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CIDADANIA, CRISE NA EDUCAÇÃO E AS HUMANIDADES

Alexandre Silva Virginio1

Alexandre Virginio toma como ponto de partida a relação entre educação, cidadania e direitos
humanos como premissa para sustentar a relevância das humanidades (e das ciências humanas)
para esta relação. Para ele, reconhecer tais relações são critérios necessários para a compreensão
da crise da educação e/ou da escola, sobretudo quando suas funções sociais são objeto de disputas
que colocam, de um lado, perspectivas instrumentais e/ou de mercado e, de outro, aquelas que
acentuam o seu caráter público e não comercializável. Para situar o leitor no significado desta
discussão, procura demarcar o diagnóstico da educação nacional a partir de alguns indicadores
recentes, efeitos que são das ambiguidades acumuladas historicamente entre educação nacional e
sociedade brasileira. Segundo Alexandre, tomar ciência das dimensões da crise da educação
nacional, se não da instituição escola, coloca-se como premissa necessária para formular melhor
juízo acerca dos possíveis (e iminentes) efeitos de questões centrais no debate educacional mais
recente, ou seja, aquele que remete para o conteúdo da atual proposta de reforma do Ensino Médio
(MP 746) e do movimento da Escola Sem Partido (ESP). O relevo que o autor coloca nas
contribuições das humanidades para a formação humana e sobre a importância e o papel da escola
figuram, ademais, como elementos nodais na crítica àquela reforma e às intenções (reveladas ou
não manifestas) do referido movimento.

1. Introdução
O Parlamento não gera a democracia. Esta precisa nascer e crescer na sociedade civil,
para moldar um parlamento democrático (FERNANDES, 1989, p. 98).

Neste texto proponho-me a discutir a relação entre educação e cidadania e, na sequência,


destacar a substância das humanidades (e das ciências humanas) para esta relação. Considera-se
que a compreensão de tais conexões são requisitos necessários, tanto para a compreensão da crise
da educação e/ou escola, quanto para melhor dimensionar as disputas que envolvem a definição
das funções sociais da escola. Tal relação indica, forçosamente, considerar a educação como um
direito humano, historicamente e socialmente situado. Assim, procuramos colocar acento no que
respeita a relação entre direitos humanos, educação e cidadania. Ademais, a compreensão dos
termos desta relação obedece, necessariamente, as situações e/ou fenômenos históricos que
demarcaram, sobretudo, as ambiguidades e tensões, senão ‘percalços’, da relação entre a educação
nacional e o desenvolvimento da sociedade brasileira. Cumprir estar tarefa demandaria dispor o

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Doutor em Sociologia/UFRGS; Professor do Depto. de Sociologia/UFRGS; Colaborador externo do Grupo de
Investigação de Pedagogia Social e Educação Ambiental da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de
Santiago de Compostela – Galicia/Espanha. Contato e-mail: alexvirginio@ufrgs.br Fones: 51-33685034 e 51-
999711942.
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olhar no retrovisor e mirar nossa trajetória educacional. Todavia, recuperar tais fundamentos
históricos, por mais necessários que sejam, não foi objeto, pelos menos neste momento, de nossa
atenção. Inversamente, nossa atenção teve por foco alguns indicadores, mais ou menos
quantitativos, que podem ajudar na tarefa de conhecer, senão na totalidade, certas dimensões da
crise da educação nacional e, por consequência, formular melhor juízo acerca dos possíveis (e
iminentes) efeitos de questões centrais no debate educacional mais recente, ou seja, aquele que
remete para o conteúdo da atual proposta de reforma do Ensino Médio (MP 746) e do movimento
da Escola Sem Partido (ESP). É neste âmbito, aliás, que estarei assinalando a importância da escola
e suas conexões com as humanidades.

2. Educação, direitos humanos e cidadania

A perspectiva da educação como um direito requer considerar sua oferta indiscriminada


para o conjunto da nação. Portanto, configura-se como um bem público e, como tal, sua extensão
obrigação do Estado. Considera-se o Estado numa perspectiva muito sintética e objetiva, qual seja,
em contexto de separação das esferas social e política, ele é esta instituição, mais ou menos
abstrata, normativa e material que trata do caráter público das coisas, das pessoas e dos atos tidos
como públicos. Em outros termos, ele é o organizador (técnicas científicas) e articulador da relação
entre sociedade e o próprio Estado e que favorece, amiúde, a unidade em torno da nação. É na
constituição do Estado Moderno que os direitos do homem passam a ter ordenamento jurídico,
distanciando-se da autonomia privada. À esta recaem as questões de natureza moral e ética,
enquanto aquele passa a tratar das questões de sobrevivência.
Neste quadro, a educação possui um caráter social, visto que seus propósitos dialogam com
a unidade política e moral da nação, bem como com o estágio de desenvolvimento tecnológico e
econômico do país. Apesar de no Brasil a educação pública ter assumido, preponderantemente,
um caráter instrumental (primando pela adaptação à sociedade), sua conotação depende muito da
correlação de forças de modo que o Estado assegure, não somente sua contribuição para o
desenvolvimento da nação mas, sobretudo, a formação de cidadãos cujo exercício de liberdade
política impeça que o aparato estatal não esteja a serviço de grupo privados mas, ao contrário, seja
a expressão da garantia dos interesses públicos (GANDINI, 1992).
Com esta premissa no horizonte e para além de outras interpretações, a conexão entre
direitos e cidadania paga tributo ao trabalho clássico de Thomas Humphrey Marshall (1967). A
cidadania seria a expressão, para ele, de direitos aos quais todos os homens tem direito. Dentre os
elementos que configuram estes direitos, característicos dos processos sociohistóricos, estão os
civis (liberdade individual, de expressão, de associação e de igualdade, sobretudo o direito de
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defender todos os direitos em termos de igualdade), os políticos (o direito de participação do


