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A prece da África nas matas de cá: a pureza versus o panteão mitológico do


candomblé angola sob a perspectiva do Nzo Nkise Nzazi

Article · July 2019


DOI: 10.15210/RMR.V11I21.16229

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3 authors, including:

Maria Luiza Schwarz


Universidade da Região de Joinville (Univille)
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A prece da África nas matas de cá: a pureza versus o panteão
mitológico do candomblé angola sob a perspectiva do Nzo Nkise
Nzazi

Africa’s prayer in the woods from here: the purity versus the
mythological pantheon of candomble of angola nation from the
perspective of Nzo Nkise Nzazi

Enviado em: 15/05/2019


Aceito em: 12/07/2019
Janaína Gonçalves Hasselmann1
Maria Luiza Schwarz2
Roberta Barros Meira3

Resumo:
O artigo visa contribuir para as pesquisas sobre candomblé angola
trazendo uma releitura do culto aos orixás4. O uso metodológico da
história oral permite-nos perceber no passado e presente os
significados distintos que contestam uma homogeneidade geralmente
atribuída ao panteão mitológico das religiões de matriz africana.
Focalizaremos as divindades cultuadas no Nzo Nkise Nzazi, que tem
sua sede litúrgica situada no município de Araquari (SC). O nzo
apresenta-se como um terreiro de candomblé de modalidade angola
cujo panteão mitológico é tributário da cosmovisão banto, refletindo
sinais distintivos de identidade perante as casas jeje-nagô. Os
objetivos também serão apontar a relação entre as divindades
cultuadas no candomblé angola e, com isso, dialogar com os debates
do campo do patrimônio ambiental.
Palavras-chave: panteão mitológico; candomblé angola; patrimônio.

Abstract:
The article aims to contribute to the research on candomblé angola
presenting a rereading of the worship of the orixás. The

1
Doutoranda em Patrimônio Cultural e Sociedade, Universidade da Região de Joinville. E-mail:
janaina_historia@yahoo.com.br
2
Doutora em Geografia Humana e Ambiental pela Université de Montréal, Docente do Programa de
Pós-Graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade da Universidade da Região de Joinville. E-mail:
luizaschwarz@hotmail.com
3
Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo, Docente do Programa de Pós-Graduação em
Patrimônio Cultural e Sociedade e do Departamento de História da Universidade da Região de Joinville. E-mail:
rbmeira@gmail.com
4
“O orixá, seria em princípio, um ancestral divinizado, que em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um
controle sobre certas forças da natureza [...]. O poder asé do ancestral-orixá teria, após sua morte, a faculdade de
encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenômeno de possessão por ele
provocada” (VERGER, 2002, p.18).

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methodological use of oral history allows us to perceive in the past and
present the distinct meanings that challenge a homogeneity often
attributed to the mythological pantheon of the religions of African
matrix. We will focus on the deities worshiped in the Nzo Nkise Nzazi,
which has its liturgical headquarters in the municipality of Araquari (SC,
Brazil). The nzo presents itself as a candomblé terreiro of Angola
modality, whose mythological pantheon would be tributary of a Bantu
worldview, reflecting distinctive signs of identity before the jeje-nagô
houses. Besides, the objectives will be to highlight the relationship
between the divinities worshiped in candomblé angola and, with this, to
dialogue with the debates from the environmental patrimony field.
Keywords: Banto mythological pantheon; candomblé angola;
patrimony.

Se inserirmos o candomblé de nação angola em uma mesma população religiosa


denominada de povo de santo5, é possível posicioná-lo enquanto realidade decorrente de um
processo de reelaboração de sistema de crenças originário dos povos africanos trazidos ao
Brasil no contexto da escravidão. Para compreender as contingências atuais do candomblé
angola, é salutar, antes de outras problematizações, realizar um modesto contexto a respeito
de seu status em relação a outras nações de candomblé6. Desse modo, poderemos ainda
entender os tensionamentos existentes no campo das discussões sobre bens patrimoniais no
que diz respeito à preservação e cautela das manifestações de matriz afro-brasileira.
Esses novos arranjos sociais, em solo brasileiro, menos ligados a uma procedência
comum e mais imbricados a etnicidades relacionais, fizeram com que os africanos se
apropriassem das designações atribuídas pelo tráfico. Por meio do diálogo, os africanos
escravizados, de diferentes grupos reunidos, porém sob a mesma denominação metaétnica,
forjaram sua própria ideia de nação (LOUZADA, 2011, p. 48). Nesse sentido, Parés (2007,
p.101) esclarece que, mesmo com o fim do tráfico de escravos, na segunda metade do
século XIX, as diferenciações entre escravos, entendidas como nações, ganharam aderência
entre africanos e seus descendentes, na esfera familiar e no campo religioso.
Faz-se necessário compreender a gênese da construção da ideia de nação que situa
a identidade religiosa dos candomblés como um processo dinâmico de hibridismo cultural.
Pela diáspora, os africanos escravizados advindos de diferentes lugares buscaram na
integração de distintos grupos a construção de novas comunidades e novas formas de
pertencimento. Esses novos arranjos sociais, representados pelas nações, marcam

5
“O chamado povo de santo compartilha crenças, práticas, rituais e visões de mundo que incluem concepções de
vida e de morte” (PRANDI, 2005, p. 22).
6
Etimologicamente, a palavra candomblé parece ter se originado de um termo da nação banto, candombe,
traduzido como “dança, batuque” (BARROS, 2016, p. 30).

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atualmente os sinais distintivos das casas de candomblé. Prandi (2005, p. 21) alega que, por
intermédio dos candomblés baianos, as nações queto (ioruba) e angola (banto) foram as que
mais se propagaram pelo Brasil. Assim, a nação queto constituiu uma espécie de modelo
para as religiões dos orixás, dando origem a um predomínio em comparação ao candomblé
angola. Segundo o autor, embora tenha adotado os orixás, divindades nagôs, o candomblé
angola teria desempenhado papel importante na formação da umbanda no início do século
XX.
Ainda a respeito das nações, que ratificam a identidade dos diferentes candomblés no
Brasil, tanto Previtalli (2006) quanto Louzada (2011) denunciam a subalternidade entre uma
nação e outra existente no campo afrorreligioso. De acordo com as autoras, o que pavimenta
a ideia de nação nos estudos acerca do candomblé no Brasil é o ideal de pureza das nações,
criando assim desigualdades e preconceitos dentro e fora do espaço afrorreligioso.
É mister reconhecer que os africanos transladaram seus sistemas culturais do
continente africano, todavia as misturas entre povos africanos precederam o tráfico negreiro.
Pois, como nos explica Silva (2005, p.29), bem anteriormente ao período de deportação dos
grupos africanos ao Brasil, estes já estabeleciam contato com as várias nações africanas,
bem como com os europeus. Em razão das alianças e/ou da dominação dos reinos africanos,
os cultos e as divindades africanas difundiam-se de uma localidade para outra. Ademais, o
colonialismo europeu, a partir do século XVIII, dinamizou o contato religioso entre brancos e
negros. Pela catequese, várias tradições étnicas foram transformadas (SILVA, 2005, p. 29).
Assim, podemos compreender que a reelaboração das religiões africanas em razão da
diáspora 7 resulta de sobrevivências de sentidos culturais que, por sua vez, sofreram
gradualmente processos de hibridização ainda na África.
Nessa perspectiva, podemos compreender que a ideologia da pureza enquanto valor
de autenticidade das nações de candomblé ganha contornos de certificação de uma suposta
África intocada. Essa ideia de pureza, por sua vez, está intimamente ligada aos candomblés
de verve queto/nagô, cujos representantes eminentes operaram de modo sistêmico na
depreciação das religiões consideradas sincréticas, compreendidas como reificadas perante
aquelas supostamente mantenedoras da pureza mitológica e ritual da matriz africana
(LOUZADA, 2011, p.117). A respeito das produções intelectuais e acadêmicas e do

7
Conforme Santos (2008, p.182), “a diáspora ou a dispersão dos povos africanos pela Europa, Ásia e América se
produziu em escala massiva durante o período do tráfico de escravos entre os séculos XV e XIX. Esse é um dos
movimentos migratórios mais espetaculares da História moderna, sendo que os cálculos da travessia forçada pelo
Oceano Atlântico oscilam de dez a cinco milhões de pessoas que teriam sido arrancadas da África e trazidas para
as Américas.”.

