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Caso Baczkowski x Polônia na Corte Europeia de Direitos Humanos.

A defesa da garantia à liberdade de reunião e associação das minorias sexuais

Elaborado em 07/2009. Página 1 de 2»Hellen Priscilla Marinho Cavalcante


1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DA CORTE EUROPEIA DE DIREITOS
HUMANOS

A Corte Europeia de Direitos Humanos, ou Tribunal Europeu de Direitos Humanos, foi


instituída no ano de 1959, por meio da Convenção para a proteção dos Direitos do
Homem e das Liberdades Fundamentais, mais conhecida apenas como Convenção
Europeia dos Direitos Humanos, a qual entrou em vigor em setembro de 1953 e cuja
elaboração coube ao Conselho da Europa. Sua sede fica na cidade de Estrasburgo, na
França e, atualmente, é composta por quarenta e sete países, dentre eles a Polônia,
Estado demandado no caso em pauta.

Os autores da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ao longo de seus diversos


artigos, preocuparam-se em englobar diversos direitos civis e políticos, como também
em incluir um sistema que garantisse o cumprimento e o respeito de tais direitos pelos
Estados signatários. Dessa forma, três instituições foram designadas para assumir tal
supervisão: a Comissão Europeia dos Direitos Humanos (atualmente extinta), o
Conselho de Ministros do Conselho da Europa, formado pelos Ministros das Relações
Exteriores dos Estados-membros, e a Corte Europeia de Direitos Humanos.

É relevante mencionar que, assim como no direito interno de diversos países, em que
emendas às Constituições são aprovadas no intuito de acompanhar as mudanças e
evoluções da sociedade que devem representar, protocolos podem e são adotados à
Convenção Europeia, os quais ampliam ou modificam o seu corpo normativo.
Atualmente, existem quatorze protocolos à Convenção, mas apenas treze foram
adotados, visto que o Protocolo n. 14, o qual dispõe sobre o sistema de controle da
Convenção, ainda não foi ratificado por todos os membros signatários, sendo este o
requisito para a sua entrada em vigor. [01]

De acordo com o artigo 20 da Convenção, o número de juízes da Corte é igual ao


número de Altas Partes Contratantes, isto é, de Estados membros do Conselho da
Europa. Segundo o artigo 22 do mesmo documento, são eles eleitos pela Assembléia
Parlamentar relativamente a cada Alta Parte Contratante, por maioria de votos,
cumprindo um mandato de seis anos, sendo permitida a reeleição. Por outro lado, um
juiz pode também ser destituído, caso o restante dos juízes, por maioria de dois terços,
considere que aquele não preencheu os requisitos exigidos para desempenhar de forma
correta e satisfatória a sua função. É importante aqui ressaltar que um juiz não
representa o seu Estado de origem, agindo de acordo com o seu próprio conhecimento
jurídico e pessoal.

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direito dos investimentos internacionais

Em relação à competência atribuída à Corte, depreende-se do artigo 32 que esta pode


exercer tanto a função jurisdicional quanto a consultiva, por meio da interpretação e
aplicação do disposto na Convenção e em seus protocolos, exemplificado pelo
proferimento de sentenças e elaboração de pareceres. [02] Faz-se necessário salientar
que, no tocante às decisões emitidas pela Corte, estas não se restringem apenas a
declarar se houve ou não uma violação a determinado direito contido na Convenção,
como também buscam esclarecer o sentido das normas aí contidas, a fim de que os
Estados Partes possam cada vez mais observá-las em seu direito interno.

No que tange à capacidade jurídico-processual para acionar a Corte Europeia de


Direitos Humanos, percebe-se aí a grande diferença entre esta e outras cortes
internacionais. Além de o próprio Estado ser capaz de submeter ao Tribunal qualquer
violação aos direitos da Convenção, tal prerrogativa é conferida também aos indivíduos,
os quais possuem acesso direto, condição conhecida como jus standi, à Corte,
característica que se deve à adoção do Protocolo n. 9 no ano de 1990, hoje sucedido
pelo Protocolo n. 11. A respeito das petições individuais, cita-se o artigo 34 da
Convenção, o qual reza:

O Tribunal pode receber petições de qualquer pessoa singular, organização não


governamental ou grupo de particulares que se considere vítima de violação por
qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenção ou nos seus
protocolos. As Altas Partes Contratantes comprometem-se a não criar qualquer entrave
ao exercício efetivo desse direito. [03]

Com relação ao Protocolo n. 11, este entrou em vigor em 01 de novembro de 1998 e


trouxe profundas alterações à estrutura da Corte Europeia. Segundo os ensinamentos de
Trindade, foi este protocolo "o responsável por consagrar o jus standi de pessoas
singulares demandantes perante a Corte" [04], proporcionando uma igualdade entre as
partes.