exercício do poder, portanto de extensão da possibilidade de participação política por parte de
todos) e os sociais (destinados a construção da igualdade de condições no exercício do conjunto
de direitos). Dentre os direitos sociais situa-se a educação, base para a mudança no modo de pensar
e participar na vida política.
O direito à educação está, aliás, na base dos direitos sociais, um pré-requisito necessário
para a liberdade civil e política, pois que o direito à liberdade de nada vale sem educação. O direito
à liberdade de palavra, destaca Marshall (1967, p. 80), “[...] possui pouca substância se, devido à
falta de educação, não se tem nada a dizer que vale a pena ser dito, e nenhum meio de se fazer
ouvir se há algo a dizer”. Nas palavras de Anísio Teixeira, de que vale o direito à palavra se o que
vai ser dito ninguém quer ouvir.
Em verdade, desde Marshall, os ‘direitos de cidadania’ passaram por desdobramentos
incorporando direitos culturais, ambientais, direito à paz, à democracia, ao mundo digital ... O
sentido ‘humano’ destes direitos remete à perspectiva da dignidade humana que corresponde ao
projeto cosmopolita e intercultural dos direitos humanos. Com efeito, a concepção de direitos
humanos é ampliada e resignificada inserindo-se nas lutas pelo direito à igualdade e de
reconhecimento igualitário das diferenças. Nesta senda, a emancipação social e a dignidade
humana resultam do diálogo entre diferentes versões de dignidade humana, mormente no que
produz de maior bem-estar social em determinado contexto cultural. Portanto, a combinação entre
‘direito’ e ‘humano’ obedece, tanto as lutas por redução das desigualdades econômicas, quanto as
lutas contra os preconceitos (dominantes) sexistas, racistas ou colonialistas (FRASER, 2002;
CHAUÍ; SANTOS, 2013)
A observação dos direitos humanos remete, desta forma, considerar valores universais,
baseados na igualdade, na justiça, na segurança, na participação cidadã, na proteção social, na
educação, no direito ao desenvolvimento e no direito a ter direitos como pressupostos de uma
sociedade democrática e responsável, socialmente e ambientalmente. Em consequência, o direito
à educação aparece como chave política para o conteúdo social e institucional desta sociedade
(CARIDE GÓMEZ, 2009). Cabe à educação oferecer ferramentas para que se possa apreender a
liberdade e a dignidade e um desenvolvimento tal, insuspeito em sua relação de reciprocidade
social e ambiental. Em suma, tal perspectiva remete para o papel integrador e de coesão social da
escola, sobretudo em contextos de crescente diversidade e desigualdade (BOLIVAR, 2008).
Pelo exposto, mesmo que sumariamente, não deve restar dúvida de que a qualidade da vida
cotidiana está associada ao desenvolvimento do espírito democrático e cooperativo, do
protagonismo e da participação exercitados no diálogo tolerante, mormente em relação ao outro,
quando não em relação a outros saberes. A garantia e/ou consecução destes valores é, ipso facto,
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processo e produto da conquista e manutenção dos direitos humanos. Considerar estes elementos
como forma e conteúdo de uma formação cidadã, sempre inexaurível, é reconhecer que o potencial
crítico e criativo do ser humano não pode transitar sem par ao conceito de cidadania ativa. Tal
cidadania funda-se na participação popular cujos efeitos sobre a dignidade humana decorrem do
conhecimento dos direitos, da observação de valores e atitudes consoantes ao respeito ao ser
humano e ao ambiente que o acolhe. Formar nesta ‘nova cultura’ desafia-nos, sobretudo os
educadores, a emergência de tempos e espaços educativos que, na consciência e vivência dos
‘direitos de cidadania’, sejam refratários à violência física e simbólica, à subordinação, à
discriminação, ao racismo, aos preconceitos, à intolerância, à injustiça social e à privatização das
decisões envolvendo questões de interesse público (SILVA; TAVARES, 2011; TEIXEIRA, 2000).

3. Crise da educação/crise da escola

As nossas escolas – em todos os níveis de ensino: do pré-primário ao superior – se


caracterizam, estrutural e funcionalmente, pela ausência de normas sociais e de padrões
de comportamentos democráticos. Elas mantêm, no essencial, [...] a feição da escola que
se formou no passado colonial e imperial. Sem serem escolas aristocráticas em seu
rendimento elas são escolas aristocráticas na morfologia. Impõem distância social e
isolamento moral em todos os planos [...]. Nelas não existem liberdade de ensino ou para
o ensino, tão pouco autêntico respeito da pessoa pela pessoa. [...] Ela molda o homem
segundo os modelos do “antigo regime”, predispondo-o para o mando intransigente ou
para a obediência boçal, para o abuso do poder ou para a subserviência (FERNANDES,
1966, p. 438-439).