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acionamento da nação enquanto correspondente de pureza que circunda os candomblés de
nação queto, Parés (2007, p.103) afirma que a categoria nação é acionada de forma
ideológica, correspondendo aos interesses de legitimação social desejados pelos grupos. É
um alicerce importante para a manutenção de uma identidade coletiva, ao mesmo tempo em
que reproduz estratégias de competividade e solidariedade, operando no jogo de disputas de
memórias étnicas.
Desse modo, nosso trabalho tem como objetivo compreender o sistema de crenças
que se exerce em um terreiro de candomblé angola específico, o Nzo Nkise Nzazi, situado no
município de Araquari (SC), que se apresenta como culto religioso tributário da cosmovisão
banta. Nesse sentido, mediante os testemunhos de seus membros, daremos atenção a
outras divindades, que respondem pelo nome de inquices e caboclos. Por meio da história
oral, buscaremos nas narrativas os significados atribuídos a esse panteão mitológico pelos
membros do Nzo Nkise Nzazi. Concordamos com Alberti (2013, p. 33) que, apesar de toda a
narrativa ser de ordem individual e particular ao depoente, ela constitui chave importante
para entender a história social de um grupo, de uma geração e de um país.
Ao trabalhar a metodologia da história oral com os membros do Nzo Nkise Nzazi,
pensamos em reverter o quadro de apagamento no qual se insere o candomblé angola. Ao
suscitar a voz de sujeitos excluídos e/ou marginalizados pelos discursos vigentes,
procuramos apreender os sentidos que seus atores sociais atribuem a sua identidade
religiosa. Logo, os estudos sobre memória servem-nos de apoio para lidar com grupos
sociais marginalizados. Pollak (1989, p. 5), ao problematizar as memórias marginalizadas de
sobreviventes da repressão do Estado SS, como homossexuais, prostitutas e ciganos,
reconhece que, tão vítimas como os judeus, esses sujeitos não tiveram sua voz na
historiografia. Em meio a discursos que veiculavam tão somente a condição judia nos
campos de concentração, escamoteando outros sujeitos, estes recorrem as suas
comunidades afetivas.
No caso do candomblé angola, lembramos o entendimento que os próprios
intelectuais construíram sobre a cosmovisão de origem banta que permeia essa nação. Em
oposição à estrutura religiosa queto/nagô, o candomblé angola seria um mero imitador dos
ritos e dos orixás dessa nação. Esse contraste do candomblé angola com o corpo doutrinário
da nação jeje/nagô tem seu início com os estudos do médico-legista Nina Rodrigues (1988).
O autor alega que angolas, gurunsis, minas, hauçás etc. conservam suas divindades
africanas, como um tipo externo de culto mais ou menos copiado dos nagôs.

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Mais tarde, Carneiro (1991b, p.134) descreveu os candomblés congo e angola como
modalidades praticadas por negros de origem banta que esqueceram os seus próprios orixás.
Ao referir-se aos candomblés de caboclo, vaticina que foi a mítica pobre dos negros bantos
que, fusionando-se à mítica igualmente vulgar do selvagem ameríndio, produziu os
candomblés de caboclo na Bahia (CARNEIRO,1991ª, p. 62). Por sua vez, Prandi (1991, p.
245), ao citar algumas das entidades existentes nos candomblés de caboclo e nação angola,
explica que os caboclos de pena e os boiadeiros cultuados em nações pouco ortodoxas são
considerados entidades inferiores para os candomblés.
Nota-se com essas questões o processo de inferioridade concedido ao candomblé de
nação angola, utilizado apenas como objeto para sustentar as idealizações de pureza e
autenticidade auferidas aos modelos rituais da nação queto/nagô. Em nossa perspectiva, o
candomblé de nação angola e seus membros, por intermédio de suas vivências religiosas,
poderão nos oferecer novos olhares e fontes.

Uma casa de nome e sobrenome

Os terreiros de candomblé, roças ou casas, conforme são denominados, têm sua


dinâmica estrutural centralizada na figura de seu líder. Tal líder, reconhecido como
babalorixá ou ialorixá nos terreiros de verve queto/nagô, exerce toda a sua autoridade sobre
os membros do grupo e é investido de uma série de poderes e saberes a respeito da história
de sua casa, daqueles que o precederam e também dos fundamentos mágicos para efeitos
curativos (LIMA, 2011, p. 80).
Portanto, por meio dos testemunhos dos membros do terreiro estudado neste artigo,
reportar-nos-emos aos tratamentos enunciados pelos seus depoentes e comumente usados
em seu cotidiano. Nesse caso, o líder espiritual, senhor José Arildo da Silva, responde pela
dijina8de Tata Kelaue9. A estrutura hierárquica do terreiro conta com outras autoridades,
subordinadas a Tata Kelaue, entre eles, cambonos10e makotas11. Os makotas podem ser
relacionados às hierarquias auxiliares executivas (LIMA, 2011, p. 103), numa

8
“Nome religioso recebido por aquele que é iniciado no candomblé angola” (Previtalli 2006:11).
9
“O zelador de santo é chamado de tata, equivalente a pai. Kelaue é minha dijinadentro do candomblé angola,
dado pelo ancestral na minha feitura” (SILVA, 2017).
10
“É o que chamam de ogã nas casas de queto, mas aqui são cambonos, é hierarquia. São os homens de
confiança do zelador de santo, os olhos da casa, quem corre atrás das coisas, defende o terreiro e os interesses
do terreiro também” (SILVA, 2017).
11
“Makota é mãe também, faz parte da hierarquia. Elas cuidam das coisas dos inquices e encantados” (SILVA,
2017).

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correspondência aos ogãs12e ekedis13nos candomblés de nação queto, por desenvolverem o
mesmo papel operacional, espiritual e hierárquico. Para Tata Kelaue (SILVA, 2017), tanto
makotas como cambonos são pessoas que possuem maior conhecimento sobre os
fundamentos dos cultos, cuidados com muzenzas14e trato com os inquices15.
Na configuração dos candomblés em geral, também se encontram os filhos de santo,
ou seja, aqueles que são preparados e posteriormente feitos para receber seus santos e
orixás (Lima 2011:80). No Nzo Nkise Nzazi essas pessoas, homens e mulheres, são
chamadas de muzenzas16. Elas são iniciadas para seus inquices e, diferentemente dos
ntangi17, galgam status mais elevado por conta dos conhecimentos adquiridos em função do
cumprimento de seus ritos iniciáticos. Assim, concebendo a dinâmica política e espiritual do
Nzo Nkise Nzazi, no qual os conhecimentos sobre as divindades, a priori, são legitimados
pelas posições dos sujeitos, selecionamos nosso perfil de entrevistados com base em sua
disposição hierárquica.
Então, começamos com Tata Kelaue, sacerdote e líder espiritual no Nzo Nkise Nzazi,
contando-nos acerca de sua trajetória pessoal no candomblé angola:

Fui iniciado por Jurandir Siqueira, Tata Gontangue de Gongobila, do Rio de Janeiro.
Nós somos de massanganga. Eu venho dessa raiz. Eu costumo dizer que a gente
tem nome e sobrenome. Antigamente chamava muxicongo, mas se perdeu pelo
fundamento, nós nos transformamos. Na Bahia tinha vários os que cultuavam angola,
queto; eles se conviviam. Eu fui iniciado ao inquice Nzazi, esse elemental. Essa força
que a gente faz parte, o raio, essa força (SILVA, 2017).

