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Abrir-se à hora:

reflexões sobre as poéticas de um tempo-sol (Ntangu)


TIGANÁ SANTANA*

Resumo: Este texto aspira a refletir sobre alguns aspectos marcantes na filosofia africana bantu-
kongo referentes à temporalidade. Verifica-se, nesta, uma interpretação do sol (ntangu), enquanto
fazedor de eventos no mundo — eis, portanto, a sua poética — dentro da leitura dos estágios
ontológicos propostos pelo cosmograma kongo (dikenga dia kongo). Há uma presença
significativa desse pensar — aqui intermediado, principalmente, pelo pensador congolês Bunseki
Fu-Kiau — noutras matrizes que se construíram na diáspora negra (notadamente, no Brasil),
conforme se pode verificar em realidades trazidas à tona por pensadoras como a nengwa Zulmira
de Zumbá. Estabelecem-se, no texto, conexões entre tal pensamento africano, manifestações
diaspóricas, como candomblés de linhagem congo-angola, e entre como, numa ideia bantu-kongo
de verticalidade e horizontalidade, pessoas podem intervir no mundo, abrindo horas no espaço-
tempo. É preciso distinguir a hora aberta pelo tempo-sol e a ação ético-inventiva de abrir a hora.
Palavras-chave: Filosofia africana; Bantu-Kongo; Bunseki Fu-Kiau; Diáspora negra;
Temporalidade.
Being open to hours: reflections on the poetics of the sun-time (Ntangu)
Abstract: This text aims to reflect on some remarkable aspects of African Bantu-Kongo
philosophy regarding temporality. In this, there is an interpretation of the sun (ntangu), as an event
maker in the world — that is, therefore, its poetics — according to the interpretation of the
ontological stages proposed by the Kongo cosmogram (dikenga dia kongo). There is a significant
presence of this thinking — here intermediated mainly by the Congolese thinker Bunseki Fu-Kiau
— in other matrices that were built in the black diaspora (especially in Brazil), as can be seen in
realities brought to the fore by thinkers like nengwa Zulmira de Zumbá. Connections are
established in the text between such African thought, diasporic manifestations, such as
candomblés of the Congo-Angolan lineage, and how, in a Bantu-Kongo idea of verticality and
horizontality, people can intervene in the world, opening hours in space-time. It is necessary to
distinguish the hour opened by the sun-time and the ethical-inventive action of opening the hour.
Key words: African philosophy; Bantu-Kongo; Bunseki Fu-Kiau; Black diaspora; Temporality.

*
TIGANÁ SANTANA é Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências
Prof.Milton Santos (IHAC) - Universidade Federal da Bahia (UFBA); é Doutor em Letras pela
Universidade de São Paulo (USP), músico e poeta.