Por este prisma, a compreensão das distâncias, mais ou menos acentuadas, de como o
sistema educacional brasileiro tem contribuído à qualidade desta cidadania é tarefa que requer
atenção à historicidade. De fato, as realidades, situações e/ou fenômenos socioculturais, ainda que
sem exclusividade, são produto de processos cujos elementos se entrelaçam no tempo, ora freando
a conquista e ampliação de direitos, ora conferindo energia às forças emancipatórias. Basta lembrar
as disputas que envolveram os escolanovistas, a igreja católica e a iniciativa privada, os termos da
LDB 9394/1996 e o recente PNE (2014-2024). De qualquer forma, o fato é que adentramos o
século XXI comprometendo o direito a educação (e portanto, a cidadania) da maior parte da nação.
No Brasil, historicamente, pode-se dizer que a educação é marcada pelo paradigma da escola dual:
escola rica para os ricos, escola pobre para os pobres. Neste sentido, sempre esteve presa a
condicionamentos de ordem institucional, ideológica (religiosa) ou econômica.
Em verdade, a educação obrigatória em idade própria, para todos, ainda é um horizonte por
conquistar. Durante o século XX, e mesmo agora, nossos indicadores educacionais revelam que
os marcos legais e/ou constitucionais, ainda que progressivamente inclusivos, não apresentam
paralelo em políticas públicas e/ou ações, sobretudo às de natureza financeira e pedagógica,
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capazes de garantir o domínio do conhecimento, o desenvolvimento da inteligência e dos


processos culturais que a universalidade de acesso à educação formal pode oportunizar. Isto fica
evidente se consideramos os números que denunciam nossa realidade educacional. Neles a
expressão mais visível da crise de nossa educação.
No que respeita a qualidade da educação (conceito à discutir), e apesar da melhora recente
de nossos indicadores educacionais, ainda há muito a ser feito. Dos 11 milhões de crianças de 0-3
anos, somente pouco mais de 3 milhões são atendidas em creches. A desigualdade revela-se
quando consideramos os quintis de renda. Entre os 25% mais ricos da população, 51,2% das
crianças acessam as creches. Entre os 25% mais pobres este percentual é de 22,4%. Das crianças
de 4 e 5 anos, apesar dos percentuais mais animadores2, a existência de mais de 600 mil crianças
fora da escola impede qualquer comemoração (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2016).
Nossas escolas, no âmbito da infraestrutura, revelam marcas contrastantes. Enquanto que
na rede pública temos 48,6% das escolas com laboratório de informática; 42,2% com biblioteca e
30,2% com quadra de esportes estes indicadores são, para a rede privada, respectivamente, 58,9%,
84,4% e 54,8%. Dos professores que atuam na educação básica, pouco mais de 3,3 milhões,
somente 76,1% concluíram o curso superior e 70% possuem vínculo de trabalho estável. Com
salários, em média, 50% menor do que outros profissionais recebem, some-se o fato de que pelo
menos 7 Estados e 55% dos Municípios não pagam o piso do magistério (INEP, 2012; INEP, 2013;
BRASIL, 2010; FALUS; GOLDBERG, 2011; GARCIA, 2013).
Acresce dizer que 56 milhões de brasileiros, com mais de 15 anos, não possuí sequer o
Ensino Fundamental completo. Deste total, 28 milhões tem somente até 4 anos de escolaridade.
Enquanto isto, na última década, houve a redução de mais de 1,5 milhões de matrículas na EJA
revelando, no mínimo, a discussão em torno das políticas direcionadas à esta etapa da educação
básica. Em sentido correlato, tão ou mais grave é o fato de que pouco mais de 60 % (3.587.272)
dos adolescentes, que estão entre os 15 e 17 anos, estudam no nível de ensino adequado. Do total
de destes jovens, 18,7% (1.975.819) ainda frequentam o ensino fundamental e mais de 16%
(1.713.569) está fora da escola. Registre-se, amiúde, que na população localizada entre os 25%
mais ricos o percentual dos que frequentam o ensino médio chega aos 85,6%, enquanto que na
população dos 25% mais pobres apenas 50,5% encontram-se nesta condição.
Mas, se este é o lado mais evidente da crise educacional, não se deve esquecer que há uma
contenda envolvendo o tema da qualidade desta educação ou, mais precisamente, os predicativos
(hegemônicos) que o sistema de ensino tem dispensado à formação de nossas crianças e jovens.
De modo geral, há um deslocamento real e simbólico entre os discursos dos professores e dos

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Em 2013, 84,9% das crianças de 4 e 5 anos frequentavam a escola (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2015).
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alunos (geração nintendo/Milennialls x geração ‘não entendo’). As escolas desenvolvem projetos


que pouco dialogam com o que os jovens vivem, conhecem ou manifestam como esquemas de
percepção, avaliação e classificação do mundo, sua linguagem, expressividade ou
performatividade corporal. Temos então perturbações (reprovação, evasão, incivilidades) na
legitimidade dos sistemas escolares. Faltam respostas ao desafio de como inserir a educação na
crise orgânica das sociedades globalizadas e caracterizadas, ademais, por processos globais,
símbolos universais, emoções exacerbadas, complexidade de opções, dinâmicas estas de difícil
compreensão para a população comum (LOPES, 2012).
Dito de outro modo, ainda temos realidades escolares profundamente alicerçadas no ensino
propedêutico, na desvinculação entre conhecimento cotidiano e científico; na disciplinização de
conteúdos, com tempos e espaços rígidos, com critérios de sucesso definidos pela capacidade de
reprodução de textos, enunciados e fórmulas esteriotipadas, bem como a imposição de
comportamentos standard e; baseada em uma aprendizagem mecânica que pouco ou nada pode
servir de referência em contextos diferentes daqueles previstos nos manuais de ensino. Além
disso, a quantidade do conhecimento que se supõe que deveria ser ensinado não tem levado em
consideração a capacidade e o ritmo de aprendizagem dos alunos. O resultado, em especial durante
o ensino fundamental, é uma situação em que o educando acaba por aprender, e como os
indicadores nacionais tem revelado, quase nada de quase tudo3 (CANÁRIO, 2006; DEMO, 2004;
ZABALA, 2002).
Muito da crise educacional decorre da perda da clareza quanto ao papel da escola. Ela
funciona como um mercado, inflacionando o sucesso de uns e deixando outros à mercê de seus
próprios recursos. O mundo do aluno, sobretudo o adolescente, impõe-lhe experiências múltiplas
de difícil encaixe nos papéis que a escola prescreve. Daí decorre uma crise de motivação. Com um
currículo voltado às camadas médias, tem dificuldade em dialogar com as camadas populares,
sobretudo com os pais destas classes. Na medida em que o contexto social distribui desigualmente
os recursos sociais e culturais, há uma dissociação de seus gostos e interesses com as atividades
escolares. Nestas circunstâncias, o mito da autoridade pedagógica se dilui, tendo o professor que
se legitimar continuamente diante de seus alunos (DUBET,2010).

