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Tudo o que eu queria era fugir, nunca esperei colidir com

seus braços...

Depois de deixar a vida da cidade para trás para escapar do


meu casamento sem amor, mudei-me para a pequena cidade de
Havenbarrow para um novo começo.

O que eu não esperava era me sentir atraída pela ovelha


negra da cidade.

Eles o chamavam de perturbado. Frio. Um homem com um


passado sombrio.

O que todo mundo parecia não sentir em Jax eram os


respingos de luz em seus olhos. Os atos aleatórios de bondade
que ele realizava quando ninguém estava observando. O jeito que
ele me fazia sorrir.

Jax ajudou a desempacotar a bagagem que eu carregava


comigo. Ele era paciente com minha dor e gentil com minhas
cicatrizes. Ele foi o silêncio durante o meu furacão.

No entanto, quando nosso passado voltou a


assombrar nossos dias atuais, percebemos
rapidamente que às vezes as histórias de amor
não terminam como esperamos.

Às vezes, você fica apenas com os danos


da tempestade.
“Teu destino é o destino comum de todos; em cada vida
alguma chuva deve cair.”

– Henry Wadsworth Longfellow


Jax

Treze anos de idade

SUN,

LAMENTO se a aborreci com as minhas últimas cartas.


Não sei o que fazer. Está tudo devastado por minha causa, e já
não tenho ninguém com quem falar. Meu irmão me odeia. Meu
pai me odeia. Ele me odeia tanto, que eu não sei o que fazer.
Não consigo parar de chorar, e quero fugir para sempre e
nunca mais olhar para trás. Você disse que eu poderia fugir
para você se precisasse lembra? Será que posso? Posso ir ficar
contigo? Talvez teus pais possam vir me buscar. Você sabe o
meu endereço. Estarei pronto, se vier. Odeio isto aqui. É tudo
culpa minha. Eu quero fugir. Por favor, deixe-me fugir para
você.

Tem medo de mim agora por causa do que eu fiz? É por


isso que não vai me escrever de volta? Foi um engano. Juro
que foi um engano. Eu não queria fazer isso. Ela era a
minha melhor amiga, como você é minha melhor amiga.
Por favor, escreva-me de volta.

Eu sinto muito.

Eu sinto muito.

Eu sinto muito.

Não quero mais ficar aqui. Não quero mais me sentir


assim. Eu odeio isso. E sinto muito.

Por favor, escreva-me de volta.

Por favor, Sun. Eu preciso de você.

MOON
Kennedy

Presente

— POR FAVOR, NÃO ME ENVERGONHE HOJE À NOITE, — disse


Penn enquanto arrumava a gravata pela quinquagésima vez
nessa noite.

O papel de parede de nossa casa estava manchado da


fumaça de cigarro e promessas quebradas. Meu marido
quebrou algumas promessas e eu também quebrei algumas
por minha conta. Um casamento era para ser assim? Dias se
transformando em semanas que se transformaram em meses
e anos de promessas quebradas? A palavra “aceito” vinha em
letras miúdas que ninguém nunca leu verdadeiramente.
Percorremos os termos do acordo e no fim clicamos no campo
— concordo, — sem saber as consequências ocultas do que
aceitamos.

Eu tinha desrespeitado meus votos, mas ele também


tinha desrespeitado os dele.
Promessas, promessas, tantas promessas quebradas.

Naquela noite, prometi a ele que não o prejudicaria na


frente de seus colegas de trabalho e clientes, durante o
evento de sua empresa imobiliária. Essa noite era uma
grande oportunidade para Penn, tomar um vinho e jantar
com pessoas muito ricas que estavam em busca de grandes
propriedades. Quanto mais fáceis às coisas corressem nessa
noite, melhor era a oportunidade que Penn tinha de
desenvolver conexões com os clientes. Ele não me queria lá,
mas seu patrão insistiu na presença dos cônjuges.

Prometi a Penn que também não traria à tona nosso


passado. E não pretendia quebrar minha promessa no jantar
naquela noite. Tomei meu remédio para ansiedade. Fiz meus
exercícios de respiração. E só fechei meus olhos quando
cruzamos com carros os para o evento. Enquanto estávamos
na estrada, eu estava bem. Normal, até – bem – o meu tipo de
normal.

Minhas promessas estavam ilesas.

Tudo estava perfeito, tão perfeito quanto poderia ter


sido, considerando meus problemas, e então Marybeth – a
linda e deslumbrante Marybeth – se inclinou em minha
direção durante a refeição. Havia cinco casais em nossa
mesa, que incluíam a colega de trabalho de Penn, Marybeth.
Os outros eram clientes dele em potencial que valiam
mais dinheiro do que eu jamais poderia imaginar.
Gostaria de ser mais parecida com Marybeth. Ela era
perfeita. A mãe perfeita, a esposa perfeita, a corretora de
imóveis perfeita. E ainda cheirava a Chanel nº 5, e seu
pescoço pingava diamantes. Seu sorriso branco perolado fazia
os outros sorrirem com os lábios fechados, pois sabiam que
não podiam se igualar ao nível de ‘Uau’ que o sorriso de
Marybeth proporcionava. Ela era tudo o que eu não era e
tudo o que eu sonhava em ser.

Houve um tempo na minha vida em que eu me amava


tanto que nunca invejaria a vida de outra mulher.

O que aconteceu comigo?

Quando minhas forças se esvaíram do meu corpo?

Então a perfeita Marybeth tocou meu pulso levemente e


sorriu com os lábios e seus olhos cor de avelã. — Tatuagem
intrigante, Kennedy. O que significa?

Nesse momento, a promessa que fiz a Penn se dissolveu.


Primeiro, houve uma rachadura nos cantos da minha
promessa e depois todas as peças se partiram.

— É… minha… — Respirei fundo quando me virei para


ver Penn me olhando intensamente. E vi em seu olhar azul –
decepção, porque ele conhecia os sinais dos meus defeitos.
Ele sabia quando eu estava escorregando, escorregando,
escorregando. Meu corpo tremia, minha voz falhava e
minha respiração ficava ofegante. — É… bem…
Olhei para a tatuagem na minha pele: uma margarida
com um D ao contrário no meio da flor.

— Minha… é… — Engoli o fôlego apertado na minha


garganta e fechei os olhos. E lágrimas estavam aguardando
para se libertar, e eu odiava que estava prestes a deixá-las
cair. — É para meus pais e minha… — Abri os olhos e olhei
para Penn, cujos olhos estavam gritando ‘NÃO’, mas não
podia não terminar a conversa. — Nossa filha. O D ao
contrário é para a nossa filha.

Seus lábios se separaram quando a realização se


instalou em sua mente. E recostou-se na cadeira com um
olhar de culpa nos olhos. Claro que ela sabia do acidente.
Todo mundo sabia do acidente; eles apenas preferiram andar
na ponta dos pés ao redor do tópico em vez de enfrentá-lo de
frente. A morte deixava as pessoas desconfortáveis, e eu não
podia culpá-las por não querer falar sobre isso. Era um
assunto tão estranho de abordar.

Eu tracei o D na minha pele conforme as lágrimas


começaram a rolar por meu rosto. — O nome da minha filha
era… — eu queria dizer a ela. Precisava continuar falando
sobre eles para mantê-los vivos em mim. Era o pequeno
conforto que eu precisava, mas às vezes as palavras saíam
um pouco bambas.

— Kennedy. — Uma mão pousou no meu pulso,


cobrindo a tatuagem. Olhei para cima e vi Penn me
encarando, balançando a cabeça levemente enquanto
ele apertava meu pulso um pouco apertado demais. — Talvez
você devesse ir retocar sua maquiagem, ficar um minuto
sozinha.

Traduzido como: Você está me envergonhando


novamente – se recomponha.

Ele já não sentia mais pena de mim. Depois de mais de


um ano, por que ele deveria? Ele tinha sido capaz de se curar
da nossa tragédia. Eu deveria ter conseguido fazer o mesmo,
mas, por alguma razão, não estava melhor.

Tudo que eu queria fazer era ficar melhor.

Limpei as lágrimas dos meus olhos só para cair mais


rapidamente. — Sim. Claro. Desculpe, eu só… — Empurrei
minha cadeira para longe da mesa e me desculpei. — Sinto
muito, — murmurei.

Os olhos de Marybeth estavam cheios de culpa. Sua


mão pressionou contra seu peito quando me virei para me
afastar, e ouvi-a sussurrar um pedido de desculpas a Penn.

— Não, não, você não fez nada errado, Marybeth, —


disse Penn, parecendo se desculpar ao confortar sua colega
de trabalho em vez de sua própria esposa. — Ela
simplesmente fica assim. Você não fez nada errado. Ela é
muito emotiva, precisa aprender a se recompor melhor.
Realmente, na idade dela…

Muito emotiva.
Fui ao banheiro para me refazer, e quando me olhei no
espelho, fiquei impressionada com o reflexo olhando para
mim. Quando foi que eu me perdi? Quando eu perdi minha
cor e minha luz? As bolsas debaixo dos meus olhos sempre
foram tão proeminentes? Quanto peso eu tinha perdido para
fazer minhas bochechas parecerem tão ocas?

Quando a porta do banheiro abriu, uma mulher entrou


– Laura, esposa de um dos colegas de Penn.

Laura era uma mulher mais velha, provavelmente com


cinquenta e poucos anos. Ela sempre foi tão gentil comigo,
mesmo que eu muitas vezes parecesse embaraçada e
desconfortável na maioria das situações. Durante o ano
passado, Penn fez parecer que eu era mais um fardo nas
reuniões de trabalho do que um trunfo. Disse-me inúmeras
vezes que eu ficaria melhor em casa.

— Você está bem, querida? — Laura perguntou com


uma expressão sincera no rosto. O cabelo castanho escuro
dela tinha mechas naturalmente grisalhas.

Rindo levemente comigo mesma, enxuguei meus olhos o


melhor que pude. — Sim, desculpa. Estou muito emotiva…

— Você não é muito emotiva, — ela interrompeu, me


alcançando uma toalha de papel. — Você não está
exagerando. Perdi um filho quando era mais nova – um
aborto espontâneo, mas, ainda assim, uma criança – e
isso quase me destruiu. Minha graça salvadora foi
meu marido. Ele foi minha rocha quando eu desmoronei.
Agora, não pretendo bisbilhotar, mas não pude deixar de ver
como Penn estava tratando você lá fora. Querida, não se
ofenda com o que estou prestes a dizer, mas não é assim que
um marido deve tratar sua esposa. Você nunca deve ser
menosprezada quando estiver no fundo do poço. Ele deveria
levantar você, não chutá-la de volta.

Abri os lábios para responder, mas eu não sabia como.

Laura limpou as lágrimas dos meus olhos e me oferece


um pequeno sorriso.

— Mais uma vez, não é da minha conta, e Jonathan me


mataria se soubesse que me envolvi nos assuntos dos outros,
mas… você merece ser curada, e deveria ter permissão para
falar sobre sua filha sem se envergonhar. Você sabe o seu
valor. Então cobre mais.

Engoli em seco quando ela me deu um abraço que eu


nem sabia que minha alma precisava. Meu corpo derreteu
contra o de Laura e ela me segurou enquanto eu chorava em
seus braços.

— Está tudo bem, querida. Você está bem. Não


engarrafe. Deixe sair.

Depois que me acalmei um pouco em seus braços, ela


me soltou e me deu um sorriso. — A propósito, eu li
todos os seus romances. Seus livros são mágicos, suas
palavras são acalentadoras. Mal posso esperar pelos
próximos.

Eu tinha publicado romances nos últimos cinco anos,


mas depois do acidente, não consegui escrever uma única
palavra. Meu agente me disse para levar meu tempo, e que as
palavras voltariam para mim, mas ultimamente eu estava
começando a pensar que isso não era verdade. Eu perdi a
minha musa, por isso as minhas palavras também
desapareceram.

O carro estava silencioso no retorno para casa, minhas


costas estavam viradas para Penn enquanto eu mantinha
meus olhos fechados durante todo o trajeto de volta. Quando
entramos em casa, Penn finalmente desencadeou sua raiva
reprimida.

— Você prometeu que não faria isso, — ele disse com


um suspiro, passando as mãos por seus cabelos penteados
com gel. — Você jurou que não teria outro episódio em
público outra vez! Quer dizer, caramba, Kennedy! Você não se
cansa de parecer uma psicopata? — Suas palavras me
chocam.

Já esperava isso dele porque essas palavras vinham


sempre depois de um dos meus colapsos. Quando aconteceu
na primeira vez, ele tinha compreendido porque também
estava de luto. Mas com o passar dos meses, a sua
compreensão tornou-se amarga. Ele estava exausto
de mim, e eu não podia censurá-lo.

Eu também estava exausta. Só queria que ele pudesse


ver que eu estava tentando o meu melhor. Eu estava
tentando o meu melhor para ser normal, para ser eu
novamente.

Eu estava tentando.

Olhei para ele, incerta sobre o que dizer, porque as


desculpas pareciam tão vazias depois de tantas tentativas
fracassadas de tentar recuperar meu antigo eu outra vez.

Ele tirou o paletó e o jogou sobre a cadeira da sala antes


de desabotoar as abotoaduras. — Eu gostaria que você nunca
tivesse feito essa tatuagem idiota. É um lembrete de um
momento fodido, Kennedy. Não entendo por que você quer
olhar para isso todos os dias.

Suas palavras foram duras, mais uma vez, e eu não o


culpo outra vez. Apenas fiquei em silêncio, olhando para a
tatuagem no meu pulso. Ele não entendia, mas eu precisava
desse lembrete diário. Eu precisava sentir minha filha na
minha pele. Eu precisava sentir como se ela ainda estivesse
comigo.

— Você tem algo a dizer? — Ele perguntou,


desafivelando suas calças. E inclinou a cabeça em minha
direção, como se fosse um pai desapontado, em vez de
um cônjuge amoroso e preocupado. — Qualquer coisa?
— Eu quero… — Engoli em seco e olhei para o chão. —
Eu sinto… sinto…

— Você sente muito, — ele cuspiu, balançando a


cabeça. — Claro que você sente. Você sempre sente muito.
Toda a sua vida é um pedido de desculpas.

Ele estava zangado, e eu entendia a razão, mas não


compreendia sua agressão. Podiam ter sido as doses de
uísque que ele bebeu, durante o jantar. Meu marido ficava
muito mais expansivo e rude comigo quando bebia. O seu
fusível queimava até ao fim.

— Você sabe o que…? Não posso. — Suspirou, passando


as mãos pelos cabelos antes de se sentar no sofá à minha
frente. Ele pegou um maço de cigarros e acendeu um. — Eu
não posso mais fazer isso.

— Eu sei. — Engoli em seco e fechei os olhos. — Sei que


às vezes posso ser muito…

— Às vezes? Kennedy. Isso é o tempo todo. Você não


está normal há muito tempo e é cansativo. É difícil. Não
trabalha em nenhum romance novo há meses, quase não sai
de casa. Entrar em um carro é uma tarefa árdua. E isso está
me sufocando. Você está me sufocando. Eu não posso
continuar fazendo isso. Eu não posso… — ele declara
balançando a cabeça. — Nunca deveria ter feito isso em
primeiro lugar.
— Feito o que?

— Ter casado com você. Nós nunca deveríamos ter nos


casado. Meus pais me disseram que era uma péssima ideia,
mas eu era jovem e estúpido, e olha onde isso me levou. Eles
me avisaram que você estava apenas tentando me prender,
mas eu discordei.

Eu sacudi minha cabeça enquanto olhava em sua


direção. — Penn…

— Mas aqui estou eu – preso. Eu deveria ter ouvido. Eu


deveria ter corrido naquela época e não ter sido um idiota.

— Você… você está chateado. Eu sei que errei hoje,


mas…

— Pare de falar. Você não entende, Kennedy? Só casei


com você porque você estava grávida e agora nem tenho mais
uma filha, e isso por sua causa, — ele cuspiu.

Meu peito parecia que estava desabando.

Suas palavras doíam, mesmo estando tão distantes seus


comentários já não deviam mais me magoar. Já não nos
aproximávamos há algum tempo, sem sexo e sem frequentar
suas festas de trabalho. Não me lembrava da última vez em
que nós rimos. O meu coração quase nunca batia por ele.
Mesmo assim, o veneno na sua língua causou-me um caos na
mente, derramando nas minhas células cerebrais e
envenenando a minha autovalorização – não que
ainda houvesse muito disso.

Ele continuou. Continuou cavando, continuou me


destruindo com suas palavras. — Meu pai estava certo – você
deveria ter feito um aborto. Isso nos pouparia muito tempo.

Meu coração…

Meus batimentos… todos eles pararam.

Destruído…

Eu estava desmoronando.

Meus joelhos dobraram embaixo de mim e o chão frio e


duro de madeira amparou meu corpo. Comecei a soluçar em
minhas mãos, e não havia ninguém por perto para me
confortar. Penn estava cansado de tudo, cansado de mim,
cansado disso – meus ataques de pânico, meus colapsos,
minhas dificuldades.

Eu soube claramente naquele momento.

Nosso relacionamento, nosso casamento, nossas


promessas terminaram.

Ele inclinou a cabeça na minha direção e parecia


imperturbável com tudo. Talvez você deva ir a outro lugar
hoje à noite. Por um tempo, na verdade. Algumas semanas,
alguns meses… vá descobrir alguma coisa, porque você ficar
aqui não vai dar mais certo.
— Para onde irei? — Engasguei, confusa.

— Eu não sei, Kennedy. Vá para sua irmã ou algo


assim.

Yoana…

Já não a via há mais de um ano. Como poderia aparecer


depois de todo este tempo sem uma única palavra? O que é
que ela diria? Porque me daria conforto depois de todo este
tempo, depois de eu ter desaparecido? Tudo o que ela recebeu
de mim foram mensagens de texto aqui e ali dizendo que eu
estava bem, embora não estivesse. Ela não me devia nada,
mas continuava me dando tudo. Ela escrevia-me longas
mensagens me contando sobre a sua vida, mantendo-me
atualizada sobre tudo e qualquer coisa. Tudo o que eu podia
fazer era enviar-lhe alguns emojis de vez em quando, porque
enquanto a sua vida avançava, a minha ficava estagnada.

A última mensagem que ela tinha enviado era sobre a


sua lua de mel, que finalmente ela estava prestes a ir após
dois anos de casamento. A anterior era um pedido para que
eu a visitasse. Antes disso?

Ela deixou uma longa mensagem de voz sobre como ela


e Nathan reformaram uma casa e estavam prestes a colocá-la
no mercado. Desde que os dois se casaram, ambos gostaram
tanto da ideia de reformar casas, e vendê-las. O fato de eles
terem conseguido trabalhar juntos e ainda serem tão
felizes me lembrou muito de nossos pais. Mamãe e
papai eram exatamente da mesma maneira.

Penn e eu? Não poderíamos ter sido mais opostos.


Quando eu disse a ele que queria ser autora, ele riu de mim,
dizendo que eu não tinha a educação certa para isso. Quando
recebi meu primeiro contrato de um livro, ele disse que era
sorte. Quando meus cheques de royalties chegaram, ele me
disse para não gastá-los, porque provavelmente não viria
mais.

Penn foi até o escritório e voltou com um envelope. — Eu


ia dar isso a você antes do acidente, mas adiei por motivos
óbvios. Basta assinar na linha pontilhada e deixá-los na mesa
do corredor antes de sair.

Então ele saiu da sala, deixando-me sentada ali emotiva


demais, enquanto colocava o prego no caixão do nosso
casamento. Papéis do divórcio.

Eu assinei todos eles com meu peito doendo.

Empacotei minhas coisas em três malas, levando


apenas as coisas importantes, apenas os itens que
significavam o mundo para mim. Então chamei um táxi e
comecei a viagem de quarenta e cinco minutos para ver uma
irmã que não tinha ideia de que eu apareceria em sua porta
para pedir abrigo.
Depois que o motorista me deixou na sua casa na
cidade de Rival, Kentucky, arrastei minhas malas para a
varanda.

Um suspiro de alívio tomou conta de mim quando vi o


carro deles estacionado na garagem.

Corri e bati à porta. Passava das dez da noite e havia


uma boa chance de Yoana já estar dormindo. Ela nunca
tinha sido uma coruja da noite, sempre acordava cedo.

— Quem é? — Uma voz profunda questiona – de


Nathan, é claro.

Eu falei. — Yoana, sou eu, — e engasguei, com os


soluços pesando na minha garganta. — É Kennedy. Eu, bem,
eu preciso… — Engoli o medo no meu peito e fechei os olhos.
— Eu preciso de você.

A porta abriu e lá estava ela, de pijama, olhando para


mim com o olhar mais preocupado de todos os tempos.

Minha irmã mais velha parecia uma deusa mesmo agora


quando tinha sido acordada no meio da noite. Nossa, eu
precisava dela. Eu precisava tanto dela, que isso fez meu
estômago doer fisicamente ao ver seus olhos me encarando...
os olhos que pareciam muito com os de mamãe.

— Você está bem? — Ela perguntou, e essas três


palavras quebraram a concha das minhas mágoas. A
sinceridade em sua voz me machucou mais do que eu
poderia dizer – o cuidado, a gentileza, o amor. Passei o ano
passado mentindo para minha irmã sobre meu bem-estar,
por estupidez e lutando com demônios internos, e mesmo
assim, sem um momento de hesitação, ela estava me
perguntando se eu estava bem.

Meus lábios se separaram, mas nenhuma palavra saiu.


Lágrimas começam a inundar meus olhos, e eu cobri meu
rosto enquanto soluçava incontrolavelmente nas palmas das
minhas mãos. — Sinto muito, Yoana, — eu chorei,
balançando a cabeça com vergonha e dor. — Me desculpe, me
desculpe, me desculpe.

Ela não parecia precisar das minhas desculpas. Ela não


me martelou com perguntas sobre a minha situação, não me
repreendeu por afastá-la. Em vez disso, ela deu um passo à
frente, passou os braços em volta de mim e me abraçou com
força.

— Tudo bem, Kennedy. Está bem. Entendi. Entendi.

E me segurou firme. Pela primeira vez no ano passado,


comecei a respirar novamente e minha irmã não me deixou ir.

Ao me abraçar, ela me fez uma pergunta muito, muito


importante provavelmente a mais importante que eu já ouvira
há muito tempo. — Vinho?

— Sim. — Eu ri e fiquei surpresa com o quão


genuíno parecia. — Vinho.
Kennedy

NOVOS COMEÇOS DEVEM VIR com uma etiqueta de aviso.

Atenção: novos começos não vão impedir que memórias


antigas inundem seu cérebro, resultando em ataques de
pânico, desconforto social e surtos de todas as emoções
possíveis decorrentes da depressão, colidindo com a gratidão e
crepitando em faíscas de raiva. Nenhum sentimento é
esquecido.

Fazia três dias que eu dormia no quarto de hóspedes da


minha irmã, e Penn não tinha me procurado nenhuma vez.
Eu tentei o meu melhor para não revelar os pensamentos
confusos que passavam por minha mente. Não queria que
meu fardo pesasse muito sobre minha irmã e Nathan – eles
não mereciam isso. Eles mereciam apenas o meu
agradecimento, não a triste mulher que eu tinha sido
durante o ano passado. Esse era o problema com Penn
– ele viu a minha tristeza e comprovou que não valia a pena
amar esse meu lado. Por isso, eu estava trabalhando cada vez
mais para não deixar esse lado meu escapar. Não queria
afastar mais as pessoas com minha dor.

Gostaria que as pessoas ficassem.

Fingir para mantê-los por perto, Kennedy. Esse é meu


mantra.

É um fato comprovado que, se você sorrir mais, as


pessoas vão pensar que você é feliz. Isso é ciência básica.
Estava sorrindo tanto nos últimos dias desde que cheguei à
casa de Yoana que minhas bochechas estavam doloridas. Às
vezes, eu me refugiava no banheiro apenas para deixar o
sorriso desaparecer por um momento antes de colocá-lo de
volta em meus lábios.

Até agora, não tinha sido interpelada por causa dos


meus sorrisos falsos, o que significava que esses sorrisos
mereciam um Oscar.

— Está bem, não espie! — Yoana me alertou enquanto


me guiava pelas ruas de uma pequena cidade chamada
Havenbarrow. A cidade ficava apenas a quinze minutos da
sua casa e ela disse que era a cidade mais bonita que já
existiu. Nos últimos dias, ela só falava da beleza da pequena
cidade.

Eu não poderia ter espiado mesmo que quisesse,


graças à bandana que cobria os meus olhos. Já
andávamos por algum tempo, eu tropeçava a cada poucos
minutos enquanto Yoana fazia o possível para me impedir de
cair.

— A venda é realmente necessária? — Perguntei, um


pouco confusa com todas as palhaçadas da minha irmã
enquanto me guiava. No momento em que estacionamos o
carro dela na cidade, Yoana ordenou que eu fechasse os
olhos. Então, ela me levou para essa aventura.

— Sim! Agora fique quieta e continue. Estamos quase lá.


Espere! Pare! Carro! — Ela gritou, me puxando para trás.

— Que diabos! — Eu gritei, fazendo Yoana cair na


gargalhada.

— Só estou brincando. Não estamos nem perto da rua.


Eu apenas achei que seria engraçado.

— Oh, como eu senti falta do seu senso de humor. —


Meu tom era brincalhão, mas eu realmente tinha sentido falta
do senso de humor dela. Tinha perdido praticamente tudo
sobre estar perto de minha irmã, desde que eu tinha
procurado por ela, ela não foi nada além de uma santa para
mim.

— Apenas mais uma curva à esquerda, — me disse com


as mãos nos meus ombros, depois me virou para a direita.

— Eu quis dizer direita, direita! Ok, mais alguns


passos para frente… dois passos para trás.
— Estamos fazendo a coreografia de Paula Abdul em
‘Opposites Attract’? Porque se sim, preciso trocar de sapatos,
— eu lhe disse.

— Cala a boca, mulher. Já estamos aqui. Apenas mova


um pouco para a esquerda. — Eu obedeço. — Um pouco
mais. — Embaralhei meus pés um pouco mais. — Ok, bom,
bom. Agora um pouquinho para a direita.

— Yoana! — Eu gritei.

Ela riu, e o som me fez sorrir também. — Ok, ok,


desculpe. Só quero que a surpresa seja perfeita, só isso.

— Está bem, então me diga o que devo fazer. Posso ver a


surpresa agora? Não que tivesse que me dar alguma coisa,
porque já fizeram mais do que o suficiente ao me deixarem
dormir no quarto de hóspedes. Além disso, o fato de que
você…

— Kennedy.

— Sim?

— Cale-se.

— Ok.

— Tudo bem, obrigada. Agora, em três, vou tirar sua


venda para mostrar a coisa mais emocionante de todos os
tempos. Um, dois, três! — Ela retirou a venda e revelou
que estávamos em frente a uma casa. Uma casa muito
fofa recém-pintada com uma cerca em volta do quintal, onde
crescia uma vegetação selvagem. Nos degraus da frente da
casa estava o marido de Yoana – Nathan com duas garrafas
de champanhe nas mãos e o maior sorriso pateta que já vi em
seu rosto.

Olhei de relance para minha irmã, confusa e culpada


por achar ter perdido alguma coisa. — O que está
acontecendo afinal?

— Surpresa! — Ela chiou. — É a sua nova casa!

— Minha nova o quê… — Virei para encarar Yoana


quando meu queixo caiu. — Minha nova o quê? — Exclamei,
com a perplexidade me atingindo a uma nova velocidade.

— Sua nova casa. Como você sabe, nós recentemente


resolvemos reformar casas para vender, e essa foi a nossa
última novidade na pequena cidade mais fofa conhecida pela
humanidade. Estávamos prestes a colocá-la no mercado, mas
decidimos adiar para que você tenha um lugar para ficar, que
seja apenas seu. — Ela estava falando como se tudo o que
estivesse dizendo não fosse uma insanidade completa
enquanto caminhava em direção à varanda. — O quintal
ainda não foi concluído, mas os paisagistas começarão em
alguns dias e há pouco ou nenhum mobiliário. Ok, não há
nada lá dentro, mas pedi algumas peças que acho que você
gostaria e elas chegarão nos próximos dias. Peguei uma
lavadora e secadora que será entregue e, por enquanto,
há uma geladeira azul antiga na cozinha que você
tem como cortesia de Nathan e eu da nossa garagem.
Também mandei Nathan correr para a loja e comprar alguns
itens essenciais - uma bela cama de casal queen, alguns
utensílios, e uma mesa de cozinha barata, todos os itens
básicos do banheiro e...

— Por que você faria isso? — Engasguei, atordoada e


confusa com toda essa bondade indevida que Yoana estava
me mostrando. — Isso é uma loucura. — Eu não merecia
isto, não podia ficar numa casa que estavam prestes a
colocar no mercado. Não podia tirar tanto da minha irmã
quando lhe tinha dado tão pouco durante o ano passado.

Acima de tudo, já tinha tirado as coisas mais


importantes da vida dela.

— Por que eu faria isso? — Perguntou surpresa com a


minha pergunta. E colocou as mãos nos meus ombros e
estreitou os olhos. — Kennedy… você é minha irmã. Eu faria
qualquer coisa por você.

Quando eu pensava em anjos na terra, a minha irmã


mais velha era sempre a primeira a surgir-me à cabeça.
Yoana era uma santa mais do que os santos, uma praticante
do bem. Corações como os dela eram tão poucos e raros. Era
linda tanto por dentro quanto por fora, embora a maioria das
pessoas notasse sua beleza exterior primeiro. Yoana
McKenzie Lost era a imagem cuspida da nossa mãe. Ela
tinha os cachos pretos da mamãe, a pele escura, e os
olhos de corça e uma covinha profunda em sua
bochecha esquerda. Sempre que sentia falta da minha mãe,
tinha a sorte de poder olhar nos olhos da minha irmã.

Eu, por outro lado – eu era a combinação perfeita de


meus pais, a personificação da história de amor deles. Recebi
o sorriso de mamãe, nos lábios o arco do Cupido. E tenho o
nariz esbelto e torto do papai e suas bochechas de esquilo.
Mamãe e eu tínhamos marcas de nascença iguais em nossas
omoplatas e a mesma covinha em nossos queixos. Meus
cachos soltos, cor de mel, eram uma mistura da genética de
meus pais.

E meus olhos? Eles pertenciam ao meu pai. Eu tinha os


olhos do papai que intercalavam entre castanho e verde
dançando dentro de suas íris. Sempre que sentia falta dele,
olhava no espelho. Algumas pessoas olhavam para mim e me
chamavam de birracial, mas eu simplesmente me chamava
de filha de Aaron e Renee.

Minha irmã e eu éramos a prova viva da história épica


de nossos pais – o maior amor de todos. Mesmo que papai
não fosse pai biológico de Yoana, não havia dúvida de que ele
era o pai dela. Quando minha mãe estava perdida e sozinha
com uma criança de dois anos, papai levou ambas as
meninas como se fosse sua no momento em que ele as viu.

É preciso um tipo especial de homem para amar uma


criança que não têm seu sangue. Nunca houve um
segundo em que o meu pai tratasse Yoana de maneira
diferente do que ele tratou a mim. Por vezes, quando
eu era mais nova, até sentia que ele a amava um pouco mais
do que a mim. Ele não fazia isso de propósito, claro, e quanto
mais velha ficava, mais eu entendia. Yoana tinha um item
faltando em seu álbum da vida, e papai garantiu a ela que
seu álbum estivesse cheio de amor, mesmo que ela nunca
conhecesse seu pai biológico.

Ela era filha dele – talvez não de sangue, mas


definitivamente do coração. Os seus corações batiam em
sincronia e, por vezes, eu podia jurar que Yoana tinha o
sorriso de papai.

Não passou um dia em que não sentia falta dos meus


pais, mas felizmente tenho minha irmã para me abraçar
agora. Eu gostaria de ter percebido isso antes. Em vez disso,
eu a afastei porque achei que ela me culpava pelo acidente.

Foi por causa de Yoana que senti como se o céu nublado


que me seguia pelo ano passado finalmente estivesse
clareando os dias ensolarados e as noites ficando mais
calmas. Pelo resto da minha vida, eu devo a ela o amor
incondicional que me concedeu.