4
I Kiau, bem como a mestras herdeiras e
fazedoras de certas cosmologias afro-
Chego a escrevinhar estas palavras, brasileiras, as quais, claro, transitam
atendendo a um pedido do meu amigo entre tradições, necessariamente,
Álvaro Faleiros para, se possível, refletir dinâmicas e invenções diaspóricas que,
quanto ao fato de esses tempos irresistivelmente, fixam-se. Destaco a
pandêmicos (iniciados, massivamente, nengwa2 Zulmira de Zumbá (iniciada em
no ano de 2020) parecerem ser uma candomblé de matriz congo-angola, em
“grande hora aberta”. Não é, 1941, na cidade do Salvador), entre tais
evidentemente, inopinada a exortação a mestras.
se pensar como “hora aberta” a nossa
experiência no contexto de uma
A minha mãe, Arany, sempre contara a
pandemia que expõe fraturas,
pessoas que lhe foram próximas, a
fragilidades, (des)comunidades,
propósito do seu nascimento, no interior
diferenças, natureza, sentimentos de
da Bahia, que a parteira Nice pedia com
transitoriedade, abstrações quanto a
muita insistência (como fosse inexorável
permanências e, enfim, aspectos
ter que se atender a tal súplica) que a
substanciais do palpável, do impalpável
minha avó esperasse passar a “hora
e do antropoceno.
aberta”, representada pelo meio-dia, para
Após uma celebração pública e farta ao que nascesse o seu rebento. Dizia:
n’kisi1, isto é, à tão presente quanto “aguente mais um pouco a dor, pois a
inexplicável força ativa nas vidas que a criança não pode nascer a essa hora, que
ela se conectam, nesse caso, especificada é muito forte”. A nengwa Zulmira de
como n’kisi do tempo (ou, simplesmente, Zumbá, ao lado de outras pessoas,
conhecido nos terreiros de candomblé de sobretudo, de gerações anciãs em
matriz congo-angola no Brasil como terreiros de candomblé, os mais diversos,
Tempo), o amigo que me traz a esta destaca quatro momentos fulcrais de
escrita se disse revolvido pela ideia de abertura de hora, ratificando, portanto, a
hora e temporalidade como “energia” preocupação da parteira Nice: hora em
(ainda mais, “energia” celebrável que que o sol nasce, meio-dia, seis horas da
evoca tantos eventos fundamentais em tarde/noite e meia noite. O Brasil negro,
torno do seu vórtice ou das poéticas por meio desse pensar aqui
filosóficas negras que interpretam o seu exemplificado, retoma e reterritorializa
vulto, a sua imagem-vento). um vetor de força fundamental assente
na cosmologia bantu-kongo, a saber,
Ora, mas o que pode ser hora? Aspiro a aquele que desenha, analisa, pensa,
recorrer, como sempre, a aspectos da constrói, abre-se a um dado mundo (e um
filosofia africana bantu-kongo, dado mundo pode abrir-se a ele
sobretudo, por meio da mediação do igualmente) com a coletiva e sistêmica
pensador contemporâneo Bunseki Fu- proposta-experiência do dikenga dia
1
N’kisi ou n’kisi-nsi, remédio ou remédio da uma especialidade, por exemplo, política ou
terra, vem do radical kinsa, que designa ‘cuidar’. espiritual secreta.
2
A palavra n’kinsa, proveniente do radical Em língua kikongo, tal termo significa mãe ou
mencionado, evoca, de acordo com Fu-Kiau, em senhora. Faz-se presente, ao lado do termo
Makuku Matatu, um “movimento rítmico do Mam’etu, em candomblés de matriz congo-
corpo”. N’kisi é também um objeto artístico, ao angola, para que as pessoas da comunidade
tempo em que n'kinsi é “necessidade, valor”, dirijam-se, com distinção e afeto, à sua liderança
consoante o autor-pensador. Além disso, n’kisi é espiritual, quando for uma mulher.
um objeto-diploma (como n’lunga) a oficializar

5
kongo (cosmograma kongo), cuja tétrade memória de — é o que não se dá a ver ao
a estruturar-lhe, pontualmente, o corpo, ku nseke (dimensão mais densamente
compreende, também, uma física do mundo). Musoni, ligado à cor
hermenêutica quadripartite de marcos e amarela, é não ser ainda físico ou não ser
códigos temporais principais mais físico, tangível. Kala, que vem a
(subseguidos pelos secundários). O significar ‘residir’ ou, literalmente, ‘ser’
dikenga dia kongo, conforme desvelado — em sua acepção principalmente
pela sistematização de Bunseki Fu-Kiau, verbal5 —, corporifica, representado
quer em obra publicada, quer em obra pela cor preta, o estágio em que este ser
inédita e manuscrita, representa estágios como ação torna-se entidade “visível”.
ontológicos3 de tudo o quanto pode ser Noutro estágio, associado à cor
circunscrito por este mundo (nza yayi) vermelha, encontramos tukula (do verbo
constituído por mundos, a partir da kula6: crescer, amadurecer, desenvolver
apreensão da pessoa kongo enraizada nos [-se]) e as coisas e situações em seu
alicerces da sua comunidade (kanda), estado de zênite, de mais ativa
bem como na sua compreensão da proficuidade, de ação propriamente dita.
própria ideia de comunidade em muitas Por fim, luvemba7 vem a ser o estágio de
membranas, ou seja, vária e extensiva. A desintegração física, o morrer, o findar-
título de sucinta retomada dos estágios começar, as grandes transmutações das
ontológicos do cosmograma kongo, coisas que são, o desintegrar-se da
note-se haver os estágios musoni, kala, dimensão tangível e ir ao insondável. O
tukula e luvemba. Primeiro e, também, radical vemba designa, entre outras
último estágio de ser (a depender da acepções, ‘agrisalhar-se’. Tal estágio
perspectiva), musoni — a guardar o conecta-se à cor branca.
radical sona4: registrar, gravar, ter a

