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O princípio de maioria na doutrina de

Hans Kelsen

João Batista Marques

Sumário
Introdução. 1. A democracia para Hans Kel-
sen. 2. O princípio de maioria segundo Kelsen.
Conclusão.

Introdução
O presente trabalho tem como objetivo
principal descrever, analisar e ter em conta
a aportação científico-teórica que fez Hans
Kelsen, ainda que seja relevante trazer à dis-
cussão toda a temática relacionada, no cam-
po do sistema de governo proposto pela
Democracia. Também é objeto deste escrito,
sem embargo de buscar subsídio acerca do
pensamento kelseniano sobre a democracia
em obras que sobre ele se puseram, o esforço
para apreender e compreender a contribui-
ção que deu à História, tendo-se como fio
condutor sua obra mestra “Esencia y valor de
la democracia”. Basicamente, as idéias desen-
volvidas por Kelsen, para tentar encontrar
as respostas para a questão democrática,
estão dispostas nos dois momentos 1 em que
o renomado mestre de Viena aborda o tema:
no primeiro caso, com a publicação de seu
livro em 1920; e no segundo caso, quando
levou a cabo a publicação de sua outra obra
intitulada “Los Fundamentos de la Democra-
cia”, em 1955, onde reitera suas anteriores
manifestações.
A obra extensa e profunda de Kelsen re-
João Batista Marques é Advogado, Profes- flete sua compreensão e entendimento de
sor, Mestre e Doutorando em Direito pela Uni- que a Democracia é, acima de quaisquer
versidad Complutense de Madrid. outras vicissitudes, um procedimento para
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a tomada de decisões políticas, seja para o no meio social, reverberando como meio
fim do bom governo do povo, ou seja para o suficiente e necessário para a formação da
fim da legitimação desse próprio sistema vontade geral.
governativo.
Por uma medida de lealdade intelectual, 1. A democracia para Hans Kelsen
é oportuno apontar que o pensamento do
autor em comento não obteve a unanimida- O primeiro que salta à vista quando se
de, tendo sido objeto de ferrenhas críticas. está a examinar o tema da democracia em
Entre aqueles que objetam as idéias desse Hans Kelsen é a premissa básica que sus-
autor, imputam-lhe a condição de um balu- tenta seu raciocínio lógico, ou seja, para ele
arte da antidemocracia. Estado e Direito significam basicamente o
Inobstante tal pensamento, teve o gran- mesmo conteúdo, já que essas duas cons-
de mentor do constitucionalismo de Áus- truções culturais do homem moderno aglu-
tria o mérito de sobrepor uma lógica consis- tinam o modus vivendi e o modus operandi de
tente na reflexão acerca do modelo demo- todo o atuar em sociedade, determinando
crático de gestão dos conflitos de interesses ambos as condutas estabilizadas e deseja-
em uma sociedade organizada e civilizada. das. Isso, precisamente, porque, em sua de-
Portanto, tal pecha há que ser rechaçada, finição de democracia, o traço característico
pois sua posição doutrinária conduz à é a participação individual nas decisões que
consciência de que a democracia é procedi- afetam ao todo, ou melhor, é o grau de en-
mental, devendo ser ela afastada, por ademais volvimento no governo da engenharia cons-
de ser equivocada, em razão de que nada tem titucional, no dizer de Sartori (2004), criada
a ver com apreciações valorativas concretas e mantida na comunidade em que cada um
de determinada realidade que haja servido dos indivíduos está submetido.
de base para as formulações em torno do tema. Um segundo posicionamento em torno
Quando Kelsen descreve sua Teoria Pura ao pensamento kelseniano dá argumentos
do Direito, está preocupado em explicar o fortes à posição de que a democracia, como
fenômeno jurídico desde uma visão distan- modo de organização e participação social,
ciada de todas as influências exteriores ao é antes de tudo um método, um procedimen-
dito fenômeno, como as influências socioló- to para permitir os debates, as articulações,
gicas, históricas, econômicas, etc. Entende transações e negociações entre as distintas
ele a Democracia, nesse particular, em ter- correntes e forças políticas que representam
mos de essencialidade de concreção, como os interesses dispersos e difusos na socie-
um modelo puramente formal de gestação e dade, com o fim de que possa concretizar,
gestão dos interesses comuns, pela prima- de um modo pragmático, o que resultar do
zia dos princípios garantidores da liberda- que aqui se denomina Vontade Política.