Algumas são as semelhanças entre as nações de candomblé, sobretudo as relações


estabelecidas com os mais velhos, como quando Tata Kelaue ao falar de si primeiramente se
reporta a Tata Gontangue. Sua trajetória individual está atrelada a sua raiz, os massanganga.
Falar de si é reverenciar uma origem, na qual se consolidam também o pertencimento e a
continuidade. Os particularismos encontram-se mais visivelmente na língua pela qual cada
nação evoca seus ancestrais de origem e na forma de percepção de suas divindades.

12
“Lado masculino das hierarquias [...]. Nome genérico que se dá a uma série de pessoas investidas de funções
rituais” (LIMA, 2011, p.113).
13
“São mulheres bem informadas, conhecedoras muitas vezes dos fundamentos do culto, no próprio nível das
velhas êbomis” (LIMA, 2011, p.113).
14
“Diferente das makotas e cambonos, são pessoas que entram em transe, são preparadas para a iniciação e
após as obrigações podem se tornar tatas ou mametos” (SILVA, 2017).
15
Divindades cultuadas pelos povos bantos (LOPES, 2011, p.143).
16
“Iaô-muzenza (filho de santo): chamado assim da feitura até obrigação de três anos” (BARCELLOS, 2011,
p.114).
17
“Abiã-ntangi (iniciante): pré-iniciado que só cumpriu parte dos rituais de iniciação” (BARCELLOS, 2011, p.114).

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No candomblé angola, o culto destina-se aos inquices, que, diferentemente dos
orixás, não são seres divinizados, mas elementais 18da natureza, em suas palavras. Nessa
narrativa podemos relacionar entre os inquices dois deles que compõem o panteão do
candomblé angola: Gongobila, o inquice que representa a força da caça e da fartura19, e
Nzazi, a força do raio e que responde à soberania20.
Tata Kelaue diz-nos que esses dois inquices são de extrema importância para sua
vida, visto que sua navalha é de Gongobila, e foi esse inquice, por intermédio de seu zelador
de santo, quem lhe iniciou para o inquice Nzazi. Com a sua consagração a Nzazi, Tata
Kelaue deu continuidade à nação angola plantando moio21nas terras de Santa Catarina
(SILVA,2017).

No candomblé de angola se cultua os inquices. Por exemplo, Mutakalambo que não é


Oxóssi, o orixá divinizado, mas nós cultuamos a força da caça, que é Mutakalambo.
São nossos ancestrais que atravessaram o oceano e os ancestrais daqui também, os
boiadeiros. Os caboclos de pena, que são os donos da terra, eles são nossos
encantados. Em cada casa de angola você vai ver a bandeira do Brasil. Eles já
existiam aqui nessa terra, não era o negro, nem o europeu. Esse é o respeito dos
bantos que os inquices viram neles. O povo banto foi o primeiro a ser trazido para cá,
eles se relacionaram com os indígenas, trocaram folhas. Então a gente cultua os
ancestrais de lá e daqui (SILVA, 2017).

O relato de Tata Kelaue diz respeito a nosso questionamento acerca do que de fato
se cultua no candomblé angola. Em sua narrativa percebemos algumas distinções em
relação à religião dos orixás. A primeira alude à errônea correspondência que ele insinua
haver entre orixás e inquices, pois em sua fala “Mutakalambo não é Oxóssi” (SILVA, 2017).
Sendo assim, embora os dois tenham status de ancestral, Mutakalambo22representa uma
força que se encontra na mata, o inquice, um elemental. Oxóssi consiste em um ser
divinizado. Oxóssi no Brasil é considerado o rei de Kêto (VERGER, 2002, p. 113). Enquanto
Oxóssi é reconhecido como o rei da caça, Mutakalambo é, nas palavras de Tata Kelaue
(SILVA,2017), a força da caça.
Num segundo momento, Tata Kelaue relaciona outros ancestrais, ditos como
encantados23: caboclos e boiadeiros, também cultuados no candomblé angola e que trazem

18
Segundo Parés (2013), o elemental geralmente está relacionado aos espíritos da natureza.
19
Gongobila é o inquice caçador (BARCELLOS, 2011, p. 42-43).
20
Nzazi é o inquice do raio, imperador e soberano (BARCELLOS, 2011, p. 61-62).
21
Força vital, “o mesmo que axé dos candomblés de origem sudanesa” (PREVITALLI, 2006, p.114).
22
Encontramos uma referência a Mutakalambo nas cantigas votivas dedicadas ao inquice Kabila, rei da caça
(BARCELLOS, 2011, p. 38).
23
Em sua dissertação de mestrado Encantaria na umbanda, Martins (2011, 30) alega: “Os encantados
ultrapassam a fronteira da lógica. Não apenas driblam a fronteira da morte, supostamente provando a

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a lume o encontro entre culturas considerado restrito aos candomblés de caboclo e
candomblé angola. É salutar lembrar que, em função dessas divindades, as duas
modalidades de candomblé foram reconhecidas como muito sincréticas em oposição à
estrutura mítica e impermeável das nações queto/nagô. Concordamos com Previtalli (2006,
p.5) quando ela assegura que a produção etnográfica sobre o candomblé privilegiou para
seus estudos antigas casas de candomblé queto da Bahia, preferidas em razão de
preencherem os critérios necessários de pureza que as tornavam melhores que as outras
ditas mais miscigenadas e, portanto, impuras.
No mito narrado por Tata Kelaue, os inquices cultuados pelos povos bantos para cá
trazidos com o tráfico dos escravizados teriam encontrado no caboclo de pena o verdadeiro
dono da terra. Assim, o panteão mitológico do candomblé configura-se na conjugação de
ancestrais africanos e ancestrais mais próximos.
Tal referência faz parte do trabalho de Tall (2012), ao problematizar o papel do
caboclo no candomblé baiano. Segundo a autora, a chefia da terra seria uma atribuição do
autóctone, o primeiro ocupante do território. Para as sociedades tradicionais africanas, esse
ocupante seria o ancestral primordial e legítimo. Conta a teórica que existe a lenda de que os
africanos escravizados recuperaram seus conhecimentos ecológicos em novo ambiente
geográfico, pois os indígenas colocaram à disposição dos negros suas folhas e seus saberes
na manipulação. Desse modo, os africanos teriam condições de cultuar suas divindades,
visto que estas dependiam de oferendas e conhecimentos da fauna e da flora para serem
evocadas.
No decorrer da conversa, Tata Kelaue alega que precisa reforçar um erro sobre o que
se diz a respeito ao culto no candomblé angola. Ele alega: “Veja bem, não cultuamos a
natureza. É energia que sai dela. O inquice, esse elemental” (SILVA, 2017).
Na cosmovisão banto, da qual o candomblé angola se apresenta tributário, não é a
natureza propriamente dita que consubstancia sua cosmologia. Para os povos banto, no
centro de todas as coisas está o sujeito e, excepcionalmente, aquele que se tornou ancestral.
Nessa perspectiva, a natureza é constituída de poderes, porém o ancestral é aquele dotado
de faculdades capazes de controlar e submeter toda a força que da natureza se manifesta,
como, por exemplo, as ventanias, a fúria dos mares, o poder dos trovões. A natureza em si

imortalidade do espírito, como especialmente refutam a separação entre a vida e a morte. Tanto podem ser
espíritos corpóreos, como viventes que incorporam como se fossem espíritos. Também evidenciam pouco apreço
pelas demarcações entre reinos naturais e a segregação entre formas de vida. Podem ser peixes, árvores,
pessoas e mesmo ‘pedrinhas’. Deste modo é justificável que a generalidade da literatura a seu respeito se tenha
detido na descrição particular de cada uso bem contextual da noção de encantado”.