Eles me mostraram a casa, me deixando chocada com o


quão bonita era, especialmente com base nas fotografias
anteriores que me mostraram. Quando estava quase na hora
de irem pegar o voo para a lua de mel, Yoana fez questão de
me dar uma lista de tarefas enquanto eles estivessem
fora.
— Agora, repita o que eu disse, — ela ordenou.

— Medite de manhã e de noite, não importa o que


aconteça, mesmo que apenas por cinco minutos para
respirar. Sim, mãe, — gemi sarcasticamente aborrecida, mas
sinceramente estou muito agradecida pelo amor de Yoana.

Ela tinha na alma tanto do entusiasmo de mamãe. Estar


perto dela era como estar envolta no mais quente dos
cobertores pesados, um conforto instantâneo.

— E aqueles bosques atrás da casa – não tenha medo de


atravessá-los. Eu sei que eles não são exatamente da sua
propriedade, mas duvido que o homem que os possui se
importe ou note. Quando Nathan e eu trabalhamos aqui, nos
perdemos lá atrás, o lugar me lembrou de quando mamãe e
papai nos levavam para passear quando éramos crianças.
Lembra quantas vezes nos perdíamos?

Sorri. — Ah, sim, e quando mamãe ficava nervosa a


medida que ia escurecendo, papai dizia: 'Você não pode se
perder se estiver cercado pela natureza. A natureza é o nosso
lar´. — Sorri com a lembrança antes de meus lábios
começarem a se abaixar.

— Sinto falta deles, — Yoana confessou.

— Eu também. — Muito. Eu não tinha dúvida de que


me encontraria vagando por aqueles bosques para
algumas sessões de meditação.
Quando éramos pequenas, meus pais mandavam minha
irmã e eu meditar todas as manhãs e noites. Papai nos
ensinou ioga e mamãe técnicas de respiração. Essas lições
realmente ajudaram a moldar minha vida, mas quando as
coisas deram errado, a meditação foi à primeira coisa que
desapareceu da minha rotina diária. Engraçado como as
pessoas perdem seus princípios básicos e crenças quando
seu mundo está de cabeça para baixo.

As outras tarefas da minha lista de tarefas da Yoana:

 Encontrar uma coisa para me fazer sorrir todos os dias;

 Mantenha um diário para lentamente voltar a escrever;

 Consiga luz solar diária quando o tempo permitir;

 Explore Havenbarrow;

Yoana me cutucou de lado. — Agora que tudo isso está


resolvido, você quer sair para pegar algo para o jantar?

— Na verdade, estou ficando um pouco cansada. Além


disso, você não tem um avião para a Costa Rica para pegar?

Uma expressão vaga passou por seu rosto enquanto


olhava para o relógio. — Oh, certo. Isso.

— Sim, isso. — Eu ri. — Apenas a primeira parte da lua


de mel mais épica de todas as luas de mel.
Ela me mostrou olhos de cachorrinho. — Tem certeza
que não quer vir conosco?

— Uh, não. Confiem em mim, ficar de vela para vocês


dois no cinema, é uma coisa, agora eu ir junto à viagem de
lua de mel, com certeza, eu cruzaria linha.

— Bem. Só não sei o que vou fazer sem você por tanto
tempo. Sinto que acabei de ter você de volta. — Ela faz uma
pausa e morde o lábio inferior enquanto seus olhos ficam
molhados e sem brilho. — Não quero te perder novamente.

— Não se preocupe. Quando você voltar, eu estarei


ainda melhor. Você não vai me perder de novo. — Funguei
um pouco, vendo Yoana se emocionar. — Não comece a
chorar porque sabe que sou uma rainha soluçante e
solidária. Apenas me abrace e vá embora, sim?

Ela me puxou para um abraço. — Eu ligo para você


todos os dias, ok? Não me importo com a diferença de
horário. Vamos verificar todas as mídias sociais e, se você
precisar de mim, não importa o quê, Kennedy, estarei aqui
para você.

— Eu sei. Obrigada. Agora vá! — Ordenei, acenando


para o casal feliz em direção à porta. Inclinei-me, beijei a
bochecha de Yoana e dei um abraço apertado em Nathan. —
Você cuida dela ou você morre, combinado?
— Sim, sim. Capitão. Ouça a cidade aqui tem ótimos
lugares para comer e passear. Não tenha medo de entrar em
contato se alguém lhe der dificuldades. Eu sei como essas
pessoas de cidade pequena podem ser grosseiras. Você é
minha irmã agora e não tenho medo de chutar a bunda de
alguém mesmo do exterior.

Eu ri. — Vão, meninos. Amo vocês, fiquem seguros, e


façam como mamãe e papai sempre disseram em suas
aventuras – não tenham medo do desconhecido.

— O mesmo vale para você, mana. Não tenha medo do


desconhecido, — ecoou Yoana.

Nathan se despediu e saiu para dar um momento a


Yoana e a mim. Meu peito doía com o pensamento dela me
deixando, mas eu fiz o meu melhor para esconder essa dor.

— O que Penn fez com você foi cruel, e se eu pudesse,


pessoalmente eu cortaria o pau dele, mas esse capítulo da
sua vida acabou. Lembra o que mamãe e papai disseram para
fazer quando alguém faz você se sentir fraco?

Balancei a cabeça enquanto as lágrimas começaram a se


formar nos meus olhos. — Quando alguém faz você se sentir
fraco, faça algo para se sentir mais forte.

— Exatamente, e é isso que você fará a partir de agora.


Você está se redescobrindo. Você está começando de
novo, e quem tem a coragem de começar novamente é
forte. Você é tão forte. Mamãe e papai ficariam tão
orgulhosos de você. Sei que eu estou.

Basta de Yoana me fazer chorar. — Nossa, apenas saia


daqui, sim? Você vai me deixar chorando sozinha como uma
idiota em uma cidade pequena.

— Ok, eu te amo. Vou ligar assim que chegarmos ao


aeroporto.

Dissemos mais um adeus porque dizer adeus sempre


era um processo extremamente longo. Quando minha irmã
fechou a porta da frente, respirei fundo e permiti que as
lágrimas caíssem por minhas bochechas.

Inclinando minhas costas contra a porta de madeira,


fechei os olhos e senti a onda de solidão batendo no meu
peito. Acabou que não importava quão grande ou pequena a
casa era, não importava o quão quente ou fria a casa estava,
e não importava quantas coisas estavam guardadas dentro
das paredes – quando a solidão aparecia ainda me sentia
extremamente triste.

Nesse momento, meu celular tocou.

Yoana: Eu me esqueci de te contar! Deixei um presente


para você. Coloquei-o na calçada para um pouco de conforto.

Engoli em seco e me recompus enquanto saía para


encontrar a surpresa. No momento em que saí mais lágrimas
brotaram dos meus olhos.
Ali, estacionado bem na minha frente, estava um
presente do passado que pretendia me trazer um pouco de
conforto: o conversível dos meus pais. Aquele veículo velho
representava minhas duas pessoas favoritas, pessoas que eu
havia perdido. Era de uma cor amarela opaca com desenhos
por toda parte. Mamãe e papai queriam que desenhássemos
nossos momentos favoritos no carro durante toda a infância,
criando memórias duradouras que poderíamos recordar ao
longo dos anos.

Enquanto andava em volta do carro, captei todas as


lembranças inscritas nele. Celebrações de aniversário.
Exibições de arte. Férias em família. Não pude deixar de
sentir um sorriso curvar meus lábios. Era uma lembrança
instantânea de quem no fundo eu realmente era.

Lembrei-me de dirigir pela estrada com minha família,


ouvindo Lauryn Hill enquanto nossos cabelos sopravam ao
vento sem medos e muita felicidade. Yoana estava sentada ao
meu lado no carro, e sua risada era contagiante. Ela caía em
um ataque de riso quando ela e eu sopramos bolhas no banco
de trás do carro. Você não conseguiria ficar infeliz com essas
três pessoas em sua vida e esse tipo de alegria.

Pulei no banco do motorista e respirei fundo quando um


perfume particular tomou conta de mim.

Mamãe.
Olhei para o banco do passageiro, onde tinha uma cesta
cheia de guloseimas e uma carta. O perfume favorito de
mamãe estava lá, e eu sabia que era o que estava sentindo.
Yoana deve ter borrifado nos assentos do carro a fragrância.

Orquídeas e mel.

Junto com o perfume havia uma garrafa de uísque e um


pote com grão de café.

Abri a carta e li as palavras.

Kennedy,

Odeio ter que deixar você tão rapidamente depois que nos
reconectamos, mas achei que você poderia usar um pedaço de
sua família enquanto se redescobrisse. Portanto, deixei para
você um pote dos grãos de café favoritos da mamãe para
tomar nas manhãs e uma garrafa do uísque favorito do papai
nas suas noites.

Te amo irmã. Me chame se precisar de mim. Estou a


apenas um voo de distância.

E tente não pensar demais em tudo. Você está no


caminho certo, mesmo nos dias em que não está.

Yoana
Enquanto olhava para as estrelas que pintavam a
atmosfera de Havenbarrow, abri a garrafa de uísque e passei
o resto da noite fazendo pedidos às estrelas por melhores
dias. Pedi a mamãe e papai que me enviassem um sinal de
que, não importando o quê, tudo ficaria bem. Pedi orientação,
oração e milagres.

Eu poderia realmente precisar de um milagre na minha


vida.

Quando a manhã chegou, tive uma forte sensação de


que finalmente seria capaz de sentir o sol depois de tantos
dias de escuridão.
Kennedy

— CUIDADO, Louise. Não esmague esses arbustos, —


uma voz sussurrou enquanto eu bocejava no banco de trás
do conversível que dormi na noite anterior. E fui arrancada
do meu descanso quando ouvi um farfalhar no quintal.

Meu coração pulou no meu peito quando me levantei e


fiquei sentada.

— Ah, quieta, Kate. Se eu pisasse nesses arbustos faria


um favor a eles – confie em mim, — a outra mulher
sussurrou em resposta. Elas andavam na ponta dos pés pela
propriedade, espiando nas janelas enquanto ambas
seguravam recipientes de plástico nas mãos.

— Você acha que é uma família grande? — Louise


perguntou. — Deus sabe que a última coisa que precisamos é
de mais crianças correndo pelo bairro.

— Eu não sei, mas com base na falta de móveis na casa,


eles podem estar em dificuldades.
Eu levantei uma sobrancelha para as mulheres
bisbilhoteiras, que não tinham me notado sentada a alguns
metros delas.

— Espero que contratem alguém para cuidar desta


pocilga que está esse quintal. Não preciso que o valor das
propriedades desça por causa do recém-chegado. A última
família que ficou aqui já fez estragos suficientes, — Louise
bufou de nojo.

— Posso ajudar senhoras? — Entrei, vendo as


intrometidas saltarem em seus sapatos Louboutin ao som da
minha voz. Elas recuperaram o equilíbrio e felizmente
mantiveram os potes em suas mãos enquanto giravam para
me ver sentada no meu carro.

— Oh meu Deus, querida, você não deve se aproximar


das pessoas assim, — disse a de vestido de verão amarelo –
Kate, eu percebi – conforme segurava uma mão contra o
peito. — Você quase me deu um ataque cardíaco.

Quase que revirei os olhos para a ironia de tudo isto,


mas dei-lhe apenas o meu melhor sorriso do Sul ao sair do
carro e caminhar em sua direção. — Desculpem por isso. Não
queria assustá-la.

Os olhos de Louise dançaram sobre minha roupa


vibrante e depois trancaram nos meus olhos. — Bem, sim,
você deve ter mais cuidado.
— Farei melhor da próxima vez. Então, como posso
ajudá-las?

Kate deu um passo à frente com seus perfeitos cachos


loiros balançando no rosto. — Oh, sim. Nós somos suas
vizinhas! Vimos que estava de mudança ontem à noite e
pensamos em passar por aqui para dizer ‘Olá’. Eu sou Kate, e
esta é Louise.

— Sem qualquer parentesco, — disseram elas em


uníssono, e depois riram. — Estou brincando, somos gêmeas!

Porque é evidente que são.

— Eu moro a duas casas abaixo de você, à esquerda, e


Kate mora duas casas abaixo, à direita, — disse Louise. —
Você está bem no meio do sanduíche das gêmeas.

Que sorte a minha!

— Bem, eu sou Kennedy. Prazer em conhecê-las.

Elas mantiveram seus grandes sorrisos no rosto


enquanto olhavam para o conversível dos meus pais. Então
seus olhares dançaram através da minha aparência e de volta
para o carro.

— Devo dizer que esse é um carro de aparência única, —


Louise refletiu, com seu tom pingando julgamento. — Você
dirige por aí, ou é para… exposição?
— Pertencia aos meus pais. Ele contém um pouco de
história de família. Ainda não experimentei levá-lo para a
estrada, mas talvez possa tentar em algum momento. —
Talvez amanhã. Talvez daqui a um ano. Quem sabe...

As mulheres fizeram uma careta. — Interessante, —


disseram, mais uma vez, ao mesmo tempo.

— São para mim? — Perguntei, tentando o meu melhor


para mudar a conversa e fazê-las irem embora. Se eu
soubesse alguma coisa sobre cidades pequenas de todos os
livros que já li, sabia que essas gêmeas eram a receita
perfeita para problemas.

— Oh, sim. Cada uma de nós fez uma torta para você. A
melhor torta de morango e de maçã que você já experimentou
na sua vida. Ficamos acordadas até tarde ontem à noite
assando quando vimos sua mudança.

— Vocês não deveriam…, — eu disse.

— Querida, é claro que sim. Afinal, somos suas novas


vizinhas. Levamos a sério a hospitalidade do sul por esses
lados, — comentou Kate, ainda carrancuda avaliando minha
propriedade.

Louise pigarreou. — Falando em paisagismo... —


Estávamos falando em paisagismo? — ...quem lidará com o
seu? Posso te apresentar algumas pessoas que fazem um
ótimo trabalho.
— Bem, obrigada, mas temos tudo isso alinhado. Eu não
sou a proprietária da casa.

— Oh meu Deus. — Kate gemeu com os dedos pousados


nos lábios. — Você é uma invasora? Na verdade, não mora
aqui? Quer dizer, acho que isso explica o carro, mas isso é
completamente ilegal.

— Devemos informar ao xerife Reid, — afirmou a outra


severamente.

Essas mulheres estão realmente falando sério? Estou


parecendo uma delinquente? Ashton Kutcher está escondido
nos arbustos esmagados por Louboutin?

— Não, não. O que eu quero dizer é que estou alugando


a casa da minha irmã e cunhado pelos próximos meses antes
que eles a vendam. Os paisagistas devem aparecer nos
próximos dias para começar o trabalho.

— Oh, graças a Deus! — Louise exclamou. — Não


poderia, pela minha vida, deixar esta selvageria ir mais longe.
Já estamos lidando com a louca da Joy Jones ao lado, com
seu jardim desgrenhado. Se eu tivesse a oportunidade,
compraria a casa, dessa esquisita.

Ela disse esquisita como se fosse uma coisa ruim.


Pessoalmente me sentia mais atraída pelos esquisitos do
mundo. Eles pareciam muito menos críticos.
Olhei para a propriedade ao lado que era a graça
salvadora de me impedir de ser vizinha direta de Louise. A
casa era exatamente como ela a descrevia – um tanto
desgrenhada – mas ainda assim, era de alguma forma
perfeita. Flores silvestres floresciam como se tivessem sido
plantadas para serem livres. Não havia uma verdadeira
concordância ou razão para a forma como elas cresciam, mas
parecia uma obra de arte.

As mulheres provavelmente me odiariam se eu dissesse


que amei aquele jardim. A liberdade de tudo brandiu para a
parte enjaulada da minha alma. Eu queria ser como essas
flores.

Livre. Sem amarras. Como o vento.

— Seu marido morreu há anos, e Crazy Joy não sai de


casa desde então, — explicou Louise. — Você já viu o Hey
Arnold! Esse desenho animado dos anos 90? Havia aquele
personagem, Stoop Kid, que tinha muito medo de sair na
varanda? Bem, essa é Crazy Joy em poucas palavras. Ela
está com muito medo para atravessar o jardim da frente
desde que o marido morreu.

— Se ele não tivesse deixado dinheiro para Joy e a casa


deles não tivesse sido paga, tenho certeza que ela ficaria sem
teto. Não sou de fofocar, Deus me livre, mas essa mulher é
maluca, — acrescentou Kate. — Há rumores de que ela
acredita que alienígenas vão dominar o mundo em
breve. Todas as cartas que ela escreve todas as
manhãs na varanda são cartas para a Área 51.
Completamente maluca.

Quanto mais elas falavam, mais eu queria conhecer essa


vizinha.

— Faça o que fizer com seu paisagismo, não cometa os


mesmos erros que Joy cometeu com a sua propriedade, —
avisou Kate. — Especialmente com isso, — insistiu ela,
apontando para o quintal da Joy.

Arqueei uma sobrancelha. — Com o que?

Os olhos dela se arregalaram em confusão. — Você não


vê isso?

— Vejo o quê?

— Aquelas flores azuis! — Ela sussurrou, gesticulando


como uma mulher louca. — Ela plantou flores azuis na frente
e no meio!

Esperei alguns momentos para Kate continuar seu


pensamento, mas seus lábios se fecharam como se essa fosse
à conclusão.

Louise deve ter percebido minha confusão. — Flores


azuis! Simplesmente não são naturais.

Oh meu Deus.
Se Yoana e Nathan soubessem quem eram meus
vizinhos, eu tenho quase certeza de que eles teriam
reconsiderado eu ficar nessa casa.

Sorri para as duas loucas. — Vou manter isso em


mente. Agora, é melhor eu voltar para...

— Detesto bisbilhotar, querida, mas você estava


dormindo no seu carro quando chegamos? Você não tem
cama em casa? — Louise perguntou.

Você não tem boas maneiras?

Esta mulher queria inventar as histórias mais absurdas


sobre o que quer que haja sobre minha vida. Por experiência
eu via o melhor nas pessoas – as quais, sim, vinham com
suas lutas – mas Louise e sua irmã, obviamente, tinham a
tendência de ver o pior.

Mordi minha língua. A última coisa que eu queria fazer


era transformar vizinhos em inimigos. Essas duas mulheres
pareciam o tipo que criariam o inferno se sentissem que
tinham um motivo para fazê-lo.

— Às vezes gosto de dormir sob as estrelas. Além disso,


meus móveis não serão entregues até a próxima semana.
Mais uma vez obrigada pelas tortas, senhoras. Foi um prazer
conhecê-las.
Seus olhares se moveram através de mim mais uma vez,
e então elas sorriram assustadoramente ao mesmo tempo.

Stephen King teria tido um dia cheio com estas duas.

— Vamos ver você por aí, tenho certeza. Bem-vinda a


Havenbarrow. Se você não quer ser vista pela cidade dirigindo
isso aí, a herança de família, tenho certeza de que pode
chamar o aplicativo Cuber, — Louise disse com aquele sorriso
maligno.

— Você quer dizer Uber? — Eu perguntei.

Louise riu e acenou com a mão na minha direção. —


Não, querida, quero dizer o aplicativo Cuber. Não temos nada
disso Uber ou Lyft na cidade, mas Connor Roe criou seu
próprio aplicativo chamado Cuber. Ele tem dezessete anos,
mas o garoto é rápido. Além disso, o carro dele parece mais…
estável do que o seu.

Ah, se ela soubesse o quanto seu comentário me fez


querer dirigir o carro de mamãe e papai pela cidade, não teria
dito isso. Eu tinha lidado com valentões suficientes no
passado. E tinha pouco espaço sobrando no meu coração
para seus tons desagradáveis.

Ainda assim, eu não tinha dirigido desde o acidente. A


verdade era que eu não sabia se seria capaz de fazê-lo tão
cedo.
— Não se sinta uma forasteira enquanto estiver aqui.
Lembre-se, se precisar de alguma informação sobre alguma
coisa ou alguém nesta cidade, pode sempre nos perguntar,
querida. Somos muito bem informadas sobre tudo o que se
passa por aqui. Afinal de contas, o marido de Kate é o
Presidente da Câmara, por isso a nossa função é sermos
informadas. Outra coisa, se desejar, pode ir às nossas casas
para se inspirar no paisagismo. Lembre-se – duas para a
esquerda e duas para a direita e você vai nos encontrar! —
Louise disse antes que ambos se apressassem para sair.

Nota mental: não vire à esquerda ou à direita ao sair de


casa.

Ao meio-dia, mais uma dúzia de vizinhos apareceram


com sobremesas a reboque, todos alegando que queriam se
apresentar. Se eu não tivesse ficado fatigada da minha vida
antes de me mudar para Havenbarrow, já teria ficado quando
recebi o meu quarto pão de banana sem glúten, sem nozes e
sem sabor.

Pelo número de perguntas e de intromissões que tinha


sofrido, eu tinha certeza de que as mulheres da cidade teriam
muito o que dizer sobre mim na sua próxima reunião do
clube do livro.
Para conseguir uma pausa da loucura, coloquei um
tênis e peguei meu diário. Eu não queria contato humano por
um bom tempo. Eu precisava voltar ao básico.

Só eu, meu diário e a floresta.


Kennedy

ALGO SOBRE A NATUREZA sempre me fez sentir em paz, algo


sobre o modo como as árvores cresciam por vontade própria e
se inclinavam em direção ao sol para beijos de luz. Algo sobre
a maneira como seus galhos acenavam e dançavam com o
ritmo do vento, enquanto suas raízes permaneciam
solidamente plantadas no lugar, como o ar fresco cheirava a
uma mistura de flores e folhas.

A forma como as aves cantavam… adorava as canções


que cantavam no início de cada primavera, revelando a forma
com que despertavam para um novo começo. Adorava a
forma como as aves se moviam pelos ambientes da natureza,
como se pertencessem a qualquer lugar, como se moviam
livremente e sem restrições. Era tudo o que eu queria na vida,
movimentar-me livremente como as aves enquanto ainda
tinha as minhas raízes solidamente colocadas no chão.
Parecia ridícula – a ideia tanto de voar como de se manter
firme – mas o meu sonho era pertencer a um lugar onde
ainda fosse livre.
Estava vagando pela floresta atrás da minha casa nos
últimos 45 minutos em busca de um lugar para relaxar e
anotar meus desejos, meus sonhos e minhas esperanças.

Eu não havia deixado nenhum tipo de roteiro para voltar


para minha casa e esperava poder encontrar o meu caminho
sozinha. Na pior das hipóteses? Eu dormiria debaixo das
árvores. Não seria a primeira vez, e eu duvidava que fosse a
última.

Quando abri caminho por alguns galhos, fiquei surpresa


ao encontrar um campo aberto, livre de árvores e cheio de
flores de todos os tipos. A flor que mais se destacou foi a que
mais me deixou sem fôlego.

Margaridas.

Centenas e centenas de margaridas amarelas vibrantes


que pareciam ter sido colocadas ali de propósito. Meus olhos
brilharam com lágrimas enquanto eu tentava o meu melhor
para controlar minha respiração. No meio do campo havia um
banco branco, e eu não pude deixar de me encontrar
andando pelo trajeto feito pelo homem em direção a ele. Era
lindo. A maneira como o sol passava sobre as flores as faziam
brilhar e era de tirar o fôlego.

Não conseguia imaginar um lugar melhor para sentar,


respirar e escrever.

Então fiz exatamente isso.


Comecei a rabiscar no caderno, me perdendo enquanto
derramava todo e qualquer sentimento que ocorresse. Não
fazia ideia de quanto tempo passara enquanto passava a
caneta pelo papel e não me importava. Estava mais
preocupada em colocar minhas verdades – não importando
quão bagunçadas elas estivessem – no papel.

O céu da tarde começou a escurecer, e lampiões solares


entrelaçados pelas margaridas começaram a iluminar o
espaço, fazendo com que tudo se tornasse muito mais
mágico.

— O que diabos você está fazendo aqui? — Uma voz


latiu na minha direção, me fazendo pular do banco. Minha
caneta e caderno voaram das minhas mãos, aterrissando
entre as flores. Eu me virei para ver um homem parado atrás
de mim e uma explosão de choque e nervosismo passou por
mim.

— Olá... olá. Eu sou Ke…

— Eu não perguntei quem você era, — ele interrompeu,


com sua voz baixa e severa. — Perguntei o que diabos você
está fazendo aqui.

Ele era um homem bem constituído. Seus ombros eram


largos, seus bíceps eram impressionantes, e seu sorriso era –
bem, inexistente. Mas seus olhos? Perdi-me naqueles olhos
sombrios que se pareciam com o céu à meia-noite. Eu
sabia que era ridículo, mas podia jurar que já tinha
visto aqueles olhos antes. Talvez num sonho, ou talvez numa
fantasia, mas, de qualquer forma, senti uma atração por esse
estranho cruel. Conhecia aquelas íris escuras que me
sugavam, e a forma como ele inclinava a cabeça para mim,
completamente perplexo, me fazia sentir como se ele talvez
também me conhecesse.

Mas desde quando?

De onde?

— Eu sei... — Comecei, mas fui rapidamente


interrompida por sua agressividade.

— Você é surda? — Ele me repreendeu.

Talvez eu não o conhecesse. Eu me lembraria de


conhecer alguém tão rude quanto ele e me lembraria de ficar
longe, muito longe. — Não. Não, de jeito nenhum. — Corri
para pegar meu diário e a caneta que voaram alguns
momentos atrás. Quando dei um passo à frente, confusa,
tropecei nos meus pés e cambaleei, tentando me equilibrar.

— Cuidado! — Ele me alertou e sua voz era uma mistura


de aborrecimento e preocupação – não preocupação comigo,
obviamente. Ele parecia mais preocupado com as margaridas.

Felizmente, eu não caí. E fiz o meu melhor para andar


na ponta dos pés pelas flores enquanto pegava minhas
coisas. — Desculpe. Eu estava vagando pela floresta
quando eu...
— Invadiu.

— O que?

— Você está invadindo. Esta terra é propriedade


privada.

Eu ri um pouco enquanto abraçava o livro no meu peito.


— Sim, eu ouvi, mas…

— Então você sabia?

— Bem, sim, mas…

— Não há, mas. Você ouviu e desobedeceu a lei. Retire-


se da minha propriedade antes que eu precise envolver a
polícia.

Eu bufei, atordoada por suas palavras. — Isso é sério?


Estava apenas tentando respirar um pouco de ar fresco e
explorar e…

— Invadiu, — ele interrompeu - novamente.

— Pare de me interromper! — Meu rosto estava ficando


quente com a grosseria dele e a raiva começou a borbulhar
dentro de mim.

— Eu vou quando você não estiver em minha


propriedade.
O homem com os olhos mais intensos e tristes que eu já
vi estava começando a me irritar. Ele estava sendo tão
grosseiro, duro e frio. Como achava certo ser tão indelicado
com uma pessoa que nem sequer conhecia?

Decidi chamá-lo ironicamente de Sr. Celebridade, vendo


como ele era tão encantador.

— Você não precisa ser tão indelicado, — resmunguei,


balançando a cabeça em descrença. — Eu não estava
prejudicando ninguém nem nada por estar aqui fora. A ideia
de que as pessoas podem possuir a natureza é um conceito
completamente ridículo de qualquer maneira. Essas árvores
estavam aqui antes de você nascer, estarão aqui muito tempo
depois que você morrer, e você ainda está tentando
reivindicá-las como suas. Isso é loucura para mim.

— Suponho que fique bem com estranhos vagueando


por seu terreno. —

— Isso não é o mesmo.

— Não é o terreno onde a casa foi construída antes de


você nascer? Será que não estará lá depois de a casa desabar
e você morrer? Mas acho que as pessoas invadindo o teu
espaço é diferente, porque a casa é tua e não minha.

— Seu sarcasmo não foi apreciado, — eu rebati, falando


com firmeza, apesar do meu nervosismo.
Comecei a dar um passo à frente para sair do campo de
flores e acidentalmente esmaguei algumas margaridas. Ele
pulou em minha direção.

— Cuidado! — Gritou.

E se inclinando no chão começou a tentar reparar o


dano que eu havia causado. A careta em seu rosto se
transformou em uma expressão severa enquanto as
margaridas estavam frouxas em suas mãos. Suas mãos eram
tão grandes que parecia que ele era um gigante brincando
com flores em miniatura. Seus lábios se moveram um pouco
quando ele murmurou algo baixinho, mas eu não consegui
discernir o que estava dizendo.

— Lamento, eu não ouvi…, — afirmei, e meu coração


ainda estava na minha garganta de tão nervosa que eu
estava.

— Provavelmente porque eu não estava falando com


você.

— Certo. Desculpe. Além disso, sinto muito por


qualquer dano que causei às suas flores.

Ele continuou sussurrando baixinho. Lembram-se do


Cesar Millan, o cara que sussurrava com os cães? Bem, neste
momento estava lidando com o Sr. Celebridade, o
sussurrador humano – não porque ele tivesse uma forma
profunda de entender os humanos, mas porque tudo o
que ele fazia era sussurrar.

— Se houver algo que eu possa fazer…

— Apenas vá, — afirmou com sua voz baixa e


controlada.

— Sem ofensa, mas você tem um temperamento terrível.

— Sem ofensa, mas eu não dou a mínima para o que


você pensa de mim.

— Idiota, — murmurei.

— Então você já ouviu falar.

— Ouvi o que?

— Sobre o meu papel na história fodida desta cidade, —


resmungou. — Eu sou o idiota da cidade. Apenas vivendo de
acordo com meu papel.

— Posso ver que você o leva a sério.

— Sou um profissional.

— Espero que você seja apenas uma pequena parte da


história desta cidade.

— Não há pequenas partes numa pequena cidade,


apenas pequenos clichês mentais. Tenho certeza que você vai
se encaixar bem. Agora, se me desse o prazer de sair da
minha propriedade, isso seria ótimo.
Uau.

Muito bem, Sr. Celebridade.

Posso apoiar alguém que encara seriamente sua carreira


de ator, sem qualquer problema. E rapaz, ele era bom. Ele
merecia um prêmio por sua atuação. Acreditava em todos os
comentários arrogantes que ele proferiu.

Se Louise, Kate e o Sr. Celebridade fossem os pontos


altos desta cidade, eu estaria em uma festa.

Ele não olhou para mim. Aqueles olhos escuros e


misteriosos não focaram nos meus novamente. Ele manteve o
olhar fixo nas margaridas com uma expressão tão carrancuda
que alguém pensaria que eu pisara em sua amada e a
esmagara até a morte.

Murmurei outro pedido de desculpas sem resposta e


comecei minha jornada de volta para casa – bem, tentei
encontrar o caminho de volta. Mas acabei caminhando em
círculos na floresta, e me encontrei de volta no campo das
margaridas. E o Sr. Celebridade estava sentado no meio do
campo, no banco branco, e soltou um suspiro pesado quando
me viu.

— Vá direto para minha casa. Vai até a Merry Road.


Com sorte, poderá descobrir onde vive quando chegar à
estrada principal.

— Certo. Claro. Obrigada.


Ele não disse mais nada.

Enquanto andava pelo quarteirão para encontrar meu


caminho de volta para minha casa, não pude deixar de rir do
fato de o Sr. Celebridade morar em uma rua chamada Merry 1.
Ele estava longe de ser feliz. E Avenida Scrooge 2 parecia
muito mais adequada.

1
- Feliz em inglês;
2
- Ebenezer Scrooge é um personagem principal da história Um Conto de Natal, de Charles
Dickens. O personagem mais tarde serviria como inspiração para Carl Barks criar o Tio Patinhas. No
início da história Scrooge apresenta uma frieza desmedida no coração, além de ser ganancioso e
avarento;
Jax

AS PESSOAS ERAM AS PIORES .

Infelizmente, meu trabalho diário exigia que eu tivesse


um contato próximo com os seres humanos regularmente. Eu
era o único encanador da cidade, por isso, é desnecessário
dizer que passava muito tempo lidando com a merda de
Havenbarrow. Houve tantos dias em que desejei ter-me
tornado um escritor, ou escultor – ou literalmente qualquer
coisa que envolvesse o mínimo contato humano possível. Ah,
você precisa de alguém que fique em Marte por cinquenta
anos? Não há problema, chefe. Inscreva-me.