de do indivíduo, do fortalecimento da par- A reflexão de Kelsen realça que, inexora-
ticipação do titular da soberania, que é o velmente, Sociedade e Estado hão de convi-
povo, de maneira não direta, mas de manei- ver sob a condição de um esquema de orde-
ra a ser exercida por representantes em um nação que fixe os parâmetros que compati-
órgão articulador das decisões políticas re- bilizem liberdade e igualdade de seus parti-
levantes, mediante um método ou procedi- cipantes. Está subjacente a esse posiciona-
mento formal de tomada de decisões basea- mento um conteúdo essencial axiologica-
do na transação, na negociação, que deverá mente previsto para os fins de garantia dos
existir entre a maioria e a minoria, com o valores humanos fundamentais baseados
necessário respeito à segunda. nos ideais da Justiça e da Igualdade.
Em última instância, Kelsen entende que Kelsen (1989, p. 227), definitivamente,
a relevância da democracia subsiste latente põe de manifesto a vinculação ingente e ne-

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cessária entre a democracia e a liberdade. E mecanismo impecablemente democrá-
esse posicionamento resulta evidente, pois tico de toma de decisiones”.
o significado intrínseco do procedimento Também consiste em preocupação kel-
democrático é a garantia da máxima liber- seniana a idéia da necessidade de garantia
dade aos que estão submetidos à condição de um arcabouço, um acervo de liberdades
da natureza humana, em que o homem há fundamentais, em que funciona o modelo
de compatibilizar o binômio necessidade/ procedimental formal da democracia como
dificuldade de mútua convivência. instrumento catalisador do processo social
Hans Kelsen (1995, p. 337-338), em sua no termo participativo do governo comuni-
aportação sobre a teoria geral do Estado e tário.
do Direito relativiza a idéia de democracia A percepção de Kelsen sobre a democra-
e, como aponta magistralmente Monereo cia sói ter como componente essencial o ele-
Pérez (2002, p. XIV), parte da idéia da mutá- mento subjetivo, representado pelos atores
vel e sempre cambiante experiência históri- de todo o procedimento. Percebe ele que a
ca, rechaçando a hipótese de um valor ab- democracia só tem razão de ser caso seja o
soluto transcendente. Quer isso dizer que, calço de uma forma de manifestação políti-
em sociedade, vale a regra de que todos são ca na qual, no poder soberano de determi-
iguais, por definição. nar a gerência e o governo dos interesses
De todas maneiras, Kelsen reforça a idéia coletivos, esteja definido como titular do
de democracia como método ou procedimen- exercício do poder o próprio povo.
to para formação e obtenção da Vontade Muito possivelmente não veja Kelsen
Política da sociedade, e que, de acordo com nesse elemento essencial para a democra-
a obra citada: cia mais que um elemento cuja legitimação
“en todo caso una cuestión de proce- radica em um conceito jurídico, já que a rea-
dimiento, el método específico de cre- lidade social permite perceber variedades
ación y aplicación del ordenamiento tais de grupos humanos convivendo simul-
social que constituye la comunidad; tânea e conflitivamente, submetidos à mes-
éste es el criterio distintivo de ese sis- ma conjuntura, mas detentores de traços
tema político al que se llama propia- característicos mórficos variáveis, como se
mente democracia. La democracia no exemplifica pela existência de culturas, lín-
es un contenido específico del orde- gua, raças, etc., bem como outros atributos
namiento social salvo en la medida das sociedades humanas.