3 Não obstante, os alunos, além do pouco da matéria que absorvem, aprendem outras coisas: aprendem que ser
aprovados nas provas é muito mais importante que saber e ter curiosidade intelectual ou motivação pelo conhecimento;
aprendem que obedecer ao professor e dizer o que ele espera é muito mais rentável que expressar suas próprias
opiniões; aprendem que, se aparecerem muito ou protestam em demasia, estarão sujeitos a um maior controle
classificatório; aprendem que, se têm sorte, podem passar sem esforço; aprendem, em suma, um conjunto de truques
que nada tem a ver com a cultura, a educação ou com o prazer de saber e descobrir (BATALLOSO, 2003).
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Deste modo, culpa-se o aluno por seu fracasso, muito em função de que a escola não
consegue problematizar as condições sociais de produção desta classe de ‘indignos’. A instituição
escolar que pretende ‘formar para a cidadania’ impõe, inversamente, um currículo cujos requisitos
atendem predicados de um processo de socialização distante do universo das classes despossuídas.
Os professores, por seu turno, mal remunerados, com formação mais ou menos adequada e presos
que estão às tramas da violência simbólica e na ideologia do mérito, raros são aqueles que destoam
da mentalidade pequeno-burguesa. Sua forma de pensar e proceder busca distanciá-los dos que
estão logo abaixo na hierarquia social, razão pela qual muitos manifestam pouco-caso para com
os ‘alunos da ralé’ que ‘não se esforçam o suficiente’. Em resultado, sem poder contar com uma
socialização que lhes aportasse as disposições que a escola exige para alcançar o sucesso, os ‘filhos
da ralé’ congregam pouquíssimas chances de construir uma relação afetiva com o conhecimento
e, quiçá, de outras possibilidades de futuro (FREITAS, 2009).
Os termos em que situamos à qualidade da educação estão inseridos em uma realidade mais
ampla. As vicissitudes de nosso atual contexto sociohistórico indica uma correlação de forças que
tem afastado o cidadão comum das esferas de decisão, bem como sequestrado, paulatinamente e
legalmente, seus direitos de cidadania. A equação das disputas pelo poder tem resultado na
concentração de riqueza, na privatização do Estado, em desvios institucionais, na degradação dos
direitos econômicos, sociais e culturais, na apatia e aumento do absenteísmo político, na crise da
representação, de repressão e criminalização dos movimentos sociais e/ou de repressão às formas
de participação e soberania popular. Além do mais, à crise política (representação e demonização)
irmana-se a crise econômica cuja sequela é a precarização da cidadania. O mais trágico é que as
interpretações hegemônicas em curso depositam no indivíduo a responsabilidade por seus
fracassos e por seus problemas. Em resultado, a justaposição destes elementos desemboca no
anonimato da dominação, ou seja, culpa-se o Estado, os Partidos e até mesmo a democracia, mas
não grupos ou pessoas.
O quadro em tela, ademais, pertence ao museu da globalização neoliberal e financeira. Nela
tudo, desde o tempo até os valores, passando pela natureza, pelos desejos e pela felicidade, pode
ser convertido na forma dinheiro. Aceita-se que tudo pode ter valor de mercado, inclusive as
decisões dos juízes! Em suma, em paralelo à indiferença em relação ao outro, vive-se o curso de
uma paranoia social que aceita racionalizar o mundo a partir de lógicas empresariais. Afinal, todos
podem ser empresários de si mesmo, não é mesmo? E isto desde que viva sua subjetividade na
busca constante por tornar-se outro, tão aceleradas e irrefletidas estão suas energias instintivas pela
profusão, e quase indiferenciação, de capitalismo e imagem (MBEMBE, 2014). É neste quadro
que temos que pensar os arranjos em disputa na educação nacional.
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Estas interpretações encontram equivalência na atual mudança técnico-científica de


natureza digital-molecular, propulsora de aceleração à velocidade na e da competição e que
suprime, quase que instantaneamente, a atualidade do conhecimento. Neste cenário, o
desenvolvimento humano sustentável é incompatível com os mimetismos, a rotina, o conformismo
e o instrucionismo presentes, hegemonicamente, em nossas escolas. Colonizada pela economia, a
educação busca sua justificativa na contribuição que oferece ao desenvolvimento daquela. A busca
de um lugar nos espaços produtivos hipertrofia a consciência dos professores, dos alunos e de suas
famílias. A finalidade da educação escolar é que se aprendam conteúdos e a linguagem formal,
independentemente se quem aprenda manifeste ser corrupto, racista, machista, homofóbico,
individualista ou autoritário. Em resultado e para além da geração de emprego e renda, conceitos,
valores e direitos sociais relacionados à vida comunitária, à saúde, à moradia, ao transporte, à
cultura, ao lazer, são pressionados para serem retirados da pauta social e/ou educacional e
transferidos para a esfera individual e restrita ao universo da vida privada.
No tempo presente, em resumo, a questão central é que mesmo com o progresso material
e tecnológico, a sociedade não sugere que vá atender com condições dignas de vida a todos. A
crise econômica, e seus efeitos deletérios, é apresentada como algo incontrolável e natural. No
entanto, deveria ser vivenciada como a forma mais perversa de violência (ZIZEK, 2015). Em
relação à crise política, por sua vez, de fundamento moral, leia-se corrupção, certos grupos de
interesses atuam, mais ou menos legalmente, para desviar seu fluxo em direção à esfera econômica,
tarefa para a qual congregam interpretações midiáticas. Neste quadro e neste jogo, a maioria da
população está distante de compreender a importância do modelo de Estado para sua qualidade de
vida. Com efeito, dissemina-se no tecido cultural, e isto em meio às disputas entre certos setores
pelo controle do Estado, um certo desejo pela normalidade, pela volta aos ritmos e rumos da vida
cotidiana.