Inferno, ser veterinário teria sido melhor que isso. Pelo


menos, eu teria sido capaz de interagir com animais fofos
enquanto lidava com os seus donos idiotas que achavam que
não havia problema em dar vinho aos seus cães porque LOL
YOLO3.

3
- Yolo é um lema em inglês, um acrônimo que significa You Only Live Once, cuja tradução é Você Só
Vive Uma Vez.
Desnecessário dizer que eu não sou uma pessoa do
povo. E também achava que eles eram demais para o meu
gosto. Tinha cruzado com muitos tipos diferentes de
indivíduos na minha vida e tinha aprendido rapidamente que
a maioria deles não era para mim. Portanto, encontrar uma
mulher invadindo o meu bosque não foi à coisa mais
excitante que me aconteceu ontem à tarde. Mesmo que ela
fosse bonita, ela ainda era, apesar de tudo, humana. Sua
beleza não era suficiente para que eu não me importasse que
ela estivesse em minha propriedade. Queria dela a mesma
coisa que desejava de praticamente toda esta gente na cidade:
ser deixado em paz.

— Que diabos está preso aí dentro? — Eu resmunguei


enquanto olhava para a pia entupida do banheiro principal
dos Jeffersons.

Marie Jefferson era uma senhora velha com olhos


bondosos. Ela estava no início dos seus 60 anos e usava
sempre as suas pérolas à volta do pescoço, com a roupa mais
cara e vibrante conhecida pela humanidade. Estava sempre
com roupas de grife, e se não fosse de grife, mesmo assim era
cara como o inferno. A maioria das pessoas em Havenbarrow
recebia grandes salários ou vinha de uma família abastada, e
Marie não era diferente. Ela simplesmente não tinha a
mesma atitude arrogante que muita gente da cidade tinha.
Na escala de pessoas que eu odiava, ela era uma das
poucas e distantes entre as quais eu podia tolerar, o que era
bom, considerando que seu marido, Eddie, era meu terapeuta
e era desde os treze anos de idade.

— Oh, bem, você sabe… — Marie encolheu os ombros e


girou o dedo nos cabelos tingidos de loiro morango. — Ontem
à noite, Eddie e eu ficamos um pouco selvagens, e bem… —
Ela pigarreou e suas bochechas ficaram vermelhas. — Jax, é
um pouco embaraçoso. Eddie me disse para não lhe contar a
verdade, mas sou uma péssima mentirosa.

O seu olhar passou por mim e travou em Connor, meu


assistente, que tinha acabado recentemente o seu primeiro
ano no ensino médio. Ele era o meu único empregado por
uma simples razão: ninguém mais na cidade tinha coragem
suficiente para trabalhar comigo. Connor era diferente,
porém. Ele era o golpista da cidade. Se havia uma maneira de
obter lucro, Connor estava em cima dele. Não me
surpreenderia se ele ficasse milionário antes de fazer vinte e
um anos. As rodas da sua cabeça estavam sempre rodando
com ideias sobre como ganhar mais dinheiro.

Eu trabalhava com ele há quase um ano, o que era


muito mais tempo do que qualquer outro empregado meu
tinha durado. Todo mundo antes dele saiu chorando ou me
chamando de idiota. Alguns choraram e me chamaram de
idiota ao mesmo tempo.
Connor era diferente. Ele não levou a sério nenhum dos
meus comentários agressivos e enérgicos. Estava
determinado a comparecer para receber seu salário e a se
divertir fazendo isso também. Mesmo quando eu estava de
mau humor, Connor agia como se fôssemos melhores amigos.

Na verdade, funcionava muito bem a meu favor. Nós


éramos um estranho perfeito casal. Éramos como o policial
bom, e o policial mau. Quando eu era mal-humorado com os
clientes, Connor vinha com seu charme para conquistá-los.
Regularmente ele ia embora com mais gorjetas do que eu
porque as pessoas gostavam dele. E não poderia culpá-los.

É triste dizer isso, mas com o tempo, tenho me afeiçoado


ao merdinha também.

Passei o braço pela testa. — Bom, não se envergonhe,


Marie. Ou você pode nos dizer agora, ou eu desmontarei os
canos. E de qualquer forma, descobriremos o que há lá, mas
se você me disser agora, posso evitar um trabalho extra.

— Oh, céus. — Ela corou e apertou as pérolas no


pescoço. — Ok, bem… há bolinhas anais lá embaixo. Nem
são grandes nem nada! Apenas uma sequência muito
pequena delas.

Connor instantaneamente caiu na gargalhada. Lancei


um olhar severo para ele calar quando meu corpo se
encolheu com a ideia do que Marie tinha acabado de me
dizer. A ideia da pequena e doce Marie usando
bolinhas anais trouxe um nível de desconforto que eu não
estava pronto para enfrentar. Em que tipo de merda esquisita
meu terapeuta se meteu? Nossa, perturbado nem sequer
chegava perto de como eu estava me sentindo.

Inferno, agora eu estava segurando minhas próprias


pérolas.

— Nós usamos apenas uma vez, enquanto Eddie e eu


estávamos… hum, bem… — Ela corou ainda mais e se
inclinou em minha direção. — Veja bem, eu estava com as
mãos e os joelhos no balcão da pia. — Ela fez uma pausa e
gesticula. — Não se preocupe, eu limpei tudo antes de você
aparecer. Não há se...

— Ok, sabe o que, Marie? Eu acho que conseguimos a


partir daqui. Que tal ir cuidar do que precisa ser feito na
casa? Terminarei em pouco tempo.

Olhei por cima do ombro para ver Connor parado ali


com os braços cruzados e o rosto mais vermelho da história
de todos os tempos. Suas bochechas estavam inchadas como
Alvin, o maldito esquilo, e eu sabia que se o cutucasse, ele
explodiria.

Quando Marie estava fora de vista, Connor soltou uma


risada, curvando-se e agarrando seu estômago enquanto ele
uivava em uma luta de risadinhas.
— Oh meu Deus, essa é a merda mais desagradável que
eu já ouvi! Ela tem cem anos! — Ele exclamou.

— Ela está na casa dos sessenta, não cem, e você teria


sorte de ter a idade dela e ainda ter uma vida sexual.

Ele estremeceu com o pensamento. — Isso é nojento.


Não quero que meu pau enrugado deslize em alguém dessa
idade.

— Olha a boca, Connor.

— Só estou dizendo que é nojento.

— Olha a boca, Connor. — Repeti.

Ele gemeu. — Desculpe, Jax.

— Apenas me dê uma chave inglesa, sim? — Arregacei


as mangas e manobrei embaixo da pia para começar.

— Ei, Jax... toc, toc, — disse Connor, segurando a chave


na minha direção. Eu juro, esse cara faz mais piadas ruins
do que um pai do centro-oeste.

— Quem bate?

— As bolinhas anais de Marie.

Pelo amor de Deus. — As bolinhas anais de Marie quem?

Ele riu antes de começar a falar novamente. — Não,


é isso. Essa é a piada. A piada é que você está prestes a
tocar nas bolinhas anais de Marie, e se isso não é engraçado,
não sei o que é.

Continuou rindo o tempo todo que eu trabalhei, e não


esperava nada menos do garoto pateta.

Depois que as bolinhas foram removidas com sucesso


do cano da pia, lavei minhas mãos agressivamente e fechei a
torneira. — Vá jogar as coisas na caminhonete. Encontro você
lá fora.

— Certo, capitão.

Ele se apressou e, enquanto eu saía do banheiro,


encontrei Eddie entrando em casa com uma pasta nas mãos.
Ele passava as manhãs no parque, lendo jornal em seus dias
de folga.

Eddie estava na casa dos sessenta também, e as rugas


em seu rosto contavam as histórias de seu passado. Suas
linhas de expressão eram profundas.

Acenou na minha direção com um pequeno sorriso. —


Vejo que você ainda está vivo depois de perder duas semanas
de terapia, — comentou com um sorriso.

— Apenas trabalhando.
Balançou a cabeça em compreensão enquanto colocava
sua pasta no chão. E passou a mão pelos cabelos grisalhos.
— E Amanda? Como ela está? Como vocês estão?

— Não somos mais nós. Nós terminamos há algumas


semanas.

— Humph. — O olhar de Eddie dizia muito mais do que


suas palavras jamais diriam.

Suspirei. — Tudo bem, desembucha.

— O que?

— O que pensa sobre meu término com Amanda.

— O que eu penso? — Murmurou, passando o polegar


pelo bigode grosso. — Eu não tenho nenhum pensamento
sobre o assunto.

Arqueei uma sobrancelha. — Sério?

— Sério. — Ele parou por um momento, ainda me


analisando com aqueles olhos de terapeuta. O fato de não
estarmos sentados em seu consultório não significava que ele
não usaria suas habilidades em mim. Uma parte de mim
suspeitava que Marie tivesse colocado as bolinhas anais no
ralo apenas para que eu viesse depois de perder algumas
consultas.
— Por quê? — ele questionou com os olhos estreitos. —
Devo ter pensamentos sobre o assunto? Você tem
pensamentos sobre o assunto?

Aí estava.

Seus comentários pareciam tão indiferentes, mas eu


sabia que ele estava me preparando para se aprofundar mais
na minha psique sobre por que as coisas não tinham
funcionado entre Amanda e eu. Ele estava me abordando
como um terapeuta.

— Você quer que eu me deite no seu sofá e conte


minhas ponderações? — Eu brinquei.

Eddie sorriu um pouco. — Meu sofá está sempre aberto.

— Sim, bem, hoje não. Nós, temos regras. Apenas nas


sessões no consultório, lembra-se? Além disso, tenho mais
trabalhos com Connor, então me perdoe por não querer
mergulhar nos detalhes da minha separação.

— Humm. — Oh inferno. Eu conhecia o tom daquele


humm. Nada de bom vinha depois desse tipo de humm
quando saía de seus lábios. Ele apontou para o sofá. — Você
tem certeza de que não podemos explorar um pouco? Mesmo
por mais ou menos cinco minutos?

Eu ri. — Boa tentativa, doutor, mas eu tenho que correr.


— Do que exatamente você está fugindo? — ele disse
com as mãos juntas e a cabeça inclinada para o lado.

— Neste momento? Bolinhas anais.

Ele jogou as mãos para o ar. — Pelo amor de Deus,


Marie, você não podia deixar de contar a Jax sobre o que
aconteceu com o ralo do banheiro? — Ele gritou em direção à
outra sala.

— As bolinhas foram ideia sua, querido! Não me culpe


por ser incapaz de mentir, — ela gritou de volta. — Minha
veracidade foi o que fez você se apaixonar por mim todos
esses anos.

— Sim, bem, as coisas mudam. — Ele gemeu,


balançando a cabeça.

Eu empurrei minha língua na minha bochecha. — Tem


certeza de que não quer se deitar no sofá e me contar seus
pensamentos e sentimentos atuais?

Ele atirou punhais em mim com os olhos, tornando-o


menos Dr. Jefferson e mais o Humano Eddie. — Pensei que
você estava indo embora.

Sorri. — De saída.

— Passe no consultório quando tiver uma chance, para


uma consulta.

— Parece bom.
— Ah, e Jax?

— Sim?

— Sinto muito, ouvi sobre seu pai.

Fiquei quieto por alguns segundos. Eu nem me


incomodei em perguntar como ele soube disso, porque sabia
que as pessoas em nossa pequena cidade eram todas
repórteres sem credenciais. Era uma cidade de fofoqueiros
que realmente não dava a mínima para meu pai ou para
mim.

Na verdade, eles estavam correndo cantando canções de


alegria por ele estar quase morto. Logo, eu andaria pelas ruas
e ouviria os louvores das pessoas da cidade: Ding dong, o
velho idiota está morto. Qual velho idiota? O velho idiota
escroto!

Meu pai não era amado por mim, e ele era ainda menos
amado pelos habitantes dessa cidade. Se eu tivesse que
contar o número de vezes que ele foi referido como o Sr.
Potter da cidade de It's A Wonderful Life, ficaria exausto ao
contar. E não podia nem discordar da avaliação.

Meu pai não era um homem bom, e agora ele estava


numa casa de repouso, lutando depois que seu terceiro
derrame o deixou parcialmente paralisado e com demência
vascular. Sequer sabia quem ele era, e eu não era mais
capaz de cuidar dele. Havia se mudado recentemente
para o lar de idosos, onde poderia obter os cuidados
de que precisava.

Antes de meu pai ser colocado lá, eu havia passado os


doze anos anteriores ajudando-o com seus problemas de
saúde – que eram muitos. Ele nunca se cuidou, o que
dificultou ainda mais a tarefa. Durante todo esse tempo, ele
também era ágil em me bater, para me lembrar de que eu
estava sob o seu domínio. Meu irmão mais velho, Derek,
partiu no dia em que fez dezoito anos e nunca mais olhou
para trás. Mamãe teve Derek em um casamento anterior, mas
durante toda a minha vida, Derek referiu-se ao meu pai como
seu até o dia em que a nossa mãe faleceu e papai se voltou
contra nós como o seu saco de pancadas.

Agora, papai fora transferido da casa em que cresci e


colocado sob os cuidados de outras pessoas. Mesmo que eu o
odiasse, a casa ainda era um pouco mais fria à noite.
Engraçado o quanto alguém podia sentir falta dos demônios
com quem costumavam brincar quando partiam.

Eddie teve um dia cheio quando eu revelei essa verdade


a ele.

Balancei a cabeça, tentando não mostrar nenhuma


emoção sobre a condição do meu pai. A verdade é que eu
tinha pulado nossas consultas porque não estava pronto para
conversar. E não sabia o que dizer.
Eddie faz uma careta feia no rosto. Ele costumava ser
melhor em segurar essas caretas durante as sessões de
terapia, mas quanto mais nos afeiçoamos e mais nos
tornávamos família, Eddie não conseguia esconder sua
preocupação comigo.

— Se você precisar conversar… — começou.

— Seu sofá está sempre aberto… sim, Eddie, eu sei.

Fui para fora para encontrar Connor na caminhonete,


mas, para minha surpresa, encontrei-o em pé na cerca,
conversando com a mais nova vizinha de Eddie e Marie – a
invasora.

Ele segurava um dos seus cartões de visita na sua


direção e como sempre falando – demais. — Então, sim, eu
sou o fundador, proprietário e CEO da Cuber Incorporated, e
você como novo membro, ganha sua primeira corrida de
graça. Mas, como parece ser um diamante nesta pequena
cidade carbonífera, vou permitir que tenha duas corridas
gratuitas. Basta fazer o download do app e introduza o código
‘diamante’. — Fez uma pausa e arranha o nariz. — Muito
bem, não introduza ainda esse código porque tenho de
atualizar o aplicativo antes que isso funcione, mas depois das
16 horas, estarei livre para oferecer esse serviço. — E
balançou as sobrancelhas de forma sugestiva.

— Connor, — eu grito, fazendo-o virar a cabeça


para mim. — Vamos.
Ele ergueu um dedo. — Um segundo, sócio, estou
tratando de uns negócios. Por falar em negócios, não tenho
apenas o Cuber, sou sócio da Kilter e Roe Encanamentos e…

— Você não é meu sócio, é meu funcionário, e


atualmente até nisso está pendurado por um fio.

Connor sorriu e acenou com a mão desdenhosamente


em minha direção. — Não lhe dê ouvidos, ele é apenas um
velho rabugento antes dá uma da tarde. Demora um pouco
para ele acordar e ser um humano decente como todos nós,
— brincou.

A intrusa sorriu levemente, olhando para o meu lado. —


Percebi que isso é verdade, — disse ela.

Fiz uma careta, sem me impressionar com o rumo que


esta conversa estava tomando. — Connor, carro. Agora.

— Muito bem, sócio…

— Mais uma vez, você não é meu sócio.

Revirando os olhos, diz: — Algumas pessoas e a sua


resistência aos títulos, não é mesmo? — Disse sorrindo, e a
invasora voltou a rir. Que ela se lixe por ser bonita. — Mas,
de qualquer maneira, deixe-me ir antes que o rabugento
McGrump tenha um aneurisma. E lembre-se, precisando de
uma carona, você tem o Connor ao seu lado. E se estiver com
problemas de encanamento, não tema em ligar para o
segundo número deste cartão. — Entregou-lhe outro
cartão de visita e depois piscou para ela. — Ficarei mais do
que contente em dar uma olhada em seu encanamento.

Santo Deus! As insinuações que saíam da boca deste


garoto eram dolorosas.

— Connor, entra no carro, — ladrei.

— Rabugento mesmo. — A invasora sorriu, o que me


irritou ainda mais porque o seu sorriso também era lindo.
Voltei para a caminhonete e saltei para o assento do
motorista.

Alguns instantes depois, Connor se juntou a mim,


afivelou o cinto de segurança e depois esfregou as mãos. —
Não poderia perder a oportunidade de obter novos clientes.
Você entende né chefe.

Eu levantei uma sobrancelha. — Oh, então agora eu sou


seu chefe?

— Escute, Jax, você precisa entender; as mulheres


respeitam os homens que têm seus próprios negócios. Isso
me faz parecer mais profissional quando digo que sou seu
sócio.

— Ou isso faz você parecer um mentiroso.

— Dá no mesmo…

— Deixe-me ver este cartão de visita que você está


distribuindo para nós.
Ele enfiou a mão no bolso e me entregou.

Olhei para ele e balancei minha cabeça


instantaneamente. — Encanamento Kilter e Roe: mesma
merda, banheiro diferente. Esse é o seu slogan? — Eu gemi.

— Era isso ou ‘Nós bombeamos a sua merda’, —


explicou. — Sinto que o que escolhi tem a melhor pronúncia.
Agora, como contraí uma nova clientela e ajudei na remoção
das bolinhas anais, acho que é o momento perfeito para
passar no café e almoçar antes do nosso próximo trabalho, —
sugeriu ele, balançando as sobrancelhas.

— Acabamos de tomar o café da manhã antes de parar


na casa dos Jefferson.

— Sim, há duas horas. Sei que é velho e provavelmente


já atingiu o teu auge e tudo o que terá que esperar no futuro
é bolinhas anais, mas eu sou um jovem em fase de
crescimento, Jax! Preciso de todos os carboidratos que
conseguir ingerir.

Virei à chave na ignição. — Almoçaremos durante o


nosso intervalo no escritório. Eu já trouxe comida para nós.

Connor fez uma careta de nojo. — Por favor, não me faça


comer outro sanduíche de manteiga de amendoim e geleia e
seu repugnante shake de proteína. Estou cansado disso.

— Está repleto de proteínas e ajudará você a


desenvolver músculos.
— Você sabe o que mais me ajudaria? Um número nove
do McDonald's.

Eu sorri. — Você pode gastar seu salário com essas


coisas durante o seu tempo livre, mas, no trabalho comigo,
comerá um sanduíche e um shake de proteína.

— Com grama nele.

— Não é grama. É couve.

— Não julgando sua masculinidade Jax, mas adicionar


couve aos seus shakes de proteína faz com que você se
pareça muito com aquelas garotas que usam botas Ugg e são
viciadas em Starbucks e Target.

— Você está me chamando de uma vadia sem


personalidade?

Ele abriu os lábios para responder, mas fez uma pausa,


arqueando uma sobrancelha. — Vai me dizer para cuidar do
meu linguajar se te chamar de vadia?

— Sim.

— Bem, então pare de ser uma vadia sem personalidade


e comer couve. A próxima coisa que sei é que você brindará
com batidas de abacate no Instagram enquanto toma um
kombucha4. —

— O que é kombucha?

4
– Chá adoçado;
— Oh! Graças a deus. — Connor suspira e passa a mão
na testa. — Você ainda tem suas bolas. —

— Não diga bolas, — pedi, apontando um dedo severo


para ele. — E não diga vadia.

Ele se recostou no banco e colocou as mãos atrás da


cabeça, apoiando os sapatos no meu painel antes que eu os
tirasse rapidamente.

— Ok, eu não vou dizer vadia mais. De qualquer forma,


podemos tirar um minuto para falar sobre a gostosura que é
a nova vizinha de Jefferson? — Ele perguntou.

— Não.

— Vamos lá, Jax. Você deve ter notado. Ela é gostosa


demais! E você viu seus olhos? Ela tem os olhos mais
impressionantes que eu já vi. Eles eram como... caramelo.
Você viu Jax? Você viu os olhos dela?

— Sim, Connor. — Eu vi os olhos dela, e ele estava certo


– eles eram malditamente lindos, mas isso não tinha nada a
ver comigo, e definitivamente não era da minha conta… e foi
por isso que fiquei confuso que o pensamento de seus olhos
tivesse pesado muito na minha mente.
O DIA de trabalho continuou e Connor não parou de
falar o tempo todo. Juro que esse garoto não calava um
minuto do dia. Eu me tornei muito bom em desligá-lo, porque
metade da merda que saía de sua boca era apenas bobagem
adolescente. Talvez fosse por isso que eu gostava dele, porque
ele não era nada como eu. Ele era caloroso, convidativo – e
um completo idiota, sim, mas, ainda assim, eu gostava de ter
o garoto por perto. É claro que eu nunca diria isso a ele,
porque ele nunca me deixaria passar com isso.

Quando chegamos a sua casa no final da noite, a cor de


Connor se esvaiu um pouco quando ele olhou para sua casa.
O garoto brilhante e falador perdeu toda a luz em um
instante enquanto olhava para dentro de casa e via sua mãe
entrando.

Eram apenas os dois, e sua mãe estava atualmente


lutando contra o câncer, o que é extremamente difícil para os
dois. Eu sabia que Connor trabalhava tanto, porque queria
ser capaz de cuidar de sua mãe. Ele tinha um coração de
ouro, e ela tinha sorte de tê-lo.

Abaixei minha cabeça enquanto minhas mãos estavam


presas no volante. — Se vocês precisam de alguma coisa, —
ofereci, me sentindo horrível pelo pobre garoto. Gostaria de
poder lutar suas batalhas.

Ele balançou sua cabeça. — Não. Estamos


superando isso. Hoje à noite, vou assistir a um filme
da Disney com ela para tentar animá-la um pouco.
Ela ama essas coisas da Disney. — Ele sempre tentou agir
como se o câncer não o atingisse, mas eu sabia que não devia
acreditar nisso.

Não era justo que Connor estivesse sendo forçado a


crescer mais rápido do que ele merecia.

— Envie uma mensagem se precisar de alguma coisa, —


disse.

— Ok. Vejo você amanhã. Espero que o dia envolva mais


bolinhas anais, — brincou, mas a palidez de seu rosto ainda
estava lá enquanto tentava esconder seu sofrimento com
humor.

— Duvido.

— Boa noite, Jax. — E saltou da caminhonete e correu


em direção aos degraus da frente. Esperei até ter certeza de
que ele havia entrado em sua casa.

Em vez de ir para casa como eu queria, fui ao único


lugar onde desejava não precisar ir para ver a única pessoa
que eu desejava saber como superar. Fui diretamente para o
asilo para ver o meu pai.

Sabia que ele provavelmente estaria dormindo quando


eu chegasse. Ultimamente ele dormia a maior parte dos dias
enquanto seu corpo lutava para preservar sua vida ou para
aproximá-lo da morte – eu não tinha certeza.
Só sabia que desde que ele foi parar no lar de idosos, eu
estava lá todas as noites, sentado à sua cabeceira enquanto
ele dormia profundamente.

Reparei numa bicicleta estacionada à porta do asilo, e


sabia que pertencia à Amanda, uma das cuidadoras do meu
pai que, por acaso, era minha ex-namorada.

Entrei e a reparei nela sentada na recepção, lendo um


romance. Ela estava sempre lendo um livro sobre cavalheiros
de armadura brilhante, salvando o dia.

Achei que era por causa desses livros que eu nunca


tinha sido o que ela queria que eu fosse. Mesmo quando eu
tentava entrar totalmente em nosso relacionamento, eu
sempre soube no fundo que algo estava faltando. Paixão?
Uma conexão mais profunda?

Quem sabe.

Talvez eu estivesse muito ferrado com meus traumas do


passado para saber como amar alguém corretamente. Tudo
que eu realmente sabia era que depois de dois anos de
namoro e sem um compromisso, ela se cansou de tudo.
Quando ela mencionou que nós podíamos ter um bebê e
ignorou a etapa do casamento, eu sabia que era hora de
cortar o cordão.

— Oi, — eu disse, acenando em sua direção. Ela


nem tinha me notado entrar. Quando seus olhos
estavam trancados nessas páginas, ficava distante do
resto do mundo, totalmente imersa nas palavras das páginas,
a menos que um paciente precisasse de sua ajuda.

Fechou o livro e me deu um meio sorriso. — Oi.

— Como ele está?

— Você sabe, o mesmo. — Ela se levantou da cadeira e


abraçou o livro no peito. Seu cabelo castanho estava preso
em um rabo de cavalo bagunçado, e parecia exausta. Tinha a
sensação de que o trabalho dela não era o mais fácil de
executar.

Ficou claro que papai não tinha muito tempo e, para ser
sincero, eu não tinha certeza de como me sentir sobre tudo
isso. Meu pai não era um bom homem. Ele era cruel com
qualquer pessoa.

Alguns olhares em volta da minha casa mostraram como


o meu pai tinha sido comigo durante minha infância. Havia
feito buracos suficientes nas paredes desde que a sua fúria
bêbeda emergia através dos seus punhos. Quando aqueles
punhos não tinham tido ligação com as paredes, havia uma
boa chance de colidirem em meu rosto. Nem podia contar
com ambas as mãos o número de vezes que ele me batia em
cada uma das salas daquela casa por coisas totalmente
banais.

Se a máquina de lavar não terminasse antes do


noticiário da noite – me batia.
Se estranhos fossem encontrados vagando em nossa
propriedade – me batia.

Se me ouviu roncando alto demais – me batia.

Se por sentir falta da minha mãe – me batia.

Sempre procurei perceber quando o meu pai tinha se


tornado o monstro que ele era. Ele tinha sido cruel e violento
antes da morte da mamãe, mas perdeu o juízo quando ela
morreu. Nunca culpei meu irmão por ter deixado a cidade. Eu
deveria ter feito à mesma coisa, mas nunca consegui criar
coragem suficiente para deixar meu pai por conta própria.

Talvez uma parte de mim tenha sentido necessidade de


tomar conta dele.

Talvez uma parte de mim sentisse que eu merecia os


espancamentos.

Seja como for, eu fiquei.

Eu deveria ter preenchido os buracos nas paredes, mas


uma parte de mim não queria esquecer o dano que meu pai
havia causado.

Amanda cruzou os braços e seu olhar ficou suave. —


Como você está indo? — Perguntou.

— Você sabe, o mesmo, — murmurei, dando a ela as


mesmas palavras que ela me deu do meu jeito. Puxei o
livro de dentro da minha jaqueta e o segurei no ar. —
Posso entrar?

— Sim, claro.

— Ok. Obrigado, Amanda.

Um raio iluminou o céu lá fora e, em segundos, um


dilúvio estava caindo.

— Merda, — murmurou, revirando os ombros para trás.


— Está realmente caindo o mundo lá fora, e eu vim de
bicicleta para o trabalho.

— Vou te dar uma carona para casa quando terminar


aqui, se você quiser.

Eu vi uma centelha de esperança em seus olhos


enquanto dizia essas palavras, e eu gostaria de ter sido o tipo
de idiota que não percebia as emoções de uma mulher. Teria
sido mais fácil do que ver todos os sentimentos que
alternavam em suas feições.

— Sim, isso seria ótimo, — disse tentando segurar seu


sorriso.

Não sorria para mim, Amanda. Eu não valho a pena.

Fui para o quarto de papai e, quando entrei, ele estava


dormindo, o que era bom. Se ele não estivesse dormindo, eu
teria pensado em me virar e ir embora. Sentado no leito de
morte, ele ainda tinha a capacidade de ser totalmente
cruel – mesmo quando não me reconheceu como seu
próprio filho. Quando ele estava deitado eu podia vê-lo um
pouco mais humano, invés do monstro.

Puxei uma cadeira ao lado de sua cama e comecei a ler


Guerra e Paz – seu romance favorito – para ele. Eu lia alguns
capítulos todas as noites, mesmo que ele não pudesse me
ouvir. Esse romance foi uma das únicas coisas que ele e eu
tínhamos em comum. Além de gostar do mesmo livro, eu era
o completo oposto do homem frágil que estava deitado à
minha frente.

Eu li por quarenta e cinco minutos antes de fechar o


livro e me levantar. Papai parecia tão quebrado e cansado. Às
vezes eu contava suas respirações para ter certeza de que ele
estava respirando.

Outras vezes, eu colocava minha mão contra seu peito


para sentir seus batimentos cardíacos.

Meu coração frio não sabia como lidar com o que estava
acontecendo com o homem que sempre foi agressivo e duro
comigo. Vê-lo tão quebrado era mais difícil do que eu jamais
poderia imaginar.

Depois que terminei minha visita, fui em direção à


recepção onde Amanda já estava me esperando. — Pronta? —
Eu perguntei.

Ela assentiu enquanto pegava suas coisas.


Saímos para a minha caminhonete, e ela foi rápida em
mudar meu rádio da estação de rock para sua música pop. —
Obrigada pela carona. Eu não sabia que iria chover, —
explicou passando as mãos pelas coxas.

— Sem problemas.

— Você viu o convite do casamento de Alex e Morgan? —


Ela perguntou. — Quer dizer, foi enviado para minha casa,
mas Morgan disse que lhe enviaria outro, já que não somos
mais um casal. A menos que…, — ela mordeu o lábio inferior
e, porra, tudo que eu queria era uma cerveja gelada e
silêncio. — A menos que você deseje ir comigo.

Passei a mão pelo cabelo. — Acho que nós dois sabemos


por que essa não é uma boa ideia.

— Poderia ser uma boa ideia se tentássemos, no


entanto. Quer dizer, realmente – e se tentássemos essa coisa
de ex com benefícios? Acho que estou bem o bastante com a
separação. — Ela disse isso em tom brincalhão, mas eu sabia
que ela estava falando sério.

— Amanda… você me ligou bêbada e chorando no fim de


semana passado.

— Foi culpa do álcool. Isso me deixa uma bagunça. —


Ela riu, e percebi que era uma risada nervosa. Eu me senti
muito mal com a separação, não porque não era certo
para nós – porque era - mas porque ela não estava
levando isso numa boa.

Paramos na frente do seu prédio e estacionei a


caminhonete. — Amanda, por favor. Já conversamos sobre
isto. Simplesmente não funcionaria entre nós. Você sabe que
eu acho que é uma grande garota e...

— Por favor, não me menospreze com os seus elogios


vazios, — murmurou. — Isso não faz doer menos.

Abaixei minha cabeça. — Se trabalhar para o meu pai


está dificultando muito essa situação, posso tentar transferi-
lo...

— Eu posso fazer o meu trabalho, — retrucou. — E não


preciso que você questione se eu posso lidar com o meu
trabalho por causa dos meus sentimentos por você. Além
disso, eu estava brincando de ser ex com benefícios. Para
com isso. Tenho certeza de que você namorará em breve, e
será como se eu nunca tivesse existido.

— Eu não estou vendo ninguém. — Se ela soubesse


quão errada ela estava sobre sua teoria. Namorar estava tão
longe dos meus objetivos. Imaginei que se uma garota como
Amanda não pudesse me fazer um homem de família, talvez
eu não fosse para ser um. Ela era uma boa pessoa com um
bom coração.

Havia apenas uma parte desconhecida de mim que


não me via apaixonando por ela e criando seus filhos, e
eu não seria o idiota que a amarraria. Ou seria o
idiota que partiria seu coração.

Fale sobre uma situação de perder ou perder.

— Você me amou? — Ela perguntou, e porra essa


pergunta era péssima. E sabia a resposta. O que eu não sabia
era porque ela estava fazendo isso consigo mesma.

Olhei para ela e vi seus olhos cheios de emoção. — Sinto


muito, Amanda.

— Talvez você seja como seu pai, — afirmou e essas


palavras fizeram minha pele arrepiar. — Talvez sua mente
esteja tão confusa que não possa amar outra pessoa ou até
deixá-la amar você.

Meu queixo aperta quando tento afastar o que ela me


disse.

Talvez você seja como seu pai.

Isso foi um golpe baixo, e Amanda sabia disso.

A única coisa na vida que eu nunca quis ser era como


meu pai.