3
Ontológico, aqui, diferentemente, de uma escrito: Nsona and nkandu were days of the
abordagem husserl-heideggeriana, em que, ancestors and of resurrection, suitable for
sobretudo, em Heidegger, há, em linhas gerais, emerging from ritual seclusion (sona, “to make
uma distinção entre o ôntico como o que seja ritual markings on the body”).
5
relativo ao ente e o ontológico como o que seja Em kikongo, “ser”, como substantivo, é
relativo às essências das existentes denominado, frequentemente, kadi ou be, na
particularidades, tenciona referir-se ao que é acepção de Fu-Kiau. Segundo o “Novo
apreendido como existente pela pessoa kongo na dicionário Português-Kikongo”, que nos auxilia,
sua multiplicidade conteúdo-formal de estados, significativamente, no presente texto,
de aparições, de desfazimentos, na sua encontramos, ainda, para “ser”, na sua forma
tangibilidade e na sua intangibilidade. O que substantiva, os termos vangwa, ma, kima, zingu
poderia conter e ser contido por cada existência e nkala.
6
(necessariamente, em relação, diga-se) é a Kikulu, verbo relacionado ao radical kula,
vitalidade no mais variado espectro. Ser é estar, designa “desenvolver”.
7
de algum modo, ativado/a pelo e no que se Metaforicamente, a partir do que explicita Fu-
concebe como vida (moyo/zingu). Kiau, Wyatt MacGaffey (1986, p.43), na
4
Wyatt MacGaffey, a propósito da semana perspectiva da vida humana, lembra que se trata
kongo — dividida em quatro dias: nkandu, esse estágio, um ‘pôr-do-sol’, daquele que
konzo, nkenge, nsona —, observa que “Nsona e “significa a morte do homem e o despontar do
nkandu eram dias dos ancestrais e de seu renascimento, ou a continuidade da sua
ressurreição, próprios para emergir de vida”. Originalmente, eis o trecho citado:
isolamento ritual (sona, 'fazer marcações rituais signifies man’s death and its rising his rebirth, or
no corpo’). (MACGAFFEY, 1986, p.51). the continuity of his life.
Originalmente, o excerto que traduzi foi assim

6
Tukula

Luvemba Kala

Musoni

II assevera que é a “hora densa”, bem como


das lideranças, dos simbi11 e do
O tempo, numa acepção geral, ou sol,
“majestoso princípio da vida”12 ou do
isto é, ntangu, uma vez pensado na sua
“nkingu-nzambi”, isto é, princípio-
distribuição marcada por uma
abrangente ideia de hora (que não se natureza / princípio-mudança / princípio-
atém exatamente a marcos enumeráveis, fluxo / princípio-o-que-acontece.
embora os inclua, de alguma forma), Ndimina, o pôr-do-sol, é a terceira hora
conectada às posições solares, reparte-se principal e presentifica o estágio
luvemba, trazendo nova mediação
em quatro lo (hora) que se distinguem e
fundamental, visto que se trata da “hora
se relacionam, diretamente, ao dikenga
de submersão de tudo para a morte
dia kongo (cosmograma kongo). Assim,
física”13, leia-se, “a hora em que a
tem-se, em associação a kala, a primeira
natureza é abandonada às forças e
hora principal, a saber, nseluka ou
princípios invisíveis que lhe inspiram
n’suka (manhã). Trata-se, segundo Fu-
uma nova vida para o dia seguinte”14.
Kiau (1978)8, em Makuku Matatu
Encerra o ciclo das horas principais, o
(conjunto de manuscritos redigidos em
dingi-dingi ou n’dingu-a-nsi, marco
francês com partes em kikongo), da
temporal que corresponde a musoni
chamada “hora de mediação e de
profecia, uma vez que une e separa o dia (tempo-morada dos ancestrais ou de
quem “fez história”, como indica o
e a noite (bunda ye vambisa mwini ye
fuku)”9. É essa, prossegue, a “hora de pensamento de Bunseki Fu-Kiau).
Floresce aí, de acordo com o pensador
emergência à vida”10. A segunda hora
que nos ampara, a “hora dos mistérios
principal liga-se ao estágio tukula do
insondáveis”15, “o momento dos grandes
cosmograma e faz-se conhecer como
sonhos e dos pensamentos profundos”16;
ntangu-a-mbata ou kunda. Fu-Kiau