en que el procedimiento en cuestión A percepção é que o povo, termo aqui
es, él mismo, un contenido de este or- entendido como a expressão eminentemen-
denamiento, es decir, un contenido te jurídica, não é a coletividade como um
regulado por este ordenamiento”. todo. Por suposto que a idéia de povo, de
A democracia resulta, portanto, em um onde emana o poder e legitima o seu exercí-
meio capaz de promover a interação entre cio, resulta restringida em número dos que
os indivíduos e o coletivo, e entre estes e o podem participar no procedimento demo-
Estado, reduzindo a complexidade das re- crático. Também há que se ter em conta que
lações inerentes, como bem está assinalado a esse conjunto de pessoas participantes,
por Fernández-Miranda (2003, p. 28). não se pode considerá-las em sua universa-
“la democracia, pues, exige el asegu- lidade, dada a impossibilidade técnica de
ramiento jurídico de los derechos y li- participação individual nas tomadas de
bertades fundamentales, que hacen decisões. O problema que agora se permite
posible la participación política y que, levantar, naturalmente, fica resolvido por
a partir de la contribución de todos, intermédio do procedimento formal con-
legitiman la regla de la mayoría como substanciado no princípio da Representa-

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ção, ou seja, o povo, que reflete um conteúdo sor do relativismo em torno do tema da de-
jurídico, detém o poder de autogovernar-se, mocracia, o que vai determinar seu pensa-
mas exercita esse poder mediante seus re- mento em relação ao chamado Princípio de
presentantes, elegidos por um sistema de Maioria, ao que o próprio Kelsen prefere
redução da complexidade, que é o sistema denominar Princípio de Maioria e de Mino-
eleitoral. ria.
Para a intermediação, na prática da rea- Levando-se em consideração que, por
lidade política, surge a figura dos Partidos, definição kelseniana, a existência de uma
cuja definição, do próprio Kelsen, é que es- maioria pressupõe, de antemão, a coexistên-
sas instituições sociais buscam reunir e con- cia necessária de uma minoria, pode-se in-
vergir as idéias que sejam concludentes para ferir que somente é possível falar em Maio-
poder assegurar uma atuação eficiente na ria se se tem em conta que existe uma prévia
consecução da vida política da comunida- disposição da minoria com seu respectivo
de, de um modo geral e universalizante. direito de participação no processo delibe-
Outro elemento formal da democracia rativo.
que deve ser sublinhado em Hans Kelsen é É forçoso concluir que essa necessidade
o relativo ao órgão que possibilita as tran- de dar cabida a um processo deliberativo de
sações das mais diversas posições ideológi- tomadas de decisões políticas que permita,
cas. Ou, dito de outra maneira, é no Parla- dialeticamente, a participação concomitan-
mento que o povo, por intermédio de seus te da Maioria e da Minoria adquire força e
representantes eleitos segundo o processo razão de ser se, e somente se, estão todos a
eleitoral vigente, torna factível a materiali- falar de uma Democracia Representativa.
zação dos interesses individuais e coletivos Sabidamente, entendida a democracia repre-
na vontade política do Estado. É no Parla- sentativa como procedimento formal de re-
mento que o elemento subjetivo, configura- dução da complexidade política que infor-
do pelo povo, manifesta sua vontade ten- ma a vontade coletiva, posto que, na demo-
dente à formação de um conteúdo geral e cracia de identidade, ou seja, a democracia
abstrato de paradigmas de condutas da vida direta, também explicada por aquela em que
em sociedade e de gestão dos interesses co- o povo exercita, sem intermediários, o seu
muns plasmados em leis. poder soberano de constituição, fica sem
Importante posicionamento passível de sentido a existência de representantes, man-
inferência em torno ao conceito kelseniano datários atuando em nome dos titulares do
de democracia é que tal instituição do go- poder em um órgão articulador das transa-
verno dos homens pelos homens ultrapas- ções e negociações que se devem realizar
sa a mera condição de organização econô- para a imprescindível obtenção da vontade
mica, pois entende ele que, na prática soci- política desse mesmo povo.
al, desde um ponto de vista potencial, o pro- Em uma democracia de identidade, tam-
cedimento democrático, como forma da polí- pouco tem força a distinção entre Leis e
tica, admite conteúdos diversos, possibilitan- Constituição, uma vez que o titular da sobe-
do o desenvolvimento tanto de um sistema rania prescreve as condutas diretamente, e
econômico de orientação ao Capitalismo, sempre quando assim o desejar, não estan-
como de outro com orientação Socialista. do limitado por quaisquer restrições. Desse
modo, a noção de supremacia da Constitui-
2. O princípio de maioria ção perde relevância, uma vez que o titular
segundo Kelsen constituinte tem um poder prévio e ilimita-
do na formulação diuturna da política ge-
O renomado mestre austríaco é, como já ral de constituição das condutas previstas
assinalado anteriormente, um firme defen- para o pacto de convivência.