— Boa noite, Amanda.

— Sério? É isso aí? Você não vai tentar argumentar?

Evidentemente que não. Ela montou uma armadilha


com a qual eu não queria mexer neste momento. Estava
tentando me forçar a algum tipo de reação, mas eu
não tinha nada a oferecer. Manteria para mim a minha
irritação, porque a verdade é que eu não era nada como o
meu pai. Nunca deixei que a minha raiva tomasse conta de
mim.

Por fim, ela saltou da caminhonete sem dizer uma


palavra e correu para o prédio.

Respirei fundo e exalei quando liguei o rádio de volta à


estação de rock.

Chegando à propriedade da minha família – mais de cem


hectares de terra que estavam praticamente vazios há anos –
soltei um suspiro de alívio. Poderia trabalhar no paisagismo,
mas sempre que eu oferecia, papai fazia questão de me dizer
para não tocar na merda até que ele estivesse morto. Ele
disse que quando morresse, seria tudo meu, e eu já sabia o
que queria fazer com isso. Mamãe sonhava há muito tempo,
com o que ela queria que parecesse, e faria o meu melhor
para tornar a imaginação dela realidade.

Eu não acreditava em anjos, mas isso não significava


que não havia possibilidade de que fossem reais. Se fossem,
eu sabia que minha mãe seria um anjo, e se ela estivesse me
vigiando, eu esperava que estivesse vendo seu sonho ganhar
vida e que isso a deixaria orgulhosa.

Assim como fazia toda semana, liguei para meu irmão


naquela noite para atualizá-lo sobre as condições de
papai.
Derek morava em Chicago e vinha dizendo – nos últimos
catorze anos – que voltaria para uma visita. Acontece que
sempre fui eu quem fazia a viagem anual ao norte para vê-lo.

— Bem, talvez esteja na hora de se afastar


completamente. Sejamos honestos, Jax, você fez mais por
aquele homem do que ele merece. Não precisa continuar a ser
pai de um homem que nem sequer te criou corretamente.

Sentei-me na poltrona favorita do papai e suspirei. —


Mais fácil falar do que fazer.

— Estou falando sério, Jax. Você já fez o bastante.

Não respondi por que, depois do acidente com a mamãe


todos esses anos atrás, não senti como se fosse fazer o
bastante para compensar o que havia acontecido.

— Tenho muito carma para limpar, Der. O mínimo que


posso fazer é cuidar dele nos seus últimos dias.

Ele suspirou pelo telefone, e eu o imaginei passando as


mãos nos cabelos ondulados parecidos com os meus. — Se
isso é sobre o acidente…

— Não é, — eu menti. Claro que era mentira.

Tudo na minha vida foi resultado do acidente de anos


atrás. Toda escolha que eu fiz para afastar as pessoas foi por
causa dos erros do meu passado.
— Jax. — Eu podia ouvir a dor de Derek por mim
através do telefone. — O que aconteceu não foi sua culpa.
Você não pode segurar essa merda em sua alma para sempre.
Acredite em mim quando digo isso… não foi sua culpa, porra.

Ele me diz isso toda vez que conversávamos.

E eu nunca acreditei nele.

Depois que terminamos a ligação, fui para a cama e


permiti que a escuridão da noite me chamasse para dormir
novamente.
Kennedy

SE VOCÊ DER UM MUFFIN A KENNEDY, provavelmente


descobrirá alguns fatos da vida dela.

Esse parecia ser o lema das pessoas em Havenbarrow.

Acordei com mais gente da vizinhança aparecendo com


guloseimas para me receber na cidade. O número de vezes
que eles me entregaram comida enquanto tentavam espiar
minha casa era irritante. O que era ainda mais preocupante
era a forma como eu dizia alguma coisa a um visitante, e
quando o próximo chegava, eles já estavam a par de toda a
minha história de vida.

As notícias se espalhavam por Havenbarrow como um


incêndio florestal, e quando as histórias se espalhavam, elas
ficavam um pouco piores do que quando começaram. Era
como se estivéssemos brincando de telefone sem fio na
escola. Atualmente, eu era uma mulher solteira
desempregada, morando na propriedade da minha irmã
sem o seu conhecimento.
Realmente nunca me considerei uma garota da cidade
até aquele momento. De onde eu vim, ninguém se importava
com quem você era, e o único presente que eles estavam
oferecendo era uma mão pressionada na buzina se você
esperasse dois segundos demais depois que a luz vermelha
mudasse para verde.

A única graça salvadora dessa pequena cidade, eram


meus vizinhos não tão intrometidos, os Jefferson.

E minha outra vizinha adorável, Joy Jones.

Joy Jones era uma personagem e tanto. Naquela


manhã, quando o sol nasceu, ela saiu para a varanda da
frente e sentou-se na sua cadeira de balanço com um sorriso
no rosto e uma grande caneca de café na mão. Alguns dos
meus visitantes intrometidos disseram-me que era uma
rotina diária para ela.

Seus cabelos prateados estavam arrumados em um


coque bagunçado preso com duas agulhas de tricô, e seus
óculos laranja vibrantes de armação grossa estavam no topo
da cabeça. Ela usava um laço de cores vivas no cabelo que
combinava com o vestido do dia, e sempre cumprimentava a
todos que passavam pela casa dela, mesmo quando eles não
respondiam.

Quando ninguém passava, ela estava ocupada


conversando consigo mesma – ou, mais precisamente,
conversando com o marido, que não estava mais vivo.
Ela também rabiscava num papel, cartas como se sua vida
dependesse da tinta que sangrava nas páginas.

Era comovente de se ver, ainda mais preocupante era


como as pessoas da cidade a ignoravam quando ela escapava
nos seus delírios. Era gentil quando cumprimentava os
transeuntes, sempre muito amável, mas o sentimento não era
mútuo. Era como se tivessem medo de lhe oferecer um aceno,
um bom dia, boa tarde ou boa noite em suas caminhadas ao
redor do quarteirão.

O que me incomodava ainda mais era a forma como as


pessoas a ridicularizavam. Se a chamavam eram para
zombarem dela, chamando de Crazy Joy, a mulher que nunca
saiu de sua varanda. Corriam rumores de que ela não tinha
saído daquela varanda de madeira desde o dia em que o
marido morreu. Às vezes, os adolescentes troçavam, e riam
uns com os outros em grupos.

— Oi, Crazy Joy. Você cozinhou mais alguém em sua


casa? — Falam antes que eu os repreenda e os mande
embora.

— Tenham um bom dia queridos, — dizia Joy, enquanto


acenava na direção deles, sem se importar nem um pouco.
Ainda assim, Joy continuava cumprimentando a todos que
passavam, e seu sorriso nunca vacilava. Era como se ela
estivesse acima de ser incomodada pelos julgamentos e
crueldade deles, como se as opiniões e pensamentos
dos outros não afetassem sua alegria.

Ela realmente faz jus ao seu nome. E gostaria de poder


ser mais como ela – menos afetada pelo mundo ao meu redor
– mas meus sentimentos eram muito parecidos com o vento,
movendo-se onde quer que fossem soprados. Era uma falha
minha, uma que meu marido se certificou de me contar o
tempo todo também.

— Se recomponha, Kennedy. Você não pode reagir e levar


tudo o que digo tão a sério — ele sempre me dizia. — Suas
emoções vão estragar tudo de bom que temos.

Estava tentando o meu melhor para excluir suas


palavras do meu cérebro, mas era mais fácil dizer do que
fazer. Quando alguém faz você se sentir tão pouco, sua mente
se prende às suas falhas.

— Lamento que tenham sido tão cruéis com você, — eu


disse a Joy.

Ela olhou para mim com um enorme sorriso no rosto e


balançou a cabeça. — Quem foi cruel, querida?

Sorri de volta.

Deixa pra lá.

Voltei a ler meu livro na minha varanda enquanto os


raios de sol me aqueciam da cabeça aos pés. Era
engraçado pensar em como Joy não saía de casa havia
anos. Para outros, provavelmente parecia loucura,
mas eu entendi. Eu não dirigia um carro há mais de um ano
por minhas razões pessoais, e Joy não se aventurava pelas
dela.

Não estava dizendo que fazia sentido, mas eu entendia.


Algumas vezes, por muito que queira lutar contra isso, uma
pessoa torna-se tão dedicada aos seus medos que faz tudo o
que está ao seu alcance para impedir que ganhe vida. Eu não
sabia quais eram os medos da Joy ou o que a estava
impedindo de sair de sua casa; tudo o que eu sabia era que
eu entendia.

A vida é difícil. Temos que fazer o que for preciso para


nos mantermos confortáveis com a nossa mente. Para mim,
isso significava não dirigir. Para a Joy, significava ficar em
casa.

Mas gostaria de saber como é que ela conseguia.


Pergunto-me como é que ela conseguiu continuar vivendo
sem pisar fora de casa. Ela não parecia ter filhos, nem sequer
um prestador de cuidados que a ajudasse, pelo que pude
perceber.

Mais tarde, nessa manhã, as minhas perguntas foram


respondidas quando uma pickup azul encostou em frente da
sua casa.

Desnecessário dizer que meu queixo caiu no chão


quando vi o Sr. Celebridade sair do veículo. Ele
caminhou direto para a varanda de Joy, com os
braços cheios de sacolas de compras.

E foi cumprimentá-la, e ela se levantou da cadeira de


balanço quando ele colocou as sacolas no chão. Então ele a
abraçou.

Ele a abraçou!

Eu não pensaria que alguém tão mal-humorado quanto


o Sr. Celebridade tivesse a capacidade de abraçar alguém. Os
dois entraram para guardar as compras, deixando-me
completamente perplexa e incapaz de voltar à minha leitura.
Era preciso muito para me afastar de um livro – e por ‘muito’,
eu quero dizer muito. A minha casa podia estar em chamas,
ou os extraterrestres podiam ter me abduzido, e eu ainda
quereria ir para aquela última página. Quando a minha
própria história de amor estava quebrada, recorri a histórias
para curar as fissuras dos meus batimentos cardíacos
despedaçados. Quando o meu mundo desmoronou, os livros
ainda acreditavam na felicidade e no para sempre. Esses
livros me salvaram nos dias em que eu sentia minha alma
cair vítima da mais dura das tempestades.

No entanto, o Sr. Celebridade me afastou das palavras.


Ele me deixou curiosa entrando na casa de Joy. Observando-
o conversar com ela, minha mente disparou. Alguns minutos
depois, quando os dois voltaram para o lado de fora, cada um
com um copo nas mãos – um com vinho, o outro com um
pouco de líquido escuro que supus ser uísque – não
consegui parar de olhar para eles. Joy continuou
falando, e o Sr. Celebridade continuou respondendo. Mesmo
que eu não pudesse ouvir o que eles estavam dizendo, Joy
olhava muito além do que estava sendo dito a ela, o que
obrigou meu próprio coração a pular algumas batidas.

Bem, eu vou ser amaldiçoada.

O idiota da cidade me fez desmaiar.

Desviei o olhar antes que ele pudesse me notar


contemplando como se ele tivesse acabado de salvar um
gatinho de uma árvore. Quando voltei para o meu romance,
meus batimentos cardíacos não diminuíram, e
silenciosamente desejei poder voar no parapeito da varanda
de Joy para ver do que os dois estavam falando.

Quando ouvi uma risada profunda e masculina sair dos


lábios do Sr. Celebridade, minha cabeça girou rápido ao vê-lo
jogando a cabeça para trás, divertido.

Uau.

Ele tinha a capacidade de se divertir.

Quem teria imaginado?

Os dois conversaram um pouco mais e, quando chegou


a hora do Sr. Celebridade ir embora, ele se levantou e deu
outro abraço em Joy.

— Vejo você amanhã no café da manhã, — disse


ele. — Eu vou fazer para você panquecas.
— Ok, querido. Ligue-me assim que chegar em casa, —
disse Joy.

— Eu moro literalmente ao virar da esquina, Joy. Vou


chegar seguro em casa.

— Ligue-me quando chegar em casa, — disse ela mais


severamente desta vez.

Ele sorriu quando se inclinou para frente e beijou sua


testa. — Vou ligar, Joy.

Meu Deus, meu coração?

Enquanto Joy entrava e o Sr. Celebridade ia em direção


a sua caminhonete, meus olhos o seguiram o tempo todo. Ele
não olhou para mim uma única vez, mas seus lábios abriram.

— Se você vai ser tão bisbilhoteira, é melhor puxar uma


cadeira na varanda da frente para escutar da próxima vez, —
ele me disse, ainda sem olhar para mim. — Eu não deveria
estar chocado, vendo como você tem o costume de invadir,
primeiro minha terra e depois minhas conversas.

Sentei-me ereta na minha cadeira. — Eu não estava


invadindo.

Ele abriu a porta da caminhonete. — Vá no Google, e


pesquise a palavra invasão, e veja que você está errada -
depois viva com esse fato pelo resto da sua vida. — Com
isso, ele fechou a porta com força, girou a chave na
ignição e se afastou do meio-fio sem outra palavra.

E os meus batimentos cardíacos de merda?

Eles pararam quando o meu coração disparou.

Então o idiota ainda era idiota, mesmo que ele


socializasse com a doce Joy.

Naquela noite, pesquisei no Google a palavra invasão.

In-va-são

Verbo

Gerúndio ou particípio presente: invasão

1. Entrar em terras ou propriedades do proprietário


sem permissão.

2. Cometer uma ofensa contra (uma pessoa ou um


conjunto de regras)

A definição no Urban Dictionary era um pouco diferente


do Merriam-Webster, no entanto.

Invasão5

1. Quando uma mulher é propriedade de outra


pessoa, mas dois caras a penetram.

(Três) passando: Dois homens, uma mulher. (trio)

5
- Em inglês invasão é trespassing;
Está bem, está bem. Eu estava invadindo sua
propriedade, mas não havia nenhuma invasão do tipo trio
envolvida. Além disso, eu não estava invadindo sua conversa.
Eu estava escutando. Absolutamente não é a mesma coisa.
Eu chamaria a isso uma vitória.
Jax

JOY JONES ERA FACILMENTE minha humana favorita em


Havenbarrow, mas a maior parte da cidade ficava longe dela.
A família de Eddie e eu éramos as exceções. Ela estava no
final dos oitenta anos e, na maior parte do dia, sua mente
vivia em uma época em que o mundo era muito diferente.
Desde que seu marido faleceu há mais de vinte anos, Joy
tornou-se uma verdadeira reclusa.

A maioria das pessoas a chamava de louca, mas eu a


chamava de brilhante. Pouca interação com outros seres
humanos? Conte comigo.

Quando eu era mais novo, fugi de casa quando meu pai


ficou bêbado e me disse que ia me bater até eu dormir para
sempre, e acabei me escondendo no quintal da Sra. Jones por
alguns dias. Quando ela me encontrou, não me repreendeu
ou me disse para ir para casa. Em vez disso, ela assou
biscoitos para mim, e me deu o jantar. E conversou comigo.

Isso foi há mais de quinze anos, e eu estava


tomando café da manhã e jantando com ela
praticamente todos os dias desde então. Para o resto do
mundo, ela era Crazy Joy, mas para mim? Ela era minha
amiga, uma das poucas.

— O que você acha da minha nova vizinha? — Joy me


perguntou uma noite depois que eu vim para o jantar. —
Eddie e Marie vieram almoçar mais cedo, e eles tinham tantas
coisas boas a dizer sobre ela.

— Eu não acho nada dela, — disse enquanto nos


sentávamos à mesa da sala de jantar, que estava cheia de
comida suficiente para todo um coral gospel. Joy sempre
cozinhou comida demais, e eu sabia que era porque ela
estava determinada a me mandar para casa com as sobras
todas as noites. Provavelmente a mulher pensa que eu não
consigo fazer uma pizza congelada sem queimá-la.

Eu nunca discuti com ela sobre as sobras que ela me


envia. A verdade é que eu tinha queimado a minha quota de
pizzas congeladas, por isso a preocupação de Joy era
justificada.

— Eu acho que ela é tão doce. E linda também, —


comentou colocando salada no prato antes de passar a tigela
para mim.

— Oh? — Eu disse, parecendo desinteressado, mesmo


que eu tivesse sido um idiota por não perceber o quão bonita
era a mulher que se mudou para a porta ao lado. Bonita
parecia um eufemismo. Ela era de tirar o fôlego. Seus
cachos de mel saltavam toda vez que ela sorria, e quando ela
sorria, droga…

Esse sorriso fez até meu coração frio querer sentir um


leve calor. Ela tinha pernas longas, roupas vibrantes e shorts
curtos que a abraçavam nos lugares certos. Então aqueles
olhos...

Aqueles malditos olhos. Por que eles pareciam tão


familiares para mim, como se fossem a chave de uma
memória que eu não tinha sido capaz de desbloquear?
Aqueles olhos sorriam ainda mais que seus lábios. Quando
ela estava triste ou assustada, seus olhos também ficavam.
Era como se suas íris fossem o caminho para sua história,
mas eu não tinha sido capaz de mergulhar profundamente
em sua linguagem, não havia decifrado seu código. E não
sabia que história seu olhar estava contando. Não
compreendi as palavras nos olhos dela.

Merda, eu nem tentei alcançar.

E não queria tentar.

— Ela parece ser uma boa menina, — continuou Joy. —


Personalidade legal também. Você sabe que todas as manhãs
ela me cumprimenta com o maior sorriso e pergunta se eu
preciso de alguma coisa? Ela é um doce. E o mundo precisa
mais de garotas agradáveis.

Por quê? Para poder destruí-las?


Se eu sabia alguma coisa sobre pessoas agradáveis, era
que o resto do mundo não deixaria de bater na bondade
delas. Era como se a bondade fosse uma doença e todos
estavam decididos a esmagar qualquer pessoa que exibisse os
seus sintomas. Eu tinha passado os últimos vinte e oito anos
tendo qualquer luz positiva eliminada do meu corpo, e se
aprendi alguma coisa, foi que o mundo não foi feito para
pessoas agradáveis. Foi criado para destruí-las.

Fiquei em silêncio enquanto Joy continuava falando


dela. — Devia falar mais com ela, conhecê-la melhor.

Eu ri. — Não gosto muito de fazer amigos, Joy. — Ela


sabia disso. Não era um segredo. Um sinal de alerta deveria
ser quando meu melhor amigo era minha porra de terapeuta
e minha melhor amiga tinha quase noventa anos. — Além
disso, eu tenho você. — Sempre achei que, se você tivesse um
amigo de verdade, estava melhor que a maioria. E eu? Eu
tinha um punhado deles – se eu contasse Connor. Com base
nas estatísticas, eu provavelmente já tinha muitos.

— Sim, bem, um dia eu vou embora e você precisará de


um novo. É melhor você começar a selecionar agora. Eu não
estou ficando mais jovem, garoto. Aliás, acho que ela também
precisa de um amigo. Ela perdeu alguém, assim como nós
dois.

Minha sobrancelha arqueou. — Ela te contou isso?


Joy balançou a cabeça. — A perda não é algo que tenha
que ser dito. Está profundamente dentro dos olhos de uma
pessoa. As pessoas que perderam entes queridos se movem
de maneira diferente. Sua perda ainda está fresca, como se
ela não soubesse como se mover a cada dia. Isso é algo que
eu posso entender. Acho que é algo que você também pode
entender, então pense em conhecê-la um pouco melhor.

Estreitei os meus olhos. — Não está tentando bancar à


casamenteira já que eu rompi com a Amanda, né?

— Não, não, desta vez não. Não se trata de ser


casamenteira, apenas de amizade. Ao contrário da sua crença
pessoal, todos precisam de amigos, Jaxson, até as ovelhas
negras de uma pequena cidade como Havenbarrow.

— Vou manter isso em mente.

— E, a propósito, estou feliz por você ter terminado com


aquela garota Amanda. Ela era muito agressiva, — disse
acenando com a mão com desprezo. — Sempre querendo que
você fosse alguém que não era, tentando transformá-lo em
alguém que ela queria que você fosse, não gostava disso.
Ainda por cima, ela não gostava do meu bolo de limão.

Eu ri. — Foi exatamente por isso que eu terminei as


coisas com ela.

Ela estendeu a mão e deu um tapinha na minha


mão. — Que homem bom você é, Jax. Falando sobre
minha vizinha, — ela disse, mudando o assunto para
o que considerava importante, — você sabe o que eu mais
gosto nela até agora?

— O que é?

— O carro estacionado em sua garagem. É tão diferente


e divertido! Jax, você precisa ver quando sair. É muito legal.

Felizmente, Joy permitiu que a conversa mudasse da


minha vida amorosa e da busca por amizades quando o mais
novo episódio de The Bachelor começou. Como sempre, eu
assisti ao louco programa com ela. E como sempre, torci para
quem não estava recebendo a rosa no final do episódio e,
como sempre, Joy ficou surpresa com quem estava indo
embora. Durante o programa, alguns trovões surgiram, e eu
sabia que íamos ter uma chuva forte.

Antes de o solteiro entregar sua última rosa, um dilúvio


estava caindo sobre nós, e a chuva martelando sobre a casa.

— As árvores vão amar essa tempestade, — comentou


Joy, sempre encontrando o lado positivo em qualquer
situação.

Enquanto saía, rapidamente entrei na minha


caminhonete e, inferno, não pude evitar. Passei pela entrada
da nova garota e verifiquei o carro parado do lado de fora.
Meu peito se apertou quando o veículo estalou em minha
mente e meu queixo caiu.
— De jeito nenhum, — murmurei, olhando para o carro
que era mais do que familiar para mim.

Não poderia ser.

Não havia como…

Porra.

Colocando minha caminhonete no estacionamento, pulei


e corri para o veículo, invadindo como o idiota que eu era,
mas não consegui evitar. Eu me movi ao redor do carro,
olhando para todos os desenhos nele, e então parei perto do
porta-malas. Logo acima do pneu, havia um coração com as
iniciais JK + KL dentro. Com as palavras ‘amigos para
sempre’ escritas abaixo.

— De jeito nenhum, — disse sem fôlego, tropeçando


para trás. Minha mão passou por meus cabelos molhados
quando o choque quase me derrubou. Eu deveria saber,
deveria ter ligado os pontos instantaneamente, mas já faz
mais de quinze anos desde a última vez em que a vi – a
garota obviamente cresceu para ser uma mulher e tanto.

Kennedy Lost.

Kennedy Lost era a nova garota do bairro, e ela estava


vivendo bem entre os Jeffersons e Joy. Como? Como é que
isso era possível? De jeito nenhum. Nem pensar. O que a
trouxe aqui? Como é que ela acabara na minha cidade?
O que é que isso significava? Que diabos eu deveria
fazer com esta nova informação?

Não.

Claro que não.

Já foi há muito tempo. Éramos apenas duas crianças


estúpidas. Ela era apenas uma parte do meu passado – nada
mais, nada menos.

Mas mesmo assim…

Julguei que uma parte de mim sabia que era ela no


momento em que prendi os meus olhos nela no bosque. Senti
um impulso no meu coração congelado assim que ela olhou
para mim, mas fiz o meu melhor para considerar que era
uma azia porque não queria que fosse ela. Não depois de
todos esses anos. Não depois das mudanças que ocorreram
na minha vida. Não no homem em que me tornei ao longo do
tempo porque já não era mais o rapaz que ela conhecia.

Eu não precisava que visitantes do meu passado


voltassem para assombrar meus dias atuais. Minha mente já
era profissional em me assombrar com arrependimentos do
passado todos os dias. Não precisava de mais fantasmas
voltando para mim. Mas caramba...

Kennedy Lost.

Ela não era apenas esta bela pessoa que tinha


curvas em lugares que não existiam quando éramos
crianças, seu cabelo estava mais comprido, e seus
cachos eram beijados pelo sol quando caíam na frente do seu
rosto. Com a pele brilhando como se ela se banhasse sob o
sol, e os olhos…

Porra, Kennedy e aqueles olhos.

Vá embora, eu disse a mim mesmo.

Precisava me afastar da casa dela e não permitir que


meu cérebro a deixasse entrar. Precisava parar de pensar
nela, não poderia viajar por esse caminho.

Depois de ver aquele carro amarelo e comprovado quem


ela era, meu coração congelado tentou fazer a coisa mais
estúpida do mundo – tentou bater, mas o cristal frio no meu
peito não conseguiu realizar a tarefa. Não sabia como.

Entrei na minha caminhonete e fui embora. Eu tinha


que ir embora. Quando voltei para casa, não fui direto para a
cama. Em vez disso, caminhei na chuva pela floresta escura
que eu conhecia como a palma da minha mão, indo em
direção ao campo de flores. Dezenas que eu plantei ao longo
dos anos que estavam em plena floração. A flor mais comum
era a margarida.

Fui até o banco no meio do campo e me sentei enquanto


a água caía sobre minha pele. As flores bebiam as gotas de
água quando fechei os olhos e olhei para o céu. Estava
encharcado da cabeça aos pés, mas não me importei.
Sinceramente, sempre me senti renovado quando
conseguia me sentar em uma tempestade.

Sentia como se me regenerasse da mesma forma que


regenerava as flores.

Respirando em silêncio, deixei que a minha mente


ficasse quieta, como sempre. Eu estava sozinho nesse bosque
abandonado, como sempre. Depois fui para casa e rastejei
para minha cama, como sempre.

A única diferença desta vez foi, pelo tempo que eu tentei


impedir que isso acontecesse, Kennedy não parava de cruzar
minha mente. Num instante, eu não era o homem em que me
tornara. Voltei ao tempo em que eu era um garotinho
assustado que queria um maldito amigo para fazer os dias de
merda desaparecerem.
Jax

Onze anos de idade

Ano um do acampamento de verão

FALAVA MUITO SOZINHO.

Não muito alto nem nada, só sussurrando de vez em


quando. Papai disse que odiava quando eu sussurrava, mas
os meus murmúrios eram para mim e para mais ninguém
ouvir. Por vezes desejava ter um amigo que murmurasse
também para que pudéssemos murmurar juntos somente
para a gente ouvir, mas, por enquanto, a única pessoa com
quem eu podia murmurar era comigo mesmo.

Atualmente, meus murmúrios eram sobre Kennedy Lost.

— Que garota esquisita, — murmurei.

Kennedy estava sentada em uma pilha de lama,


construindo o que parecia ser um castelo enquanto todos os
outros faziam artesanato em nosso tempo livre. Com a
chuva caindo sobre ela, fazendo-a parecer um esfregão
molhado, enquanto cantava alguma música, balançando a
cabeça para frente e para trás.

Essa garota estava sempre cantando. Ela provavelmente


cantava ainda mais do que falava, e ela falava muito. As suas
conversas não eram murmúrios; era a coisa mais barulhenta
que já ouvi, suas palavras nunca pareciam acabar. Parecia à
frase mais longa de sempre.

Ela falava bem alto e com qualquer pessoa e todos lhe


davam um minuto de atenção. Ela era a definição do
Energizer Bunny 6 – continuava sem parar, e suas baterias
nunca acabavam. Apostaria que ela até falava dormindo a um
milhão de quilômetros por minuto.

Era uma pessoa tão esquisita. Nunca tinha visto uma


pessoa assim até que conheci Kennedy Lost no acampamento
de verão daquele ano. Ela estava sempre se metendo em
problemas, vagando e fazendo sua própria bagunça, mesmo
que fosse repreendida por isso.

Tenho certeza que no momento em que a Srta. Jessie


visse Kennedy, ela estaria em apuros.

Kennedy nem se importaria, no entanto. Seus cabelos


bagunçados, emaranhados e encaracolados combinavam com
seus olhos dourados e travessos. Eu nunca tinha visto olhos
dourados antes de conhecer Kennedy. Eles também
tinham salpicos marrons. Não que eu estivesse olhando

6
- Desde sua primeira aparição em um comercial de televisão em 1989, o coelhinho cor-de-rosa das
pilhas e baterias ENERGIZER, conhecido como Energizer Bunny, à bateria que não acaba nunca.
seus olhos com muita atenção, porque sempre que eu olhava
para Kennedy por muito tempo, ela olhava para trás e sorria
para mim de uma maneira que fazia meu estômago revirar.

Ela me deixava enjoado, mas um tipo de enjoo que


parecia um bom… mais ou menos. Não sabia que me sentir
mal do estômago poderia me fazer sentir bem até conhecer
Kennedy.

Kennedy levantou-se e estendeu as mãos enquanto


olhava para as nuvens de chuva. Ela não sabia que um raio
poderia atingi-la e matá-la?

Uma vez eu tinha visto um documentário com mamãe


sobre quantas pessoas morreram em tempestades com raios,
e com certeza, talvez não fosse muito, mas era o suficiente
para me impedir de querer ficar do lado de fora na chuva com
raios de fogo piscando no céu. Ela estava estranhamente
perto de uma árvore também – uma árvore que, sem dúvida
ela abraçou no início do dia.

Kennedy Lost – uma garota esquisita que abraça árvores


e constrói castelo de barro no acampamento.

— É Kennedy lá fora? — Srta. Jessie exclamou enquanto


olhava pela janela para a garota que agora estava dançando
na chuva ao lado de seu castelo bagunçado como se fosse
uma louca.
Onde as coisas selvagens crescem você se pergunta?
Onde quer que Kennedy Lost fosse encontrada.

Srta. Jessie correu para a esquisita, e todos nós


corremos para a janela para ver quando Kennedy foi
repreendida e arrastada para a cabana dela para se limpar.

— Que aberração, — alguém murmurou.

Muitas pessoas a chamavam de nomes maus, e eu sabia


que Kennedy ouvia às vezes, mas ela não parecia se importar.
Gostaria de ser assim, gostaria de ter me importado menos
com o que as pessoas pensam sobre mim, especialmente meu
pai, mas por algum motivo, eu me importava com o que ele
pensava de mim mais do que qualquer outra pessoa no
mundo.

Enquanto Srta. Jessie levava Kennedy de volta à sua


cabana, a garota estranha dançou o caminho todo até lá.

Na maior parte do tempo, eu odiava o acampamento. Eu


odiava os esportes, os jogos e as atividades em grupo. Eu
odiava estar longe de casa – bem, mais ou menos. Eu sentia
falta da mamãe porque achei que ela também sentia minha
falta. Não sentia falta do papai porque parecia que eu nunca
era bom o bastante para ele, mesmo que eu tentasse ser
melhor. Papai amava meu irmão mais velho, Derek, muito
mais do que ele me amava. Derek nem era seu filho biológico,
mas, ainda assim, ele amava papai. Eles gostavam do
mesmo tipo de coisa – futebol, caça, filmes de ação.
Eu não era um bom filho como Derek, e papai me fazia sentir
mal o tempo todo por isso.

Enviou-me para o acampamento esperando que eu


melhorasse em certas coisas e que minha masculinidade se
sobressaísse. Mamãe me mandou para o acampamento na
esperança de eu fazer amigos.

Não era bom em criar ou fazer amigos, mesmo que isso


fosse tudo que eu sempre quis.

As pessoas me chamavam de esquisito – mais ou menos


como eu chamei Kennedy de esquisita a pouco, mas eu não
dançava na chuva ou construía castelos de barro. Na
verdade, eu era o completo oposto de Kennedy Lost. Ela era
barulhenta e eu era reservado. Ela se vestia com todas as
cores do arco-íris, enquanto minhas roupas eram pretas,
brancas ou cinza. Ela sempre falava sobre histórias
inventadas enquanto eu ficava mudo. Ela até usava o cabelo
encaracolado com as pontas tingidas de roxo, enquanto o
meu era marrom, domado e no lugar.

Era estranho como duas pessoas esquisitas podiam ser


completamente opostas.
— DEIXE -ME IR ! — Eu gritei quando meus companheiros
de beliche do acampamento me arrastaram para fora do
quarto no meio da noite. James, Ryan, e o líder da sua
matilha, o maldito Lars Parker, não me soltava. O Lars era da
minha cidade e sempre me intimidou na escola. Não devia ter
ficado surpreendido quando ele continuou a me intimidar no
acampamento.

Estava chovendo, e os três caras estavam chateados


comigo por fazê-los perder no futebol mais cedo naquele dia.
Eu nem queria jogar, e meu time não queria que eu jogasse
também, mas o acampamento tinha uma regra estúpida de
‘ninguém ficava de fora’, o que me fazia ser o alvo principal de
um valentão.