8
Em tempo, elucidamos que todas as citações comunidade, os “gênios sociais”, de acordo com
concernentes à obra de Bunseki Fu-Kiau, neste Fu-Kiau.
12
artigo, são extraídas dos manuscritos intitulados majestueux principe de vie.
13
Makuku Matatu: les fondements culturels bantu l’heure de submergence de tout pour la mort
chez les kongo, concebidos no ano de 1978. physique.
9 14
Originalmente: l’heure de médiation et de l’heure où la nature est abandonnée aux forces
prophétie puisqu’elle unit et sépare le jour et la et principes invisibles qui lui insufflent une
nuit (bunda ye vambisa mwini ye fuku). nouvelle vie pour le jour suivant.
10 15
l’heure d’émergence à la vie. l’heure des mystères insondables.
11 16
Os simbi ou simbi bia nsi são, em termos le moment de grands rêves et de pensées
gerais, os incorpóreos/espirituais condutores da profondes.

7
ademais, n’dingu-a-nsi designa emissários, dos mensageiros, das
“maneira-de-buscar-o-mundo”17. Eis, grandes viagens, assim como dos
então, a hora do conhecimento, da ataques e das guerras”23, sendo,
ciência (kindoki), do silêncio e calma igualmente, “a hora que testemunha o
interiores sugeridos pela expressão recomeço espiral do tempo e dos
dingalala, a qual me remete à dingalala fenômenos naturais ao longo de sua
ka ko, utilizada pela nengwa Zulmira de evolução permanente”24.
Zumbá, sempre que quer demonstrar a
necessidade de silêncio a eventuais
pessoas presentes em ritos mais solenes
por ela conduzidos, ou mesmo, de modo
mais categórico, pedir-lhes silêncio
diante do que esteja a transcorrer.
As chamadas horas secundárias
localizam-se entre a primeira e segunda
horas, entre a segunda e terceira, entre a
terceira e quarta, e entre a quarta e
primeira. São elas, respectivamente:
kinsamina / mayanama / ntangu-a-kedi
— “hora do pequeno sol”18; nsinsa /
m’vengo / malemba — “hora em que
instituições como a Lemba19 encerram
sua programação diária”20, como
também do nkondo, isto é, da “caça
invividual”21; malo / malo-ma-tulu —
“hora do sono”22; e makielo / makielo-
ma-bwisi / nkala-mpumbu — “hora dos

17
manière-de-chercher-le-monde. em 1982, à qual nos remetemos, para o presente
18
l’heure de petit soleil. texto, que lidava com cura (em sentido amplo,
19
Lemba, palavra que pode significar pacificar, que não teríamos espaço, por ora, para
pacificador ou resignar-se, era uma instituição pormenorizar), casamento, regulação comercial,
fundamental para se chegar a determinadas questões diplomáticas, entre outras atribuições
dimensões do pensar kongo. Nela, iniciou-se de vulto. Parte do conteúdo do que era ensinado
Bunseki Fu-Kiau, que, nos seus manuscritos, em Lemba permanece em manifestações afro-
refere-se à severa perseguição sofrida pela diaspóricas de espiritualidade e pensamento em
instituição ao longo do período oficialmente países como Haiti, Cuba e Brasil. É também um
colonial. Há registros que conferem à escola n’kisi bastante presente (e reverenciado) nos
iniciática relevante atuação entre 1650 e 1930 — cultos dos terreiros congo-angola no Brasil.
20
em torno de quando, proscrita, teria chegado o l’heure où les institutions comme Lemba
seu declínio, enquanto grande e reconhecida terminent leur horaire journalière.
21
instituição oficial na África Equatorial, embora la chasse individuelle.
22
alguns descendentes bakongo reivindiquem a sua l’heure du sommeil.
23
existência atual. Fu-Kiau (1978) diz-nos ser l’heure des émissaires, des messagers, des
muito difícil atribuir um período histórico grands voyages ainsi que celle des attaques et
preciso à sua origem. De todo modo, Lemba des guerres.
24
caracterizou-se por ser um importante culto ou l’heure témoin du recommencement spiral du
“tambor de aflição”, de acordo com significativa temps, et des phénomènes naturels au cours de
pesquisa do antropólogo John Janzen, publicada leur évolution permanente.