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não é objeto de culto. Tratando-se de similitudes, bantos e povos que falam a língua ioruba
acreditam em seres revestidos de inteligência e ligados à natureza (GIROTO, 1999, p.145).
No transcurso da entrevista, foram mencionadas as diferentes nações de candomblé
e suas possíveis diferenças e semelhanças, especialmente no culto aos inquices.
Perguntamos a Tata Kelauepor que ele se iniciou numa casa de angola, considerando a
predominância de terreiros de nação queto24 na região norte de Santa Catarina.

Esses elementais mexiam comigo. De que parte da África que venho. De repente eu
nem sou banto; sou sudanês, da parte da Arábia. Mas você tem que sentir. Eu me
sinto banto, não importa se for sudanês. Me identifiquei com os bantos, com angola.
As pessoas têm que ter essa identificação, seja jeje, queto, angola, umbanda. Por
isso que eu digo, uma religião diz muito pouco sobre o que é o candomblé (SILVA,
2017).

Percebe-se nessa narrativa que o processo de identificação de Tata Kelaue evoca


sentimentos de pertença com o que se exerce no candomblé de modalidade angola,
tributária da cosmovisão banto. Sentir-se e identificar-se tem pertinência atualizada.
Nesse sentido, a procedência territorial de antepassados escravizados não ganha
maiores contornos. A identificação, a nosso ver, ocorre muito mais em razão do que é vivido
no candomblé angola do que com uma representação estanque de África. Dessa maneira, a
identificação não ocorre por meio da diferença pulverizante. Entendemos esse processo,
conforme Hall (2003:60), como uma complexa teia de similaridades e diferenças, recusando
assim a divisão em oposições binárias e fixas. É notório que os candomblés se organizam e
se legitimam em torno das nações, afiliando-se a uma África mítica, afirmando assim suas
identidades. Esse fenômeno, embora menos rígido para Tata Kelaue, também influenciou
sua decisão no momento de iniciar-se na religião. Todavia, para Hall (2003, p.36), “as
culturas, é claro têm seus ‘locais’. Porém não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam”.

Inquices, caboclos, ungiras, baianos, marinheiros e pretos velhos

Entendemos que, assim como as concepções contemporâneas de cultura revelam


um amálgama de referências, só possibilitando sua compreensão quando contextualizadas
no seu tempo, os sistemas religiosos também se exercem em um espaço/tempo específicos.

24
Um dos primeiros trabalhos realizados sobre identidades religiosas afro-brasileiras em Joinville (SC) é de
autoria de Gerson Machado (2014). O pesquisador, além de extensa pesquisa sobre memória e identidade, faz
um levantamento dos terreiros na região. Nesse trabalho, pode-se notar que a maioria dos terreiros mapeados
nessa região derivam da nação queto. Ver: Machado (2014).

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Reportamo-nos, nesse caso, ao sentido atribuído no tempo presente ao que vem a ser um
inquice. Na fala de Tata Kelaue, consiste em um “elemental da natureza” (SILVA, 2017).
Desse modo, devemos ter em mente o processo de transformação dos cultos às divindades
trazidas pelos bantos, tanto na dinâmica da escravidão quanto no tempo hodierno, em que os
inquices, por exemplo, possuem outros significados.
Na cultura banta, os N’kisi, segundo MacGaffey (1986:80), eram “espíritos tutelares
de vilas associados a água, tempestades, grutas e grandes pedras”. Explica Previtalli (2012,
p.11) que os N’kisi para os bantos constituíam espíritos titulares relacionados à família
consanguínea. No Brasil, esses espíritos perderam a força que tinham na África, visto que o
sujeito foi retirado de seu clã familiar e de sua terra. No processo de recriação dos sistemas
religiosos vigentes na África, os inquices, agora considerados espíritos da natureza,
tornaram-se salutares para a constituição das famílias de santo, que seriam, em medida, um
novo arranjo social e espiritual que reconstituiria as famílias dissolvidas pela dinâmica
escravista.
Tratando-se da reelaboração de um sistema de crenças que fundamenta o
candomblé angola, encontramos outras entidades espirituais ressignificadas e incorporadas
a seu panteão mitológico em solo brasileiro. Conforme Tata Kelaue (SILVA, 2017):

O nosso ungira é o dono do caminho, do movimento, do mercado. É o mensageiro


entre nós e os inquices. Eles muitas vezes fazem a intervenção entre a Aruanda e a
terra, pro inquice. Ele é o primeiro. Nossa própria boca é o ungira. Nossa
sexualidade, o movimento de interlaçar dos corpos. Não é sacanagem. É a fertilidade
do homem e da mulher. A natureza. Por isso são representados em outras nações
com o falo ereto, o que fez com que as pessoas o associassem ao diabo.

Segundo Tata Kelaue, o candomblé angola cultua, além de inquices, caboclos e


boiadeiros, os ungiras, que nas palavras dele também são encantados da natureza e se
manifestam em duas versões: no masculino e no feminino (SILVA, 2017). O princípio
feminino recebe o nome de pangira. Mediadores entre os indivíduos e inquices, os ungiras
manifestam-se em seus cavalos25, e cada pessoa pode carregar os dois princípios, que
fazem o papel, em certa medida, de agentes cósmicos. São eles que orientam, fornecem
informações a respeito da vida das pessoas, conversam com os consulentes, porque, de
acordo com Tata Kelaue, eles estão sempre à frente, na encruzilhada, são a sentinela das
pessoas e também a força do nzo (SILVA, 2017).

25
Também conhecidos como “aparelhos”, são as pessoas que entram em transe (SILVA, 2017).

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Encantados em geral se diferenciam em status aos inquices, visto que os primeiros se
manifestam nos adeptos sem que eles tenham realizado a obrigação denominada de
Ukalakale’Nkisi, que corresponde à iniciação, à feitura de santo (BARCELLOS, 2011, p.114).
Os rituais iniciáticos no candomblé angola dizem respeito ao preparo da muzenza com seu
inquice particular, no entanto os encantados são importantes na vida cotidiana de seus
adeptos. Tata Kelaue (SILVA, 2017) conta-nos que foram seus encantados caboclo Sete
Flechas, ungira Toco Preto e baiano Zé do Coco que o direcionaram a seguir na vida de
zelador de santo. Segundo ele, foi ungira Toco Preto, que, após atender a uma certa ginasta
que veio a ser reconhecida mundialmente, lhe deu condições de construir o Nzo Nkise Nzazi
(SILVA, 2017).
No que se refere a esse mosaico de divindades e encantados, também entrevistamos
Milvia Arruda, makota da casa, que prefere ser chamada no nzo, onde realizamos as
entrevistas, de Luan Kaiá26(ARRUDA,2017). Ela se apresenta como filha de Dandalunda, a
senhora das águas doces e salgadas, e Angorô, o inquice que traz a chuva para a terra,
fertilizando-a.
Para Luan Kaiá, caboclos, ungiras e inquices igualam-se, pois, “como os inquices não
falam com a gente, enviam os caboclos e outros encantados, que são os olhos dos inquices”
(ARRUDA,2017). Ela nos falou sobre sua iniciação, seus sentimentos pelo nzo, suas
atribuições na casa enquanto guardiã dos segredos que não podem ser revelados aos filhos
de santo e sobre as divindades cultuadas em Angola. Em seu depoimento, ela nomeia alguns
dos inquices, respondendo à nossa pergunta acerca do assunto:

Aluvaiá, Nkosi, Roxi Mokumbe, Katendê, Gongobila, Mutakalambo, Tempo, que é


cultuado somente no candomblé angola. É o patrono do candomblé angola. Então
toda casa de angola tem uma bandeira consagrada a Tempo. Kaviungo, Kassange,
Mutakalambo, Gia, Kaiala, Zumba, Matamba, Bamburucema, Vungi, que é um
desdobramento do inquice. Todo inquice tem um vungi, e este também nos envia
mensagens dos inquices. Lembá, Lembarenganga, Lemba Di Lé, Nzazi. Esses são
só alguns. E Deus, criador de tudo, é Zambi Apongô (ARRUDA, 2017).

Antes que pudesse entrar no assunto dos encantados, Luan Kaiá antecede:

Mas, além dos inquices, temos também os ungiras, pangiras, pretos velhos,
marinheiros, povo da estrada. Em algumas casas, pelo que sei, também é cultuado
ciganos. Eles são o caminho, o vento. Eles vencem demandas, nos orientam, são
como nossos pais e conselheiros. São nossos encantados. Ah! Entre os inquices,

26
Segundo Milvia Arruda (2017), Luan Kaiá é sua dijina, nome que recebeu após entrar no Lembaci, para sua
confirmação de makota.

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também tem Pambu Njila, que em outras nações é Exu. Todos são energia, forças
(ARRUDA, 2017).

Pelas narrativas dos nossos protagonistas, podemos perceber que no panteão


mitológico do candomblé angola várias divindades transitam. Diferenciadas em inquices e
encantados e distintas em atribuições e comportamento, são elas que forjam a identidade do
Nzo Nkise Nzazi e nos revelam muito de seu teor sincrético. Vê-se esse fenômeno na
reconfiguração dos N’kisibanto enquanto pilar da família estabelecida por laços de
consanguinidade e que na dinâmica da escravidão foi transformado em inquice, força da
natureza, aglutinando pessoas de diferentes grupos. Notamos, no contexto presente, a
adoção de outras entidades espirituais que só foram possíveis por um processo contínuo de
encontros com outras culturas.
É mister deixar claro que nosso entendimento de sincretismo 27não alude à simples
troca vulgar de elementos que se contradizem. Ao contrário, reconhecemos no sincretismo
uma estratégia de sabedoria cuja proposição ocorre muito mais pelas proximidades
cosmogônicas ou mesmo entre grupos sociais desfavorecidos que por uma simples
aceitação subalterna do colonizado pelo colonizador. De tal forma que esse encontro
sobrevive resistindo frente o olhar inquisitório de alguns pesquisadores que ainda tentam
estabelecer limites de pureza e justificar o sincretismo como uma necessidade do passado.
Ora, pelas narrativas dos membros do nzo, ciganos, marinheiros, pretos velhos, caboclos e
ungiras são elementos construtivos de sua identidade no tempo presente. Nas palavras de
Ferretti (1998, p.184), “alguns aceitam a existência, num passado distante, de um
proto-sincretismo original que teria funcionado no período de consolidação das tradições
religiosas, que depois de consolidadas, se tornariam um todo refratário a novos
sincretismos.”
A respeito desses elementos considerados estranhos a uma estrutura tradicional
africana e, portanto, vistos como desnecessários para alguns intelectuais, Tata Kelaue
conta-nos:
Não posso tirar a entidade de ninguém. Em muitas casas a gente vê isso, manda
embora caboclo porque é casa de queto. Como eu vou mandar embora a força de
alguém? Aqui no nzo nós nunca tivemos ciganos, não temos fundamento para isso,

27
Para Ferretti (2007, p.106-107), sincretismo não é um termo com significados fixos, sendo necessário localizá-lo
historicamente e pesquisar seus sentidos. Contudo, em seu sentido etimológico, é possível situá-lo na
Antiguidade, quando correspondia à “junção de forças opostas face ao inimigo comum”. Segundo o autor, “em
nossa sociedade o sincretismo é mais discutido, principalmente em relação às religiões afro-brasileiras,
consideradas religiões sincréticas por excelência, por terem sido formadas no Brasil com a inclusão de elementos
de procedências africanas, ameríndias, católicas e outras”.

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mas quem seria eu para tirar o cigano de alguém se esse cigano pode ser o grande
caminho da pessoa? (SILVA,2017).

Essa lógica da exclusão de entidades espirituais dos cultos africanos diz muito mais
respeito às classes mais intelectualizadas do que às pessoas que professam sua fé.
Remetemo-nos aos estudos de Louzada (2011, p.181) concernentes à reafricanização dos
terreiros na ditadura militar, em que o mito da pureza ganhou novos contornos. Segundo a
autora, nesse momento histórico, projetou-se uma grande campanha por parte do regime
com adesão da classe artística e intelectual no afã de publicizar o novo projeto de turismo
cultural do governo militar. O foco desse projeto seria “atrair turistas negros norte-americanos
de alto poder aquisitivo” (LOUZADA, 2011, p.181). Dessa forma, alvitraram-se mais
projeções sobre o candomblé dos orixás e os cultos ditos tradicionais, influenciando os
terreiros a buscar por referências que lhes chancelassem legitimidade. Esse fenômeno foi
caracterizado por Santos (2005, p.79) como um processo dessacralizante do candomblé, por
representá-lo em menor medida como religião e mais como manifestação cultural atrativa.
Essa tentativa de reafricanização do candomblé na sanha de purificá-lo da
contribuição de indígenas e brancos constitui uma violência. Uma violência que se expressa,
conforme dito pelo Tata Kelaue (Silva, 2017), na suposta possibilidade de afastar as
entidades de uma pessoa e da configuração religiosa de um grupo. Percebemos essas
tentativas de purificação mais como um desejo político de projeção na sociedade que uma
preocupação entre seus adeptos sem grandes anseios políticos.
Vale ressalvar que, ao privilegiar como estudo de caso um terreiro específico,
estamos lidando com subjetividades e sentimentos de pertencimento de determinado grupo.
Tata Kelaue diz-nos que “as coisas podem mudar de casa para casa, pois mesmo uma
mesma nação vem de raízes e lugares diferentes” (SILVA, 2017). Sendo assim, é salutar ter
maior acuidade e não considerar todos os terreiros como iguais. Mas, ao mesmo tempo,
faz-se preciso reconhecer que os arranjos entre nações se dão pela continuidade. É por meio
da oralidade que se transmitem os saberes e também a história de cada casa, pertencentes a
uma mesma nação. “Somos diferentes, mas também somos iguais, porque, como costumo
dizer, o vento que bate aqui também bate lá” (SILVA, 2017).
Então, podemos dizer, sobretudo em relação aos inquices, que estes são cultuados
em toda nação angola, pois os terreiros, “dinamizados e interpretados em concentrações
etnoculturais chamados Nações” (LODY, 1995, p.2), tendem a preservar aspectos de um
núcleo cultural primário, isto é, aqueles legados pelo povo banto.