Meu pai teria gostado de todos eles, porque eles eram


bons nessas coisas de caras.

— Cale a boca, bebê chorão! — Lars gritou, passando as


mãos em volta dos meus pulsos quando Ryan e James
agarraram um dos meus tornozelos.

Eu nem queria jogar futebol.

Eu nem queria vir para o acampamento de verão!

Eu odeio isso!

Eu odiava tanto que poderia ter chorado.


— Deixe-me ir, deixe-me ir, deixe-me ir! — Gritava.

— Ah, vamos deixar você ir, logo depois de jogá-lo na


lixeira como o lixo que você é, — disse Lars. Ficou claro que
ele era o líder do circo dos idiotas. Ryan e James
praticamente faziam o que ele dizia. Eu me perguntava como
as pessoas ficavam poderosas assim, como podiam fazer com
que alguém seguisse o que diziam.

— Você não está jogando ninguém em lugar algum, —


disse uma voz. Olhei por cima do ombro e vi Kennedy parada
na chuva com um arco e flecha em suas mãos. Ela segurou a
flecha apontada diretamente para o rosto de Lars e, oh, que
estranho Kennedy Lost, era uma psicopata maldita. — Larga
o Jax e ninguém se machuca.

— Oh, olha, a namorada louca de Jax veio salvar o dia!


— Ryan zombou.

— Oh, Ryan você é tão óbvio que nem conseguiu pensar


em um comentário melhor para fazer. Realmente, Ryan,
trabalhe em seus insultos. Eles carecem de autenticidade,
assim como toda a sua personalidade – ou devo chamá-lo de
Lars número dois? — Kennedy zombou dele antes que eu
pudesse expressar que ela não era minha namorada.

Essa era outra diferença entre ela e eu – ela não tinha


medo de se defender.
— Vai embora, Kennedy! Isso não tem nada a ver com
você, — disse James.

— Desculpe, Lars número três, não posso deixar você


fazer isso. Apenas coloque-o no chão e ninguém se machuca.
— Ela atirou uma flecha que caiu bem entre os pés de James.

— Você é louca? — Ele latiu, pulando no ar e jogando


meu pé no chão.

Kennedy não respondeu. Ela simplesmente enfiou a mão


na mochila que estava usando, e puxou outra flecha
atirando-a diretamente nos pés de Ry... Lars número dois.

Ele pulou e soltou meu outro pé.

Duas pernas livres faltam os braços.

O Lars levantou uma sobrancelha para Kennedy


enquanto os seus dois ajudantes se apressavam para trás do
seu líder. Ele segurou-me à sua frente e deu-lhe um sorriso
arrogante. — Não consegue disparar com o Jax na minha
frente, Kennedy. Por isso, é melhor que dispare.

Ela atirou a flecha seguinte passando por mim e roçou a


orelha de Lars.

Caralho! Ela quase lhe deu um piercing! Apostaria que,


se ela realmente quisesse, ela poderia ter feito um buraco na
orelha.
— Posso fazer qualquer coisa, — Kennedy latiu, e
engraçado, eu estava começando a acreditar nela. — Agora,
deixe-o ir porque da próxima vez, não vou falhar.

Eu sabia que Lars não estava demonstrando, mas senti


seus tremores quando ele me soltou.

Kennedy pegou outra flecha na bolsa, mas congelou


quando percebeu que não havia mais nenhuma.

Lars sorriu. — Parece que a aberração está sem armas.


Agora vou chutar duas bundas.

Comecei a tremer enquanto corria para o lado de


Kennedy. Ela se virou na minha direção. — Está tudo bem,
Jax, apenas late.

— O quê!? — Perguntei nervoso.

— Late para eles! As pessoas ficam assustadas se você


começa a latir para elas e depois elas o deixam em paz. Veja.
— Ela voltou-se para Lars e seus amigos e começou a latir
como um cachorro. — Woof! Woof! Woof! — Latiu me
deixando atordoado e um pouco assustado.

Que garota esquisita.

Mas parecia funcionar. Os caras começaram a recuar,


então eu comecei a fazer o mesmo. — Woof! Woof! — fiz
provavelmente parecendo um poodle em comparação ao
rottweiler de Kennedy, mas continuei até eles
recuarem. — Woooooof!

Lars balançou a cabeça enquanto se afastava de nós. —


Tanto faz, perdedores. Vamos lá pessoal. Vamos voltar para a
cama. Se você for esperto, Jax, não voltará esta noite, a
menos que queira levar um chute no traseiro.

Os três saíram correndo, e eu fiquei um pouco


estonteado quando Kennedy colocou o arco na mochila e
depois começou a dançar na chuva. — Viu? Sempre que
alguém estiver te incomodando, late pra eles. Sempre
funciona.

— Sempre?

— Sim, como cinquenta por cento das vezes.

— Nem sempre é assim.

— Oh, então nem sempre, eu acho.

— O que você estava fazendo aqui fora? — Perguntei,


encharcado, assustado e confuso.

Kennedy olhou para mim e seus lábios se curvaram em


um sorriso torto.

Quem diria que sorrisos tortos poderiam parecer…


fofos?

Tanto faz. Não que eu estivesse percebendo que o


sorriso de Kennedy era fofo. Porque não era. Quer
dizer, era, mas eu não estava percebendo, porque eu
não percebia esse tipo de coisa sobre Kennedy Lost.

Ela levantou a sobrancelha. — Oh, eu estava atirando


arco e flecha.

— Na chuva?

Ela assentiu. — Sim. Faz de você um atirador melhor se


trabalhar contra os elementos da natureza. A chuva
acrescenta um obstáculo que me obriga a pensar fora dos
limites e a fazer algo diferente. — Ela puxou seu arco para
fora e segurou-o na minha direção. — Quer tentar?

Sacudi a cabeça. — Não. Eu quero me secar.

— Está bem. Posso acompanhá-lo até seu beliche e você


pode pegar suas roupas. Depois pode dormir na minha cama
comigo para que os rapazes não o incomodem.

— Não preciso que uma garota me vigie, — eu discuti,


me sentindo envergonhado.

— Precisa, sim, — respondeu não de uma forma


mesquinha, apenas como um fato. — Agora vá lá, vou manter
as minhas flechas apontadas para eles enquanto pega as
tuas coisas.

Embora quisesse discutir com ela, sabia que não devia


lutar com uma garota instável segurando um arco e flecha.
Fomos para minha cabana e juntei algumas roupas para
a noite enquanto Kennedy me protegia dos caras.

Eles não disseram uma palavra.

Quando cheguei à cabana dela, suas colegas de quarto


já estavam dormindo. Graças a Deus. A última coisa que eu
precisava era que as pessoas pensassem que eu estava
apaixonado por uma garota como Kennedy Lost.

Eu me troquei no banheiro e Kennedy se trocou depois


de mim – colocando mais um conjunto de pijama de cores
vivas. Apenas Kennedy teria um pijama verde neon.

Ela rastejou em sua cama, e eu relutantemente rastejei


ao lado dela. A última vez que estive na cama com uma
garota foi – ah, certo.

Nunca.

Nunca estive na cama com uma garota.

Ela se virou para mim e me deu aquele sorriso torto e


estúpido que deixou meu estômago enjoado. — Por que você
não dançou na chuva lá fora, Jax?

— Eu não danço na chuva.

— Então quando você dança?

— Nunca.
Ela franziu a testa, e caramba, isso também era fofo. Ela
virou as costas para mim. — Você deveria dançar na chuva.
Vai te fazer feliz.

— Eu sou feliz.

— Você ficará ainda mais feliz se dançar na chuva.

Eu não sabia o que dizer sobre isso, então não disse


nada.

— Você não fala muito, fala? — Ela perguntou.

— Não.

— Tudo bem. Eu falo muito. E falo e falo e falo e… — ela


respirou fundo. — ...falo, mesmo que as palavras realmente
não me levem a lugar algum.

Eu não poderia discordar disso.

Fiquei na cama com ela que não era para eu estar. —


Tenho que sair daqui antes que alguém acorde. As pessoas
não nos podem ver na mesma cama.

Ela bocejou. — Não se preocupe, acordo sempre antes


de todos para ir falar com os pássaros que cantam para mim
de manhã.

Bocejei porque ela bocejou, e agora estávamos


bocejando juntos. — Você é uma garota muito esquisita,
Kennedy.
Na minha cabeça, pude ver o seu sorriso torto e bonito
que me deixava enjoado quando ela respondeu: — Obrigada,
Jax.
Kennedy

Presente

CHOVEU por três dias seguidos e eu estava exausta.

Eu odiava tempestades. Nunca conseguia dormir com


elas e, quando estava sozinha, não conseguia desligar meu
cérebro. Minha ansiedade estava no teto. Sentia falta de
Penn. Bem, não dele tanto quanto ter alguém deitado ao meu
lado na cama durante as tempestades. O conforto de ter
outro humano quente ao meu lado quando eu estava no meio
dos meus pontos mais baixos sempre os fazia parecer mais
simples.

Agora estava enfrentando sozinha minha ansiedade, e


não havia segredo de que ela estava me afetando. Não tinha
certeza o que estava mais exausto, o meu corpo ou a minha
mente.

Tentei fazer o máximo possível para me manter


ocupada. Fiz listas de coisas que queria fazer para ter
mais coragem. Tentei o meu melhor para meditar. Por
vezes também chorei, porque Yoana disse que chorar era
corajoso.

Então eu esperei a tempestade passar e, felizmente,


sabia que não importava o tamanho da tempestade, elas
sempre passavam, não importando as circunstâncias. Depois
de cada tempestade, o sol sempre voltava a brilhar.

Demorou alguns dias para o sol sair e, com isso, a


equipe de paisagismo apareceu. Embora estivesse
extremamente cansada, estava pronta para ver o que eles
haviam planejado para moldar o quintal. Era um espaço
bonito, e eu só podia imaginar que Yoana já tinha seu próprio
esboço e planos em mente de como ela queria que seu quintal
ficasse. Mal podia esperar para ver o trabalho dos paisagistas
ganharem vida.

Quando duas caminhonetes pararam com materiais


para começar o trabalho, eu fui para fora para cumprimentar
Lars, o dono da empresa. Eu ouvi de Louise e Kate que ele
era o melhor paisagista da cidade – e o único – e que era
muito atraente.

Elas não estavam erradas sobre sua boa aparência. Com


cabelos loiros desgrenhados e uma covinha profunda na
bochecha esquerda, eu podia ver o charme.

Lars falou com três de seus funcionários, dando a cada


um deles o conjunto de tarefas antes de se virar para
mim para uma saudação. Primeiro, seus olhos me
cumprimentaram enquanto dançavam para cima e para baixo
no meu corpo. Quando ele encontrou meu olhar, um sorriso
sinistro curvou em seus lábios.

— Bem, olá. Ouvi muitas coisas sobre a nova garota da


cidade. É bom finalmente conhecê-la.

— Parece que as notícias viajam rápido por aqui. Eu sou


Kennedy.

— Sou Lars, o proprietário da Lars Paisagismo. É uma


honra conhecê-la, — ele disse, estendendo a mão para mim.

Aproximei minha mão para ele cumprimentar, mas ele


pegou e a virou para colocar os lábios na minha pele.

Que nojo.

Rapidamente puxei minha mão para longe dele.

Assim, sem mais nem menos, sua boa aparência foi


decaída. Ele estava sendo tão arrogante – sobre tudo. Era
evidente que Lars sabia que ele era bonito, e provavelmente
recebia muita atenção das fêmeas em Havenbarrow. Mas
para mim, não havia nada pior do que um homem que sabia
que era bonito e que achava que podia escapar com coisas
baseadas apenas na sua aparência.

Mesmo que eu não conhecesse Lars por mais de dois


segundos, eu estava recebendo muitas vibrações ruins
dele.
Ele continuou sorrindo, parecendo uma raposa astuta.
— É bom ter alguém novo na cidade. É fácil ficar cansado de
ver os mesmos rostos o tempo todo. É só você e seu, — ele
olhou para o meu dedo anelar, que estava vazio —
namorado…?

Esfreguei minhas mãos e balancei minha cabeça. —


Não. Apenas eu.

— Solteira? — Ele perguntou, se animando.

Sorri, mas na boca do estômago, me senti enjoada. Eu


não gostava de como isso estava indo, e adoraria que a
conversa mudasse de direção, e era exatamente isso que eu
faria acontecer. O que havia naquele homem que me deixou
tão inquieta? Algo nele parecia tão familiar.

— Sim, eu sou. Bem, deixe-me sair da sua frente. Eu só


queria cumprimentá-lo. Não vou incomodar em nada. Se
precisar de alguma coisa, eu estarei lá dentro. Como sabe,
este lugar pertence à minha irmã e ao meu cunhado, por isso
a maior parte das modificações devem provavelmente ser
aprovadas por eles, mas eu posso entrar em contato com eles
rapidamente, se necessário.

— Não sinta como se precisasse ficar escondida naquela


casa. Se quiser, pode sempre vir aqui fora e sujar-se comigo,
— disse Lars. Então ele piscou o olho.

Ele piscou, e eu queria vomitar naquele momento.


Em vez disso, soltei um sorriso encantador sulista,
assenti uma vez, dei meia volta e voltei para casa. E tinha
certeza de que o cara estava olhando para minha bunda
quando eu virei de costas, e esse pensamento por si só me
deu calafrios.

Assustei-me e me encolhi quando Lars inesperadamente


tocou meu ombro.

Disparei para enfrentá-lo com pânico nos olhos.

Ele levantou as mãos em sinal de rendição. — Whoa,


whoa. Eu sinto muito. Não quis te assustar.

Meu coração estava batendo rápido no meu peito


quando dei um passo para trás e passei meus braços em
volta do meu corpo. — Não, está tudo bem. Desculpe. Apenas
me assusto com facilidade.

— Só queria dizer que você está linda hoje, — declarou


Lars, permitindo que seus olhos vagassem por mim mais uma
vez. O desconforto começou a subir na boca do meu
estômago e instalou-se pesadamente dentro da minha
garganta.

— Obrigada, — disse, apesar de querer dizer palavras


mais severas sobre seus comentários inadequados. Em vez
disso, me afastei e fui embora.

Antes de subir os degraus da casa, notei o Sr.


Celebridade sentado na varanda ao lado com Joy,
tomando uma xícara de café. Seus olhos estavam em mim, e
a intensidade de seu olhar enviou arrepios na minha espinha.
Inclinei minha cabeça em sua direção evidentemente confusa.
Seus olhos pareciam refletir sobre alguma coisa, mas eu não
conseguia identificar exatamente o que ele estava
expressando. Tive a sensação de que não seria a primeira vez
que ficaria perplexa com seus olhares distantes e frios.

Tive um forte pressentimento de que o Sr. Celebridade e


eu partilharíamos muitos olhares de perplexidade entre nós.

Talvez um dia eu fosse capaz de desviar o olhar mais


rapidamente, mas, por enquanto, meus olhos tinham um
jeito de permanecer nos dele. Algo estava diferente sobre ele
desta vez. Algo estava segurando seu olhar em mim. Pela
primeira vez desde que eu cheguei à cidade, o Sr. Celebridade
não desviou o olhar primeiro. Ele concentrou-se, inclinou a
cabeça e, por um momento, seus olhos pareciam
preocupados.

Quando afastou o olhar eu voltei para dentro para tomar


um banho e lavar o desconforto que Lars havia criado em
mim.

Antes que a tarde terminasse, Lars fez mais três


investidas em mim, deixando-me completamente
desconfortável. Eu não tinha certeza de como as próximas
semanas seriam com ele trabalhando no quintal. Passei
cinco anos desconfortáveis em um casamento sem
amor. A última coisa que eu queria era ficar
desconfortável com um completo estranho.

Não apenas eu estava lidando com Lars aparentemente


se atirando em mim, mas também estava tendo muitas
visitas ‘amigáveis’ de várias pessoas da cidade.

As pessoas continuavam aparecendo na minha casa


para se apresentarem, e, francamente, isso estava ficando
cansativo. Quanto mais elas vinham, mais invasivas se
tornavam me fazendo perguntas sobre minha vida amorosa,
curiosas se eu estava interessada em um encontro com seu
primo Bernie, que nunca tinha namorado uma garota em sua
vida, perguntando se eu estava interessada em doar para o
espetáculo de outono da escola primária sobre Macbeth.
Parecia um pouco pesado para um espetáculo infantil, mas
hei quem era eu para julgar?

De alguma maneira, acabei passando um cheque para


uma dessas senhoras insistentes.

Se você pensou que as mães de Havenbarrow eram


agressivas, espere até ouvir sobre suas filhas que vendem
biscoitos de escoteiras. De alguma forma, acabei pedindo
biscoitos suficientes para alimentar um exército – ou alguém
‘eu’ triste numa sexta-feira à noite.

As piores ainda eram Louise e Kate, que se viam cada


vez mais interessadas em saber quem eu era como pessoa
e ainda mais intrigadas em desenterrar algum tipo de
sujeira no meu passado.
— Ei, querida, — as duas cantaram quando pararam na
frente da minha porta uma tarde de sábado. — Queríamos
dar uma olhada em você e ver como está se adaptando a
pequena Havenbarrow. Deus sabe que deve ser uma grande
mudança para uma garota da cidade como você.

Fato Um: nunca lhes disse que era uma garota da cidade.
Eu disse à intrometida Nancy quando ela parou no outro dia
com muffins;

Fato Dois: não confie em Nancy, a intrometida, não


importa quão bons sejam seus bolinhos;

— Estou indo bem, senhoras.

— Oh, sim. Isso é bom e tudo, — disse Kate, apertando


os lábios — mas se você não se importa de eu bisbilhotar, o
que você veio fazer aqui?

— O que quer dizer?

— Não quero que se ofenda, Kennedy, — ela começou, o


que significava que algo ofensivo estava prestes a ser dito. —
No entanto, não se pode ficar aqui de braços cruzados, sem
um emprego. Você não tem ambições maiores do que essa?
Digo, você tem o quê, vinte e nove, trinta? — Pergunta.

O insulto foi alto e claro no seu tom, e eu não tinha


certeza de como me contive de bater com a porta na cara
dela.
— Vinte e oito, — eu respondi.

As duas franziram a testa. — É uma vergonha, — disse


Louise. — Você é muito velha para não fazer nada. Talvez seja
melhor vir às noites de pedicure que organizo com algumas
outras mulheres. Temos uma na próxima semana. Quem
sabe uma das garotas da cidade possa te arranjar um
emprego. E querida, tenho certeza que as tuas unhas irão te
agradecer pelo carinho. Além disso, e os encontros? O primo
da Mary, o Bernie, está solteiro. Ele é um pouco esquisito,
também. Esquisito, devo dizer como você. Aposto que vocês
dois dariam um excelente casal!

De novo, Bernie não. — Obrigada pela oferta, mas acho


que vou ter que passar. — Parte de mim queria contar a elas
sobre meus romances. Sobre como tive uma carreira de
sucesso. Uma parte maior de mim sabia que eu não era
muito boa com eles.

— Você deveria considerar Bernie e levá-lo para um


encontro. Na sua idade, você deveria se acalmar, não acha?
Aposto que você quer ter filhos em algum momento, não é? O
tempo está passando e só fica mais difícil quanto mais você
espera.

Uau.

Tinham ultrapassado os limites, e nem sequer se


davam conta disso. A cada dia que passava, eu tinha
cada vez mais certeza de que não poderia ficar
naquela casa com estas duas mulheres vivendo logo abaixo
na rua.

— Desculpe, esse é um assunto particular, e…

Louise entrou em cena. — Sabia que pode congelar seus


óvulos? Eu li um artigo que diz que você pode fazer isso.

Antes de eu poder responder, Louise estava acenando


para Lars, que estava arrancando algumas ervas daninhas.
— Olá, Lars. É bom vê-lo, — cantou ela, olhando-o de cima a
baixo como se ele fosse um bife que ela devoraria. — Vejo que
continua trabalhando duro como sempre.

Ele limpou a testa com as costas da mão e deu um


sorriso diabólico. — Você sabe que eu não consigo me
impedir de sujar as mãos, Louise. — Então piscou para mim
e meu estômago revirou cinquenta e sete vezes.

Louise se abanou e corou como se não fosse uma


mulher casada enquanto Lars voltava ao trabalho. — Nossa,
meu Deus. Se eu ainda fosse uma garota solteira, adoraria
sujar-me com aquele homem.

— Amém, — Kate cantou junto com sua irmã. — De


qualquer forma, vamos te chamar para a reunião de pedicuro
Kennedy! E sobre Bernie. Vocês dois se dariam tão bem. Eu
apenas sinto isso.

Ambas apressaram-se em sair e eu mentiria se


dissesse que senti falta delas quando foram embora.
No final do dia, Lars bateu à porta para me informar que
sua equipe havia terminado. — Deixe-me mostrar o que
fizemos hoje, — disse apontando para o jardim.

Com um sorriso hesitante, eu o segui. Andamos por aí


enquanto ele gesticulava aqui e ali, explicando como seria
daqui a alguns meses. Ele falou sobre o jardim que seria
colocado no quintal e sobre as luminárias que seriam
alocadas no lugar. Gabando-se de quão talentoso e inteligente
– e solteiro – ele era, às vezes tocando na quantidade de
sucesso que seus negócios haviam alcançado em
Havenbarrow. Então, quando estávamos olhando para o
canto onde o arbusto de lilás ficaria – a flor favorita da
mamãe – ele colocou a mão na parte inferior das minhas
costas e eu me afastei.

— O que você está fazendo? — Disse, sentindo um


calafrio correr por minha pele.

Ele levantou uma sobrancelha, aparentemente perplexo.


— Sinto muito? Eu só estava…

— Tocando minhas costas sem minha permissão, —


repreendi. — E, francamente, isso é altamente inapropriado.

Em vez de se desculpar por suas ações, Lars revirou os


olhos. — Vá lá, senhora. Não é que não tenha se atirado
sobre mim o dia todo desde que cheguei aqui com a minha
equipe. Os sinais pareciam bastante claros.
— Não houve sinais. Não estava de forma alguma me
atirando em você.

— Não há necessidade de mentir sobre isso, —


argumentou passando as mãos pelos cabelos, como se ele
fosse o homem mais confiante do mundo. — Entendi. Você é
uma garota bonita. Eu sou um cara bonito. Só fazia sentido
que…, — ele colocou a mão no meu ombro, enviando calafrios
pela minha espinha. — ...ficássemos atraídos um pelo outro.

— Eu não estou atraída por você, — disse, com minha


voz ficando mais alta quando joguei a mão dele do meu
ombro. — E se você me tocar mais uma vez, vai se
arrepender.

— Não precisa ser uma vadia, — ele bufou. — Na


realidade, você nem é meu tipo.

O que há com homens que não podem aceitar o fato de


que uma mulher pode não estar interessada neles e,
portanto, ficam na defensiva?

— Você é um pouco gordinha pro meu gosto, — disse


olhando-me de cima a baixo.

— É hora de você sair, — pedi, com minha voz severa,


embora eu estivesse estremecendo um pouco por dentro. Pelo
menos no meu casamento, eu conhecia o monstro que
voltava para casa todas as noites. Mas com Lars? Um
completo estranho? Eu não sabia onde ele traçava seus
limites de raiva.

— Tanto faz. Volto amanhã para trabalhar.

— Provavelmente é melhor se você não voltar, — eu


pedi, sabendo que não havia como Yoana se sentir
confortável com alguém como ele trabalhando em sua
propriedade. Ela nunca quereria que eu me sentisse
desconfortável. E Lars? Ele era a definição do desconforto.

Ele riu, balançando a cabeça. — Você não tem o direito


de me demitir. Como você mesmo disse, sua irmã é minha
cliente, não você.

— E minha irmã receberá uma ligação minha no


momento em que você sair. Agora saia.

— Escute, senhora… — ele disse, dando um passo em


minha direção, me fazendo recuar. Puxa, eu odiava isso.
Odiava ele perceber meu desconforto. Odiava como eu vi o
lampejo de confiança que meu vacilar deu a ele. Odiava
parecer fraca na frente dos homens. Odiava me sentir
encurralada.

Seu peito inchou quando ele ficou mais alto. — Não


posso permitir que mexa no meu orçamento, por isso vamos
ter de arranjar outra solução.

— Ou que tal isso? Que tal você ouvir e deixar a


propriedade dela, — disse uma voz, fazendo Lars e eu
olhar na direção da casa de Joy. Lá estava ele, o Sr.
Celebridade, na cerca curta que separava o quintal de Joy do
meu. Seus olhos eram severos e cheios de… raiva? Isso era
raiva? Só que desta vez o olhar enlouquecedor estava focado
em Lars.

— Que tal você cuidar da sua vida, amigo?

O Sr. Celebridade contornou a cerca e depois foi para o


meu quintal. E ficou cara a cara com Lars e, em segundos,
Lars parecia um peixinho prestes a ser comido por um
tubarão. Claro, Lars era um cara maior, alto e um tanto em
forma, mas o Sr. Celebridade estava em forma. Tipo em forma.
Como se levantasse um carro com o seu mindinho sem sequer
suar.

Eles tiveram um concurso de encarar por alguns


momentos antes de Lars recuar e se render. — Tanto faz,
cara. Não tenho tempo para isso. — Lars voltou seu olhar
para mim e seus olhos azuis pareciam um pouco mais frios.
— Boa sorte em encontrar outro paisagista para terminar
essa merda. Eu sou o único da cidade, então parabéns –
você fodeu com o quintal da sua irmã.

— Saia, — o Sr. Celebridade sibilou, com seu olhar


ainda jogando punhais em Lars.

— Ok, ok, idiota. — Com uma risada sinistra, Lars


jogou as mãos para o ar. — Só não atire.
Essas palavras saíram de sua língua de uma maneira
perturbadora, e agora estava na hora do Sr. Celebridade
tropeçar um pouco para trás. Seus olhos brilharam de
emoção antes que ele piscasse. O que foi isso? Qual era a
história por trás de seu deslize de emoção?

Lars se apressou e vi um suspiro exausto e lento cair


dos lábios do Sr. Celebridade quando seus ombros caíram. O
urso pardo diante de mim soltou seu rosnado.

Alívio rolou através de mim enquanto sorria para o Sr.


Celebridade. — Obrigada por isso. Eu estava quase…

— Que diabos você está fazendo? — Retrucou, com seu


tom duro me assustando.

— O que?

— Por que você o deixou assediá-la assim durante todo


o dia? Além disso, você continua deixando essas pessoas
intrometidas entrarem em sua casa e menosprezá-la.

Eu fiquei um pouco mais ereta. — Do que você está


falando?

— Todos os dias, essas pessoas têm trazido uma merda


para você enquanto cagam sobre você comentários negativos.
Eles estavam cuspindo seu desrespeito direto no seu rosto, e
você permitiu como se não tivesse problema.
Uau. Ok. Aparentemente, estávamos de volta ao cara
agressivo e rude que conheci no bosque. — Não é realmente
da sua conta.

— Se você não os afastar agora, eles voltarão e ficarão


cada vez mais agressivos e intrometidos na sua vida.

— E por que você se importa como as pessoas me


tratam?

Seus olhos brilharam com uma suavidade, e eu jurei


que vi uma pessoa que conheci. Ele enfiou as mãos nos
bolsos da calça jeans e encolheu os ombros. — Estou apenas
dizendo. As pessoas nesta cidade são como trolls. Se você tem
que interpretar o bandido, assuma esse papel. Não fique
tímida, no entanto. Eles gostam de quebrar o tímido. Eles vão
te enlouquecer, pressionar você contra uma parede, atacá-la
repetidamente até você estourar – e acredite em mim, você
estourará – e então eles perguntarão por que você estourou.

— Você ainda não respondeu a minha pergunta. Por que


você se importa como as pessoas me tratam? — Repeti.

— Não me importo, — ele murmurou asperamente,


passando as costas da mão na testa. — Mas você também
não se importa como eles a tratam. Tenho certeza de que esse
é o verdadeiro problema em questão.

Eu queria discutir com ele, queria dizer a ele que


estava errado, dizer que não me importava o que essas
pessoas dessa cidade pensam de mim, mas a verdade
era que eu me importava. Eu queria que eles gostassem de
mim, porque mais do que ser intimidada, eu temia não ser
amada.

Meu marido fez questão de colocar esse temor em mim –


que eu não era digna de ser amada. Tudo o que eu queria era
ser amada, mesmo que isso significasse partir meu coração
para fazer as pessoas gostarem de mim. E esse era um fato
muito deprimente.

— Um conselho do idiota da cidade? — Ele ofereceu.

— Claro que sim, me esclareça.

— Seja mais forte, tenha autoridade. Defenda-se.


Pressione mais quando eles pressionarem contra você.

— Não sei se seguir o conselho do idiota da cidade é


uma ideia tão inteligente, não quero ser uma solitária como
você. Quero ter amigos.

Seus olhos se afastaram dos meus por uma fração de


segundo. Quando ele olhou para trás, eu jurei que o
vi...magoado? Eu o magoei com minhas palavras?

— Eu tenho amigos, — disse ele, com firmeza como


sempre. — Pessoas que significam o maldito mundo para
mim. Pessoas que me pegam quando o resto do mundo tenta
me quebrar.
Meu estômago deu um nó. — Eu sinto muito. Não quis
dizer isso…

— Você disse, e está tudo bem, mas antes de sentar


aqui e me julgar, concentre-se em si mesma agora. Decida se
você realmente deseja essas pessoas como amigas. As
pessoas não têm cuidado com quem se entregam hoje em dia
porque acham que ser amado é mais importante do que ser
respeitado. Essas pessoas vão te matar.

Sorri. — Eu duvido que Louise e Kate vão tirar minha


vida.

— Eu não estou falando sobre tirar sua vida. Estou


falando deles pegando algo mais importante.

— E o que seria isso?

— Sua alma.

Não sabia o que dizer, eu não sabia o que fazer. Fiquei


quieta por um momento quando ele se aproximou de mim e
falou baixinho. — Late para eles, Kennedy. Late.

E deu um passo para trás, respirando fundo. Meu peito


ficou tão apertado quando ele se afastou. Suas palavras
estavam enviando calafrios por minha espinha enquanto
tocavam repetidamente na minha cabeça, como se estivessem
tentando desbloquear algo dentro das minhas memórias.

Late para eles, Kennedy. Late.


Kennedy

— OH MEU DEUS, eu sinto muito que ele tenha te tratado


assim, Kennedy. Que idiota! — Disse Yoana pelo telefone
enquanto eu bocejava e me espreguiçava na cama. Minhas
costas estavam doendo extremamente e cansadas de eu ser
uma idiota por dormir em um carro pelas últimas noites,
então eu me mudei para dentro em uma cama de verdade
como um adulto de verdade. Fiquei tão feliz quando os
móveis finalmente chegaram e a casa começou a parecer mais
como uma casa.

— Sim, — concordei, referindo-me a Lars e a maneira


como ele me tratou no dia anterior. — Sinto muito por ter
perdido seu paisagista.

— Tanto faz. Não é grande coisa. Tenho certeza de que


alguém vai aparecer. O que importa é que você esteja bem.
Precisa que eu volte para casa? Eu posso voltar para casa. Eu
posso voltar para casa se você precisar de mim.
— Tenho cem por cento de certeza de que você não é
necessária na cidade. — Eu ri.

— Sério? Porque Bora Bora é um tédio completo. Tudo o


que fazemos é tomar sol e consumir bebidas frutadas.

— Nossa, que vida difícil, muito difícil.

— Você que está dizendo. Além disso, tem esse cara que
me acompanha por aí, dizendo que me ama sem parar e
atendendo a todos os meus desejos e necessidades.

Levantei uma sobrancelha como se ela pudesse me ver.


— Você quer dizer… seu marido?

— Marido. — Ela suspirou, balançando a cabeça para


frente e para trás. — Que palavra esquisita. Eu tenho um
marido. — Ela riu, parecendo apaixonada como sempre.

— Com certeza você tem. E um dos bons. Seja grata por


isso... há muitos peixes terríveis no mar.

— Por falar em peixe terrível… você ouviu falar de sua


lula?

