de 1935 – e a geopolitics
permaneceu como um termo pouco usado, como – em 1945 – permite discutir a hipótese de que
bem afirma Rosière (2007). A renovação teórica houve uma diferença entre o peso da Geopolitik na
da geografia na França, cujo marco, segundo Alemanha às vésperas do início da II Guerra e a
Rosière, seria o lançamento da revista L’Espace maneira como sua importância foi superestimada
nos EUA. Nunca se falou tanto em geopolítica
nos EUA quanto nos EUA em 1945, pico de uma
1 A publicação em português, de 1988, já traz o capítulo “Concepções
mais ou menos amplas da geograficidade. Um outro Vidal de La ascensão acelerada desde o início da II Guerra. O
Blache”, no qual Lacoste deixa registrada sua retificação. silêncio posterior pode sugerir uma má consciência
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Gráfico 3. Incidência dos termos political geography e geopolitics na base do Google Books em inglês.
1945
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Gráfico 4. Incidência dos termos geografia política e geopolítica na base do Google Books em castelhano.
1936
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já estava politicamente interditada na Alemanha que não aprenderam a geopolítica “em primeira
e em franco declínio nos EUA (na França, nem mão”, nas “fontes originárias” (...) e lamenta o que
mesmo chegara a ganhar relevo), enquanto em chama de um “estigma hitlerista” sobre a palavra
castelhano e português ela se manteve em alta. geopolítica”. (NOVAES, 2015).
A explicação para esse desencaixe reside na Miyamoto (1995, pgs. 67-68) registra a
permanência das bases teóricas da geopolítica maneira como o Brasil não passou incólume em
clássica, apropriadas pelos autores brasileiros relação à desconfiança da geopolítica. Autores
desde a década de 1930 que se mantiveram como Backheuser, Delgado de Carvalho e Raja
vigentes no período posterior à II Guerra Mundial, Gabaglia sofreram críticas por suas publicações
em autores como Carlos de Meira Mattos e em palestras sobre geopolítica, as entidades que
Golbery do Couto e Silva, expoentes da chamada os publicavam e abrigavam palestras tinham receio
“escola geopolítica brasileira”. (VLACH, 2003; de serem acusadas de germanófilas.
FREITAS, 2004). A geopolítica tradicional anterior Essa dupla influência, alemã e francesa, nos
à II Guerra foi assimilada dentro dos círculos autores geopolíticos brasileiros transpõe para
militares e instrumentalizada para a elaboração a geopolítica brasileira a controversa oposição
de estratégias de controle político interno e de entre escolas determinista alemã e possibilista
projeção internacional do Estado brasileiro, com francesa na geografia. Essa transposição é bastante
especial contribuição da ESG (VLACH, 2003), e questionável, pois se a associação entre Ratzel,
grande repercussão no período da ditadura militar determinismo e escola geopolítica alemã pode
(1964-1985). Esse conjunto de indícios sugere ainda ter alguma razão de existir, devido à
que a trajetória da geopolítica brasileira entre os influência ratzeliana na geopolítica alemã do início
anos 1930 e 1970 seguiu uma linha ascendente do século XX, a contrapartida que associa Vidal
similar à verificada no gráfico da geopolítica em de la Blache, possibilismo e uma suposta escola
castelhano. geopolítica francesa, repetida por Meira Mattos
Apesar de não ter ocorrido uma crítica à (1975; 1990) e, com menor ênfase, por Golbery
geopolítica que tenha resultado numa interdição do Couto e Silva (1952), chegando até autores
similar aos casos alemão, francês e anglo- contemporâneos da ESG, como Mafra (2002), é
americano, a adesão à geopolítica no Brasil não incongruente uma vez que não existia o que se
se deu de forma unívoca. Podemos destacar o autodenominasse como geopolítica francesa na
surgimento de uma controvérsia entre diferentes primeira metade do século XX.
filiações da geopolítica brasileira. É o que evidencia Outro motivo que torna problemática essa
André Novaes (2015) ao chamar atenção para a oposição entre escolas alemã e francesa na
maneira como Meira Mattos reforça sua filiação à geopolítica brasileira é o fato de haver mais
geopolítica de origem francesa e norte-americana, combinações de influências do que filiações
encontrando em Mário Travassos a principal exclusivas. É o que sugere André Novaes (2015) a
referência dessa tradição, enquanto refutava a partir da análise das imagens publicadas nos livros
geopolítica de Haushofer como “perversa distorção de Backheuser e Meira Mattos. A combinação de
da geopolítica”. (MEIRA MATTOS, 1990, p. 23). influências na elaboração teórica dos autores acaba
Por outro lado, Everardo Backheuser, que havia sendo mais importante do que a adesão estreita a
publicado um artigo em 1926 na revista de uma “escola geopolítica”. No entanto, a suspeição
Haushofer, ficou associado à suspeita influência da influência alemã foi instrumentalizada no
alemã e a uma “explícita posição antifrancófila” discurso geopolítico militar brasileiro para
(COSTA, 1991, p.188), que é reafirmada por ele diferenciar a “boa” e a “má” geopolítica, estratégia
mesmo em 1952, ao valorizar o acesso direto adotada tanto por Backheuser nos anos 1940
às fontes germânicas: “Backheuser questiona e 1950 quanto por Meira Mattos em décadas
diretamente os “escritores franceses e ianques”, posteriores.