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Posição crítica à democracia de repre- que pode haver maiorias numéricas que
sentação dita que, por razão da impossibili- nada determinem, uma vez que resultam de
dade técnica da realização da democracia coalizões meramente eleitorais. E é possível
direta ou de identidade, surgem, no âmbito trazer um termo cunhado no jargão políti-
do órgão representativo articulador da von- co, “coalizões meramente eleitoreiras”.
tade do povo, qual seja o Parlamento, posi- Muito se há falado, no curso deste escri-
ções ideológicas majoritárias tendentes a to, sobre o Princípio de Maioria. Significa
obscurecer a vontade da minoria, visando para Kelsen (1995, p. 65) o referido princí-
sempre à unanimidade, surgindo, por ou- pio, em suas próprias palavras:
tro lado, também, as paixões minoritárias, “el sentido del principio de la mayo-
muitas vezes incapazes de interpor a força ría no consiste en que triunfe la vo-
suficiente para dar vazão a um mecanismo luntad del mayor número, sino en
equilibrador, em que esteja manifesto um aceptar la Idea de que bajo la acción
sistema de freios e contrapesos. de este principio, los individuos inte-
Frente a argumento tão palpável, Kelsen grantes de la comunidad social se di-
predica a efetiva garantia às minorias como viden en dos grupos fundamentales”.
método de concerto da democracia, por in- Da necessidade do confronto, não neces-
termédio da participação dessa parcela da sariamente numérico, entre maioria e mino-
vontade política, sem a qual não se pode ria, é possível reconhecer, segundo Kelsen,
legitimar a tomada de decisão. De toda sor- que o procedimento diante do Parlamento,
te, há de haver um acordo entre a Maioria e com toda sua dinâmica de funcionamento,
a Minoria na composição de uma só vonta- resultado da mecânica do contraditório, das
de manifestada pelas diferentes forças polí- controvérsias e debates, das influências
ticas que compõem o órgão parlamentar. manifestadas, dos discursos e réplicas, po-
O procedimento parlamentar para Hans sições e contraposições ideológicas, deve
Kelsen está concebido como o resultado con- constituir-se em uma ferramenta eficiente e
tingente de uma distinção sobejamente im- eficaz que tenda a viabilizar o consenso, cujo
portante e que se manifesta entre os concei- nome mais difundido é transação.
tos de ideologia e realidade. Em um primei- A transação, que retrata simplesmente a
ro suposto, ele percebe como um sistema negociação política, tem uma amplitude em
ideal da liberdade com ênfase no fato de que Kelsen, significando o modo político dialé-
a formação da vontade coletiva deve dar-se tico capacitador do embate e catalisador dos
com a maior aproximação possível à vonta- distintos movimentos de idéias. Concebe a
de dos indivíduos submetidos, não só no que articulação negociativa, sobretudo, quando
diz respeito ao procedimento, mas também esta conduz ao afastamento, à posposição
aos efeitos decorrentes dessa Liberdade. dos problemas que podem estorvar o con-
Sob esse prisma, Kelsen concebe uma senso, à coesão; com o concurso, no mesmo
noção para o significado do que é a autode- procedimento das coadunações necessári-
terminação, termo que se encontra vinculan- as que visem à busca dos elementos que fac-
te e vinculado ao ideal da Liberdade. E o tibilizem, que favoreçam, que contribuam à
definitivo, nessas questões ideais, é que, por consecução da Vontade Coletiva. A transa-
ficção, a maioria representa a decisão aqui- ção kelseniana traz a receita para todo o
escida pela minoria e que essa decisão é re- procedimento parlamentar, pois este está
presentativa da Vontade Coletiva. baseado na fixação de uma linha eqüidis-
De ângulo distinto, Kelsen reconhece a tante mediana entre os interesses que se con-
existência de outro problema, o fato de que, trapõem, que resultam da bipolarização, da
na realidade, as coisas não acontecem tal pugna entre as idéias, das forças sustenta-
qual previsto ideologicamente. Exemplifica das no debate político.