Ademais, o Protocolo n. 11 criou uma nova Corte Europeia, uma vez que esta substituiu
a Comissão e a antiga Corte, tornando-se o único órgão jurisdicional da Convenção
Europeia, objetivando fortalecer e agilizar o mecanismo de proteção dos direitos
contidos nesta, levando em consideração principalmente o crescente número de casos
submetidos ao Tribunal. Relevante é mencionar que o citado protocolo não extinguiu o
Comitê de Ministros, mas restringiu o seu campo de atividades, já que a decisão a
respeito da possível existência de violação da Convenção, em relatórios a ele
submetidos, foi suprimida, cabendo atualmente ao Comitê apenas a fiscalização do
cumprimento das sentenças proferidas pela atual Corte.

Destarte, qualquer Estado membro signatário da Convenção, assim como qualquer


particular que se considere vítima [05], pode acionar o Tribunal em Estrasburgo, através
da apresentação de suas queixas. No entanto, alguns requisitos devem ser observados,
como o esgotamento de todas as instâncias de direito interno do Estado demandado, o
transcorrer de no mínimo seis meses desde a última sentença no país de origem, como
vem disposto no artigo 35 [06], além do fato de que a violação alegada pela vítima deve
ser necessariamente a um direito expressamente contido na Convenção Europeia.

O pronunciamento a respeito da admissibilidade das petições, que anteriormente ficava


a cargo da Comissão Europeia de Direitos Humanos, é atualmente tarefa exclusiva da
nova Corte Europeia, inovação trazida também pelo Protocolo n. 11. Dessa forma, é de
inteira responsabilidade do Tribunal avaliar se a petição apresentada está em
conformidade com os requisitos mencionados na Convenção. Uma vez julgada
inadmissível, a questão refutada não pode mais ser submetida à Corte.

Ao proferir a sentença relativa ao caso submetido, a Corte obriga o Estado demandado a


cumprir fielmente aquilo que foi decidido, cabendo ao Comitê de Ministros do
Conselho da Europa supervisionar se a execução está sendo verdadeiramente realizada,
conforme aduz o item 2 do artigo 46 [07] da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
É importante ressaltar que tal comitê não tem o poder de utilizar-se da força para fazer
com que um Estado cumpra a sentença elaborada, porém, como última medida a ser
adotada, tem a capacidade de expulsá-lo do Conselho da Europa. [08]

2 EXPOSIÇÃO FÁTICA DO CASO

Em 16 de dezembro de 2005, Tomasz Baczkowski, Robert Biedron, Krzysztof


Kliszczynski, Inga Kostrzewa, Tomasz Szypula e a Fundação pela Igualdade (Fundacja
Rownosci) [09], organização não-governamental polonesa atuante na defesa dos direitos
de homossexuais, lésbicas e bissexuais, ingressaram com uma petição perante a Corte
Europeia de Direitos Humanos contra a República da Polônia. Os peticionários
alegavam que o seu direito à reunião havia sido violado (artigo 11 da Convenção
Europeia) e que haviam sido tratados de forma discriminatória (artigo 14), além de não
terem tido acesso a nenhum remédio judicial em tempo hábil (artigo 13), a fim de
realizarem a programação pretendida dos eventos a serem explanados. Já sob os novos
ditames do Protocolo n. 11 à Convenção Europeia, a própria Corte, após exame
analítico dos requisitos necessários, declarou o caso admissível em 05 de dezembro de
2006.