4. A reforma do ensino médio e a escola sem partido

Nesta medida, a crise de sentido que vive a escola é uma crise de significado da educação
escolar em relação à realidade que tanto a atravessa, quanto con-figura seu entorno. Ou seja, o
livro-texto e o professor não conseguem mais mostrar e interpretar o mundo (GIMENO
SACRISTÁN, 2001; FERNÁNDEZ ENGUITA, 2004). Trata-se de um descompasso entre o texto
e o contexto, entre o currículo e a vida cotidiana, entre os conteúdos escolares e as necessidades e
demandas da vida prática. Quando muito, a escola conforma-se em atender a uma expectativa de
credencialismo ascético. Assim, cumpre apenas um papel formal e legal que as expectativas do
mercado de trabalho lançam sobre o sistema escolar, portanto de adaptação e ajustamento ao
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mercado. Em realidade, presenciamos uma relação esquizofrênica entre as demandas culturais,


cognitivas, morais e afetivas, da formação humana e os termos em que se estabelecem a relação
ensino-aprendizagem no ambiente escolar e, por suposto, da forma que se estabelece o diálogo
entre ensinantes e aprendentes. Em resultado, enquanto a escola não é a primeira preocupação dos
jovens, os meios de comunicação reificam a representação social referente às insolvências das
escolas públicas; os governos, desenvolvem políticas de educação tomando por modelo critérios
de valor parciais e descontextualizados (PISA). Por conseguinte, quer nos parecer que os sistemas
de ensino reproduzem, em muito, a domesticação da população (TORRES SANTOMÉ, 2013).
Nesta direção, as pessoas pensam a partir dos recursos, dos códigos e/ou conceitos que
dominam, que conhecem, que produzem. Na ignorância em que está submergida a população
brasileira, não é difícil imaginar que, em suas ‘análises da realidade’, lance mão de pensamentos
prontos (clichês), de categorias interpretativas ‘pensadas’, por outros. O que ocorre é que não se
faz perguntas às questões que envolvem o interesse público. E quando não se pergunta, se aceita
as respostas produzidas por outros. Em verdade, ‘uns pensam’ e outros são ‘pensados’. E qual é a
resposta oferecida à crise do ensino médio brasileiro senão aquela que enfatiza que a necessidade
das pessoas (e do país) é puramente econômica, que não há vida (ou felicidade) fora do
consumismo ou alheia ao mercado.
Em síntese, em uma sociedade em que se vive a ilusão da igualdade, a origem do
componente ‘arbitrário’ dos conteúdos que condicionam o comportamento social, matriz da
desigualdade, passa a ser naturalizado na ‘igualdade de oportunidades’ que os indivíduos partilham
na disputa por poder, dinheiro e prestígio e que, tanto mercado, quanto Estado, definem como
critérios de hierarquização social. Em essência, a legitimação da desigualdade reside na imposição
do domínio da razão e/ou do trabalho intelectual como critérios definidores do acesso, legítimo, a
todos os bens e recursos (SOUZA, 2006; BOURDIEU, 1983). Neste domínio, aliás, as ‘classes do
privilégio’ sustentam autoconfiança, autocontrole e pensamento prospectivo, disposições que lhes
conferem vantagens na disputa social por recursos escassos. Inversamente, os membros da ‘ralé’
despossuídos dos privilégios de nascimento, além dos obstáculos colocados por intempéries de
toda ordem, partilham uma socialização familiar insegura e deficiente (SOUZA, 2015). Não causa
surpresa, portanto, que a dificuldade de acesso dos pobres aos direitos de cidadania seja uma
constante. Os efeitos são conhecidos. Apesar da resiliência e desvios de alguns, a interdependência
entre desigualdades escolares e desigualdades sociais ainda se faz presente em nossas escolas.
Nesta equação, a resposta à crise educacional vem do mercado, ou seja, se não podemos mais
aumentar os recursos da educação (garantir as despesas públicas obrigatórias por exemplo) o
esforço deve dirigir-se à gestão mais racional (entenda-se eficazes no setor privado) da qualidade
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da educação. E esta qualidade é definida pela adequação da formação das massas em relação
aos níveis de produtividade requeridos pelo mercado (LAVAL, 2004).
É aqui que situamos a atual reforma do ensino médio. Ela coaduna-se à ideia de conduzir
a escola como uma empresa, reivindicando um currículo mais prático, mais profissional, mais útil
(portanto quantificável) e onde a cultura clássica (mais ou menos humanística), e de formação
mais geral, seria um luxo somente para os ‘escolhidos’. Neste sentido, ao propor a não
obrigatoriedade da sociologia, da filosofia, das artes, da música, aliado a outras arbitrariedades de
causar inveja aos piores arautos do regime de 64, o que faz é esposar a desigualdade cognitiva, à
alvura da realidade sem história, à escravidão do utilitarismo, é condenar gerações ao
obscurantismo da ignorância. Trata-se de um ensino secundarista tecnicista refratário a qualquer
estímulo à uma ‘educação conscientizadora’, o que explica a suspeição colocada sobre a presença
das humanidades no currículo do ensino médio. Em suma, é difícil imaginar uma educação de
qualidade sem uma formação cultural mais ampla, que possibilite encorajar os alunos a cultivarem
seu espírito ao longo da vida, bem como reconhecerem-se como sujeitos livres para pensar,
curiosar, criticar e autocriticar-se, criar e intervir na sociedade em que vivem. Indo além, esperar
que a educação melhore a partir de enxugamento e fracionamento curricular é minimizar as
potencialidades da população, é produzir ‘nanoeducação’, isto é, uma educação pequena só
comparável aos parcos recursos a ela dispensados ou à outorga de docência a quem não é professor
(Notório saber). Se estendermos isto para o campo da saúde é só imaginar leigos realizando
cirurgias. O saber fazer, da prática profissional, difere-se do saber ensinar este saber fazer, da
docência deste conteúdo. Gravíssimo, por mais técnica que seja uma profissão, eu preciso dos
saberes básicos. Do contrário é o aprofundamento do tecnicismo. Mais do que tudo, é visão obtusa,
que desconhece os fatores socioambientais (capital econômico e cultural das famílias),
institucionais (condições de trabalho e salário dos professores) e motivacionais (maior ou menor
desejo de aprender) que envolvem a aprendizagem e/ou o sucesso escolar. Pensar em um ensino
médio, no quadro da educação como um direito, demanda, inversamente e dentre outras
possibilidades, colocar como prioridade a assistência estudantil (cultural e financeira), visto que
sua ausência impede que muitos jovens permaneçam no sistema de ensino.
Portanto, este ‘golpe na educação’ só pode ser apreendido como expressão daqueles que,
egoístas e despóticos ao extremo (sem qualquer constrangimento por suas ações mais ou menos
autoritárias e violentas), nutrem o medo por todas as formas de igualdade, especialmente a
igualdade de inteligências. Em realidade, o que está em jogo é como a educação pode contribuir
para a criação de condicionamentos psicossociais e morais de adesão a determinado e desejável
(mercantilizado) estilo de vida fundado, principalmente, na naturalização de iniquidades
econômicas insanáveis, nas tensões políticas crônicas confinadas ao sistema político e da
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responsabilização individual pelas condições de existência (dando azo a um egoísmo moral e