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Dando-se conta que o órgão parlamentar cínio, traz ele à colação outras objeções fei-
está composto por membros provindos do tas ao modelo de representação proporcio-
corpo eleitoral, o que se constitui em uma di- nal, que estão muito evidentes e que refle-
ficuldade no plano concreto é o problema de tem o conteúdo de sua formulação teórica
como formular um sistema eleitoral equilibra- de fundo eminentemente democrático, reme-
do e seguro, que seja capaz de dar as respos- tendo a solução para os problemas suscita-
tas que melhor resolvam as pugnas de inte- dos à necessidade de uma integração políti-
resses contrapostos no seio daquele órgão. ca resultante da sorte de coalizões eleitorais
O sistema de representação fundamen- que possam gerar o trabalho constante das
tado na proporcionalidade, segundo Kelsen, forças sociais representadas no Parlamento.
permite que cada partido participe no Órgão Conseqüência manifesta que acredita
com a força numérica que lhe há dado uma Kelsen ser de todo benéfica para o resultado
parcela do Corpo Eleitoral, ou seja, o partido, da formação do governo e sua conseguinte
no Órgão Parlamentar, representa não a inte- manutenção, havida conta de que a vonta-
gralidade do corpo eleitoral, mas a parcela de manifestada para o governo do Estado
do eleitorado que lhe deu aquela votação. consistirá, simplesmente, não na vontade de
Notadamente, o mestre da Escola de um só grupo partidário, mas, por outra for-
Viena advoga por um sistema de represen- ma, haverá que se levar em consideração as
tação proporcional para a composição dos vontades das outras agremiações partidári-
distintos ideários no seio do Parlamento. as com representação no Parlamento. E de
Assevera, inclusive, que esse tipo de méto- verdade, como assinala Kelsen, o trabalho
do é hábil e útil para a acomodação dos dois de transação é mais proveitoso no âmbito
princípios basilares reitores da vida parla- parlamentar que aquele que seria feito pela
mentária: ou bem permite intercambiar o sis- massa disforme do Corpo Eleitoral, em uma
tema de maioria; ou, por outro lado, o siste- eventual democracia de identidade.
ma de divisão em circunscrições eleitorais, A obra de Kelsen considera essencial a
o que facilitaria a obtenção de assentos na luta transacional parlamentar e que esse
bancada parlamentar pelas minorias. embate deve estar cercado de garantias de
Advém dessa posição a vantagem de que, que as minorias tenham as mesmas possi-
nas discussões e debates no Órgão Parla- bilidades e oportunidades no jogo político
mentar, estejam manifestadas as represen- para desenvolver suas propostas e projetos.
tações de todos os partidos, de conformida- Por outra sorte de situações, Kelsen pon-
de com a força numérica que sustenta a ex- tualiza alguns importantes riscos que de-
pressão das idéias políticas na sociedade. vem ser considerados no procedimento par-
Ademais, a Kelsen não há ocorrido dei- lamentar, baseado na representação propor-
xar de levantar algumas objeções às quais cional. Um dos principais problemas que
se enfrenta o sistema de representação pro- sublinha é o do bipartidarismo, em que sem-
porcional, como é o exemplo dado por ele pre se impõe uma maioria em detrimento de
de que de nada serve levar-se ao Parlamen- uma minoria, com uma conseguinte tendên-
to minorias fracas, posto que as decisões são cia à perpetuidade no poder por parte do
impostas, sem negociação, pela maioria. E, grupo majoritário, bem como um possível
de todas maneiras, que esse sistema facilita desinteresse da minoria que estaria desti-
a formação de partidos pequenos e atomi- nada a ficar sempre sem a factibilidade de
zados, o que redundaria em dificuldade poder tornar-se, eventualmente, governo.