O tema central do caso referia-se à proibição dada pelas autoridades polonesas à


realização de marchas de cunho pacífico com o propósito de alertar a opinião pública a
respeito da discriminação contra diversos grupos minoritários, incluindo minorias
sexuais, étnicas e religiosas, como também contra mulheres e deficientes. As referidas
marchas ocorreriam nos dias 10, 11 e 12 de Junho de 2005, segundo a intenção dos
demandantes, em Varsóvia, na Polônia, durante as festividades da campanha "Dias de
Igualdade", promovida pela própria Fundação pela Igualdade.
Em 10 de maio de 2005, os organizadores reuniram-se com as autoridades do Conselho
Municipal de Varsóvia, as quais foram informadas de como seria o provável itinerário
do evento. Faz-se importante aqui citar que, de acordo com a Lei polonesa das
Assembléias, aqueles que queiram organizar reuniões devem submeter a referida
requisição, no mínimo, trinta dias antes da data prevista para o seu acontecimento. Deste
modo, alguns dias após a reunião, na qual receberam instruções do Gabinete do Prefeito
de Varsóvia a respeito dos requisitos que deveriam preencher para organizar a
manifestação, os demandantes solicitaram permissão ao Gabinete de Tráfego da cidade
para a caminhada.

No entanto, no dia 03 de junho de 2005, o Secretário de Tráfego, em nome do então


prefeito de Varsóvia, Lech Kaczynski, recusou-se a conceder permissão para a
realização da citada marcha, alegando que os organizadores não submeteram o chamado
"plano de organização de tráfego", o qual, segundo o secretário, teria sido requisitado
aos demandantes, fato negado por estes.

Durante o intervalo entre o pedido de permissão e a recusa, o jornal polonês Gazeta


Wyborcza, de veiculação nacional, publicou, em 20 de maio de 2005, uma entrevista
com o prefeito Lech Kaczynski a respeito do assunto. Este declarou, de antemão, que
baniria a demonstração de qualquer forma, afirmando que não haveria nenhuma
propaganda pública a favor do homossexualismo, por considerar que isso não
corresponde ao exercício do direito à reunião. A seguir, trechos traduzidos da citada
entrevista [10]:

Entrevistador:A Lei das Assembléias afirma que a liberdade de reunião somente pode
ser restringida se uma demonstração envolver perigo à vida ou um grande perigo à
propriedade. Os organizadores da marcha escreveram algo a respeito no pedido que
demonstraria a existência de tal perigo?

Prefeito:Não sei, não li o pedido. Mas eu banirei a demonstração independente do que


eles tenham escrito. Eu não sou a favor da discriminação sexual, por exemplo, no caso
de arruinar as carreiras profissionais das pessoas. Mas não haverá nenhuma propaganda
pública de homossexualismo.
Entrevistador: O que o senhor faz nesse caso é exatamente discriminação: o senhor
torna impossível para as pessoas exercerem suas liberdades somente porque elas
possuem uma orientação sexual específica.

Prefeito:Eu não as proíbo de demonstrar, isso se elas quiserem demonstrar como


cidadãos, não como homossexuais.

(…)

Entrevistador:É correto que o exercício dos direitos constitucionais da população


dependa das visões dos que estão no poder?

Prefeito:No meu ponto de vista, propaganda de homossexualismo não se equivale à


liberdade de reunião de um indivíduo.

Na mesma data da recusa, os organizadores informaram ao prefeito sobre a intenção de


realizar reuniões [11] em sete praças diferentes da cidade, no dia 12 de junho de 2005,
das quais quatro protestariam contra a discriminação de minorias, ao passo que as
demais protestariam apenas contra a discriminação da mulher. Três dias após o
comunicado feito pelos organizadores, o prefeito permitiu que fossem realizadas as
assembléias referentes ao combate à discriminação da mulher, porém baniu a realização
das manifestações contra a discriminação de minorias, baseando-se no argumento de
que tais manifestações deveriam ser realizadas longe de pistas de tráfego.

Outrossim, carros com alto-falantes seriam utilizados, porém, segundo as autoridades


polonesas, os organizadores não informaram onde os veículos seriam estacionados nem
como o fluxo de pessoas e de carros seria organizado na área. Finalizando a sua
argumentação, o prefeito afirmou que outras assembléias, com propósitos distintos,
seriam organizadas no mesmo dia em que as pretendidas pelos demandantes e, com o
intuito de prevenir possíveis choques violentos entre os participantes, optou por negar
permissão às últimas.