psicológico submetendo os valores humanos ao olhar econômico, utilitário e instrumental).
Ademais, talvez seja possível afirmar, lembrando Florestan Fernandes, que as elites não querem a
partilha das riquezas, do poder e da cultura com os demais estratos sociais. Para tanto, defendem
que a educação prepare a massa para trabalho produtivo e que esqueça da formação para a
participação política ou para a convivência social. O trágico disto tudo é que, sem uma educação
básica consistente, suporte para a criatividade e para inovação, aberta ao pensamento alternativo,
pluralista e propositivo, nem para o mercado esta formação serve.
Não é outro o motivo, aliás, que mobiliza aqueles que conduzem os estandartes do
movimento Escola Sem Partido. Ao suporem e acusar os professores de ‘doutrinadores de crianças
e jovens passivos’, mais do que tentarem culpabilizar e criminalizar os docentes pela singularidade
dos pensamentos e das ações de seus alunos, reforçam na cena política e educacional a ideia de
que a qualidade da escola (pública) é comprometida pela postura ideológica dos professores. Estas
inibições ao trabalho docente e de defesa de direito dos pais sobre a educação religiosa e moral,
apresentadas em forma de projetos de lei, atacam a liberdade de expressão e de ensinar dos
docentes, portanto sequestram direitos constitucionais. Tentar restringir a educação de crianças e
jovens ao que o universo familiar, por vezes sexista, conservador e preso em interpretações
metafísicas do mundo, pode aportar é impedir que a juventude aprenda a perceber o mundo a partir
do contraste de ideias, de experiências, de outros modos de pensar e de saber. É bloquear o
desenvolvimento intelectual, social e emocional de toda uma geração.
Tais projetos, portanto, danificam a formação integral para e na cidadania de crianças e
adolescentes, colocando em risco a formação de consciências e personalidades democráticas,
predicados sem os quais fica comprometido a convivência com pensamentos diferentes, com a
pluralidade de opiniões e posições. O resultado seria a diminuição da qualidade da consciência
social (crítica) incidindo, inclusive, na capacidade social de produzir ideias inovadoras e
interessantes, bem como ações correlatas. A essência da Escola Sem Partido é a imposição de uma
relação educacional basilar, trivial e despretensiosa, restrita a um academicismo insípido, tão
articulada que está a um projeto totalitário, reacionário e ultraneoliberal de sociedade (SOUZA,
2016).
A oferta da educação pública pelo Estado não pode ficar submetida ao posicionamento dos
pais. Basta assinalar a interpretação que fazem da política, muitas das quais expressão da confusão
entre religião e política, e cujo resultado é a redução da complexidade desta última a questões
maniqueístas. Se a educação é laica e a sociedade é democrática, como esperar que a escola ofereça
apenas o que os valores religiosos e morais das famílias expressam. A ação do professor expressa
sempre uma visão de mundo. Não fosse assim, como ele poderia, em ambiente democrático e
12

plural, promover a análise crítica, o questionamento, provocar o debate e fazer emergir


