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FAZER CENAS
Arte e Técnica da Escrita de Cenas de Cinema
JOÃO NUNES
Uma Edição
QUARTO 237
!3
Direitos
"Escrever um Filme Cena a Cena"
E-mail: joao@joaonunes.com
Site: http://joaonunes.com
Esta obra está protegida pela Lei e não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que
seja o meio utilizado, sem a autorização expressa do Autor e Editor. Qualquer transgressão à Lei
O texto deste livro reflete apenas as opiniões do autor. Nenhum animal foi morto durante a sua
escrita.
Índice
Índice ...............................................................................................................................................4
Prefácio ............................................................................................................................................5
Introdução .......................................................................................................................................6
O que faz o guionista ......................................................................................................................8
O que é um guião .........................................................................................................................10
A aparência de um guião ..............................................................................................................12
Os elementos do drama ................................................................................................................15
Uma cena é uma mini-estória ......................................................................................................18
"O SILÊNCIO DOS INOCENTES" ..........................................................................................20
O memorando de David Mamet ..................................................................................................28
"CHINATOWN" ..........................................................................................................................35
Um artigo de John August ............................................................................................................43
"ROMANCE PERIGOSO" .........................................................................................................49
Os Arquétipos ..............................................................................................................................59
O formato do guião ......................................................................................................................63
Conclusão .....................................................................................................................................73
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Prefácio
Há dois anos atrás, quando estava em Angola, alguns amigos que integram o coletivo de
produção audiovisual Geração 80, convidaram-me a dar uma aula sobre a escrita de uma cena
conteúdo que preparei para essa ação, adaptado ao formato escrito, e revisto e aumentado com
Os meus agradecimentos vão pois para a Tchiloia Lara, Jorge Cohen e Mário Bastos, os
mentores da iniciativa, e para todos os jovens participantes nessa aula, tão cheios de sonhos e de
Introdução
Neste pequeno livro "Fazer Cenas: Arte e Técnica na Escrita de Cenas de Cinema"
vamos aprender as noções básicas de uma parte essencial do trabalho do guionista: escrever uma
cena.
Na realidade, escrever um argumento, guião, ou roteiro (vamos usar as três palavras como
sinónimos, por simplicidade), é muito mais do que que a escrita das cenas. Estas são apenas o
ações.
Além disso, as cenas não são independentes entre si. Encadeiam-se umas nas outras,
como elos de uma corrente, cada uma dependendo das que vieram antes, e influenciando as que
se lhe seguem.
Mas, para o efeito dos objectivos deste livro, vamos olhar apenas para esta etapa
específica do trabalho do guionista: escrever a cena individual. Uma etapa que, em média, se
Cada cena é um desafio gigante, com exigências próprias, que combina em partes iguais a
arte do criador de estórias com a técnica do artesão das palavras. Muitos dos princípios
fundamentais da escrita de uma boa cena, que vamos aprender aqui, são comuns ao
Afinal de contas, drama é drama, seja ao nível microscópico da cena, seja ao nível
macroscópico do guião.
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personagens.
Como tal o guionista é um dos primeiros membros da equipa a trabalhar num projecto. E
sem ele terminar o seu trabalho, pouco mais pode ser feito. Nem o produtor consegue arranjar
financiamento para o filme, nem o realizador pode planear a forma de o filmar, nem os actores
O guionista pode trabalhar por iniciativa própria, criando o chamado roteiro especulativo
(ou spec script), ou por encomenda de uma empresa de produção audiovisual. Num caso ou
noutro, a base do argumento pode ser uma ideia original, ou a adaptação de alguma estória ou
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material pré-existente (de que se deverão ter os direitos): um romance ou peça de teatro, banda
desenhada ou conto curto, jogo de vídeo ou, como no filme "Lego", um brinquedo de crianças.
O que é um guião
as cenas que compõem um filme e, dentro de cada cena, as acções e diálogos dos personagens, e
normalmente entre 80 e 130 páginas. Se for escrita num formato correcto, cada página do guião
corresponde, grosso modo, a um minuto de filme. Este é um valor médio que, obviamente,
dependerá de muitos factores, tais como o tipo de estória, a relação entre ação e diálogos, e até o
da estória que estamos a desenvolver. Se o nosso guião tiver 300 páginas, saberemos que vai ser
muito difícil de vender, pois será um filme muito grande; se tiver apenas 50, dificilmente poderá
O guião não é o único documento produzido pelo guionista. Ele poderá também escrever
sinopses, escaletas e tratamentos, que são documentos que ajudam a planear a estória e entender
o filme.
O formato do guião pode variar de país para país, e até de produtora para produtora,
A aparência de um guião
apresentado de seguida, retirado do guião que escrevi para o filme "O Cônsul de Bordéus".
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!14
BORDÉUS - TARDE);
e o que nela vai acontecer - incluindo cenários, personagens, acções e movimentos, sons,
efeitos, etc.;
- Os seus DIÁLOGOS;
Mais adiante iremos ver cada um destes elementos com mais detalhe, pois precisaremos
Mas primeiro vamos fazer um pequeno exercício prático: folheie as páginas de um jornal
recente, para procurar notícias que tenham o potencial de dar uma boa estória. Podem vir de
necrologia. Seleccione a mais promissora. Tente identificar porque é que acha que essa notícia
Os elementos do drama
O mais provável é que, na selecção de notícias que fez no exercício anterior, sob o critério
subjectivo de que "dariam uma boa estória", encontremos alguns elementos em comum:
- Descrevem algum tipo de problema ou dificuldade séria que essas pessoas enfrentam;
- Mostram como essa pessoa ou pessoas resolvem, ou tentam resolver, esse problema.