Em relação às outras assembléias mencionadas pelo prefeito Kaczynski em sua


argumentação, cabem aqui algumas considerações a respeito do seu teor. Seis reuniões
foram realizadas por outras organizações, em praças de Varsóvia, com o aval das
autoridades polonesas. As ditas demonstrações ocorreram um dia antes do previsto, em
11 de junho, e seus temas incluíam, dentre outros, ideias contra a edição de leis
favorecendo a união estável e a adoção de crianças por casais homossexuais, além de
protestarem veementemente contra a propaganda de união estável entre homossexuais.

Contrariamente à decisão dada pelas autoridades polonesas, a marcha organizada pela


Fundação pela Igualdade ocorreu, juntamente com as permitidas assembléias contra a
discriminação da mulher. A caminhada em prol das minorias sexuais e outras ocorreu
em 11 de junho de 2005 e obedeceu ao itinerário previsto e apresentado em 10 de maio
do mesmo ano, contando com a participação de mais de três mil pessoas.

2.1 APELAÇÕES

Ainda que os demandantes tenham concretizado a realização da marcha, a permissão


para tanto não foi concedida. Desse modo, em 28 de junho de 2005, a Fundação
demandante ingressou com apelação perante a Junta de Apelação do Governo Local
contra a permissão negada em 03 de junho de 2005. A apelante alegou que a decisão
tomada pela Prefeitura de Varsóvia limitava o direito de reunião e que teria sido
influenciada por razões ideológicas, o que contraria os princípios da democracia que
devem permear uma república.

Quanto às assembléias banidas pelo prefeito, os organizadores também ingressaram


com apelação junto à Governadoria da Província, em 10 de junho de 2005, afirmando
que tal atitude violava o seu direito à reunião garantido pela Constituição polonesa e que
as assembléias eram de cunho inteiramente pacífico. Nesse sentido, é válido fazer
menção ao que dispõe o artigo 57 da referida Constituição, o qual aduz que "a liberdade
de reunião pacífica e a participação nas ditas reuniões deverão ser asseguradas a todos.
Limitações a tais liberdades poderão ser impostas por meio de estatutos". [12]

Em relação aos argumentos mencionados pelas autoridades polonesas, de que os


organizadores teriam que submeter um documento esclarecendo como o movimento de
carros e pessoas seria disposto, estes afirmaram que as reuniões seriam imóveis, não
havendo nenhum trânsito de pessoas de um lugar para outro.
Em 22 de agosto de 2005, a Junta Local invalidou a decisão emitida pelo prefeito de
Varsóvia, declarando que a mesma era ilegal. Nos autos averiguados, considerando os
argumentos e documentos providos por cada uma das partes, a Junta não encontrou
nenhuma menção a um plano de organização de tráfego a ser obrigatoriamente
elaborado e submetido pelos organizadores das dita marcha.

Do mesmo modo, a Governadoria, em 17 de junho de 2005, decidiu a favor dos


apelantes, invalidando a decisão de 09 de junho de 2005 proferida por Lech Kaczynski
contra as assembléias. Foram observadas violações a procedimentos administrativos,
além do fato de o prefeito ter informado primeiramente à mídia a respeito de suas
decisões, conforme pôde ser observado da entrevista concedida ao jornal. A
Governadoria considerou que o argumento referente a evitar possíveis choques
violentos entre os manifestantes das várias assembléias era infundado, concluindo que a
decisão de banir uma assembléia deveria ser o último recurso a ser empregado, por
radicalmente restringir a liberdade de expressão.

Contudo, apesar do êxito alcançado com as apelações, no que concerne a invalidação


das decisões tomadas pela Prefeitura de Varsóvia, tanto a Junta Local como a
Governadoria da Província decidiram não dar prosseguimento aos procedimentos
apelatórios. O motivo alegado foi o de que as decisões por elas proferidas ocorreram
após as datas das demonstrações, carecendo assim de propósito de continuidade.