diferentes perspectivas, suas substâncias e inconsistências. Em verdade, como se sabe, nem a
ciência é neutra. O receio dos pais talvez esteja fundado (e isto é uma hipótese) no medo de que
os professores influenciem os alunos de tal forma que estes não se deixem influenciar! (DEMO,
2005). Quiçá esta realidade fosse hegemônica!.
A escola é um locus privilegiado, ainda que pouco explorado, de formação política, como
bem assinalou Florestan Fernandes. Alí pode-se debater temas centrais da vida em sociedade:
questões políticas, democracia e cidadania, corrupção, maioridade penal, conteúdos culturais da
educação, funções da ciência, ideologia, propriedade intelectual, sustentabilidade ambiental,
democratização da posse da terra, reforma urbana, funcionamento da economia, valorização do
trabalho, distribuição de renda, desigualdade social, desobediência civil, impeachment, violência,
conteúdo das mídias, direitos humanos, racismo, machismo ... No entanto e infelizmente, o aluno
tem sua consciência muito mais modulada pelo que o ensinante arbitrariamente recusa abordar do
que pelo que trata de modo direto. Não fosse a maioria dos docentes ser ultraconformista e
sustentar atitude acrítica, o sistema escolar apresentaria outra relação com o ‘status quo’
(GUTIERREZ, 1988).
Em verdade, seria muito mais desejável reivindicar a politicidade do ato educativo. A
política, em verdade, é o eixo que articula o projeto pessoal, educacional e social do educador,
conexão urgente e necessária diante dos tempos que vivemos. Assim, o educador em sua ‘opção
política pelo aluno’, toma partido diante da realidade social, não ficando indiferente à justiça
atropelada, a liberdade infringida, os direitos humanos violados, a democracia esvaziada, o
trabalhador explorado. Tomar partido pela justiça, pela liberdade, pela democracia, pela ética, pelo
bem comum, pela liberdade, é opção política. É o fazer político na busca de formas de consenso e
de solidariedade (GUTIERREZ, 1988). Não desenvolver a cultura cívica e crítica na escola é
sequestrar o direito à participação política da população e, assim, aumentar a aspiração por maior
participação econômica, sociocultural e política na direção do “estilo de vida” socialmente
construído (FERNANDES, 1975).
Em consequência, a tarefa da educação seria recuperar nossa dimensão humana para poder
viver em sociedade noutros termos: o da libertação política, até conseguirmos que o manejo da
coisa pública assuma relevância na vida cotidiana; o da libertação histórica, até superarmos as
alienações que se opõem ao direito de ser mais intrínseco a cada qual; o da libertação social, com
a superação das injustiças, da exploração e da violência institucionalizada e; o da libertação
cultural, até que as identidades mais singulares não encontrem obstáculos em sua contribuição à
diversidade social (GUTIERREZ, 1988).
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5. As humanidades e a importância da escola

[...] não é a sociedade que se transforma; são os homens que transformam a sociedade
em que vivem, atuando de forma socialmente organizada sobre suas condições materiais
e morais de existência (FERNANDES, 1979, p. 333, grifo do autor).

[...] é preciso tornar todas as oportunidades educacionais acessíveis a todos, deixando às


aptidões de cada um a decisão final sobre a espécie de aproveitamento educacional a ser
dado à sua pessoa” (FERNANDES, 1966, p. 129).

Dito isto, cumpre sublinhar ainda o valor das humanidades e nelas, o do conhecimento
sociológico. Este, em parceria com outras ciências humanas, é aquele que trata da construção de
um conhecimento afeito a desmistificar crenças e proposições, identificando as condições sociais
e simbólicas de sua gênese e o que as legitimam; capaz de buscar na genealogia dos preconceitos
sua desmistificação; sobre ele recai o desafio de desnaturalizar o mundo social, grifando o que
condiciona as interpretações, as estratégias, as lógicas, as motivações e as posições sociais dos
agentes, o uso desta ou daquela percepção da realidade; responsável ainda por ver o que é implícito
e contraditório no que é dito ou que disposições sociais compõem as disposições individuais; é
ciência que tem por desígnio lembrar que saberes tem história, que aprendizagens tem contexto,
que a apropriação de saberes são socialmente diferenciados, que o mundo social é o lugar do
conhecimento e do desconhecimento, da relação de força e da comunicação, da dominação e da
compreensão e, por esta senda; procurar identificar os desencontros entre situação (realidade
objetiva) e consciência (alienação), entre os processos mentais e as relações sociais, ou ainda e
mais especificamente, detectar as incongruências do sistema educacional em relação à dinâmica
sociocultural e econômica da sociedade; em suma, colocar em evidência os significados, as causas
dos fenômenos sociais, sua frequência e influência sobre os indivíduos ou grupos; por derradeiro,
fazer a sociedade refletir, pensar sobre si mesma, sobre os pressupostos, ritmos e rumos assumidos
por esta mesma sociedade (BAUMAN, 2014; DUBET, 2012; LAHIRE, 2006).
Num tempo de crise das instituições (sobretudo políticas), da confiança, ainda de cidadania
precária para muitos, de desigualdades sociais e educacionais, de consumismo, de isolamento
social, de hedonismo radical, de energias emancipatórias fragilizadas, nunca tais ciências tiveram
tanta relevância e pertinência. O capitalismo tem horror a tudo que é gratuito e, como tal, não
apresenta nenhuma preocupação com a condição humana. Portanto, é nas dobras das humanidades
(artes e na cultura) que encontramos o estímulo para pensar um mundo melhor, imaginar outros
estilos de vida, para atenuar e/ou eliminar as injustiças ou as desigualdades. Onde encontraríamos
melhores ferramentas para conhecer e expressar a dignidade humana senão na cultura, nas
humanidades, antídotos aos exclusivismos do presente e freios à razão instrumental. Onde
poderiam se desenvolver as ideias de democracia, liberdade, justiça, laicidade, igualdade, direito
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à crítica e à diferença, tolerância, hospitalidade e bem comum, senão na literatura, na cultura,