Meu peito apertou e eu puxei meu cabelo em um coque


bagunçado. — Não…

— Bem, isso é bom, certo? Não ter notícias dele é uma


coisa boa.
Talvez. Ainda assim, uma parte de mim se sentia
estranha por não ter notícias dele. Tentei o meu melhor para
não pensar nisso. Quanto mais eu pensava sobre isso, mais
eu pensava sobre o meu passado, e isso era difícil para mim.
Eu não era boa em lidar com o meu passado. Era muito difícil
para eu enfrentar.

— Sim é bom, uma observação, — falei mudando de


assunto — se você estiver interessada em saber, meus
vizinhos são as pessoas mais intrometidas do mundo.

— Oh Deus, é ótimo saber. Aposto que eles estão tendo


trabalho com você.

— Nem imagina. Estou surpresa que uma torta de


frutas ou pão ainda não tenha aparecido hoje.

— Ainda é cedo – tenho certeza de que está a caminho,


— brincou. — Como é a cidade? É o Southern Stars Hollow7
dos nossos sonhos? — Yoana perguntou, com sua voz cheia
de esperança. — Existem vendas de bolos e desfiles na cidade
porque é terça-feira? Existe um Luke's Diner8? Oh meu Deus,
por favor, me diga que há um Luke's Diner.

Sorri. — Ainda não andei pela cidade, na verdade, mas


você tem uma vizinha fofa e peculiar. Ah, e aviso – o idiota da
cidade é dono do bosque atrás de sua propriedade. Eu não

7
– Cidade fictícia do seriado Gilmore Girls;
8
– Cafeteria do seriado;
vagaria por lá se fosse você. Ele é o oposto de uma pessoa
popular.

— Ohhh, interessante. Ele é um antissocial tipo Luke ou


antissocial tipo Jess?

Se havia algo em que Yoana e eu éramos profissionais,


era em falar nas referências de Gilmore Girls.

— Jess. Totalmente um Jess.

— Ele é gostoso? Oh Deus, por favor, me diga que ele é


gostoso. —

Oh, o Sr. Celebridade era um belo espécime de um


idiota. Se caras quentes mal-humorados pudessem matar, eu
já estaria morta dez vezes. Era como se alguém pegasse
Damon de The Vampire Diaries, jogasse um pouco de Hook de
Once Upon A Time e voilá! O Sr. Celebridade nascia.

— Não é essa a questão, — digo para me livrar do seu


óbvio sex appeal porque eu ainda estava numa missão para
odiá-lo – mesmo que ele andasse com os idosos no seu tempo
livre e me salvasse de pessoas como Lars. Isso não anulou a
sua falta de jeito comigo nem a sua personalidade mal-
humorada.

— Esse é o ponto, Kennedy. Não há problema em achar


o idiota da cidade sexy.

Também acho. Só que Yoana não precisava saber


desse fato – nem mais ninguém – porque não tinha
relevância para nada. O Sr. Celebridade era lindo demais com
mechas de cabelos castanhos escuros que caíam na frente do
rosto da maneira mais sexy possível? Sim. Olhos profundos e
misteriosos que me fascinaram por um momento? Claro, sim,
tanto faz. O tempo parou, blá, blá, blá. Isso não mudava o
fato de ele não ter as habilidades com as pessoas. Nenhuma
quantidade de lábios carnudos ou mandíbulas fortes poderia
mudar esse fato.

A sua beleza e natureza misteriosa simplesmente


tornava mais difícil desviar o olhar.

— Se você continuar falando, eu vou desligar o telefone,


— brinquei, levantando-me para entrar no banheiro.

— Tudo bem, tudo bem, mas como assim você ainda


não esteve na cidade? Não me diga que você foi antissocial.
Você tem que sair! Explorar. Conhecer novas pessoas.

— Confie em mim, não preciso conhecer novas pessoas.


Eles têm um jeito de vir direto para a minha varanda.

— Você precisa sair, Kennedy. Vai ser bom para você.

— Mas sua casa é tão grande e confortável, — brinquei


tentando mudar a direção da conversa. Pude perceber pelo
suspiro de Yoana que ela estava preocupada. E sabia que era
porque ela estava absorvida com minha saúde mental, que
vinha sofrendo bastante nos últimos meses. Ela queria
que eu ficasse bem, o que eu compreendia
completamente. Eu também queria isso. Só que
essas coisas levavam tempo. Eu tinha que me curar nos
meus próprios termos – mesmo quando o resto do mundo
queria que eu superasse isso mais cedo ou mais tarde.

Isso não me parecia justo. Afinal, era o meu trauma, não


o deles.

Mas meu marido já havia me deixado por causa da


minha incapacidade de seguir em frente com minha vida. Eu
também não poderia perder minha irmã pelas mesmas
razões.

— Só me preocupo com você, Kenny, — ela disse,


usando o apelido que mamãe costumava me chamar. Meu
estômago vibrou. — Você passou por muita coisa. Depois de
perder mamãe, papai e Da...

— Vou sair hoje, — ofereci, interrompendo-a antes que


ela pudesse mencionar o acidente que queimou minha alma.
— Vou ver o que está acontecendo neste lugar, — eu disse,
tentando parecer esperançosa para que as preocupações de
Yoana pudessem evaporar.

O suspiro que deslizou pelo alto-falante do telefone foi


muito mais relaxado dessa vez. — Oh, Kennedy, você vai
adorar! Nathan me convenceu a comprar a casa, oferecendo-
me alguns destaques de Havenbarrow. Há um cinema drive-
in à moda antiga que só reproduz filmes em preto e branco, e
toda sexta-feira à noite tem um filme romântico, —
insistiu ela, despertando meu interesse.
— Ah? Continue.

— Há uma cafeteria que tem um gato de rua chamado


Marshmallow que anda por aí.

Ok, ela agora estava fazendo cócegas na minha fantasia.

— E, e, e! — Ela exclamou, seu entusiasmo vindo alto e


claro. — A biblioteca tem uma estante secreta! Pelo menos
essa é a lenda urbana. A estante leva a um recanto de leitura
oculto e você precisa encontrar o livro certo para desbloqueá-
la. Há rumores de que ninguém o encontrou ainda, mas
supostamente deve estar lá.

Desafio aceito.

— Você pode até levar o carro da mamãe e do papai para


dar uma volta, — disse Yoana com um toque de esperança.

Isso definitivamente estava levando as coisas longes


demais. Ela sabia dos meus problemas para dirigir. Ainda
não estava pronta para pular do trampolim. — Um passo de
cada vez, mana.

Eu quase podia sentir seu sorriso culpado vindo pelo


telefone. — Tinha que tentar.

Depois de desligar com Yoana, na tentativa de evitar os


indivíduos invasores que carregavam assados e sair da minha
zona de conforto, fui à cidade para tomar um café da
manhã.
O café parecia muito com o Luke's Diner, com mesas
espalhadas aleatoriamente ao redor e cabines de couro
vermelho ao longo das paredes. Os bancos que ficavam no
balcão da frente eram ocupados por pessoas conversando, em
vez de encarar seus telefones celulares. Havia uma placa na
parede em frente à estação de café que dizia: Nada de celular.
Conecte e vá embora.

Agora, se isso não era um recado do Luke's Diner, eu


não sabia o que era. Achei que não havia necessidade de
perguntar se eles tinham uma senha Wi-Fi que eu pudesse
usar. Então enfiei o meu telefone na minha bolsa e sentei-me
numa cabine. Não demorou muito até que o meu bife e ovos
fossem entregues, e depois voltei a minha atenção para a
janela para o meu entretenimento gastronômico. Um
cachorrinho adorável estava na coleira, do outro lado da rua.

Não faça isso, cachorrinho.

A dona do cão estava gritando com alguém em seu


celular e balançando seus braços como uma louca. A coleira
estava amarrada num suporte de bicicleta e, a cada poucos
segundos, ele puxava a tira de couro, afrouxando o nó.
Tentava alcançar o gato vadio sentado no lado oposto da rua
movimentada, lambendo as patas.

Sua dona não percebeu o nível de angústia de seu


cachorro, muito ocupada gritando em seu telefone para
se preocupar com o fato de que o cachorro estava
prestes a sair correndo pelo trânsito.

O ritmo dos meus batimentos cardíacos tornou-se


irregular. A coleira do cachorro estava quase solta da trava.
— Não, — murmurei para mim mesma, com minhas mãos
tremendo, esperando que o cachorro sentasse e ficasse onde
estava.

O gato se esticou, deixando o cachorro ainda mais


frenético. A atenção nos olhos do cachorro e seus latidos
altos deveriam ter feito à dona notar, mas ela não notou.

Imagine uma pessoa estar tão desligada de tudo.

— Não! — Eu gritei, com minha voz falhando. As


pessoas olharam na minha direção, mas eu não me importei.

Pulei da minha cabine enquanto calafrios percorriam


meu corpo, e dois segundos depois, a coleira estava livre, e o
cachorro estava na rua e meu coração estava na garganta.

Antes que o cachorro pudesse pular na frente de um


carro, antes que uma visão horrível se desenrolasse diante de
mim, o Sr. Celebridade entrou em frente ao veículo em
movimento e pegou o cachorro em seus braços.

Senhor.

Maldito.

Personalidade.
Você está brincando comigo?!

Homem adulto, atraente, segurando um cachorrinho


minúsculo e indefeso contra o peito?

Resultado: Uma mulher com tesão instantâneo.

O motorista do veículo bateu a mão buzina antes de


gesticular no ar com um olhar de nojo e depois acelerar.

A dona do filhote se virou para ver o homem com o


cachorro nos braços, e ela parecia horrorizada – não pelo
cachorro quase perdendo a vida, mas pelo homem que estava
segurando o animal.

Ela pegou seu animal de estimação longe dele e


começou a acenar com as mãos no ar mais uma vez,
aparentemente xingando-o por salvar seu animal de
estimação.

O que há de errado com ela?

Claro, ele era conhecido como o idiota da cidade, mas


naquele momento, ele foi um super-herói! Ela deveria ter
agradecido ao idiota por seu ato heroico. Em vez disso, ela o
xingava como se ele fosse a causa do incidente. E o Sr.
Celebridade ergueu-se e não gritou de volta para ela. Na
verdade, ele não disse uma palavra. Seus lábios carnudos
continuaram pressionados, e ele não parecia nem um pouco
incomodado com a mulher. Nem uma sobrancelha levantada
e nem um único sorriso ou carranca nos lábios.

Ele apenas parecia… vazio.

Completamente desconectado da agressão sendo


lançada em sua direção.

Ele era melhor do que eu naquele momento, isso era


certo. Se fosse eu, teria inventado palavrões usando todas as
letras do alfabeto.

Enquanto ela continuava gritando, o Sr. Celebridade se


virou e se afastou dela, deixando a mulher com seu vômito de
palavras e péssimas aptidões como dona de um animal de
estimação.

A campainha da porta tocou quando ele entrou no café.


E se sentou em uma cabine de canto, abriu um cardápio,
ajeitou o boné e abaixou a cabeça, curvando os ombros
enormes para frente enquanto estudava as opções do
cardápio.

Por que ele fez isso?

Por que ele teve que salvar um filhote do atropelamento?

Por que ele tinha que tornar tão difícil para eu não
gostar dele?

O Sr. Celebridade era como um super-herói. Do


maxilar esculpido aos braços e bíceps, esse homem
provavelmente poderia ter parado um trem de alta velocidade
usando seu tronco de aço. Era uma pena que, quando eu
cruzei seu caminho, suas habilidades em comunicação não
correspondiam às suas aparentes habilidades de ginástica.
Então, novamente, isso o faria bom demais para ser verdade.

— Se você queria um prato de sal com um bife e ovos ao


lado, eu poderia ter providenciado, — uma voz amigável
falou, tirando meu olhar do Sr. Celebridade para a comida na
qual eu estava irritantemente agitando o sal nos últimos
cinco minutos.

— Desculpe, — murmurei, colocando o saleiro na mesa


e me abaixando de volta na minha cadeira. Olhei de volta
para a janela e encontrei a mulher gritando com seu cachorro
por ser desobediente.

Eu me senti mal pelo cachorro. A dona parecia uma


pessoa verdadeiramente desrespeitosa.

— Não precisa se desculpar. Todos nós temos hábitos


peculiares, — garantiu a voz amigável.

Meus olhos se moveram para o cara falando. Ele tinha


lábios finos cor-de-rosa e olhos verdes escondidos atrás de
um par de óculos. Seus olhos tinham essa coisa de poder
sorrir por conta própria. Suas bochechas eram cobertas de
sardas vermelhas que combinavam com seu cabelo espetado
de vermelho-alaranjado. Eu olhei seu crachá e sorri
enquanto lia em voz alta. — Marty. — Ele parecia
exatamente como eu imaginaria um Marty. Tipo magro, alto e
meio nerd, mas estranhamente bonito.

— Sou eu, — disse e seus lábios virando para combinar


com os olhos sorridentes. — Posso pegar outro bife e ovos?

Hesitei, debatendo se eu queria gastar mais dinheiro.


Mesmo que Yoana estivesse determinada a enfiar dinheiro
nos meus bolsos, eu recusei. E ainda tinha o suficiente das
minhas economias dos meus livros, mas com o jeito que eu
estava escrevendo – ou não escrevendo – não sabia quando
viria mais dinheiro. Cada centavo importava.

Marty deve ser um leitor de mentes, porque seguiu sua


oferta dizendo que seria por conta da casa.

— Você não teria problemas por isso? — Perguntei, com


meu estômago roncando mais alto do que eu queria. Certo
embaraço passou por mim quando olhei para o meu prato
coberto de sal para evitar os seus olhos preocupados.

— Ah, não é grande coisa. Meu pai é dono do lugar. —


Limpando a garganta se inclinou para sussurrar: — Vou
arranjar um brinde extra para você também. — Marty
levantou o meu prato da mesa após o ter recolhido e colocado
para baixo num total de quatro vezes, achei estranho mas
não mencionei seu comportamento, em troca lhe ofereci um
sorriso.
Ele parecia ter a minha idade, talvez um ano mais ou
menos.

Houve esta estranha luta que vi acontecer diante dos


seus olhos quando ele pegou uma vez no saleiro e o voltou a
colocar sobre a mesa. Levantou-a de novo, voltou a colocá-la
na mesa. No total de quatro, esta mesma ação aconteceu
mais duas vezes. Arqueei uma sobrancelha para ver as suas
bochechas vermelhas e suas feições envergonhadas.

— Desculpe. — Ele riu nervosamente. — Apenas um


caso grave de TOC. Encolheu-se com suas palavras e meus
lábios se voltaram para baixo. Era evidente que seu distúrbio
obsessivo-compulsivo era algo que ele tentava esconder, mas
não conseguia.

Parecia ser esse o caso de todo o mundo, presumo que


tinha um segredo e tentava ao máximo esconder. Inclinei-me
para mais perto dele.

— Não se preocupe, todos nós temos nossos hábitos


peculiares, — e pisquei o olho para ele e vi o seu olhar
serenar.

— Há algum problema? — Perguntou uma voz severa.

Tirei os olhos de Marty para olhar para um homem que


tinha o dobro do seu tamanho. O pai de Marty, presumi pela
semelhança. O crachá dele me dizia que se chamava
Gary.
Gary olhou para o filho e suspirou, com um olhar de
decepção em seus olhos cansados. — Você está
enlouquecendo os clientes de novo?

Antes que Marty pudesse responder – ou deixar cair o


prato trêmulo na mão – eu agarrei suas mãos inseguras e me
virei para Gary com um grande sorriso. — Estava apenas
olhando seu bolo de veludo vermelho em exposição ali, e seu
filho Marty estava me dizendo que você tem o melhor da
cidade.

Os olhos de Gary suavizaram. E seus lábios se


transformaram em um pequeno sorriso quando ele cruzou os
braços e estufou o peito. — Essa é a verdade. A melhor fatia
de bolo que você encontrará em Havenbarrow e em todo o
Kentucky. E faço tudo do zero. Essa é a mágica. Não é nada
falso como os daquele novo restaurante do outro lado da rua,
levando todos os nossos clientes. Eles usam toda a porcaria
congelada que adoece as pessoas. Orgulhamo-nos de usar
comida de verdade. Meu bolo é de morrer. — Era espantoso
como o viril Gary ainda surgia quando falava de um bolo.

— Bem, eu definitivamente terei que voltar um dia para


provar.

Gary passou a palma da mão pelas sobrancelhas. —


Sem dúvida que sim. Bem, é melhor eu voltar para a cozinha.
— Marty
O olhar irritado de Gary regressou — vai limpar as
outras mesas antes que a multidão do final da manhã
chegue.

Gary desapareceu na cozinha movimentada, onde


panelas e frigideiras podiam ser ouvidas chacoalhando. Marty
me agradeceu por distrair seu pai por um momento e depois
correu para fazer meu novo pedido.

Enquanto aguardava, peguei uma caneta e um caderno


da minha bolsa e comecei a adicionar à minha lista de coisas
para fazer em Havenbarrow.

 Aprender a assar um bolo a partir do zero.

De vez em quando, olhava para a mesa onde o Sr.


Celebridade estava sentado, e uma onda de nervosismo me
atingia a uma velocidade avassaladora. Não conseguia
manter meus olhos longe dele, por mais que tentasse desviar
meu olhar. Parecia que eu era uma perseguidora, olhando em
sua direção, mas algo nele me atraía e tornava quase
impossível desviar o olhar.

Ele deve ter sentido o meu intenso olhar, porque quando


olhou para cima, do seu cardápio, seus olhos pousaram
diretamente em mim. Como a psicopata que eu era, eu não fiz
o que a maioria das pessoas normalmente faria quando eram
apanhadas olhando para um completo estranho.

Eu não virei à cabeça para o outro lado.


Eu não fingi olhar para trás dele.

Eu não me afastei para fugir disso.

Não, não, não.

Simplesmente sorri e abri meus lábios.

— Oi, — eu disse com uma expiração, alto e claro


quando ele estreitou os olhos.

E piscou três vezes.

E retornou de volta para o cardápio, recolocou o boné de


beisebol e virou os ombros para frente mais uma vez,
fazendo-me sentir completamente psicótica por falar com ele.
Mas ainda assim, eu continuava encarando.

O que havia de errado comigo?

Recentemente, eu tinha assistido a série da Netflix Você,


e estava revelando algumas características fortes de Joe
observando este completo desconhecido. Se eu fosse Joe, este
teria sido o meu atual processo de raciocínio perseguidor:

Você olha para o cardápio completamente incerto sobre o


que você vai pedir. Vai ser o smoothie verde? As panquecas? O
mingau de aveia? Não. Tem mais cara de omelete. Você usa
um boné para esconder o rosto, mas não sei por que, já que
tem um queixo muito bonito e definido. Apesar de ainda serem
frios e pouco convidativos, os teus olhos são dignos de
serem admirados, Kennedy, nem sequer desvia o olhar.
O que havia acontecido comigo?

Eu vi quando ele tirou o boné, e o colocou sobre a mesa,


passando as mãos pelos cabelos.

Marty voltou para a mesa, e fez sua rotina peculiar e me


entregou minha comida. Inalei os aromas surpreendentes
resultantes da minha refeição. E não esperei que Marty se
afastasse antes de começar a enfiar a comida na boca de uma
forma totalmente abominável.

— Então, o que te traz à cidade? — Ele perguntou com


um pouco de admiração nos olhos, provavelmente em
resposta à rapidez com que eu estava colocando a comida na
boca.

— Estou alugando a casa da minha irmã e cunhado


pelos próximos meses, — eu digo, pegando uma garfada de
ovos.

— Oh, com o seu… namorado? Marido? — Marty


pergunta.

Meu estômago deu um nó quando olhei para o meu


dedo sem anel. Fazia algumas horas desde que eu pensei
sobre o meu passado. Bastava que o simpático Marty
comentasse algo para provocar essas emoções de volta a
mim.

— Não. Apenas eu.


— Você é solteira? — Ele disse, com sua voz cheia de
esperança.

Eu sorri para ele, tentando afastar os pensamentos do


meu relacionamento passado em que ele estava tentando
arrancar de mim. — Sim, solteira e feliz com isso. Acabei de
sair de um relacionamento longo e estou me concentrando
em mim, por enquanto.

Ele sorriu, entendendo. — Bem, se você precisar de um


amigo na cidade, estou mais do que disposto a não me atirar
em você, vendo como você não é realmente o meu tipo. —
Acenou com a cabeça em direção ao cavalheiro sentado a
uma mesa em frente a mim. — Estou mais interessado em
Kens do que em Kennedys.

Eu sorri. — Bem, eu provavelmente poderia usar um


bom amigo, isso é certo.

Meus olhos voltaram para a mesa do Sr. Celebridade. E


ele olhou na minha direção mais uma vez – e adivinhe quem
não desviou o olhar novamente? O bom e estranho que me
assusta. Pestanejou algumas vezes antes de voltar a olhar
para o cardápio. Senti as minhas bochechas aquecerem
instantaneamente enquanto levantava o meu copo de suco de
laranja para os lábios, e Marty seguiu o meu olhar.
Ele riu. — A maioria das pessoas olha para Jax Kilter
dessa maneira, — disse ele, me fazendo cuspir meu suco em
um instante, arruinando meu prato de comida.

— Espere o que? — Exclamei, completamente perplexa


com as palavras de Marty.

Ele olhou para mim como se eu fosse completamente


louca – e, bom, isso foi um julgamento justo – mas eu ainda
não conseguia me acalmar.

— Você disse Jax Kilter? — Perguntei.

— Sim.

De jeito nenhum.

Não poderia ser ele…

Fazia anos desde que eu o vira pela última vez, e quase


nada sobre o homem na minha frente se parecia com o garoto
que eu conheci uma vez – exceto por aqueles olhos. Aqueles
olhos profundos e escuros atraíam-me da mesma forma que
quando éramos crianças.

Marty coçou a barba inexistente. — Você o conhece?

— Sim. Quer dizer, acho que sim… há muito tempo.


Puxa, já faz anos. — Meus olhos voltaram para Jax, e meu
coração se apertou no meu peito enquanto lágrimas brotavam
nos meus olhos. Poderia realmente ser ele? Tinham
passado mais de quinze anos desde a última vez que
conversamos. Nós éramos apenas crianças naquela época,
mas vê-lo agora e saber que ele era o mesmo Jax da minha
infância fez minha mente voar em uma espiral. Por um
tempo, ele tinha sido meu amigo. Meu companheiro de
acampamento de verão. Meu melhor amigo. Passamos dois
verões crescendo juntos, construindo uma forte conexão, até
que ele desapareceu da minha vida sem dizer uma palavra.

— Você o conhece? — Perguntei a Marty antes que meus


dentes morderem meu lábio inferior.

— Oh sim. É uma cidade pequena, então todos se


conhecem. Para ser sincero, eu já sabia tudo sobre você antes
de você se sentar aqui, exceto seu número do Seguro Social,
— ele brincou.

— Ele é… legal? — Eu perguntei, ignorando o fato de


que Marty disse que sabia tudo sobre mim. Estava muito
preocupada em saber tudo sobre Jax. Minha pergunta
parecia idiota, porque, com base na minha interação com ele,
eu sabia a resposta: não, ele não era legal. Bem, ele foi meio
legal? Um pouco… pensei. Pelo que eu observei, suas ações
falaram de maneira diferente de suas palavras, e eu queria a
opinião de Marty sobre quem Jax se tornara.

— Jax é… ele é… bem, eu não sou de fofocar. E as


pessoas já fofocam muito por aqui para dar a qualquer
roteirista uma década de episódios de qualquer
telenovela, mas Jax é um sujeito interessante. Um
pouco solitário, tirando os seus relacionamentos
aleatórios. Recentemente, ele saiu de uma relação de dois
anos com Amanda Gates – não que eles realmente
parecessem próximos. Ele é um pouco EI.

— EI?

— Emocionalmente Indisponível. Surpreende-me que


Amanda tenha ficado tanto tempo com ele. Sua aparência
não dói. Tenho certeza que isso e os assuntos no quarto
foram suficientes para manter a atenção dela. Se eu tivesse o
menor indício de que ele gostava de Kens em vez de
Kennedys, deixaria o meu Marty acenar à sua maneira
porque esses olhos engolirão qualquer coisa humana. Mas,
infelizmente, ele joga pela tua equipe, não pela minha.

Sorri. Quanto mais Marty falava, e quanto mais


confortável ele ficava comigo, mais eu gostava dele. Sua
personalidade estava começando a brilhar através das
nuvens de nervosismo.

— Ouvi dizer que ele é o idiota da cidade, — disse.

— Ele é… mas é do tipo bom.

Eu ri. — Afinal, o que isso quer dizer? Tipo bom de


idiota? Isso é um paradoxo.

— Não, não é. Você sabe… ele é um idiota com as


pessoas que merecem. No começo, ele é frio, e é só porque ele
não conhece a pessoa. Ele tem os seus escudos
erguidos, porque já se feriu muito. Não posso culpá-lo
com a merda que as pessoas desta cidade o fizeram passar.
Eu também rotularia as pessoas como culpadas até provarem
sua inocência, se eu tivesse vivido metade da vida que Jax
viveu, e eu sou o cara gay símbolo neste lugar, além de ter
TOC. Confie em mim, eu vivi uma vida, mas não a trocaria
para entrar no lugar do Jax por um minuto.

O meu peito apertou com as palavras de Marty. Se


alguma coisa, Jax não soou como o vilão estúpido da história
desta cidade. O que mais parecia é que ele era o herói
quebrado, aquele que tinha se desmoronado tanto que se
retirou para a obscuridade acima da luz.

Muito parecido comigo, depois da tragédia me encontrar.

— Sua vida tem sido tão ruim assim? — Eu perguntei,


esperançosa de que Marty balançasse a cabeça e dissesse
não.

Infelizmente, ele assentiu. — Jax tem um passado


sombrio. Ele passou muitos anos cuidando de si mesmo
enquanto cuidava de seu pai imbecil, até que seu pai foi
colocado em um asilo algumas semanas atrás. Agora, se você
quiser falar sobre idiotas desta cidade, Cole Kilter era o chefe
da gangue. Mas Jax? Não é nada como o pai, nem um pouco,
embora ele venha com a genética idiota.

— E sua mãe?
Marty franziu o cenho. — Como eu disse, ele tem um
passado sombrio.

Só essas palavras partiram meu coração. Eu sabia o


quanto sua mãe significava para ele, e a ideia de ela não estar
mais por perto era devastadora.

Marty cruzou os braços. — Entre nós, acho que Jax é o


cara mais legal de toda essa cidade. — Ele arregaçou a
camisa e me mostrou uma cicatriz em sua pele. — Alguns
anos atrás, fui pego por Lars Parker e seu grupo de idiotas.
Eles estavam saindo do bar bêbados quando eu estava
terminando de arrumar a lanchonete para o dia seguinte.
Eles começaram a me assediar para lhes dar comida de graça
e, bem, para encurtar a história, eles partiram para cima de
mim.

— As notícias viajaram rapidamente sobre o incidente e,


alguns dias depois, Lars e seus amigos apareceram com seus
próprios ferimentos de batalha, olhos negros e tudo. Entrei
no trabalho depois disso, e lá estava Jax, sentado em sua
cabine habitual, lendo o jornal com as duas mãos enfaixadas.
Ele disse que sofreu um acidente ao cortar lenha no quintal.
Até hoje ele jura que não teve nada a ver em chutar a bunda
de Lars, mas tenho a sensação de que ele teve muito a ver
com isso. E depois, que ele me disse para avisar se alguém
me incomodasse, só confirmou. Agradeço a ele por isso
com frequência, e ele sempre me diz para ir embora e
trazer o seu pedido.
Lars Parker.

O mesmo idiota de quando éramos crianças. Claro que


era o mesmo monstro que me assediou. Sabia que não era
por nada aquela sensação estranha de quando o conheci. Não
fiquei surpresa ao ver que ele acabou se tornando o mesmo
idiota de quando era criança.

Marty voltou ao trabalho e eu olhei para Jax. Ele se


virou na cabine e, quando sua cabeça se levantou, ele virou
na minha direção. E nossos olhos se prenderam um no outro,
e meu coração começou a bater repetidamente no meu peito.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Marty trouxe


para Jax seu pedido e ele levantou e saiu do café, deixando
seu boné de beisebol na mesa.

Eu corri para deixar o dinheiro da minha conta na


mesa, e então me apressei para pegar o boné de Jax.

Saí correndo do café para encontrar Jax e dar-lhe o


boné e… não sei… abraçá-lo? Chorar? Perguntar a ele onde
ele esteve por todos esses anos? No entanto, antes que eu
pudesse fazer isso, meus pés congelaram no lugar enquanto
olhava para uma garotinha em pé na frente da sorveteria com
a mãe. Ela segurava um sorvete de chocolate com menta, e
não conseguia lamber rápido o suficiente para impedir que
derretesse. E sua mãe estava remexendo na bolsa em busca
de guardanapos para ajudar a limpar a bagunça.
Eu não conseguia desviar o olhar.

A menina parecia ter cerca de cinco anos, talvez seis.

Tudo que eu sabia era que ela era pequena, adorável e


viva.

Tão viva.

Não posso ficar aqui, pensei comigo mesma quando meu


peito começou a apertar. Eu queria dar meia-volta e seguir na
outra direção. Eu queria correr. Eu queria correr para tão
longe, e voltar para casa e me enterrar em um lugar onde o
lembrete da minha perda não fosse apresentado a mim de
todas as formas, e maneiras possíveis.

Seu sorvete favorito era chocolate com menta.

Ela falava tanto que o sorvete derreteria em seus dedos


e fazia uma bagunça enorme, não importa quantas vezes eu
tentasse limpá-la, sempre tinha guardanapos na bolsa
porque era mãe dela, e as mães sempre guardavam
guardanapos na bolsa e…

Pare com isso, Kennedy. Vá para casa.

Mas não conseguia me mexer. Eu estava congelada no


lugar quando um ataque de pânico começou a varrer minha
alma. E não conseguia desviar o olhar da criança e da mãe
que estava limpando a bagunça do seu queixo. Não pude
me virar. E não conseguia respirar.
— O que você tem? — Uma voz perguntou, me tirando
dos meus devaneios.

Eu me virei para ver Jax parado ali com um olhar


perplexo nos olhos. Meu corpo estava tremendo quando
minhas mãos tremiam com seu boné em minhas mãos, e eu
abri meus lábios para falar, mas nenhuma palavra saiu da
minha garganta.

E vi nos olhos dele também – a maneira como ele me


olhava como se eu fosse louca, da mesma forma que Penn
havia me encarado no ano passado. Ele estava me julgando.
Ele ficou perplexo com o meu medo inexplicável. Ele estava...

Ajudando-me?

— Ande, — ele ordenou.

— Eu… eu não posso, — falei ainda tremendo. A


garotinha e sua mãe não estavam mais na minha frente, mas
as sombras do momento de amor se misturavam às sombras
do meu passado na minha mente. Eu estava pensando
demais, exagerando e sentindo demais todas as emoções
estavam martelando em meu coração.

E não conseguia evitar, no entanto. Era por isso que fiz


o meu melhor para me desconectar da sociedade. Continha
muitos lembretes de toda a alegria que eu tinha perdido.

— Você pode, — ele discordou. — Você pode andar.


Ele não entendia.

Ninguém entendia.

Seu braço deslizou sob o meu, e ele o enrolou no seu.

— O…o que você está fazendo? — Eu gaguejei, com


minha voz rouca.

— Isso, — ele explicou, dando um passo à frente e me


levando com ele. — Agora você faz isso.

— Por favor, não, eu…

— Pare com isso. Pare de dizer o que você não pode fazer
quando pode fazê-lo. Mente sobre a matéria. Vamos lá, Sun…
— Sua voz era baixa, mas nem de longe tão fria quanto antes.
O apelido que eu não ouvia há tanto tempo me atingiu como
um trem de carga. Ele sabia. Ele sabia quem era eu. Ele se
lembrou. — Ande comigo, — implorou.

Um passo.

Então outro.

Eu estava me mexendo. Isso, ou ele estava me


levantando e me fazendo flutuar pela calçada. De qualquer
maneira, ele me acompanhou de volta à minha casa em
completo silêncio, enquanto meus batimentos cardíacos
começavam a diminuir a velocidade. E senti os olhos de todos
em Jax e eu enquanto caminhávamos, e eu odiava isso.
Eu odiava o constrangimento que vinha com os
ataques de pânico, do jeito que as pessoas olhavam como se
eu fosse maluca.