2.2 JULGAMENTO PELA CORTE CONSTITUCIONAL POLONESA

O parágrafo 1º do artigo 79 [13] da Constituição da Polônia reza o seguinte:

De acordo com os princípios especificados por lei, aquele cujos direitos ou cujas
liberdades constitucionais tenham sido transgredidos, terá direito a apelação perante o
Tribunal Constitucional para seu julgamento em conformidade com a Constituição ou
outro ato normativo, sobre o embasamento que uma corte ou órgão de administração
pública tenha proferido decisão final sobre suas liberdades ou seus direitos ou sobre
suas obrigações especificadas na Constituição.

Observando o disposto no artigo acima, em 18 de janeiro de 2006, a Corte


Constitucional da República da Polônia examinou o pedido trazido por seu ouvidor com
vistas a determinar se havia compatibilidade entre os requisitos impostos a
organizadores de eventos públicos, como descrito na Lei de Tráfego polonesa, e os
ditames atinentes à liberdade de expressão, contidos na Constituição e na Lei das
Assembléias. De acordo com a legislação específica daquele país, apenas os eventos
públicos que provoquem problemas de tráfego ou necessitem de uso especial da via de
tráfego carecem de autorização para serem realizados.

Em seu julgado, a Corte expôs que a Lei de Tráfego é falha ao incluir no mesmo rol
diversos tipos de eventos, tais como assembléias e competições esportivas. O direito à
reunião, na argumentação apontada pelo egrégio tribunal, é um direito político
fundamental, não sendo passível de regulação semelhante àquela destinada aos outros
tipos de eventos. Outrossim, ao se admitir que as assembléias devam receber permissão
para serem realizadas, atendendo ao exposto na supracitada legislação, estar-se-ia
atribuindo um caráter comercial àquelas, o que se mostra inteiramente contrário ao
papel que o direito à reunião exerce nas atuais sociedades democráticas.

A Corte reconheceu, destarte, que houve uma falha do legislador na produção de tal ato
normativo. Por fim, concluiu que há uma incompatibilidade entre a referida Lei de
Tráfego polonesa com os ditames da Constituição referentes às reuniões, pelo fato de
aquela não abranger o termo "assembléias" em seu corpo normativo, segundo o seu
entendimento.

3 APRECIAÇÃO DO CASO PELA CORTE EUROPEIA

Em 05 de dezembro de 2006, o caso foi finalmente admitido pelo Tribunal Europeu de


Direitos Humanos. Inicialmente, o governo polonês, parte demandada, apresentou duas
objeções à Corte. Afirmou, em primeiro lugar, que os demandantes não poderiam ser
enquadrados como vítimas, argumentando que, quando da apelação apresentada à
justiça polonesa, os apelantes não requereram nenhum pedido de indenização por danos
sofridos e, assim, em seu entendimento, não teria havido violação a nenhum direito
contido na Convenção Europeia. Dessa forma, o governo polonês alegou que, pelo fato
de a outra parte não ter requerido nenhuma espécie de compensação pecuniária em
relação ao dano sofrido, as autoridades polonesas não tinham a obrigação de prover
nenhuma reparação àquela, não sendo possível caracterizá-la como vítima. Destarte, não
poderiam ter ingressado com uma petição perante o Tribunal Europeu, supostamente
desatendendo ao disposto no artigo 34 [14] da Convenção.

Entretanto, a Corte Europeia entendeu que, ainda que a marcha tenha ocorrido, a mesma
aconteceu de forma ilegal, tendo em vista a decisão do então prefeito de bani-la. Tal
atitude poderia ter ocasionado amedrontamento nos participantes, além da possibilidade
de ter contribuído em grande parte para a não-participação de outras pessoas,
infringindo manifestamente as liberdades de reunião e de expressão dos indivíduos,
caracterizando os demandantes efetivamente como vítimas.

Em segundo lugar, o Estado polonês, em suas objeções, declarou que a outra parte não
havia esgotado todas as instâncias de direito interno do país, porquanto estes não
recorreram à Suprema Corte Constitucional do país. Todavia, a Corte Europeia refutou
os presentes argumentos apresentados, esclarecendo que, pelo fato de as decisões de
segunda instância já terem invalidado as decisões anteriores e sido manifestadas após os
acontecimentos das assembléias, não haveria propósito fundado para os demandantes
ainda apelarem para a dita Corte Constitucional. Deste modo, a Corte Europeia
considerou que todas as medidas cabíveis a serem tomadas dentro do ordenamento
jurídico polonês pelos organizadores foram, de fato, executadas.