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periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Memoria 71
O panteão e a relação com a natureza: um patrimônio ameaçado

Ao relembrar sua trajetória pessoal na condição de zelador de santo, Tata Kelaue


expõe alguns aspectos que aludem aos motivos de sua mudança da cidade de Joinville para
o município próximo, Araquari. Com base em seu relato, é possível diagnosticar elementos
que dizem respeito à identidade afrorreligiosa do grupo. Segundo ele:

Eu atendia no Iririú, apenas consulta. Era um espaço urbano. Na época eu não tinha
filhos de santo, eles foram chegando para eu cuidar. Então esse espaço urbano foi
ficando pequeno para nós, eu precisava de um lugar mais próximo da natureza. Não
que o espaço urbano não seja natureza, para nós também é. Só que quando os filhos
começam a chegar tem todo um preparo que é cotidiano e uma necessidade maior
de interagir com a mata, com a cachoeira, pros trabalhos de iniciação, para feitura.
Precisava de mais fundamento. Por exemplo, lá não tinha passarinhos. E os bichos
são importantes também para a religião, pois eles nos avisam quando um filho não
está bem. Então eu procurei um lugar assim, com mata, que a gente pudesse usar. E
construí meu nzo aqui por conta da mata que eu tinha garantia de ser preservada.
Hoje parece que estão revertendo isso aí (SILVA, 2017).

Da condição de atendente a consulentes, Tata Kelaue passou a acolher pessoas que


precisavam de preparo para iniciação. Mediante essa nova perspectiva, recorreu a
ambientes que oferecessem as condições necessárias conforme o sistema configurativo dos
candomblés em geral. A proximidade com matas, cachoeiras, mangues, mares, rios e
encruzilhadas é, em certa medida, basilar à identidade desse grupo. Oliveira (2006, p.117)
alega que essas várias facetas compõem um mesmo organismo, também chamado de
identidade.
Desse modo, estamos problematizando aqui uma identidade que se constrói por
intermédio da interação orgânica com bens naturais e que na fala de Tata Kelaue tem
garantia de acautelamento (SILVA, 2017). A escolha pelo local para estabelecimento da sede
ocorreu por conta de a região oferecer um espaço verde preservado que entrasse em
comunhão com a estrutura cosmogônica de suas práticas. Podemos dizer então que, na
concepção de Tata Kelaue, a ligação atávica com a natureza é uma precondição para a
construção da identidade religiosa do grupo (SILVA, 2017). Não obstante, a preferência
também teve como crivo um espaço legalmente preservado, assegurando as práticas
religiosas do candomblé de nação angola ao qual se afiliou.
Ao relacionar identidade e patrimônio natural, Zanirato (2009, p.15) chama-nos a
atenção afirmando que essa implicação deriva de uma identificação da população com os

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elementos a serem conservados, reconhecendo-se neles, tornando-os representativos dela e
para ela. Para Tata Kelaue, é na natureza que ele contrai fontes materiais e espirituais para
exercer as práticas ritualísticas que constroem a identidade do grupo (SILVA, 2017). Essa
mudança é perceptível quando ele relata sua transição de atendente aos consulentes a líder
religioso; a nova configuração exige integração entre elementos físicos e biológicos da
natureza, conjugando assim homem, flora e fauna.
Há que se considerar que essa identificação com os bens naturais está intimamente
ligada aos detentores de poder que regem os elementos da natureza. Ou seja, para o Nzo
Nkise Nzazi, seus inquices e encantados. Por eles, a coesão e a identidade do grupo são
mantidas, assim como os saberes sobre folhas e procedimentos curativos.
Cambono Rafael28, um dos auxiliares de Tata Kelaue, conta-nos um pouco sobre seu
processo de aprendizado no tocante às folhas de poder terapêutico, associadas à regência
dos inquices. Segundo ele, algumas dessas ervas e plantas são colhidas na própria roça do
nzo; outras, no espaço preservado em frente ao terreiro:

Conheço nsansa, que é arruda, que é de Aluvaia e Kabila, é folha para benzedura e
banho. Tem kavula, que é couve, para sacudimento. Nkazi-masika, que é conhecida
como dama da noite, de zumba, para encantamento. Malemba-Lembá, dormideira,
serve para banho e ajuda acalmando no sono. Jimbongo, essa é de assentamentos e
para enfeitar as comidas, oferendas. É de Nkose e Matamba. Mungaiava, que é
goiabeira, para chás, folha de Terekompenso. Tem também magendi, de Aluvaiá,
serve para banho e chás. Então essas folhas e ervas são encontradas em tudo que é
lugar, não só no terreiro, e tem folha que tem no terreiro, mas é preciso buscar fora,
num lugar específico. Daí a entidade ou o inquice, através dos búzios, avisa o Tata
(HASSELMANN, 2017).

Como se pode perceber no testemunho do Cambono Rafael, os usos dos espaços em


que se extraem elementos da flora para fins ritualísticos não se restringem ao território onde
está estabelecida a sede litúrgica do terreiro, tampouco à área de preservação que estava
em conformidade com o critério de Tata Kelaue para a construção do nzo(HASSELMANN,
2017). Mediados por intervenção espiritual dos inquices, por intermédio da consulta oracular,
os recursos naturais são extraídos de vários lugares. Sobre essa complexidade interativa,
Oliveira (2006, p.117) ressalta que para o sujeito afrorreligioso não existe desagregação do
conjunto, que é um todo orgânico. Assim, considerando a complexidade desse sistema de
crenças que se relaciona com espaços múltiplos, reportar-nos-emos às relações firmadas
com a área verde preservada em frente ao nzo.

28
Rafael conta-nos que não possui dijina, pois apesar de cambono ainda não fez sua confirmação, que é a
iniciação particular dos cambonos e dos makotas (HASSELMANN, 2017).

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Eu escutei que o pai de santo faz Kabila na mata, mas não estava aqui na época.
Minha ligação com a mata é por causa dos trabalhos realizados. Por exemplo, o
caboclo pode pedir uma festa na mata. Sete Flechas já pediu. É de lá que a gente
retira folha de mamona, folha de palmeira, de figueira, cana-do-brejo, tem a flor de
Kisimbi (agora não me veio nome), capega, folha de bananeira, folhas para cobrir o
chão em dia de festa, flores para enfeitar as festas. Sei que o Tata retirava outros
elementos pros fundamentos, mas isso é conhecimento só dele, para fazer
beberagem. Alguns insetos são capturados pra fazer nosso axé, que está no pó. É na
mata também que a gente leva o carrego. Depende muito do fundamento
(HASSELMANN,2017).