Lembrei-me do meu primeiro ataque de pânico em um


local público. Foi na festa anual de Natal da agência
imobiliária de Penn. Eu tive um colapso enquanto os alto-
falantes tocavam a música favorita da minha filha, ‘This
Christmas’, de Donny Hathaway. Eu estava no meio da
conversa com o chefe dele quando meus joelhos dobraram e
eu caí no chão em pânico.

Ele sentiu-se envergonhado por sua esposa estar tendo


um ataque em público.

Eu só podia imaginar como Jax se sentiu ao me levar


para casa neste momento. O pior de tudo era que ele nem
sequer era casado comigo. Ele era um completo e absoluto
estranho lidando com a situação por toda a cidade. Mas ele
não parecia nada incomodado com isso. Só continuava
andando com o seu braço ligado ao meu.

Quando chegamos em casa, eu lhe agradeci, e ele me


calou e me mandou sentar no degrau da frente.

— Eu estou realmente bem, — disse, ainda me sentindo


um pouco instável e tonta.

Ele respirou fundo e fechou os olhos antes de soltar o


suspiro. — Por favor, — insistiu. — Sente-se.
Apesar de querer discutir, decidi escolher as minhas
batalhas.

Sentei-me e, para minha surpresa, ele se sentou ao meu


lado. Eu não sabia o que dizer para ele, mas felizmente, Jax
não estava procurando por palavras. Ele simplesmente se
sentou ao meu lado em um completo silêncio que parecia…
reconfortante? Sim. Eu me senti muito mais confortável do
que quando estava andando na cidade, tudo porque Jax
estava naquele degrau da varanda comigo.

Afinal, você não precisava de palavras para lhe trazer


conforto. Às vezes, tudo que você precisava era que alguém se
sentasse ao seu lado no meio de suas tempestades de pânico.

Quando chegou a hora de ele ir embora, se levantou e


olhou para mim. — Você está bem?

— Sim, estou. Obrigada por ter me ajudado. — Fiz uma


pausa. — Quanto tempo? Há quanto tempo você sabia que eu
era… eu?

O canto da boca dele se contraiu. — Alguns dias. Vi o


carro da sua família na entrada da garagem.

— Eu… isso… é loucura, certo? Depois de todos esses


anos, nos encontrarmos assim... só estou tentando entender
o que tudo isso significa, como tudo...

— Nada. Não precisa significar nada.


Coloquei minha mão no meu peito e respirei
profundamente. — Mas poderia, certo? Isso pode significar
alguma coisa. Quer dizer, quase parece destino, certo? De
todas as cidades em que eu poderia ter acabado, acabei aqui.
Você sente isso, não sente? Você sente como isso é... eu não
sei... é apenas um sentimento no meu peito. E se...

— Não.

— Não o que?

— Não tente fazer disso algo que não é. Na verdade,


provavelmente devemos manter distância. Para manter o
passado no passado.

Fiquei quieta porque não sabia o que dizer. Para ser


sincera, me senti um pouco louca. Minha mente ainda estava
girando com o meu ataque de pânico, e meu ritmo cardíaco
estava muito acelerado para decidir se eu queria abraçar Jax
ou gritar com ele por desaparecer por todos esses anos. Antes
que eu pudesse fazer qualquer coisa, ele já estava indo
embora, me deixando sozinha com todos os pensamentos e
perguntas disparando no meu cérebro.

Depois que Jax saiu, fui direto para casa com uma
urgência avassaladora. Corri para o meu quarto, direto para
uma caixa que ainda não tinha desempacotado. Rasgando a
fita, joguei itens para fora do caminho até encontrar uma
caixa dourada. Naquela caixa, guardava todos os meus
itens mais preciosos. Joias da mamãe. As gravatas
favoritas do papai. Desenhos de Daisy. Fotografias antigas. E
as cartas de Jax.

Cartas que ele havia escrito para mim há muito tempo.


Cartas que eu mantive trancadas em segurança ao longo dos
anos. Eu não lia as palavras dele há muito tempo, mas agora
meu coração estava batendo forte no meu peito quando
cheguei na caixa e desdobrei as anotações para ler as
palavras que um Jax, de dez anos, havia me escrito.

As suas palavras foram rabiscadas nas páginas com


tinta preta, e eu sorri para a forma como ele sempre foi capaz
de se manter tudo dentro das linhas – o oposto completo da
forma como eu costumava escrever as minhas notas.
Enquanto a minha caligrafia era confusa, a do Jax era
sempre branda.

Eu recolhia os pedaços de papel e fui até o conversível


para me sentar debaixo do sol enquanto lia as palavras do
homem que em outros tempos era o meu melhor amigo.

Não esperava ficar tão emocionada enquanto lia. Não


esperava que as lágrimas se formassem nos meus olhos
enquanto o meu olhar corria para frente e para trás nas
páginas. Tínhamos escrito um ao outro durante três anos
seguidos durante os meses que não passávamos juntos no
acampamento de verão. Mantivemos contato da melhor
maneira que sabíamos. Recordo-me de ter passado três
anos correndo para a caixa do correio, na esperança de
ver a caligrafia perfeita de Jax num envelope.

Jurei que provavelmente já tinha lido essas cartas um


milhão de vezes no passado. As margens das páginas
estavam enrugadas e desgastadas, mas isso não afastava as
estranhas borboletas no meu estômago. Era provavelmente o
que sentia quando lia na época, só que com um sentimento
muito menor.

Palavras como:

Eu sinto sua falta.

Se você precisar de alguma coisa, me avise.

Até logo.

Eram todas tão simples, e não tinham um grande


significado na realidade, mas, naquele momento, eu sentia
como se significassem o mundo para mim – especialmente
para o até logo. Houve um dia e uma época em que pensei
que nunca mais veria Jax, mas agora aqui estávamos nós.
Finalmente, mais tarde, tínhamos encontrado o caminho até
ambos.

Meu dedo rolou pelo envelope com o endereço de Jax. E


meus olhos focaram na palavra Havenbarrow em seu
endereço, e senti arrepios em minha pele. Eu era apenas uma
criança, então não sabia como localizá-lo, mas ele esteve aqui
o tempo todo, a quarenta e cinco minutos de carro. Eu
achava que minha mente não se apegara ao nome da
cidade em todos esses anos desde que eu não sabia onde ele
estava, então não a reconheci quando Yoana me surpreendeu
com a casa aqui.

Eu li uma das últimas cartas que ele havia escrito para


mim e um parágrafo se destacou mais do que qualquer outro.

Eu sei que não há razão para eu dizer isso porque seus


pais são incríveis, mas você diz isso para mim em todas as
cartas que escreveu sobre meu pai, então achei que deveria
retribuir, apenas no caso de haver algum dia em que você
precise ouvir.

Se precisar fugir, corra para mim.

Jax

AS LÁGRIMAS que eu estava lutando finalmente


começaram a cair dos meus olhos. Mesmo com todas as
minhas mágoas, eu ainda acreditava em muitas coisas, e o
destino estava no topo dessa lista. Tinha que haver uma
razão para eu ter sido trazida para a cidade onde meu ex
melhor amigo morava. Ele não apenas morava em
Havenbarrow, mas também nos trombamos no
bosque. Tinha que ser um sinal de alguma coisa. Tinha que
ter algum significado.

Talvez eu estivesse desejando e esperando que isso


significasse algo, mesmo não significando. Talvez meu
espírito precisasse de um pouco de magia depois de um ano
segurando tanta escuridão.

Eu desejei um milagre, e ao virar da esquina estava Jax


Kilter.

Ainda assim, eu não sabia o que isso significava. Eu só


precisava que isso significasse alguma coisa. Qualquer coisa,
mesmo. Precisava de algo para me sentir esperançosa depois
de um ano sentindo o contrário.

Nesse momento, meu telefone tocou e uma mensagem


apareceu.

Penn: Há uma grande festa de gala neste fim de


semana, e eu não quero ter que explicar por que minha esposa
não está lá. Você pode voltar para casa agora. Eu exagerei.
Vamos resolver esta merda.

Penn: Porra, Kennedy. Por favor. Eu preciso de você,


sinto sua falta.

Eu sinto sua falta.

Essas palavras não me deram borboletas do jeito


que tinham dado a carta de Jax.
Pareciam forçadas como se ele só dissesse para
conseguir o que queria. Conhecia a única razão pela qual ele
dizia isso, porque sentia a tensão de ter que explicar aos seus
amigos e colegas porque é que eu não estaria presente no
evento. Ele esforçava-se tanto para manter as aparências que
parecia que nós levávamos uma vida perfeita, que éramos os
felizes para sempre com que os outros sonhavam. Aposto que
estava tendo ataques de pânico, tentando adoçar o fato de
sua esposa ter ido embora.

Ainda bem.

Já era tempo de ele saber como são os ataques de


pânico.

Independentemente disso, as suas gentis e suaves


mensagens de texto não apagaram as palavras desagradáveis
que me disse na noite em que me obrigou a ir embora. Eu
sabia melhor do que cair nessa falsa narrativa de emoções
que ele me mandava ao acaso.

Voltei a ler as minhas cartas de Jax. Guardavam muito


mais autenticidade nessas palavras, e não me parece que
tenham sido escritas ao acaso.

O meu espírito não podia deixar de pensar em Jax e em


quem ele se tornou ao longo dos anos. Não pude deixar de me
perguntar quantas partes do jovem rapaz que amei em
algum momento ainda viviam dentro do meu coração.
Kennedy

Onze anos de idade

Ano um do acampamento de verão

JAX KILTER ERA TÃO BONITO.

Era um tipo estranho de bonito que muitas pessoas não


achavam bonito, mas eu achei porque pensei que todas as
coisas diferentes eram bonitas e belas. Eu gostava dos seus
olhos castanhos escuros que pareciam a minha barra de
chocolate preferida, suas orelhas grandes. Gostei como o seu
nariz se inclinava um pouco para a esquerda, como se fosse
de propósito. Gostei dos seus grandes óculos. Ele parecia
imperfeito em muitos aspectos, e eu gostava disso nele.

Mamãe disse que as melhores pessoas são as


imperfeitas, porque as melhores aventuras da vida não vêm
de coisas perfeitas.

Também gostei da barba de Jax, mesmo que ele


ainda não tivesse barba. Eu sabia que um dia se ele
tivesse barba, eu gostaria dela. Teria apostado que ele
ia ser um homem bonito, porque ele já era um rapaz bonito.

Gostava tanto de Jax Kilter por muitas razões, mas um


dos maiores motivos era porque ele não se encaixava com
mais ninguém no acampamento, e eu não me encaixava com
mais ninguém também, porque conversava muito e era gentil
e diferente e oh meu Deus talvez possamos ser amigos!

Ainda não o acordei, porque sabia que quando o


acordasse, ele poderia correr e nunca mais querer falar
comigo novamente. Tinha tido muitos amigos que deixaram
de falar comigo depois da nossa primeira conversa porque
pensavam que eu era uma esquisita.

Mamãe e papai me disseram que ser esquisito era uma


coisa boa, no entanto. Se uma pessoa era esquisita, isso
significava que ela tinha sabor, e eu não queria que minha
vida fosse branda. Eu tinha tantos sonhos grandes e
coloridos e não queria nunca perder o rumo para realizá-los,
porque desisti da minha estranheza.

A melhor qualidade sobre mim – além da minha


capacidade de arrotar o ABC – era que eu me sentia tão
confortável sendo uma estranha.

Engoli em seco enquanto observava o sol começar a


nascer do lado de fora e depois cutuquei Jax no braço. — Ei,
— sussurrei. — É hora de acordar.
Jax se mexeu e resmungou e remexeu um pouco mais.
— Mais cinco minutos, mãe.

Sorri, porque ele era engraçado quando estava


sonhando. E o cutuquei novamente. — Eu não sou sua mãe,
Jax Kilter. Levante sua bunda antes de ser pego na cama com
Kennedy Lost.

Isso o fez abrir os olhos – bem arregalados. Aqueles


olhos grandes e deliciosos de chocolate.

Ele olhou para mim e depois para minhas companheiras


de quarto adormecidas e disparou sentando. — Tenho que
sair daqui antes que alguém perceba.

— Sim, é por isso que eu te acordei, duh.

Ele se levantou e passou a mão sob o nariz torto


enquanto pegava as roupas molhadas da noite anterior.

Eu levantei também e sorri para ele. Mamãe sempre


dizia que sorrir também faz as outras pessoas sentirem
vontade de sorrir. — Sorrisos são contagiosos, Kennedy.
Espalhe o seu como um incêndio, — ela dizia. Então, lá estava
eu, na frente de Jax, sorrindo mais forte do que nunca.

Ele arqueou uma sobrancelha e passou a mão pelo


cabelo bagunçado. — O que você está fazendo?

— Sorrindo.

— Por quê?
— Então você vai sorrir.

Ele pestanejou. — Oh.

Joguei meu moletom rosa e coloquei meus tênis. — Se


você quiser, pode vir conversar com os pássaros comigo.

— Os pássaros não falam.

— Sim, eles falam. Você que simplesmente não está


ouvindo atentamente.

— Você é tão estranha, Kennedy.

Eu sorri mais. — Obrigada, Jax. — E torci o nariz. — Ei,


seu nome é apenas Jax ou é mais longo?

— É Jaxson, mas apenas minha mãe me chama assim.

— Jaxson, — eu cantei. — Oh, eu gosto mais desse.


Prefiro chamar as pessoas pelo seu nome completo. Como
Matthew, ou Nicholas, ou Samantha. O nome do meu pai é
Tim, mas mamã o chama de Timothy. Ela disse que os nomes
verdadeiros são sosipcados.

— Você quer dizer sofisticado, — ele corrigiu.

Estreitei meus olhos. — Diga de novo, mas devagar.

— So-fis-ti-ca-do, — ele soletrou.

— So-fis-ti-ca-do, — ecoei, sorrindo para ele. —


Obrigada. Às vezes falo tão rápido que fico com a
língua presa e as minhas palavras saem mal, outras
vezes não sei as palavras certas, e é útil quando alguém está
por perto para me dizer a palavra que eu pretendia dizer, por
isso obrigada. — Respirei fundo. — Ei, posso te chamar de
Jaxson?

— Não! — Ele foi firme formando uma ruga na testa. —


Eu te disse, apenas minha mãe me chama assim.

— Uau. — Balancei minha cabeça. — Sua mãe é tão


sortuda. Então você quer?

— Quer o que?

— Ir falar com os pássaros?

— Sua mente sempre faz isso?

— Fazer o que?

— Pensa um milhão de pensamentos ao mesmo tempo.

— Oh. — Apertei o nariz. — Sim, acho que sim. Bem,


tudo bem, eu adoraria ficar por aqui e conversar, mas se não
chegar lá, sentirei falta dos pássaros e não sei se eles
saberiam o que fazer sem a minha conversa matinal. Tchau,
Jax! Vejo você por aí, buckaroo9!

Joguei minha mochila, que estava cheia de guloseimas


para todas as aventuras em que eu pudesse entrar o dia
inteiro. Eu tinha barras de cereal, balas e uma garrafa de
água. Sempre que meus pais, minha irmã e eu saíamos

9
– Um termo comum usado para descrever um amigo. Mais comumente usado no sul dos EUA, era
usado como um termo carinhoso para um amigo.
nas aventuras, mamãe sempre empacotava as barras de
cereal, e papai pegava grandes garrafas de água para nós.

Deixei Jax na minha cabana enquanto saía para cantar


com os pássaros. Eu adorava estar no acampamento porque
estávamos no meio da floresta. As cabanas das meninas
ficavam em uma bela clareira, com arbustos de Lilases
plantados do lado de fora da porta. Quando o vento soprava,
você era atingido pelo perfume das flores, que eu mais
amava. Lilases era a flor favorita da mamãe, e cheirá-las
todas as manhãs quando saía me deixava com menos
saudades de casa. O ar ainda cheirava a chuva, e eu me
certificava de saltar nas poças cada vez que via uma,
enquanto assobiava e vagava pela floresta.

Todo dia, eu dividia um pãozinho que pegava do jantar


da noite anterior para alimentar os pássaros e, rapaz, eles
adoravam. Eles cantavam e mergulhavam enquanto eu
sentava em um tronco e ouvia suas lindas canções.

Quando me sentei no meu tronco e vasculhei minha


mochila, comecei minha conversa com os pássaros e fui
rapidamente interrompida pelo som de um garoto
pigarreando.

Eu me virei para ver Jax ali de pijama com as roupas de


ontem dobradas perfeitamente em seus braços.
Eu sorri e, desta vez, meu sorriso foi suficiente para
fazê-lo sorrir também. Fui cavar na minha mochila
novamente e puxei uma barra de cereal de morango. Era
minha última de morango, e era minha favorita, mas eu
estendi para Jax. — Quer uma?

Ele hesitou por um segundo e olhou ao redor do


acampamento, como se estivesse preocupado com alguém o
pegando saindo com uma esquisita como eu. Então suspirou
e caminhou em minha direção. Pegou a barra da minha mão
e olhou para as árvores, contemplando os pássaros.

— Que espécie são essas? — Perguntou enquanto


desembrulhava a barra e dava uma pequena dentada nela.

— Ah, você sabe. Há a Lonnie de olhos vermelhos, o


Jaspe acinzentado e o Eriken, — falei com naturalidade.

Jax olhou para mim com uma sobrancelha levantada e


confusão nos olhos. — Você acabou de inventar tudo isso?

— Sim.

— Claro que você fez.

Começamos a comer e conversar com os pássaros. Bem,


eu falei enquanto Jax meio que apenas murmurou para si
mesmo. Quando o sol começou a aparecer, Jaxson tomou um
gole de água que eu lhe dera. — Seu nome completo é
Kennedy?
— Sim. Significa chefe de família. Papai disse que
significa que eu serei uma líder e os protegerei de coisas
ruins. O nome da minha irmã mais velha é Yoana, o que
significa que Deus é gracioso, o que combina com ela porque
ela é incrível. — Inclinei minha cabeça. — O que seu nome
significa?

— Oh, é estúpido.

— Eu duvido disso – nenhum significado de nome é


estúpido.

— O meu é, confie em mim.

— Apenas me diga.

Ele resmungou e suspirou. — Jaxson significa filho de


Jack.

— Oh. — Eu balancei a cabeça em compreensão. — O


nome do seu pai é Jack?

— Não. É Cole.

— Hum. Sim, você está certo – esse é um significado


estúpido. Vamos fazer o nosso próprio significado para você.
Que tal... Jaxson significar herói. Isso mesmo, você é forte e
sempre poderá salvar as pessoas, não importa de quê.

— Você não pode inventar significado para os nomes,


Kennedy.
— Claro que eu posso. Foi o que todos os velhos fizeram
quando decidiram que o teu era filho de Jack.

Ele cruzou os braços por um minuto em profunda


reflexão e depois deu de ombros. — Ok, Jaxson significa
herói, mesmo que eu não ache que seja capaz de salvar
alguém.

— Dê tempo. Vai se acostumar com seu nome, como


meu pai sempre diz. Queixo pra cima e chegarás lá.

— Sim, ok. — Ele coçou a nuca. — A propósito, obrigado


por me ajudar ontem à noite.

— Sem problemas. — Enfiei o último pedaço da minha


barra na boca e limpei as mãos na calça do pijama. — Então,
me diga algo emocionante sobre você.

Ele levantou uma sobrancelha. — O que você quer


dizer?

— Você sabe, algo legal sobre você.

— Oh. Não há nada legal em mim.

Comecei a rir e o empurrei no ombro. — Você é tão


engraçado, Jax.

— Eu não estava brincando. Eu não sou uma pessoa


legal.
— Todo mundo é uma pessoa legal. Até as pessoas não
legais.

— Kennedy, isso nem faz sentido.

— Você nem sempre precisa fazer sentido. Conte-me


algo. Do que é que gosta?

Ele limpou a garganta e passou o polegar pela ponta do


nariz antes de empurrar os óculos para cima. — Acho que
gosto de grandes palavras que significam coisas diferentes.
Minha mãe e eu estamos sempre procurando grandes
palavras para mostrar um ao outro e aprender seu
significado. Até criamos um quadro no Pinterest para marcar
nossas grandes palavras favoritas. — Ele mexeu no nariz. —
É meio estúpido.

Ofeguei e bati palmas. — Não é estúpido! De jeito


nenhum! Grandes palavras são tão legais! Não conheço
muitas palavras grandes além de so-fis-ti-ca-do, então talvez
você possa me ensinar.

Por um momento, seus olhos se iluminaram. — Você


está falando sério?

Eu assenti. — Sim.

— Bem… que tipo de palavras você quer saber?

— Eu não sei por que não conheço bobo. Como


posso saber o que quero saber se não as conheço?
Ele riu nervoso, e naquele momento se tornou ainda
mais bonito. — Oh. Certo.

— Apenas me diga a sua favorita.

— Oh Deus, existem tantas. — Ele estava começando a


falar mais e mais, e eu gostava disso nele. Eu gostei de como
ele começou a se abrir comigo. — Clinomania!

Ofeguei e bati palmas. — Oh! Eu amo isso!

— Você não sabe o que isso significa, não é?

— De jeito nenhum!

Ele riu novamente. — Significa um forte desejo de ficar


na cama. Minha mãe tem clinomania depois de todo fim de
semana, quando toma muito vinho.

— Parece que sua mãe e minha mãe seriam melhores


amigas. Qual é a outra?

— Há solitário.

— Ah sim, sim. Solitário. Muito agradável. Essa também


é uma das minhas palavras favoritas agora.

Ele sorriu. — Significa alguém que vagueia sozinho para


escapar do mundo. Tipo eu. Um pouco como eu. Prefiro
guardar as coisas para mim.
— Eu também. A maioria das pessoas pensam que eu
sou muito estranha para ser minha amiga, então eu sou uma
solitária, eu acho. — Franzi a testa um pouco, pensando em
como, às vezes, quando eu vagava, e me sentia sozinha sem
minha família por perto.

— Agora não, no entanto, — disse ele, me cutucando. —


Porque você não está vagando sozinha. Você está comigo.

Meus lábios se levantaram. — Sim. Estou contigo.

Ele continuou me dizendo palavras diferentes, e eu


continuei ouvindo. Seus murmúrios estavam ficando um
pouco mais altos, a tal ponto que eles não eram murmúrios, e
então quando ele ria alto o suficiente, eu jurei que todos os
pássaros dançaram com o som.

— Ei, Jax?

— Sim, Kennedy.

— Você quer ser meu melhor amigo?

Ele torce o nariz. — Não se pede simplesmente para as


pessoas serem suas melhores amigas. Não é assim que se
arranja um melhor amigo.

— Oh. — Fiz uma careta e cocei meus cabelos


emaranhados. — Bem, como as pessoas conseguem melhores
amigos?

— Eu não sei. Isso meio que acontece.


— Oh. — Puxei meu pãozinho e comecei a alimentar os
pássaros enquanto eles mergulhavam como viciados. — Ei,
Jax?

— Sim, Kennedy?

— Você quer apenas ser o meu melhor amigo?

Suspirando respondeu. — Tudo bem, Kennedy.

Minhas bochechas esquentaram e olhei para os


pássaros que mastigavam os pãezinhos. — Eu sempre quis
um melhor amigo.

Não pude ouvi-lo com muita clareza, porque Jax Kilter


gostava de murmurar, mas pensei ter ouvido as palavras: —
Eu também.

— Agora podemos ser solitários juntos, — eu disse.

— Uh, isso cancela todo o objetivo do solitário.

— Shh, Jax. Apenas deixe isso acontecer.

Sorriu e murmurou: — Ok.


Kennedy

Presente

CHUVA, chuva, vá embora, por favor, leve a ansiedade de


Kennedy.

Choveu por mais dois dias, e meu corpo estava doendo


da falta de sono. Quando tentava fechar os olhos, via flashes
do meu passado dentro das pálpebras. E se eu caísse no
sono, teria pesadelos.

Nada estava funcionando. Tentei todas as pílulas para


dormir conhecidas pela humanidade. Tinha feito quase todas
as meditações para dormir da internet, vasculhei minha casa,
tomei banhos de espuma, assisti The Office dez vezes, e ainda
assim, nada.

As pancadas de chuva na casa estavam ficando cada vez


mais intensas a cada dia que passava. Eu estava vivendo
oficialmente de comida chinesa e entrega de pizza. Não eram
as minhas verdades mais orgulhosas, mas era onde eu
estava na minha jornada. Além da chuva, eu não tinha
saído de casa desde o meu ataque de pânico. Honestamente,
meu corpo estava passando por ondas de exaustão
emocional. Quando acordava dos meus pesadelos, ficava
presa sozinha com os meus próprios pensamentos infelizes.

Eu não sabia que as mentes poderiam ficar tão


sobrecarregadas e que poderiam se concentrar em um milhão
de coisas ao mesmo tempo, mas a minha conseguia fazer
isso. Atualmente, meus pensamentos consistiam em: No que
vou trabalhar verdadeiramente? Vou ficar em Havenbarrow ou
vou voltar para a cidade? Onde está Penn? Será que ele sente
mesmo a minha falta, ou está apenas solitário? Se ele sente
mesmo a minha falta, porque não veio à minha procura?

Porque ele não sabe onde você está, Kennedy.

Se ele realmente se importasse, ele não tentaria me


encontrar? Ele não me ligaria em vez de apenas mandar
mensagens?

Também me perguntei o que Jax estaria fazendo


durante as tempestades. Ele realmente quis dizer que não
queria restabelecer nossa amizade? Era difícil para eu
acreditar nisso. Ainda tinha tantas perguntas, como, por
exemplo, como é que ele havia passado de um rapaz tão
magrinho, para um homem tão forte e musculoso? Porque
tinha parado de me escrever? E, mais importante ainda, o
que tinha acontecido com a mãe dele?
Toda vez que eu falava com Yoana, a preocupação em
sua voz ficava mais evidente. Às vezes eu desejava que ela
não fosse tão boa em me ler, mesmo através de um alto-
falante do celular, mas minha irmã sabia que o peso na
minha alma ficava tão difícil de lidar em alguns dias.

— Eu estou bem, — continuei garantindo a ela. Eu me


sentia mal por lhe contar mentiras, mas ela estava no meio
do mundo – então não havia nada que pudesse fazer para eu
melhorar. Minha ansiedade e tristeza precisavam ser tratadas
por mim e somente por mim. Ninguém mais poderia me
salvar.

Bem, ninguém, exceto talvez Joy Jones.

Enquanto eu estava presa em minha casa, vagando pela


sala de jantar, antecipando mais uma noite de sono
fracassado, ouvi uma batida na minha janela. Olhei para
cima e vi Joy parada ali, jogando algo em minha direção. Ela
estava saindo de sua janela totalmente aberta, jogando coisas
em minha direção para chamar minha atenção, enquanto
deixava seu braço extremamente encharcado.

Incerta do que ela estava fazendo, eu abri minha janela.


— Oi, — disse hesitante, levantando uma sobrancelha. —
Você está bem? — Sabia que ela tinha mais de oitenta anos e,
se havia algo em que eu pudesse ajudar, eu faria da melhor
maneira possível. Também sabia que ela não era a
pessoa mais estável do mundo, mas se eu pudesse de
alguma forma desenvolver coragem suficiente para
ajudar outra pessoa, eu estava totalmente envolvida nisso.

— Oi querida, sim. Eu só queria ver se você gostaria de


tomar uma xícara de chá, — ela respondeu docemente.

— Hum, são dez da noite, Joy.

Seu sorriso se espalhou e ela assentiu uma vez. —


Então vinho?

Eu ri e concordei. O que mais eu ia fazer? Sentar e


pensar demais em tudo pelo resto da noite? Coloquei uma
capa de chuva e botas. Quando abri a porta da frente vi a
queda da chuva junto com o relâmpago acima, e me encolhi
assustada.

Apenas ande, Kennedy. É bem ao lado.

Mas não consiguia me mexer.

Quanto mais o céu desabava, mais tensão se acumulava


no meu peito quando a sensação de pânico começou a
crescer. Eu deveria ser melhor nisso. Eu deveria ter
conseguido andar adiante sem preocupação. Mas os flashes
da noite do acidente giravam na minha mente, e eu não era
capaz de afastá-los.

Não posso fazer isso, pensei comigo mesma, fechando os


olhos envergonhada.
— Sim, você pode, — uma voz chamou. Virei para a
esquerda e vi Joy sorrindo em minha direção com um olhar
sincero. — Venha agora, você não está sozinha. Apenas
alguns passos, e seu copo de vinho a aguarda.

— Eu… meu… — Fechei os olhos e respirei


profundamente. Minhas mãos estavam começando a tremer
quando o medo começou a me encher por dentro.

— Tudo bem ter medo, querida, — comentou Joy. —


Você pode ter medo e ser corajosa ao mesmo tempo. Agora,
vamos lá. O vinho está gelado, e a companhia é boa. Mesmo
que precise prender a respiração e correr até aqui, faça isso.
Então poderemos respirar juntas.

Eu fiz o que ela disse. Prendi a respiração e corri pelo


quintal, contornando a calçada e correndo pela trilha. No
momento em que cheguei à varanda, entrei na casa dela sem
ser convidada, como uma louca desequilibrada.

Eu tremia no saguão dela, abanando a chuva, e Joy me


seguiu para dentro, me entregando uma toalha que ela já
tinha à minha espera. — Aqui estamos nós. — Sorriu. — Isso
não foi assim tão mau.

Se ao menos ela soubesse a velocidade do meu coração


palpitante. Tinha sido muito mais difícil do que parecia.

— Branco ou vermelho? — Perguntou.

— Hum, branco se tiver.


— Oh, querida, eu tenho tudo. Agora, vamos, sente-se
no sofá e fique à vontade. Preparei uma pequena tábua de
frios para comermos enquanto conversamos. Está bem em
cima da mesa, se você quiser.

— Obrigada, Joy.

Sentei-me no seu sofá e tentei domar o meu ritmo


cardíaco ainda elevado. Sua casa era uma casa em que tudo
parecia autêntico e importante. As paredes estavam cobertas
de quadros desconexos com retratos em preto e branco que
destacavam todos os momentos bonitos da sua vida. Além
disso, todos os seus móveis eram vibrantes, e não faltava luz
porque havia muitas luminárias diferentes, tanto pequenas
quanto grandes, espalhadas por todo o lado.

Tinha uma parede de peças de arte que estavam em


destaque e muito bonitas. Havia pinturas e esculturas que
irradiavam tanto calor. Era como se eu estivesse num museu
olhando para obras de arte. Simplesmente de tirar o fôlego.

Quando Joy retornou, ela tinha as maiores taças de


vinho que eu já tinha visto na minha vida, e em poucos
segundos, ela era oficialmente minha nova melhor amiga.
Cada taça devia conter no mínimo meia garrafa de vinho.

Sorri, contente. — É uma taça impressionante.

— Algumas noites pedem taças maiores.

É isso aí, eu apoio!


— Como você sabia que eu precisava de uma pausa
para o vinho? — Brinquei, bebendo provavelmente o melhor
vinho branco que já tomei na vida.

— Eu notei você andando de um lado para o outro nas


últimas noites. Não que eu estivesse espiando ou algo assim,
mas meu canto de leitura fica do outro lado da sua sala de
jantar. Achei que você não conseguia dormir durante as
tempestades.

— Elas me deixam um pouco agitadas, — confessei, não


vendo motivo para mentir sobre isso. — Então obrigada.
Realmente aprecio sua companhia, e tenho que admitir, eu
estava ficando um pouco louca e quase perdendo a cabeça.

— Humm. — Ela assentiu em compreensão. — É assim


às vezes. Parece que as tempestades duram para sempre,
mas por experiência, aprendi que, não importa o quê, elas
sempre passam.

Esse era um bom conselho que eu teria que lembrar.

— Você sabe o que é bom saber? — Ela perguntou.

— O quê?

— Mesmo atrás das nuvens de chuva, o sol está sempre


lá.

— Esse é um bom ditado, — e disse. — Às vezes é


difícil lembrar.
Ela me deu um tapinha no meu joelho. — Confie em
mim, eu sei. Tenho quase noventa e às vezes também
esqueço. Mas também acho que é por isso que existe o vinho.
— Mexeu-se na almofada. — Então, o Jax parece estar
atraído por você.