8
Kunda (tukula)
Nsinsa Kinsamina

Ndimina (luvemba) Nseluka (kala)

Malo Makielo

Dingi-Dingi (musoni)

III kikongo, ‘código’ e, também, ‘hora’ —


ainda que Fu-Kiau, nas suas
O tempo-hora ensinado pelos ba-kongo,
sistematizações e análises, prefira
por meio da aprofundada tradução de
reservar o étimo kolo à dimensão
Bunseki Fu-Kiau, pode propor uma
histórico-espiralada do tempo como que
reflexão sobre a “hora que (se) abre”,
a partir de uma floresta; dimensão esta,
sobretudo, se for considerada uma
equivalentemente, chamada de tandu. O
análise, ainda que breve, em torno do que
sol apresenta seus códigos, suas
dizem as horas de mediação
presenças e suas ausências, e o/a
supracitadas. Primeiramente, a ideia de
mukongo leva para a sua existência
hora, aqui, é de um lugar nesse tempo
cotidiana a interpretação coletiva desses
que manifesta e é manifestado pelo sol.
códigos. Tal interpretação é aprendida,
É comum, no pensamento kongo,
ensinada, compõe textualidades no/do
inclusive, a comparação entre pessoas
mundo e propõe um trajeto filosófico
(ba-ntu) e o sol, como se existir,
kongo. Somado a isso, há o espaço para
“mukongomente”25, fosse emular os
movimentos e posições solares, a invenção e para outras projeções dentro
seguindo-se a poética filosófica do de um determinado entendimento,
culturalmente acordado, do que expõem
cosmograma mergulhada na circulação
musoni-kala-tukula-luvemba. A hora, as cifras do tempo-sol. Destarte,
portanto, já é uma abertura do sol, no gostaria, por ora, de estabelecer uma
sentido de apresentar uma compreensão distinção, a partir da bifurcação
quanto ao seu caráter movediço, tanto apresentada pelo próprio pensamento,
quanto quem o lê e tanto quanto a entre o fato de ‘a hora abrir-se’ e o ato de
ambiência de quem o lê. Em alguma ‘abrir a hora’.
instância, trata-se de códigos cifrados A hora abrir-se significa o tempo abrir
(kolo) pelo fluxo e (re)posicionamento uma fenda no seu tecido (constituído
do sol. Aliás, kolo, pode designar, em pela constância dos fluxos), na medida
25
O neologismo reúne o termo pessoa kongo à possibilidade efetiva e legítima de humanidade,
(mukongo) e o característico sufixo adverbial unicamente, a partir da auto-determinação alvi-
“mente”, da língua portuguesa, com o intuito de europeia. Utilizei-o nessa parte do texto para
refutar a universalização da ideia-experiência de evidenciar a especificidade dessa forma
pessoa ou ser humano, cujos frutos são colhidos, filosófica, cultural, científica, linguística ou
diuturnamente, por intermédio da hegemonia, da artística de habitar o mundo.
hierarquização e da univocidade modelar quanto