nos saberes humanísticos e na educação. As humanidades expressam aquela dimensão da
formação humana sem a qual a busca pelo dinheiro, riqueza, economia do tempo ou prestígio,
seriam paixões irrefreadas e porta aberta para a adesão a crenças irrefletidas. Sem formação
política e cultural mais ampla, fica muito difícil imaginar profissionais tecnicamente competentes
e capazes de abandonar o interesse particular face o objetivo coletivo, expressar solidariedade,
combater a exploração, defender a tolerância, reivindicar a liberdade, brigar pela equidade,
proteger a natureza, defender a justiça (ORDINE, 2016).
Se o que postulamos até aqui tem alguma relevância, não seria demais, em tempos de ações
autoritárias e perversas contra a educação e contra a cidadania em nosso país, destacar, por
derradeiro, o valor e a importância da escola. Se ela é o lugar da reprodução das desigualdades
sociais, também é o da superação das mesmas, da construção da democracia e dos direitos
humanos. Neste sentido, é a partir dela que intensifica-se o contato com as relações e ações
desencadeadas pela figura do professor e com gerações e culturas as mais diversas. É ela, escola,
que desafia-nos a pensar, a desenvolver habilidades, saberes e competências cognitivas que vão
se multiplicar e aperfeiçoar ao longo de todo o processo de formação humana. Ali, na escola,
aprende-se a indagar, a prescrever, a fazer escolhas e juízos de valor, a investigar, a lidar com
conceitos que a vida prática raramente apresentaria. É ali, no espaço escolar, que nos articulamos
com o mundo da cultura em todas as direções, ao mesmo tempo em que moldamos nossa
subjetividade e aprendemos a viver socialmente. Deste modo, é imprescindível para o
desenvolvimento da capacidade reflexiva das pessoas e, consequentemente, para o acesso às
informações, aos bens culturais e à possibilidade de participação qualificada e ativa na produção
de conhecimento e nos processos de decisão da sociedade (ALVES, 2003; LIBÂNEO, 2003;
MOREIRA, 2003; VEIGA NETO, 2003).
Nesta perspectiva, a escola se constitui numa importante ferramenta no combate à
desigualdade social e a todas as formas de injustiça, sobretudo no combate à pior delas, aquela
causada pela ignorância. O acesso e a permanência no ambiente escolar é uma oportunidade
inigualável de conhecer o direito a ter outros direitos, premissa no caminho que desemboca na
conquista dos mesmos. É nela que podemos aprender a respeitar a igualdade de gênero; a fazer
projeções sociais mais igualitárias; a construir conhecimentos e habilidades necessárias para
ocupar espaços no mundo do trabalho; a combater e a rechaçar todas as formas de manipulação,
de preconceito e de autoritarismo; a compreender as regras que definem o quadro injusto em que
se dá o jogo social e as possibilidades de transformá-lo; a despertar para o valor do conhecimento
dentro do debate dos interesses e das questões presentes no espaço público; a organizar e a
direcionar os movimentos reivindicativos dos injustiçados de modo a oferecer plausibilidade e
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oportunidade de êxito para os mesmos; enfim, a escola nos oferece o acesso à potencialidade
diferenciada e disruptiva do conhecimento, antessala da inconformidade, da revolta, do
questionamento, da insubmissão, do irreconhecimento de fronteiras intransponíveis, da
incomodação da acomodação que permite a dominação (DEMO, 2005; 2002).
Portanto, considerando o cenário político e cultural que vivemos, se a crise da escola é uma
realidade e sua potência, mais ou menos explorada, uma imperiosa necessidade, nunca foi tão
urgente que a defesa da escola pública, laica, universal, plural, democrática e republicana ocupe
lugar central nas lutas pela cidadania em nosso país. Nesta tarefa, e isto é algo para se pensar
enquanto desafios à laicização do Estado e secularização da cultura, talvez fosse oportuno
considerar uma das preocupações de Florestan Fernandes, qual seja, como remover os obstáculos
colocados à interpretação racional da realidade. E isto tudo requer ser tão mais imediato se
considerarmos a herança sociocultural (ultraconservadora) agora emergente e, ao que parece,
hegemônica. Talvez fosse o caso de reivindicar educação pública gratuita e exclusiva (das verbas)
para todos, proposta sustentada por Florestan. Afinal de contas, “[...] assim como devemos nos
preocupar com o ‘conhecimento a ser produzido’, devemos dedicar igual interesse às
possibilidades de sua aplicação prática e do seu emprego a fins políticos” (FERNANDES, 1975,
p. 132).
Por certo que a escola não pode tudo, além do que é limitada na tarefa de compensar as
falhas do sistema político e da cultura política, tão associados que estão ao realismo e ao
pragmatismo (NOGUEIRA, 2013; BRIGHOUSE, 2011). No entanto, o ethos da escola e como
está organizada, tanto quanto a forma como compõe e experimenta seu currículo, pode influenciar
o modo como as crianças e os adolescentes percebem seu papel nela. Nestes termos, além de
oportunizar o desenvolvimento da autonomia, da liberdade, da autossuficiência e do respeito
próprio, ela pode mais ainda. Pode, dependendo da qualidade dos processos de ensino, garantir às
crianças e jovens o direito de florescer na vida e poder ter condições de refletir sobre a vida que se
leva. Isto remete à possibilidade de avaliar e optar por modos de vida alternativos, sobretudo de
sustentar como critérios de escolha a dignidade, a decência, o respeito mútuo e a justiça
(BRIGHOUSE, 2011). Em um mundo que dá testemunhos cotidianos de regressão do processo
civilizatório, nunca a educação do espírito necessitou tanto da prática de uma democracia
governante desde os primeiros anos de vida.

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