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prender a um enfoque de separação entre geografia referências buscadas para situar as mudanças de
política e geopolítica. Interessante notar que o enfoque na geopolítica brasileira se resumem a Yves
livro abre espaço para as duas perspectivas. Lacoste (1976), Beatrice Giblin (1986) e Claude
Em 2012, Wanderley M. da Costa retoma o Raffestin (1980). Nenhuma referência é feita à
balanço sobre a geopolítica brasileira num artigo discussão sobre a geopolítica crítica anglófona,
publicado com Hervé Théry. A comparação entre que já se encontra consolidada e difundida além
o livro de 1991 e o artigo de 2012 permite de suas fronteiras em 2012, diferentemente do
identificar uma mudança de concepção a respeito livro de 1991. Essa ausência se justifica pelo
da herança da geopolítica brasileira. Costa e próprio caminho traçado pela geopolítica e pela
Théry classificam os autores que escrevem sobre geografia política brasileira desde os anos 1980
a geopolítica na década de 1980 como a “nova que, salvo raras exceções, passaram ao largo da
geopolítica brasileira que é progressivamente discussão trazida pelos anglo-saxões, o que seria
civilizada” (COSTA; THÉRY 2012, p.253), isto mais um “ponto cego” na trajetória disciplinar
é, sai das mãos dos militares para as de autores da geopolítica e da geografia política no Brasil.
civis, num contexto de redemocratização em que A contribuição de Bertha Becker para o recente
“aparecem nas universidades os primeiros grupos debate em torno da geopolítica no Brasil é um
de intelectuais que se consagram ao estudo da tópico à parte. Em 1982, no Brasil, a geógrafa
geopolítica como um pensamento explicitamente Bertha Becker publicava Geopolítica da Amazônia:
civil, não autoritário e relativamente autônomo a nova fronteira de recursos, numa abordagem
do Estado”. Os exemplos citados são Miyamoto geográfica que se diferenciava da geopolítica
(1981), Becker (1982), Vesentini (1986), Mello doutrinária dos âmbitos militares. É interessante
(1987) e Costa (1988), com destaque ao artigo destacar a opção de Bertha Becker por usar o
de Bertha Becker intitulado A geografia e o termo geopolítica, embora a justificativa mais
resgate da geopolítica, de 19884, que “reconcilia a explícita sobre sua posição sobre o “resgate da
geopolítica com as práticas da geografia humana geopolítica” só aparecesse em 1988. Bertha Becker
contemporânea e as ciências políticas” (COSTA; (1988) defende uma aproximação entre Geografia
THÉRY 2012, pp. 257-258). Ou seja, embora num e Geopolítica, através do “rompimento da barreira
primeiro momento a defesa da geopolítica feita entre a Geografia e a Geopolítica numa perspectiva
por Bertha Becker tenha ficado em segundo plano crítica” (1988, p.99). As transformações do espaço
frente às abordagens críticas mais apropriadas ao brasileiro em duas décadas de ditadura militar
contexto da redemocratização, no longo prazo foi haviam ocorrido numa situação de “fechamento da
essa posição que se mostrou mais consistente para informação pelo governo autoritário”, implicando
equacionar o papel da geopolítica na geografia na impossibilidade de apropriação, pela sociedade,
brasileira, como reconhecem Costa e Thery (2012). do conhecimento sobre esse processo e resultando
As diferenças de enfoque entre os dois na perda de um “saber estratégico” que habilitaria
momentos são sintomáticas. A distância temporal uma “gestão democrática do território” (p. 99).
da geopolítica marcadamente militar do período Para B. Becker, “repensar a Geografia” exigia o
ditatorial torna a adoção do termo geopolítica “desvendar da Geopolítica” (BECKER 1988, p.
mais palatável nas duas últimas décadas do que 100)5, de modo que transitar entre geografia
nos anos 1980. Nesse movimento de reafirmação
da geopolítica é interessante notar que a influência 5 “Negar, portanto, a prática estratégica, seja a das origens da
francesa ainda possui grande relevância. As disciplina, seja a teorizada por Ratzel, seja a da Geopolítica
explícita do Estado Maior ou a implícita na prática dos geógrafos,
é negar a própria Geografia, que foi assim prejudicada no seu
desenvolvimento teórico e na sua função social. E repensar a
4 Segundo Karol (2013, p. 191), “A geografia e o resgate da Geografia envolve necessariamente o desvendar da Geopolítica, sua
geopolítica” foi o artigo mais citado de Bertha Becker por trabalhos avaliação crítica e seu resgate e o trazer desse conhecimento
de geografia política entre 1982 e 2012. para debate na sociedade. Em outras palavras, nesse campo de
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divergentes na década de 1980. Nas duas últimas LIVINGSTONE, David. Putting science in its place: geographies
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