O espaço em questão, embora fora da sede do terreiro, é um dos ambientes que


possibilitam o exercício da crença em sua plenitude. É nele que se efetivam rituais iniciáticos,
como por exemplo a feitura de Kabila 29 , conforme a narrativa do Cambono Rafael
(HASSELMANN, 2017). É da mata que se recolhem folhas e plantas de cunho mágico e
estético para enfeite do nzo em dias de festa e também de onde se retiram insetos para
manuseio de uma particularidade do nzo: a fabricação do pó. Cumpre acetinar que Tata
Kelaue em nossa conversa nos disse que seu “axé é do pó”, o que caracteriza sua raiz:
“Gente do Beiru do pó, os massanganga” (SILVA,2017). Logo, essa relação ocorre em
muitas esferas para diferentes intencionalidades, até mesmo para a organização de festas de
encantados que habitam a mata, caso do caboclo Sete Flechas. Isto é, na cosmovisão do
nzo, “tudo está em tudo, tudo se complementa, independente do contexto em que esses
elementos se encontram” (OLIVEIRA,2006, p.117).
Esclarecemos que, no período da coleta de entrevistas, uma demanda bastante
deletéria para os membros do Nzo Nkise Nzazi aconteceu. Em junho de 2017, Tata Kelaue
foi surpreendido com a presença de maquinários e trabalhadores investindo no espaço que o
fez estabelecer-se na região, pela garantia de preservação. A mata em frente ao nzo estava
recebendo os primeiros procedimentos para a construção de um novo loteamento. Tal
circunstância não é um dado isolado, mas um fenômeno que acompanha o município de
Araquari há alguns anos.
À guisa de informação, é salutar reconhecer o vertiginoso crescimento do município
de Araquari e a expansão de empreendimentos imobiliários que caracterizam a região. O
jornal A Notícia celebra tal fenômeno em artigo intitulado “Araquari está entre as 25 cidades
brasileiras que mais cresceram em 2013” (Maciel 2014). Segundo o periódico, o crescimento

29
Inquice relacionado às matas e à caça (BARCELLOS, 2011, p. 38).

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está vinculado ao “boom industrial com a chegada de fábricas de grande porte nos últimos
anos”, e “não há dúvidas que uma coisa levou a outra” (MACIEL, 2014).
À época do ocorrido, entrevistamos novamente o Cambono Rafael, que tinha mais
detalhes sobre essa iniciativa e recorreu, igualmente, a outros membros do nzo aos órgãos
de fiscalização ambiental de Araquari, enviando assim suas denúncias. Ele nos relata:

Eu fiz uma série de fotos sobre o que aconteceu. Tinha um grande movimento de
máquinas, caminhões e alguns homens. Eles estavam aterrando uma parte para
fazer uma entrada, aterrando inclusive o córrego. Em alguns lugares vi que tinha
piquete para zoneamento do loteamento. Tinha muitas árvores caídas, porque o
trator entrou e soterrou o mato, acabou com algumas ervas. Tinha toca de bicho ali.
Com o barro, foi soterrado. Era uma área sem acesso para eles, e foi feito o
aterramento com as máquinas. E o interessante é que foi feito no final da tarde,
quando a fiscalização dos órgãos de Araquari não está funcionando
(HASSELMANN,2017).

Surpreendidos pelo que seria uma atitude ilegal, visto que a escolha pelo
estabelecimento do nzo teve como critério a aproximação com a mata e sua preservação, os
membros do nzo articularam-se por meio de denúncias para os órgãos competentes. Ainda
segundo o Cambono Rafael:

Então nós denunciamos o ocorrido aos órgãos competentes que respondem às


questões ambientais de Araquari. Outros falaram com vereadores. E daí me
disseram que realmente é uma área de preservação e que imediatamente eles iriam
até o local. Daí eles vieram à tarde. A princípio foi embargado, e até então não foi
mexido mais. Não sei se vão fazer isso nessa gestão, porque são oposição política,
mas Araquari está toda loteada, é só prestar atenção nas placas que anunciam a
abertura de novos lotes. Temos medo. A gente sabe que não dá para restaurar a
natureza da forma como usamos. Não quero desmerecer os terreiros que são
perseguidos e têm suas imagens destruídas, pois é uma violência, e muitas dessas
imagens receberam fundamento, mas tem objeto que se repõe, têm coisas que não
dá para comprar ou refazer (HASSELMANN,2017).

A preocupação do Cambono Rafael e dos membros do nzo, evidenciada por ele na


entrevista (Hasselmann, 2017), é passível de análise ao situar o município de Araquari no
quadro de cidades que vêm crescendo tão rapidamente. A segurança quanto à mata
preservada coloca em risco a relação que os membros estabeleceram com o espaço. A
Secretaria de Governo e Comunicação do município comemora o crescimento da cidade em
meio à crise brasileira, informando que as empresas locais continuam ampliando seus
negócios (ARAQUARI,2017). Pela assessoria, é possível tomar conhecimento de que
atualmente o município conta com 15 loteamentos em processo de instalação; dois deles são

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caracterizados como industriais e os outros 13 são de caráter misto, dividindo-se em
comerciais e residenciais.
Embora os membros do nzo não utilizem esse léxico para falar dos bens naturais que
consideram valorativos para o grupo, esses bens são enunciados em algumas narrativas. O
entendimento que o Cambono Rafael tem sobre reposição e restauro nos indica um
sentimento de possível perda daquilo que confere valor para o exercício da fé religiosa.
Assim, utilizamos como possibilidade interpretativa de patrimônio o conceito de Graeff e
Salaini (2011, p.175):

Nós trabalhamos com a premissa de que os seres humanos se relacionam com o


mundo a partir de esquemas e sistemas simbólicos, de maneira que toda distinção
entre tangível e intangível, natural e cultural e essencial e acidental costuma nos
informar mais sobre o grupo social que pensa e organiza o seu mundo a partir dessas
dicotomias do que sobre categorias de entendimento ou classificatórias
supostamente universais.

Desta feita, os membros do nzo compreendem que a área preservada e que se


encontra ameaçada pelo desenvolvimento urbano e mobiliário faz parte do patrimônio do Nzo
Nkise Nzazi e, muito embora o Nzo Nkise Nzazi tenha se estabelecido em frente a uma área
preservada, parece que o processo de acautelamento sofreu uma reversão (SILVA, 2017).
Não se sabem os mecanismos de salvaguarda desse espaço. Segundo Cambono Rafael,
existe uma disputa entre pessoas importantes da cidade e a prefeitura, o que mantinha a
tutela do terreno (HASSELMANN, 2017).
Arruda (2006) traz-nos algumas reflexões acerca da forma de conceber a natureza
pelos mecanismos acauteladores do Estado brasileiro. Uma delas advém de nosso passado
público. Estamos ainda arraigados no entendimento de que a natureza e a nossa
biodiversidade confeririam soberania à nação. Logo, o patrimônio natural, concebido por
órgãos reguladores do Estado, estaria desenhado por um enredo monumentalista de
natureza e paisagem. Outra problemática para o autor consiste na qualificação
biodeterminista, na qual a ação antrópica sobre o meio ambiente seria desprezada.
Lembramos ainda que a estratégia dos gestores públicos para resolver as tensões
geradas nesse âmbito tem levado os afrorreligiosos ao aprisionamento de suas práticas
ritualísticas. Elencamos nessa seara a criação de parques 30 e espaços exclusivos para

30
“O deputado estadual Carlos Minc, ex-secretário do Ambiente, explica que o projeto do Espaço Sagrado da
Curva do S é fruto de oito anos de conversas com representantes das religiões afro-brasileiras, que levaram à
criação do Decálogo das Oferendas, texto voltado para a educação ambiental e religiosa, tendo em vista o risco

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depósito de oferendas, numa reificação à cosmologia das religiões afro-brasileiras.
Questionado se essa seria uma alternativa viável aos membros do nzo, Cambono Rafael
pontua sua posição:

Eu sou contra, porque é algo artificial. A mata do local pode até ser sido intocada,
isso não faz diferença. O que importa é que dependemos dos nossos inquices e
encantados. São eles que determinam o local onde ser feito a oferenda, o ebó, o
sacudimento, os processos de feitura. Inclusive os processos de cura também variam
de lugar para lugar. Há trabalhos realizados em encruzilhadas específicas. Por
exemplo, se for um trabalho para Zé Pilintra, a gente vê se a encruza tem um espaço
que remete à boemia, coisa assim. Se for pra Nkose, procuramos uma linha férrea.
Então usamos vários lugares. Nzazi é pedreira. Zumba é lugares pantanosos. Não
faz sentido esses tais macumbódromos para gente (HASSELMANN, 2017).