No tocante ao esgotamento dos recursos internos, é importante citar o que Trindade


menciona sobre o assunto, ao afirmar que "a regra do esgotamento, na proteção dos
direitos humanos, só pode ser considerada adequadamente em conexão com a obrigação
correspondente dos Estados de prover recursos internos eficazes; a ênfase passa a recair
na tendência de aprimoramento dos instrumentos e mecanismos nacionais de proteção
judicial". [15]

Dessa forma, os tribunais internos devem se esforçar no sentido de desenvolverem um


papel mais ativo na implementação das normas internacionais de proteção, atribuindo-
se, dessa forma, maior responsabilidade àqueles, tanto no âmbito administrativo como
no judicial. Outrossim, com a adoção de tais medidas, há também um aprimoramento da
administração interna da justiça. O dever dos Estados de prover recursos internos
eficazes aos seus cidadãos constitui o alicerce imprescindível para que os indivíduos
reclamantes se utilizem de tais recursos, no direito interno, antes de levar o caso aos
órgãos internacionais. No caso Akdivar, de 1996, a Corte Europeia já expôs claramente
o seu entendimento acerca do sentido conferido ao esgotamento dos recursos internos.
[16]

3.2 VIOLAÇÕES À CONVENÇÃO EUROPEIA

Após analisar detidamente todas as provas oferecidas e ponderar acerca dos argumentos
apresentados por ambas as partes, a Corte Europeia de Direitos Humanos, em 03 de
maio de 2007, concluiu que houve violação por parte do governo polonês aos artigos
11, 13 e 14, correspondentes à liberdade de reunião e associação, à garantia do direito a
recurso efetivo e à proibição de discriminação, respectivamente.

Em relação ao artigo 11, a Corte declarou que, em seu entendimento, restrições ao


exercício das liberdades de reunião e associação somente podem ser executadas caso
estejam previstas em lei e sejam necessárias para os interesses de segurança pública ou
nacional de uma sociedade democrática. Assim dispõe o referido artigo:

1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de


associação, incluindo o direito de, com outrem, fundar e filiar-se em sindicatos para a
defesa dos seus interesses.

2. O exercício deste direito só pode ser objeto de restrições que, sendo previstas na lei,
constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança
nacional, a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da
saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros. O presente
artigo não proíbe que sejam impostas restrições legítimas ao exercício destes direitos
aos membros das forças armadas, da polícia ou da administração do Estado.

O Tribunal Europeu também relembrou as decisões emitidas pela Junta Local e pela
Governadoria, no sentido de invalidarem as resoluções da Prefeitura de Varsóvia, pelo
fato de não terem apresentado embasamento legal. Ademais, o Tribunal também
aclamou o julgado proferido pela Corte Constitucional da Polônia, a qual declarou ser
inconstitucional a Seção 65 do Estatuto do Tráfego em Rodovias. Em sua
fundamentação, os juízes não se olvidaram de mencionar os valores do pluralismo, da
tolerância e da busca pela expansão de ideias. A democracia deve ser encarada como o
"pilar fundamental da ordem pública europeia", ao mesmo tempo em que o "pluralismo
e a tolerância são construídos em respeito à diversidade de identidades culturais, crenças
religiosas e ideais socioeconômicos". O Estado, ainda segundo a Corte, deve exercer a
função de "garantidor central de tais princípios [17]", por meio de obrigações positivas,
compatíveis com a Convenção Europeia.

Concernente ao artigo 13, observe-se o que este reza:

Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção


tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo
quando a violação tiver sido cometida por pessoas que atuem no exercício das suas
funções oficiais.

A Corte Europeia reconheceu a invalidação promovida pelas autoridades polonesas de


segunda instância às negativas dadas pela Prefeitura de Varsóvia em relação à
realização da marcha e assembléias, porém recordou que tais decisões foram proferidas
após o acontecimento das mesmas. É importante enfatizar que, consoante já
anteriormente afirmado, os organizadores tiveram que requisitar permissão com uma
antecedência mínima de trinta dias e caso esta fosse negada, como realmente ocorreu,
estes somente desfrutariam do mencionado tempo para apresentar todos os recursos
possíveis a fim de ainda sim realizá-las.