Eu dei uma gargalhada. — Atraído por mim? Nem um


pouquinho. Ele deixou bem claro que devíamos manter
distância um do outro.

— Oh, querida, — ela abanou a mão como se estivesse


me dispensando. — Jax não quis dizer isso. Ele é apenas
duro como o meu Stanley. Mostrar emoções é difícil para Jax.
Ele também não costuma se abrir com muita frequência. Há
muitos anos que eu compartilho uma bebida com aquele
rapaz, e ele ainda mal se abre. Parece uma parede de tijolos,
mas ele é legal, só um grande frouxo. E desde que chegou à
cidade, tenho visto a forma como ele olha para você.

Meu estômago revira de nervoso. — Como ele olha para


mim?

— Como se você fosse algo que ele queira conhecer


melhor.

Abaixei a cabeça, brincando com meus dedos. — Há


anos atrás, ele foi meu melhor amigo. Fomos juntos para o
acampamento de verão por dois anos, e trocamos cartas entre
nós durante aproximadamente três anos. Então, um
dia, as cartas dele pararam de chegar.
Simplesmente… desapareceu.

Os olhos de Joy se arregalaram de surpresa. — Você o


conheceu quando menino?

— Sim. Ele era… — Sorri, pensando em Jax quando


criança. — Ele era o garoto mais gentil que eu já conheci. O
garoto mais quieto, mas o mais gentil.

— Sim. Isso não mudou ao longo dos anos. E ele sabe?


Que você é… você?

— Sim, sabe, mas me disse que seria melhor não


mergulharmos mais fundo em nossa história.

— Oh, merda, — Joy gemeu, me fazendo rir. — Você não


pode ouvir nada que Jax diz – você sabe por quê?

— Por quê?

— Seus batimentos cardíacos estão prontos para a


autodestruição. Ele afasta as coisas boas porque acha que
não as merece, mas eu conheço aquele rapaz – provavelmente
melhor do que ele mesmo – e ele precisa de um amigo. Acho
que precisa mais de você do que admitirá.

Balancei minha cabeça enquanto tomava um gole de


vinho. — Duvido que ele queira que eu seja esse amigo. Além
disso, como você disse, ele é uma parede de tijolos. Não tenho
como chegar até ele.
— Com certeza. — Ela pousou a taça de vinho e
caminhou até a lareira, onde estavam algumas velas. E pegou
um isqueiro e começou a acender cada uma. — Você perdeu
alguém, não foi?

Eu fiquei mais ereta. Mesmo com todos os


bisbilhoteiros, eu não tinha contado nada sobre a minha
filha. — Eu... Desculpa? Como assim? Como é que você...?

Ela olhou para mim e sorriu. — Eu vejo em seus olhos, e


reconheço a luz deles à tua volta.

Calafrios começaram a se espalhar por meu corpo


quando as palavras deixaram seus lábios. — Eu… é… —
Minha boca ficou seca enquanto eu tentava formar as
palavras, e ela balançou a cabeça.

— Não, não, querida. Você não precisa falar sobre isso


se for muito difícil. Entendi, mas quero que saiba que não
está sozinha em sua perda. Se existe algo neste mundo que
nos une a todos, é vida e morte, dia e noite. Jax também
passou por uma tragédia, e como vocês dois têm uma
história, acho que talvez vocês possam se conectar
novamente.

— Não acho que ele me queira em sua vida, pelo menos


não muito.

— Eu aposto que ele quer. O pai de Jax também


está chegando ao fim de sua vida, e eu sei que isso o
está esmagando, mesmo que ele não fale sobre o
assunto. Agora, não estou lhe dizendo isso, para forçar você a
conversar com ele. Eu só acho que a cura vem com o tempo,
paciência e amigos, e eu acredito que vocês poderiam usar
ambos como amigos neste momento, — explicou Joy.

— Como faço para que ele queira ser meu amigo? Como
faço para que se abra comigo?

— Apenas seja você. Isso é bom o bastante, tenho


certeza. Se tudo mais falhar, pressione. Às vezes, na vida,
precisamos ser pressionados para nos lembrar de que ainda
podemos nos mover.

Lembrei-me de apenas alguns dias antes, quando meu


ataque de pânico me atingiu, e eu não consegui avançar. Lá
estava Jax, me pressionando, ajudando a me guiar de volta
para minha casa. Se ele pode me ajudar, eu poderia pelo
menos tentar fazer o mesmo por ele. O que pior poderia
acontecer?

Joy e eu terminamos nosso vinho e conversamos sobre a


vida. Ela me fez rir enquanto eu estaria em casa sozinha
lidando com meus próprios pensamentos e tristeza. Fiquei
muito agradecida por sua gentileza. Ela foi uma das
primeiras pessoas na cidade que se interessou em se tornar
minha amiga de verdade.

Quando perguntei por que ela não havia saído de casa


por tanto tempo, ela respondeu com a simples resposta:
— Vou onde o amor está. Este lugar está cheio do
amor dos meus entes queridos. Quando o amor for para outro
lugar, certamente seguirei. Este é o meu refúgio até que Deus
me diga o contrário.

Quando me levantei para sair, parei no corredor dela,


cheio de fotografias. Eu peguei os rostos sorridentes, o que
me fez sorrir também. — Esse é seu marido? — Eu perguntei.

— Sim, esse é Stanley, meu amor frio como uma pedra.

— E a garota?

— Minha Bethany. Ela faleceu cedo. Tivemos dezoito


grandes anos uma com a outra antes que o câncer a levasse
para longe de nós.

Meu peito apertou. — Eu sinto muito. — Queria abraçá-


la e queria chorar, mas, em vez disso, fiquei parada.

— Eu também sinto muito, Kennedy. Eu realmente


sinto.

Eu não tinha dito a ela, mas de alguma forma Joy sabia


da minha perda. Coloquei o casaco e as botas e entrei na
varanda. Trocamos despedidas, mas antes que eu pudesse
sair, voltei-me para ela, fazendo a pergunta que tentava
responder a algum tempo. — Como você supera a perda de
uma filha?

Ela caminhou até mim e cruzou os braços. — Você


não supera. Só se ultrapassa, e conta a sua bênção por
qualquer período de tempo que tenham tido juntas.
Eu pessoalmente? Gosto de acreditar que assim que Bethany
saiu do meu lado, ela tornou-se o vento. Por isso, sinto-a em
todo lugar. — Estendeu a mão e fechou os olhos enquanto
tomava uma inspiração profunda. — Mesmo durante as
tempestades.

Eu sorri para ela antes de puxá-la para um abraço


apertado. Agradeci-lhe por tudo o que ela tinha me dado
naquela noite e depois voltei correndo para a minha varanda.
Desta vez, no entanto, antes de correr para dentro, fechei os
olhos, e senti o vento enquanto ele dançava sobre a minha
alma.
Jax

— ELE ESTAVA UM POUCO LÚCIDO HOJE , — disse Amanda


enquanto eu passava na recepção para assinar o termo de
visita do meu pai. — Ele se lembrou do meu nome.

— Ele foi duro com você? — Eu perguntei.

— Ele seria o Cole Kilter se não fosse?

Justo.

— Ele disse algo sobre mim? — Eu resmunguei.

— Meio que te chamou de idiota.

Também é justo.

Eu não tinha certeza se estava pronto para uma visita


naquela noite depois de um dia de merda no trabalho, mas
sabia que me chutaria se não lesse alguns capítulos para ele.
Ainda assim, isso não mudava o fato de que eu estava me
sentindo exausto, não estava me sentindo bem há alguns
dias. Na verdade, toda a chuva tinha sido um desastre,
meu trabalho ficava péssimo e eu não conseguia tirar
Kennedy da cabeça. Era como se eu percebesse quem ela era,
e desencadeasse um turbilhão de memórias que eu não sabia
como lidar, me afogando em lembranças dela.

Uma parte de mim queria conversar com ela. Encontrá-


la na cidade e perguntar como ela tinha estado. Essa parte de
mim era estúpida. Quase tudo o que toquei virou merda, e o
pensamento de me reconectar com Kennedy apenas para dar
errado não era um risco que eu queria correr.

Nós tivemos nosso passado. Nós tivemos nossa história.

Eu só me perguntei por que diabos ela nunca me


escreveu de volta.

— Como você está lidando com tudo? — Amanda


perguntou, tirando-me dos meus devaneios sobre uma
mulher que não era ela. Também me senti culpado por isso.
Na semana passada, pensei em Kennedy um milhão de vezes
mais do que em Amanda, mesmo que nosso rompimento
fosse recente.

— Estou bem, — respondi secamente. — Tenha uma


boa noite.

— Jax, espere… — Ela estendeu a mão e agarrou meu


antebraço, mas eu não queria lidar com ela hoje à noite.
Inferno, eu não queria lidar com nada. — Não precisa agir tão
duro consigo mesmo, para conversar sobre seu pai. Eu
sei que ele era o diabo, mas tudo bem você estar
sofrendo. Você pode falar comigo se precisar.

— Não há nada para falar. Estou bem.

— Você está mentindo.

Engoli em seco e olhei para baixo. — Amanda?

— Sim?

— Deixe-me ir. — E quis dizer meu braço e eu.

Ela deixou cair. — Bem, teimoso. Não sei por que você
vive neste mundo em que pensa que precisa lutar sozinho.
Mesmo se não falar comigo, espero que você fale com alguém.

— É para isso que serve a terapia, — murmurei.

Se ao menos eu estivesse indo.

Tirei o romance da minha jaqueta, esperando que papai


não estivesse muito lúcido. Quão fodido era isso? Rezei a um
Deus em que não acreditava que a memória de meu pai havia
desaparecido tanto que ele não se lembraria de mim.

Entrei no quarto, onde ele estava sentado em uma


cadeira de rodas, de frente para a janela. O anoitecer já havia
chegado então ele não poderia olhar para algo muito
emocionante. Limpei minha garganta e caminhei até ele, sem
saber como iria me receber. Ele olhou para mim com seus
olhos azuis que combinavam com o mar, e piscou. O lado
direito de seu corpo estava paralisado, e sua boca ficou
mole quando ele olhou para mim. Seu olhar vazio me
deixou claro que não me reconheceu.

E limpei minha garganta, outra vez. — Oi, Sr. Kilter. Eu


queria dar uma passada para ver se você gostaria que eu
lesse alguns capítulos deste romance.

Ele assentiu levemente, e virou para me encarar antes


de me sentar na cadeira na frente dele. Estava tão quebrado,
e de vez em quando eu tinha que limpar seu rosto. Era difícil
vê-lo dessa maneira, sabendo que sua aparência externa não
era nada comparada ao que estava acontecendo dentro de
seu corpo.

Ninguém nunca quer ver o corpo de seus pais se


esvaindo com o passar dos anos. Era como se fosse a
maldição da vida – assistir aqueles que o trouxeram ao
mundo desmoronar, um simples lembrete de que a vida é
muito mais curta do que qualquer um de nós imagina.

Enquanto eu lia os capítulos, ele olhou para frente. Não


estava olhando para mim exatamente, mas quase como se
estivesse olhando através de mim. No meio do meu terceiro
capítulo, notei seus lábios se moverem.

— Bo…bom, — ele murmurou, fazendo-me levantar uma


sobrancelha. Irônico ouvi-lo murmurar depois de anos dele
batendo na minha cabeça, avisando para eu não murmurar.
A vida era uma maldita piada.

— Bom? — Eu perguntei.
Ele assentiu, mal se movendo.

Meu coração frio tentou bater pelo pobre homem.

Então notei uma pequena poça de líquido se formando


no chão embaixo dele. Levantei-me, percebendo que ele
molhou as calças. Corri para conseguir alguém para ajudá-lo.
Duas enfermeiras vieram ajudar a limpá-lo e deitá-lo na cama
enquanto eu segurava o livro com força.

Depois que ele estava deitado, adormeceu rapidamente,


e eu saí, passando direto por Amanda, que eu sentia que
estava me encarando.

Entrei na minha caminhonete e joguei o livro no banco


do passageiro. Depois de girar a chave na ignição, parei.
Minhas mãos descansaram ao volante, segurando o couro até
meus dedos ficarem brancos. Fiquei lá por alguns momentos,
absorvendo todo o silêncio que me atingiu.

Peguei meu telefone e liguei para meu irmão. A conversa


foi como o esperado. — Ele não é de sua responsabilidade,
Jax. Você deveria deixar a cidade e começar uma nova vida.
Você não é o culpado pela morte da mamãe. — Mesma coisa
de sempre.
ENQUANTO DIRIGIA PARA CASA , pensei em meu pai, no
homem que ele costumava ser, no homem que ele se tornara.
Pareciam duas criaturas completamente diferentes. Um me
aterrorizou; do outro eu tinha pena. Nenhum homem deve ser
colocado na posição em que se suja e não pode fazer nada a
respeito.

Meu coração não reservou pena do homem que meu pai


costumava ser.

Foda-se o homem e a forma como ele me machucou


tanto física quanto emocionalmente.

Foda-se os anos de terapia que dificilmente levaram à


cura.

Foda-se as mãos dele que me deram socos, me


machucaram, e me menosprezaram.

Foda-se quem meu pai costumava ser.

Também foda quem ele era naquela noite.

Foda-se o homem que fez meu coração frio tentar


quebrar. Meu coração não podia mais quebrar porque tinha
sido quebrado demais ao longo dos anos.
QUANDO CHEGUEI EM CASA, saí para a floresta para
limpar minha cabeça. Havia muitos pensamentos em minha
mente para ir direto para a cama. Estava cansado, mas sabia
que não havia como dormir.

Quando me aproximei do meu lugar habitual, parei,


vendo uma mulher sentada no meu banco. Quanto mais me
aproximava, percebi quem era exatamente.

— O que você está fazendo aqui? — Eu ladrei,


inclinando minha cabeça em descrença.

Kennedy olhou para cima e me deu um sorriso. Ela


tinha um caderno na mão que estava rabiscando antes que
eu a chamasse.

— Oi, — suspirou. — Eu hum, eu só precisava de um


pouco de ar.

— Há ar em outros lugares.

— Sim, mas este é o lugar mais bonito que eu já


conheci.

— Você está invadindo novamente, — resmunguei


irritado com a necessidade dela de quebrar as regras.
Secretamente meio que aliviado ao vê-la. Na verdade, eu não
sabia o que estava sentindo. Depois da péssima visita com o
meu pai, as minhas emoções estavam distorcidas.
— Acho que nós dois vamos ter que lidar com o fato de
eu ser a garota transgressora.

Fiz uma careta e passei a mão por meu cabelo. Como eu


a queria aqui e queria que ela fosse embora ao mesmo
tempo?

Deslizou pelo banco e bateu no local ao seu lado. —


Você pode se juntar a mim.

— Eu não quero conversar, — rebati.

— Claro. Você nunca foi de conversar, mesmo.

— Eu também não quero que você fale, — insisti.

Ela fez uma careta. — Bem, nós dois sabemos que isso
seria difícil para mim, mas posso fazer uma exceção hoje à
noite.

Deveria ter dito a ela para sair, e entrar em minha casa.


Deveria ter dito a ela para não voltar. Deveria ter dito a ela
que não queria vê-la mais, porque minha vida estava bem
sem ela.

Em vez disso, sentei-me, porque até a miséria às vezes


precisava de companhia.

Ficamos em silêncio por um longo tempo. E Kennedy


continuava rabiscando em seu caderno e, de vez em quando,
eu dava uma espiada no que ela estava escrevendo. Era uma
lista de afazeres. Coisas para ver e fazer em Havenbarrow.

 Conhecer Marshmallow, o gato;

 Noites de cinema em preto e branco;

 Biblioteca oculta;

 Conecte-se com um velho amigo;

 Dizer a Jax que está tudo bem que ele esteja lendo minha
lista;

 Perguntar a Jax se ele está bem;

 Dizer ao Jax que pare de torcer o nariz porque ele está


percebendo que estou escrevendo mensagens para ele.

Eu gemi, tirando os olhos do caderno dela. — Você é


esquisita.

— Achei que essa era uma coisa que gostava sobre mim.

Eu fiquei quieto.

Ela continuou pressionando. — Você está bem? —


Perguntou.

— O que aconteceu com o sem conversa?

— Você sabe que eu luto com isso.


Balancei a cabeça. — Eu não sei mais nada sobre você.
Nós éramos crianças naquela época. Muita coisa mudou.

— Como o quê? — Ela questionou.

Olhei em seus olhos cor de mel e por um momento eu


não quis desviar. E também queria abraçá-la, e contar a ela
tudo o que se desenrolou ao longo dos anos. Eu queria deixá-
la sentir o peso das minhas mágoas. Eu queria um amigo.

Precisava de um amigo, mas não merecia um.

— Não importa o que mudou, — eu disse. — Tudo o que


importa é que a mudança aconteceu.

— Você está bem, Jax? — Ela perguntou novamente,


desta vez sua voz coberta com o mais sincero cuidado e
bondade que eu já ouvi em algum tempo.

— Não é da sua conta.

— Mas eu quero que seja. — Ela colocou uma mão


contra o meu braço e um raio disparou sobre minha alma.
Seu simples toque enviou uma corrente elétrica através de
todo o meu sistema, diretamente ao meu coração para tentar
trazê-lo de volta à vida.

— Se você precisar conversar, Jax, — ela ofereceu


novamente, e eu deixei sua mão demorar por um momento
porque o calor parecia curar.
Por que o toque de Amanda não fazia isso comigo?

Afastei meu braço de Kennedy quando o frio voltou para


mim. Apertei minhas mãos e abaixei minha cabeça enquanto
meus nós dos dedos ficavam brancos. Mais momentos de
palavras não ditas. Então, os murmúrios liberaram
lentamente dos meus lábios.

— Meu pai está morrendo, — confessei.

— Sim. Joy mencionou isso. Lamento muito, Jax.

— Ele é um idiota. Ou pelo menos ele era antes de tudo


isso.

— E agora?

— Agora, ele está lá e não tem nada.

— Ele tem você.

— Nunca fui suficiente para ele antes, por isso duvido


que seja o bastante agora.

O que eu estava fazendo? Por que eu estava falando


sobre isso? Antes que ela pudesse enviar outra corrente
através do meu sistema, eu me levantei. Minhas
sobrancelhas se entrelaçaram, e enfiei as mãos nos bolsos da
calça jeans e comecei a me retirar mentalmente de volta ao
meu estado solitário.
— Você precisa ficar fora da minha propriedade, — eu
disse a ela. — Se não o fizer, terei que chamar a polícia.

Ela também se levantou. — Moon eu...

— Não me chame de Moon, — falei. — Vá embora,


Kennedy.

Seus ombros caíram e eu tentei não olhar para ela. Não


conseguia olhar para ela, porque se o fizesse, imploraria para
ela não ir.

— Sinto muito. Achei que você poderia querer um


amigo, — disse.

— Eu não preciso de um amigo, — respondi quase num


leve sussurro. — Não preciso de ninguém. Lembra? O idiota
da cidade. Não estou interessado em fazer pulseiras de
amizade com você.
Kennedy

— NÃO, — eu gritei quando Jax começou a se afastar.

Ele se virou para mim e inclinou a cabeça. — O que?

— Eu disse não. Você não pode ir embora agora.

— Você perdeu a cabeça? — Ele gritou com sua voz


coberta de raiva. Ou era dor? Em seus olhos eu via dor
enquanto sua voz gritava aborrecimento.

— Há muito tempo, mas isso não vem ao caso. O ponto


é que você precisa sentar e conversar comigo.

— Eu não vou, — ele ordenou. — E se você não deixar


minha propriedade agora…

— Você vai chamar a polícia, sim, sim, sim, blá, blá, blá,
eu entendo, Jax. Este é o seu papel nesta cidade. Você é o
grande lobo mau. O homem frio e duro que não deixa
ninguém entrar, mas eu conheço você. O verdadeiro você.
Esse garoto gentil e sensível ainda está aí. E sei que você
não é um idiota de verdade.
— Você pode simplesmente voltar para casa e fingir que
não nos conhecemos?

— Não, não posso, porque posso dizer que você carrega


muito em seus ombros há muito tempo.

Ele se virou para mim com uma expressão de peso nos


olhos. Um olhar que nunca deixa realmente suas feições.
Estava lá desde o primeiro dia em que trombamos na floresta.
Eu só poderia imaginar quanto tempo essa dor vive dentro
dele.

— Entendi, — ele disse. — Você sente como se houvesse


algum tipo de besteira de conexão com a alma entre nós,
porque fomos para o acampamento todos esses anos atrás,
mas esse fato é nulo e sem efeito, porque eu não sou nada
como a criança que fui todos esses anos atrás.

— E eu não sou nada como a garota que eu era, —


concordei.

— Seu guarda-roupa colorido e sua incapacidade de


entender uma dica quando as conversas acabam imploram
para discordar.

Sorri um pouco e alisei minha mão contra meu vestido


de verão amarelo neon. — Ok, acho que algumas coisas
continuaram iguais para mim.
— Não para mim, no entanto. Sem ofensa, mas não
estou interessado em me reconectar com você e em trocar
histórias de acampamento. Não tenho tempo para nenhum
tipo de conexão na minha vida – estou muito ocupado. Então,
se você quiser…

— Destino, — eu disse, levantando-me mais ereta. —


Você me ensinou essa palavra. Lembra? Junto com um
milhão de outras palavras. Mas destino era a minha favorita.
Significa...

— Eu sei o significado, — sussurrou, — mas não é isso.


Isto não é destino.

— Poderia ser, — argumentei. — Tudo o que estou


dizendo é… isso tem que significar algo. O universo nos uniu
novamente por uma razão.

— O universo não nos controla. Estou enjoado e


cansado dessa maneira milenar de pensar. Não existe
destino. Se você precisa de uma razão para nosso encontro
depois de todos esses anos, aqui está: nós dois morávamos
cerca de uma hora do nosso acampamento, é um mundo
pequeno e as pessoas se mudam para cidades diferentes.
Você acabou de se mudar para minha cidade. Como é isso
para a teoria do universo e o tempo divino?

— Não é muito bom, eu admito.

Ele olhou para mim e sua boca se contorceu,


como se tivesse algo a dizer, mas não quisesse
compartilhar comigo. Balançou a cabeça e se virou para
voltar para sua casa, e eu engoli em seco, pensando no que
Joy me contou sobre o passado de Jax.

Comecei a segui-lo mais uma vez e disse as oito palavras


que nunca deveria ter dito. — Não soube o que aconteceu
com sua mãe.

As costas de Jax enrijeceram para mim quando seu


corpo parou. Seus ombros se arredondaram para frente e eu
jurei que parecia que o tempo tinha parado. Não soube o que
dizer a seguir, não sabia como seguir em frente, mas desde
que eu tinha colocado as palavras lá fora, eu sabia que não
podia deixá-las remanescentes.

Eu dei alguns passos em direção a ele quando minha


próxima respiração ficou presa na minha garganta. — Jax,
sinto muito por…

— Não, — ele interrompeu, fazendo minhas palavras


sumirem. Sua cabeça tremia enquanto ele mantinha as
costas em minha direção. — Não fale sobre minha mãe.

Mesmo que suas palavras parecessem duras, ouvi o


estalo em sua voz enquanto ele falava. Não era a raiva que ele
estava cuspindo no meu caminho – era dor. Uma dor que eu
conhecia muito bem.

— Foi um erro, Jax. Não foi sua culpa.

— Você não tem ideia do que foi.


— Lamento. Não quero incomodá-lo. Só queria dizer que
entendo o que você passou.

— Não tem como você entender o que eu passei, Sun, —


ele murmurou quando o apelido me atingiu como uma
tonelada de tijolos. Se eu fosse honesta, muitos dos meus
dias recentes pareciam mais as sombras da lua em vez de
raios de sol.

— Eu tenho, — eu disse, tentando o meu melhor para


fazê-lo ver que ele não estava sozinho em sua miséria.

Ele girou nos calcanhares e seus olhos penetraram em


mim com tristeza neles. Nesse momento, senti o peso do
mundo que ele carregava sozinho. — Como? Como você
entende?

— Porque eu sou a razão pela qual meus pais e filha


morreram, — soltei. Essas foram as minhas doze palavras. As
doze palavras que queimaram quando rolaram da ponta da
minha língua. As doze palavras que eu não falava alto desde
que ocorreu. Eu nunca disse essas palavras. Yoana me proíbe
de falar isso, mas todos os dias eu sentia o peso delas. Só
porque as palavras não foram pronunciadas não significava
que não eram sentidas, e essas palavras me sufocavam
diariamente.

Os olhos de Jax suavizaram quando ele ficou lá com


total perplexidade com a minha declaração. Meus
nervos dispararam pelo céu, disparando na atmosfera,
lembrando-me de quão grande a dor de uma pessoa poderia
ficar em um único momento.

Baixei a cabeça e mexi nos dedos, porque olhar


naqueles olhos castanhos confusos estava fazendo meu
coração doer mais do que podia suportar. — Houve uma forte
tempestade e eu estava levando minha família para jantar
fora. Foi logo depois de uma briga com meu marido. Ele
estava dormindo com uma colega de trabalho e eu descobri.
Ele me chamou de louca, emocional e instável. Ele era o
mestre da manipulação, fazendo-me sentir como se estivesse
em falta quando não fiz nada de errado. Ele interrompeu
minhas preocupações sem sequer me dar uma chance de
conversar sobre o assunto. Sempre fazia isso, se afastou de
mim quando eu mais precisava da sua segurança. Durante a
tempestade, ele me mandou uma mensagem e me disse que
queria o divórcio. Olhei para o meu telefone quando recebi
sua mensagem, e foi tudo o que foi preciso. Uma fração de
segundo – uma mensagem de texto e eu atingi um ponto liso
na estrada. O carro girou e toda a minha vida mudou. Isso foi
há mais de um ano, mas em alguns dias parecem meros
minutos atrás.

Ele não disse uma palavra para mim, mas também não
fugiu. Quando o silêncio se tornou irresistível, eu olhei para
cima para encontrá-lo me encarando e, por minha vida, eu
não sabia o que ele estava pensando. Eu me perguntei se
Jax deixaria alguém se aproximar o bastante para
poder ler seus pensamentos.

Seus lábios se separaram, mas era como se ele não


conseguisse descobrir as palavras certas para dizer. Teria
uma palavra certa em uma situação como essa?

Ele limpou a garganta. Com as sobrancelhas franzidas.

Minha boca se abriu para me desculpar. Estava claro


que eu compartilhara demais. Estava claro que eu estava
fazendo dessa situação algo que não era. Ficou claro que ele
ia me abraçar.

Espera.

Espera. O quê?

Ele estava me abraçando.

O corpo de Jax estava em volta do meu quando ele me


puxou para perto dele e o segurou como se ele tivesse planos
de ficar lá pelo resto da vida. Seus braços grandes e fortes
reuniram-se em torno de todo o meu corpo, e eu derreti.
Derreti-me contra seu corpo e sua alma. Eu me fundi com a
história de nosso passado.

Ele cheirava a cedro e minhas memórias favoritas.

Queria permanecer nesse abraço o máximo que


pudesse, queria respirar mais e sentir seu conforto até
adormecer naquela noite, queria agradecer a ele por me
dar um momento para desmoronar em seus braços,
mesmo tendo certeza de que deveria confortá-lo, e não o
contrário.

Quando chegou a hora de nos separarmos, ele recuou


parecendo um pouco envergonhado pelo seu súbito abraço.
Limpei os olhos e deixei sair um riso nervoso. — Não estava
prevendo isso.

— Sim. — Ele sorriu, ou, pelo menos, eu imaginei. — Eu


também não.

— Eu devia deixá-lo em paz. Só queria que você


soubesse que se alguma vez precisar de alguém para
conversar, eu estou aqui. — Comecei a virar as costas
quando ele me chamou.

— Kennedy.

Eu me virei para esperar suas próximas palavras.


Parece que a conversa não foi fácil para ele. Isso não era novo
– nunca tinha sido fácil para ele. Ele limpou a garganta mais
uma vez enquanto gesticulava para o espaço ao nosso redor.
— Você pode vir aqui sempre que precisar limpar sua cabeça.

Meu peito apertou com suas palavras. Para alguns, elas


podem ter parecido um pouco sem sentido e frias pelas
verdades que compartilhei com ele sobre meus pais e minha
filha, mas de alguém como Jax era muito mais do que isso.

Ele estava me convidando para visitar seu oásis,


seu porto seguro, e era um convite que eu ia aceitar.
— Obrigada, Jax.

Ele não disse uma palavra, mas antes de se afastar de


mim, o lado esquerdo de seus lábios se curvou no que era
quase um sorriso de simpatia. E passou uma mão pelo cabelo
bagunçado e suspirou. — Eu sou ruim nisso.

— Ruim em quê?

— Pessoas.

Sorri. — Não me diga? — Disse sarcasticamente.

Seus lábios se transformaram em um sorriso completo,


e o meu estômago deu um nó da visão.

Lá estava ele.

O rapaz que eu conheci ainda vivia dentro do homem de


aço.

Tudo o que eu queria era que ele saísse e brincasse um


pouco mais.
Jax

Doze anos de idade

Ano dois do acampamento de verão

— E você sabia que existem quatrocentos bilhões de


pássaros no mundo? Mas quando Kennedy me contou sobre
eles no verão passado, ela não sabia o nome dos pássaros.
Foi por isso que fiz isso para ela, para ajudá-la a aprender
mais sobre os pássaros, porque acho que...

— Uau, vá devagar, Jaxson. Eu juro, que nunca ouvi


você falar tanto antes. — Mamãe riu enquanto me ajudava a
arrumar minhas malas para o meu segundo ano de
acampamento de verão. — Fico feliz que você esteja tão
animado.

Eu estava animado. Eu estava tão, tão, tão animado.

Kennedy e eu estávamos escrevendo cartas um


para o outro durante todo o ano letivo, e cada vez que
recebia uma carta pelo correio, eu a lia cinco milhões de
vezes. E mal podia esperar para vê-la pessoalmente. Eu não
conseguia parar de pensar nela, e sinceramente nunca deixei
de pensar nela. Ela estaria diferente? Estaria mais alta? Será
que continuaria falando tanto quanto antes? Eu realmente
esperava que ela ainda falasse muito, porque mesmo que no
começo eu pensasse que ela falava demais, eu realmente
gostei que ela falasse demais porque isso significava que eu
tinha que conversar menos.

Imaginei que ela tinha a mesma aparência, só que


melhor. Eu me perguntei se ela pensaria que eu também
tinha a mesma aparência. Eu usava óculos diferentes e era
um centímetro e meio mais alto, baseado nas marcas da
minha mãe na parede da sala, mas além disso, eu era o
mesmo Jax que esteve com ela na última vez. Bem, o meu
cabelo também estava mais comprido. Deveria tê-lo cortado.

Pergunto-me se ela teria notado alguma coisa que tenha


mudado em mim.

— Estou empolgado para vê-la. Ela é minha melhor


amiga — falei para mamãe.

— Ei, e eu? — Disse ela, me cutucando.

Eu ri um pouco — Você sabe o que eu quero dizer. Ela é


minha melhor amiga. Você é minha melhor amiga mãe.

Ela se inclinou e beijou minha testa antes de


dobrar outra camisa minha para colocar na mala. —
Isso funciona para mim. Desempenharei com prazer o papel
de melhor amiga mãe. Agora, você quer pegar o presente que
comprou para ela para que possamos embalá-lo?

Corri para a minha cômoda, onde dois presentes


estavam embrulhados perfeitamente – e eu quis dizer
perfeitamente. Eu as envolvi várias vezes até que cada linha
de vinco estivesse lisa. Levei mais de duas horas para acertar,
mas eu não me importei. Eu queria que fosse perfeito para
Kennedy.

Esperava que ela gostasse da fita verde neon brilhante,


nunca usaria fita verde neon se fosse minha escolha, mas
sabia que era sua cor favorita porque ela era minha melhor
amiga e eu sabia esse tipo de coisa sobre minha melhor
amiga.

— Você acha que ela vai gostar dos presentes? —


Perguntei, com meu coração parecendo estar preso na minha
garganta. Trabalhei num dos presentes durante meses, e a
ideia de Kennedy não gostar continuava passando por minha
cabeça.

Mamãe sorriu o tipo de sorriso que as mãe