9
em que, concretamente, o sol se proveniente do incognoscível. O tempo-
desloque; é, portanto, a hermenêutica da sol, que esteve subterrâneo e submerso
motilidade do sol, diante das suas (simultaneamente) lacera o não
implicações na natureza (nzambi26) a inaugurado, a fim de trazer e re-trazer a
incluir a interioridade da pessoa kongo. poética de kalunga — força que
Tais fendas, marcos, códigos ou horas transbordou o vazio para a ativação das
são a repetição do irrepetido; é como se engrenagens ontológicas. Pássaros,
a movimentação do que há passasse, a normalmente, saúdam esse
cada dia, pelos mesmos pontos de acontecimento diário como se
encontro, cuja constância, a cada ciclo, dependesse da oferenda do seu cantar a
re-apresenta a inconstância para a continuidade disso que chamamos de
própria vitalidade do que existe, a partir aurora. Um dia, quiçá, responda-se à
do olhar da pessoa-comunidade. Destaco dúvida filosófica de David Hume e o sol
as duas horas de mais intensa mediação não nasça, contrariando o costume, pela
apontadas no desenho cosmológico ausência de reverência dos pássaros.
bantu-kongo: n’seluka e ndimina. A Ainda assim, estar-se-ia num contexto de
primeira, nseluka ou n’suka, é uma transmutações às quais tudo o que vige
abertura do tempo que traz o fazimento ou em que se possa pensar, de acordo
da imagem e fisicidade do sol como com a filosofia kongo, está destinado.
expressão vinda do insondável. Onde
Habitar a horizontalidade do mundo é
esteve o tempo enquanto os sentidos não
deparar-se com o esperado e com o
o captavam mais diretamente?
inesperado. A inauguração do não
Medeiam-se, nesse trânsito temporal, o
inaugurado, ensinada pelo tempo-sol,
não visto do ku mpemba (subterrânea
catapulta-se, também, por uma hora que
morada do que se desconhece, da matéria
precede o acontecimento de nseluka ou
escura, do intangível a partir de onde,
n’suka. Note-se, deste modo, a
supostamente, viriam, por invocação da
importância da hora makielo, que, ao
memória coletiva, as profícuas ondas de
condensar o sentido das grandes jornadas
ancestrais, fazedores da história da
e dos (re)inícios, anuncia que o tempo
comunidade, para o estímulo das
andarilho começará a sua viagem,
invenções presentes) e o visto do ku
repleta de acontecimentos, dessa vez,
nseke (dimensão mais física do mundo),
com o desperto testemunho do que é vivo
num movimento de formação do corpo
e está, agora evidentemente, sob o sol;
das coisas. Interessantemente, esse ‘dar a
não sob a sua ‘ausência-pausa’, a qual
ver’, assentado em kala, simboliza-se
conduz a outras sortes de transcurso e
pelo preto e o ‘ainda não visto’,
paisagem existencial. A segunda hora de
relacionado a musoni, associa-se ao
mediação, ndimina, apresenta o
amarelo. O sol está, antes, no não
movimento antípoda, no que concerne ao
imaginado, ao tempo em que o
amanhecer. Ela é impulsionada por
insondável é o sol, quando não se o vê,
nsinsa, hora que antecede o ocaso e
donde somente parece ser possível
prepara o mergulho do sol, anunciando,
imaginar o insondável como sol, bem
por intermédio dos caçadores (nkongo)
como conceber o vir-a-ser enquanto
da comunidade, que é chegado o
26
Embora o termo seja comumente traduzido e influência, principalmente, cristã. O autor traz à
interpretado como um equivalente para “deus”, baila a ideia de natureza, mudança, morte,
Fu-Kiau, em Makuku Matatu, precisamente, qualquer e todo evento, ou seja, “tudo o que
apresenta significações que foram, segundo ele, acontece”, principalmente, sobre bases naturais,
ocultadas, em face da presença colonial e da para a palavra nzambi.

10
momento diário da “caça individual” para uma nova nascença, ou seja, para
(nkondo akati), a qual, no limite, diz que se realize o dingo-dingo —
respeito a cada mukongo que, incessante processo de (re)ida e
estimulado/a pela longa e abrangente (re)vinda a que tudo o que é vital subjaz.
fulguração do sol, passou toda uma Parece que a única possibilidade de
jornada a olhar para fora de si. Uma permanência dá-se por intermédio da
instituição de iniciação à cosmologia falta, do vácuo daquilo mesmo que
kongo como a Lemba termina as suas permanece (embora, sempre,
atividades diárias aquecidas por ntangu “outramente”). O habitual fim do corpo
(sol). Todo um modo de estar no mundo do sol é como a ecdise das serpentes, as
aguarda, com alguma atenção, a quais mudam de pele, movimentando a
desintegração do sol, na hora ndimina, sua história biológica, para viver.
para que o negror da noite vista a Observe-se que todas as horas,
natureza, na qual também se inserem usualmente, demarcadas pela reflexão
sentimentos e intenções agora temporal kongo, são aberturas para que
anoitecidos. Trata-se de levar ao não se pense sobre a ininterrupta cinemática
visto toda uma história que se viveu, na qual, fatalmente, está-se, bem como
resfriá-la na maneira noturna de falar ao para que o comportamento ative-se em
mundo, e, oxalá, fazê-la (re)viver, ao confluência com tal pensamento integral
lado das novas histórias, quando o dia (uma vez que o corpo inteiro deve
recolorir os entes. O anoitecer absorvido pensar[-se]). É importante salientar que
no pôr-do-sol é uma preparação mais as horas abertas, assim como os estágios
didática da natureza para a morte (fwa), ontológicos, mesclam-se, interpenetram-
cujo zênite está no dingi-dingi, assim se na coreografia das circunstâncias. O
como o ápice da vida, isto é, o seu meio- que pode ser o nascimento de um evento,
dia, apresenta-se na hora kunda. A hora também, pode guardar em si o fim de
dingi-dingi, espécie de meia-noite e determinada manifestação, o cume de
momento de explorar o mundo sem outra coisa, e a meia-noite silente e
corpo, é, também, a hora de parar misteriosa de algo.
(dingalala). Por ser dingi duas vezes —
dingi-dingi —, parar é re-parar. A Se por um lado, ‘a hora abrir-se’ diz
centralidade da paragem (quanto a respeito a vivenciar a horizontalidade do
movimentos externos, mas não quanto a mundo, informada pelos sentidos,
ir para dentro — neste sentido, a sentimentos, inteligências e cultura, que
exploração do mundo é perscrutar sorvem frontalmente a ubicação do
interioridades) é prognosticada pela mundo e participação na natureza, por
despedida do sol, o qual, em instantes, outro lado, ‘abrir a hora’ é uma ação
deitará na ausência, recolhendo a vertical diante do que não está dado.
consciência do firmamento. A ciência, Trata-se, pois, de abrir um espaço na
agora, dá-se por meio do que não está, e fluidez da existência para propor o
não, preferencialmente, pelo que a razão próprio sol. Este sol não se desconecta
distingue e nomeia. Ndimina é a perda do do sol comum (o que, de todo modo, não
corpo do sol; e uma parte de nós se vai seria possível), mas faz luzirem obras
com aquela luz que parece inesgotável, e/ou feitos de quem conseguiu
mas precisa cessar, ciclicamente, para re- entrecruzar o que foi aprendido numa
ser. O parar e re-parar inscritos no dingi- tradição com o que advém da
dingi, aonde leva a hora ndimina, singularidade. É isso a verticalidade: a
permitem que se refortaleçam os fluxos seta apontada para cima concerne ao que
ainda não foi criado, ao corpo que ainda