para a formação de uma vontade política Ademais desse significativo problema
homogênea e garantidora do regular desen- da distribuição bipolar do poder entre o
volvimento das atividades parlamentárias partido majoritário e as minorias, suscita o
e de governo. Nessa mesma linha de racio- autor outra questão de transcendental rele-

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vância na rotina do procedimento parla- heteronomamente. Isso explica que, ainda
mentar, que está relacionada com o tema da que a teoria do Contrato Social, de Rousseau,
obstrução. Esse mecanismo de atuação da constitua uma ficção ideológica, segundo o
minoria Kelsen considera quase legítimo, pensamento de Kelsen, na realidade psicoló-
ainda que também o considere como um gica, ele visualiza que a democracia torna
meio que pode tornar possível entorpecer, viável a possibilidade da concórdia, do con-
ou quiçá, obstaculizar, inclusive, às vezes, senso, enquanto a autocracia sobreleva o peso
impossibilitar o processo de transação no que tem a decisão dada desde fora.
seio do Parlamento.
Em outros supostos, reconhece Kelsen Conclusão
que a obstrução, na prática parlamentária,
A modo de resumo, o princípio de maio-
possibilitou e, inclusive, alicerçou uma rea-
ria e de minoria kelseniano reforça a neces-
lidade que habilita a maioria e a minoria
sidade da constante conversação política no
para promover cada vez mais as transações
âmbito daquele Órgão encarregado da
necessárias à vida política do Estado.
articulação das forças políticas com vulto
Assim é que se pode imputar a Kelsen
na organização do Corpo Eleitoral. É o Par-
uma certa influência da vertente psicanalí-
lamento como foro por excelência da demo-
tica, sobretudo quando explica as diferen-
cracia representativa de partidos. A esse
ças entre o que é a democracia e o que é a
contínuo diálogo que torna assumível a
autocracia. Argumenta acerca da posição
transação, tende a aproximar-se ainda mais
favorável a uma situação psico-política em
daquilo que é o consenso, sempre e quando
termos de uma prévia disposição a uma acei-
as minorias hajam tido a possibilidade de
tação ou a uma recusa de determinadas or-
participação no processo decisório. E tudo isso
dens provindas de uma ou de outra.
porque, pode-se concluir, desde o pensamen-
A pregação kelseniana, enveredando por
to de Kelsen, a decisão tomada apenas com
essa tendência psico-político-social, estabe-
obediência à regra majoritária não represen-
lece que a submissão do indivíduo na de-
ta necessariamente que tal decisão tenha que
mocracia se dá pela adesão espiritual, moti-
ver com o que é a verdade, a correção ou a
vada pelo fato de que alguém se vê repre-
fiabilidade. Apenas essa decisão advém de
sentado por aquele a quem elegeu, e que a
uma regra numérica, e, sem a dialética facili-
norma criada por seu representante tem algo
tadora do consenso, pode aquela redundar
de participação sua, o que faria com que, no
em desapreço pelo método democrático.
caso, esse indivíduo se tornasse predispos-
to ao cumprimento do preceituado, enquan-
to, por outro lado, também existiria uma
adesão individual ao cumprimento na au- Notas
tocracia, mas com outra motivação psicoló- 1
Obras traduzidas ao Castellano.
gica, de índole negativa.
2
Há de entender-se o conceito de Corpo Eleito-
ral como o conjunto de cidadãos habilitados legal-
A título de síntese das diferenças entre a
mente à manifestação do direito de sufrágio.
democracia e a autocracia, o que reflete o
autor é que a primeira acaba por sobrelevar
a consciência individual do cidadão à par-
ticipação no jogo político por meio de sua Bibliografia
adesão pessoal. E isso vai se dar pela cren-
ça de que o indivíduo se considera um ator DAHL, Robert A. Poliarchy: participation and oppo-
mais na cena política. Sem embargo, na au- sition. New Haven: Yale University Press, 1971.
tocracia, o indivíduo permanece inerte à es- FERNANDEZ-MIRANDA CAMPOAMOR, Alfon-
pera da definição que lhe será outorgada so; FERNANDEZ-MIRANDA CAMPOAMOR,

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