Cabe também acrescer que, no caso em tela, as autoridades polonesas não eram
obrigadas por nenhuma lei daquele país a prover uma resposta à parte apelante em
tempo hábil, isto é, anterior à realização das manifestações, com o intuito de que esta
tivesse o seu direito a um remédio efetivo assegurado. Dessa forma, a Corte
acertadamente considerou que houve violação ao artigo 13 da Convenção.

Outrossim, a Corte afirmou, em suas fundamentações, que o dia em que se realiza uma
específica demonstração é de caráter crucial para a repercussão política e social de tal
evento perante a coletividade. Caso uma assembléia ocorra após o período para o qual
ela foi concebida, o impacto que ela causa dentro da sua esfera de debates é
consideravelmente reduzido. Conseqüentemente, o direito à assembléia também acaba
por se tornar inferiorizado diante de tal situação.
Por fim, ao analisar a suposta violação ao artigo 14 da Convenção, o Tribunal também
concluiu que esta foi realmente efetivada. A recusa conferida aos demandantes por parte
do prefeito de Varsóvia baseou-se principalmente no fato de aqueles não terem
submetido um "plano de organização de tráfego", como já ilustrado. No entanto,
conforme foi aferido pela Corte Europeia, tal documento não foi requisitado da mesma
forma aos organizadores das demais assembléias que ocorreram no dia 09 de junho de
2005, as quais tinham propósitos cristãos.

Não obstante, não se pode olvidar que apenas três das sete assembléias planejadas pelos
demandantes receberam permissão da Prefeitura para serem realizadas, ao passo que
todas as demais demonstrações previstas para aquele mesmo dia, organizadas por outros
grupos, ocorreram normalmente. É pertinente também relembrar que somente aquelas
referentes à discriminação da mulher foram permitidas pelas autoridades, não sendo
possível realizar as assembléias relativas à proteção dos direitos dos homossexuais e
minorias diversas.

A Corte também mencionou em seu julgado a polêmica entrevista concedida por Lech
Kaczynski a um jornal da Polônia, afirmando que, independentemente de qualquer
argumento utilizado na solicitação de permissão, a marcha e as assembléias organizadas
pelos demandantes não aconteceriam, por considerar que estas promoviam a apologia ao
homossexualismo. O Tribunal ponderou acerca dos motivos alegados pelas autoridades
polonesas para o dito banimento, porém não pôde relevar uma incontestável relação
entre a referida entrevista e a recusa de permissão.

Considerando que as declarações proferidas pelo então prefeito Kaczynski ocorreram


enquanto a Prefeitura analisava o pedido de permissão submetido pela Fundação pela
Igualdade e seus membros, e que a resposta negativa foi dada pelas autoridades
municipais em nome do prefeito, é inegável a existência de uma conexão entre a
entrevista concedida em 20 de maio de 2005 e a decisão de 09 de junho de 2005.
Conclusivamente, a Corte entendeu que houve violação ao artigo 14 da Convenção
Europeia, o qual versa:

O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser


assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua,
religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma
minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação.

A sentença foi declarada em 03 de maio de 2007 e o processo deu-se por finalizado em


24 de setembro do mesmo ano. De acordo com o item 2 do artigo 46, cabe ao Conselho
de Ministros do Conselho da Europa verificar se o cumprimento das sentenças
proferidas pela Corte Europeia está sendo realmente efetivado. Pelo fato de os
demandantes não terem pleiteado um pedido de indenização, a Corte não obrigou o
Estado demandado a prover reparação material pelos danos causados, conferindo à
sentença caráter eminentemente declaratório de violação dos citados artigos.

Não obstante, em várias reuniões subseqüentes à decisão proferida pela Corte, o


Conselho de Ministros incluiu o caso em sua pauta de discussões. Em sua 1043ª
reunião, ocorrida entre os dias 2 e 4 de Dezembro de 2008, os Ministros deliberaram
pela última vez em relação à matéria, com o fornecimento de informações aos seus
membros incluídas em relatórios, sobre as medidas gerais adotadas pelo país, em
decorrência do caso julgado pela Corte.

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