11
cresce, e a seta apontada para baixo diz kongo, é um sistema de sistemas (kimpa
respeito à conexão com a ancestralidade, kia bimpa) e, como tal, está apta a
cujos corpos repousam abaixo da terra. conceber/inventar novos sistemas,
A/O mukongo verticalizado/a articula o mecanismos, ferramentas, artifícios,
que ouviu do outrem coletivo (do qual obras e ações. De então, no tukula /
ele/ela faz parte) com a particularidade kunda / lulendo de sua vida em
da sua própria fala (atravessada por esse (re)criação e (res)significação, poderá,
outrem). Sobretudo, a verticalidade ao chegar ao seu pôr-do-sol,
(ntelama), além de resistência (ntelama), ancestralizar-se, pois terá, de alguma
é uma intervenção no mundo a partir de maneira, feito história, e, assim, morará,
si, a trajetória colocada para que se talvez, em alguma memória de quem
chegue a uma espécie de auto-mestria ou mantém a fisicidade dos acontecimentos
auto-regência, até que se morra sem humanos (localizadamente kongo) e
mestre — para lembrar o poeta Heberto sofreu — ou sofre — a intervenção do
Hélder. Caso contrário, far-nos-ão viver seu gênio. Abre a hora quem, por fim,
e morrer, sem que tenhamos a chance de harmoniza horizontalidade e
singularizar, ao limite, a nossa incidência verticalidade, e prefere habitar o centro
no espaço-tempo. Creio que nisso (didi) da sua encruzilhada (mpambu a
consiste chegar ao zênite (tukula) da nzila) interna, sem a qual não se poderia
experiência pessoal de existir. Da hora vislumbrar algum equilíbrio (kinenga),
kunda à hora ndimina, não se é mais diante da flutuação dos pés na terra. Mas
dirigido por nada que não seja a própria reitero que nem todas as pessoas,
natureza, da qual, ao mesmo tempo, faz- segundo os ba-kongo, continuam,
se parte, não sendo esta uma força, efetivamente, a referenciar uma
exatamente, externa a si. Fora do próprio comunidade após a sua morte, como o
eixo, uma especial deferência que possa faz o sol todos os dias.
ou deva ser canalizada a alguém ou a
algo explica-se por sua função na IV
coletividade, o que não implica
hierarquização ontológica, uma vez que, O tempo-sol é lembrado na diáspora
conformemente à tradição kongo, na negra no Brasil, quando se cultua o n’kisi
comunidade: “Mfumu na mfumu; nganga Tempo, que é reconhecido por outros
na nganga” (todos os membros são nomes como Ndembwa, Dembwa,
lideranças; todos os membros são Kitembu e Muilo. Este último, assim
especialistas). A relevância de erguer-se, como Kitembu, tem origem numa das
mediando chão e expansão, é revisitada, línguas-irmãs do kikongo, a língua
na outra margem do Atlântico, quando a kimbundu. Ndembwa, em kikongo, entre
nengwa Zulmira de Zumbá, outras possíveis acepções, significa
costumeiramente, desperta os seus e as ‘resignação’, ao passo que Kitembu, em
suas aprendizes, após retornarem de um kimbundu, é ‘vento’. Muilo, por sua vez,
estado de inconsciência ou semi- é o ‘sol’ (ou a sua energia). Aí, então, de
consciência pela manifestação do n’kisi, modo direto, o tempo-sol é retomado
em seus corpos, com um inesitante noutro canto do mundo, a dançar, de
“Telama va nsi (Erga-se sobre o chão)”, outro modo, em torno da sua
pois a consciência se estabelece inventividade e permanência. Sol, vento
verticalmente. De acordo com a e resignação configuram um jogo a
elucidação de Bunseki Fu-Kiau, a pessoa combinar movimento e paragem
(muntu), a partir da perspectiva bantu- contidos na mesma força celebrada. O
culto a tal n’kisi, numa árvore, condensa