Conforme narrado nos depoimentos, no Nzo Nkise Nzazi existe uma relação dialética
entre homem, flora, fauna, inquices e encantados. São todos esses elementos que conferem
unidade ao grupo, constituindo assim sua identidade afrorreligiosa. “Somos angoleiros”
(SILVA,2017), repetiu várias vezes Tata Kelaue ao referir-se ao panteão mitológico do
candomblé angola. “Nós estamos inseridos num todo” (SILVA, 2017). Desse modo, trazemos
ao debate alguns elementos estruturantes dessa identidade e os bens que são considerados
valorativos para o grupo. Folhas, ervas, insetos, bichos, mas especialmente seus inquices e
encantados, fazem parte do patrimônio do candomblé angola. Os espaços sociais
apresentam-se ora como mecanismos de interlocução entre inquices e encantados, ora
como habitação de seres espirituais que lhes oferecem instrumentos para que, manipulados
magicamente, se transformem em curativos.
É salutar advertir que, muito embora os membros do Nzo Nkise Nzazi façam uso dos
espaços naturais com base em sua cosmologia, entendemos a importância da preservação
das áreas verdes, que não são apenas portadoras da memória de um grupo social, mas
garantem o bem-estar de toda a comunidade em seu entorno.

Considerações finais

O panteão mitológico do candomblé angola, sob a perspectiva dos membros do Nzo


Nkise Nzazi, conjuga inquices e encantados. Os primeiros seriam a ressignificação dos
ancestrais cultuados pelos povos bantos e eram compreendidos como espíritos patronais da

ambiental que oferendas podem causar, devido ao uso de elementos como velas, carcaças de animais, garrafas de
vidro e potes de barro. De acordo com ele, o projeto foi paralisado por questões políticas” (NITAHARA, 2014).

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família consanguínea. No Brasil, por meio de um processo de reelaboração do sistema de
crenças, esses espíritos são considerados elementais da natureza e tornaram-se salutares
para a construção de um novo arranjo familiar, a família de santo. Pelas narrativas dos
membros do Nzo Nkise Nzazi, percebemos que esses inquices são edificadores da
identidade religiosa do grupo. Juntamente com os encantados, formam o que concebemos
neste trabalho como o panteão mitológico do candomblé angola.
Embora os inquices tenham um lugar mais privilegiado na concepção do grupo,
perceptível nos processos iniciáticos, nos quais seus filhos são preparados para eles, os
encantados transitam num espaço afetivo e cotidiano do grupo. São eles os olhos dos
inquices, conforme mencionado, ou que preparam a trajetória particular dos membros, de
acordo com as menções realizadas por Tata Kelaue. Em termos afetivos e de enunciação
nas narrativas, podemos averiguar a equiparação dos dois.
Para os membros do Nzo Nkise Nzazi, o candomblé angola é um espaço religioso de
culto a inquices, pretos velhos, ungiras, pangiras, boiadeiros, marinheiros, ciganos (em
outras casas) e caboclos. Este último corresponde, na ótica dos membros, ao dono da terra e
recebeu o status de inquice sob o mito de que os inquices haviam lhe outorgado o título. Essa
titulação derivaria da concepção banta de reconhecimento dos líderes da terra e sabedores
das condições geográficas dos lugares, podendo assim dar continuidade ao próprio culto dos
inquices. Pois, em novo ambiente, os negros africanos teriam de reconhecer as hostilidades
e possibilidades dos lugares nos quais viriam a se estabelecer. Todavia, essas concepções
foram marcadas por discursos deletérios e denuncistas de certo sincretismo, acionado de
forma pejorativa e que causa incômodo aos ideários da pureza.
O panteão mitológico do candomblé angola traz em seu bojo algumas singularidades.
Encontramos certos particularismos referente à língua que nomeia inquices, folhas e rituais
iniciáticos. Situamos diferença na concepção do ancestral, em que para o candomblé queto o
ancestral é um ser divinizado, e para candomblé angola, um elemental, a força que permeia a
caça, a guerra, o vento. Mas, acima de tudo, encontramos semelhanças. Os candomblés em
geral se alicerçam em valores como tempo de iniciações, valorização de antepassados,
organização de seus quadros iniciáticos e se encontram todos eles, independentemente da
nação, evocadores da ancestralidade africana. Uns mais alinhados à ideia de pureza, outros
devotados a espíritos que surgem do encontro entre novos sujeitos sociais e seus aportes
ritualísticos.

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Percebemos nessa caminhada que alguns discursos construídos em diferentes
tempos históricos se tornaram prejudiciais ao candomblé angola. Os ideais de pureza
enunciados sempre vêm na esteira de uma concepção de supremacia, fato que fragiliza
aquele que não possui dotes dignos de ser valorizados. Portanto, o candomblé angola
enfrenta sua invisibilidade, o que consequentemente ressona na ausência de gestão de
políticas públicas patrimoniais.
Relacionamos os significados atribuídos pelos membros do nzo à natureza,
concebida como um todo. Uma encruzilhada, uma linha férrea, um sinal de manguezal, a
mata preservada. Cada um desses espaços emana uma força diferente e demanda uma
prática religiosa peculiar, sempre mediada pelo divino, isto é, inquices e encantados.
Incluímos no trabalho contingências que se apresentaram no decorrer da pesquisa e
que, por sua vez, oferecem ameaças ao culto no tempo presente. O crescimento das cidades
tem sufocado as práticas religiosas que se exercem no cotidiano de muitos terreiros. No caso
do município de Araquari, trouxemos dados que justificam a preocupação dos membros do
Nzo Nkise Nzazi. Nas notícias elencadas, há grande projeção no tocante ao crescimento
urbano e à expansão de loteamentos. Não encontramos nenhuma referência à proteção de
áreas verdes, muito menos menção sobre o Nzo Nkise Nzazi, único terreiro de candomblé da
cidade. A nosso olhar, esse silêncio da gestão pública da cidade revela que seus
administradores não têm entendimento sobre o valioso patrimônio da cidade. Referimo-nos
desse modo ao analisar as narrativas de seus membros e perceber a rica compreensão que
estes possuem acerca da natureza, com sabedoria de manuseio de folhas e plantas.
Estabelecemos mais uma semelhança que acossa as religiões de matriz africana em
geral: o descaso do poder público. No afã de responder aos anseios de segmentos da
sociedade, o poder público acaba por represar modos de percepção do mundo físico e
espiritual a espaços restritivos a cultos tradicionais, o que em nossa pesquisa os membros do
nzo alcunharam pejorativamente de “macumbódromo”.
Acreditamos que a visão integradora dos membros do Nzo Nkise Nzazi a respeito da
natureza pode encaminhar ainda novos direcionamentos nas pesquisas sobre identidade e
patrimônio, sobretudo ouvindo a voz de excluídos. A história das religiões de matriz africana
no Brasil contém, como as linhas das mãos, a violência e o apagamento das suas memórias,
mas cada um dos seus segmentos traz escrito, igualmente, práticas que exprimem a
comunhão com a natureza, as resistências que se repetiram como um encantamento e as
matizes de sabedorias próprias e compartilhadas. Aliás, revelando as muitas brechas ainda

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valioso.

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Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

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