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essa percepção de que se vive o meio-dia que surgem novos. É o mesmo tempo
da vida e a meia-noite da morte, com que faz, na aldeia, girarem o sol e a lua,
interdependência, já que a árvore a ponto de outro cântico que lhe é
encontra-se tão parada quanto em dedicado indagar: “que Tempo é esse?”.
incessante movimento. As raízes
Afirma a nengwa Zulmira de Zumbá que
contatam a ancestralidade subterrânea e
é esse tempo que traz as doenças, os
o não visto, o tronco é presença vertical,
desastres, os “motivos de força maior”.
e frutos e flores são o que pode vir. Mas
E essas outras horas abertas,
tudo acontece a partir da presença, que
aparentemente, fora de hora, ao menos, a
aciona anterioridades sob a terra ou
quem se seduz pela continuidade do
devires de flores e frutos. As folhas
previsto para que não seja preciso propor
vivem-morrem aos nossos olhos, para
novo sol singular gerado de sua
que a dinâmica do que é vital prossiga
verticalidade, lembram-nos de que ainda
embebida de aparecimento,
mais inescapável que a morte é o
transmutação e mistério. Nos
movimento. A cada volta, o tempo-sol
candomblés, entre diversos cânticos
(ntangu) nos instrui, pacientemente,
direcionados a Muilo, os quais
sobre o que é, foi ou pode ser a vida. As
interligam e reinventam significações e
coisas estão ditas. Ouça lá, meu amigo
fragmentos lexicais, sobretudo,
Álvaro, que o tempo é eloquente. O que
provenientes do kikongo, do kimbundu,
não está dito é o que não está ao alcance
do umbundu e do português, há um
do sol.
cântico em português (na sua maior
parte) que se refere à embriaguez do
tempo: “Tempo está embriagado, não Referências
conhece mais ninguém…”. A aludida (e COBE, Francisco Narciso. Novo dicionário
homenageada) embriaguez do tempo português kikongo. Luanda: Mayamba, 2010.
remete-nos, diretamente, quer às suas
FU-KIAU, Kimbwandende kia Bunseki.
horas abertas — principalmente aquelas Makuku Matatu: les fondements culturels
que, visivelmente, passam de vida à bantu chez les kongo. Manuscrito, 1978.
morte e de ausência a florescimento —,
JANZEN, John M. Lemba, 1650-1930: a Drum
quer quando o imprevisto, o evento of Affliction in Africa and the New World. Nova
acentuado, o acontecimento Iorque, Londres: Garland Publishing, Inc., 1982.
desestabilizador são arremessados a MACGAFFEY, Wyatt. Religion and society in
partir do básico fato de se viver — Central Africa: the Bakongo of Lower Zaire.
ondulação precipitada, necessariamente, Chicago: University of Chicago Press, 1986.
por se estar no mundo. A embriaguez é o
piu do kikongo — ideofone que expressa
Recebido em 2020-05-30
uma ocorrência mutatória em seu
Publicado em 2020-11-13
transcurso. Não se conhece mais a antiga
forma, coisa ou estado, na medida em

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