Isto acontece porque todos nós temos uma percepção instintiva dos elementos dramáticos
Alguns de nós - os bons contadores de estórias - têm mais facilidade em aplicar esses
estórias, desde que nascemos e ao longo de toda a nossa vida. Vem da nossa própria identidade
mais íntima como seres humanos. Os nossos antepassados, sentados em redor da fogueira há
muitos milhares de anos, provavelmente ouviam estórias com os mesmos componentes essenciais
Uma estória satisfatória deve, pois, ter alguns elementos, que reconhecemos e apreciamos
naturalmente:
Sem estes elementos não temos uma estória clássica; uma estória que satisfaça
que vai acontecer a seguir. Essa capacidade de manter o espectador curioso é o que caracteriza
um bom guionista - aquele que tem um entendimento apurado dos mecanismos dramáticos e da
psicologia do espectador.
"Todo o drama é conflito. Sem conflito não há acção. Sem acção não há
personagem. Sem personagem não há estória. E sem estória com certeza que não
Sem forças antagónicas em jogo; sem um protagonista que quer algo, e antagonistas e
obstáculos que o atrapalham; sem recompensas a receber e dificuldades a ultrapassar; sem luta,
dor e sofrimento, não há drama. E sem drama não há interesse, nem mesmo numa comédia. As
melhores comédias têm, debaixo da capa açucarada do riso, os mesmos ingredientes dramáticos
Idealmente, cada cena deve combinar estes três factores mas muitas vezes pode incluir
apenas dois. Em certos casos, muito especiais, até pode cumprir apenas uma destas funções. Mas
se uma cena não desempenhar nenhum destes papéis na estrutura do nosso guião, é a primeira
Para cumprir com estas altas expectativas uma cena tem de ter elementos em comum
com uma boa estória. É como uma miniatura da estória maior, em que estão em funcionamento
É isso que vamos desenvolver na secção seguinte. Mas primeiro vamos ler um excerto de
uma das mais memoráveis cenas de tempos recentes, retirada do guião de "O Silêncio dos
Inocentes", escrito por Ted Tally com base no romance de Thomas Harris.
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por
Ted Tally
Baseado no romance de
Thomas Harris
FIGURA ESCURA
C-consigo chhheirar a tua buceta!
CLARICE
Dr. Lecter... O meu nome é Clarice
Starling. Posso falar consigo?
DR. LECTER
Bom dia.
CLARICE
Doutor, nós temos um problema
difícil nos perfis psicológicos.
Venho pedir a sua ajuda para um
questionário.
DR. LECTER
Sendo que o "Nós" se refere à
Unidade de Ciência Comportamental
de Quantico. Você faz parte do
pessoal do Jack Crawford, imagino.
CLARICE
Faço, sim.
DR. LECTER
Posso ver a sua identificação?
DR. LECTER
Mais perto, por favor... Mais -
perto...
DR. LECTER
(continuando)
Isso expira numa semana. Você não é
FBI a sério, pois não?
CLARICE
Eu - ainda estou em treino na
Academia.
DR. LECTER
O Jack Crawford enviou-me uma
estagiária?
!22
CLARICE
Estamos a falar de Psicologia, não
da Polícia. O doutor não pode
avaliar por si mesmo se eu sou
qualificada?
DR. LECTER
Mmmmm... Isso é muito ardiloso da
sua parte, Agente Starling. Sente-
se. Por favor.
DR. LECTER
Vamos lá, então. O que é que o
Miggs lhe disse?
(ela fica baralhada)
O "Miggs Múltiplo", na cela do
lado. Ele guinchou-lhe qualquer
coisa. O que é que ele disse?
CLARICE
Disse - "Consigo cheirar a tua
buceta".
DR. LECTER
Estou a ver. Eu, pessoalmente, não
consigo. Você usa creme de pele
Evyan, e às vezes coloca L'Air du
Temps, mas não hoje. No entanto,
trouxe a sua melhor bolsa, não é
verdade?
CLARICE
(pausa)
Sim.
DR. LECTER
É muito melhor que os seus sapatos.
CLARICE
Talvez um dia eles consigam
acompanhar.
DR. LECTER
Não tenho dúvidas disso.
CLARICE
(mexendo-se
desconfortável)
Estes desenhos são seus, Doutor?
!23
DR. LECTER
Sim. Aquele é o Duomo, visto do
Belvedere. Conhece Florença?
CLARICE
Todo aquele detalhe, só de memória?
DR. LECTER
A memória, Agente Starling, é o que
eu tenho em vez de uma janela.
CLARICE
Dr. Lecter, se fizer o favor de
considerar -
DR. LECTER
Não, não, não. Estava a ir tão bem,
cortês e receptiva à cortesia,
tinha conseguido estabelecer
confiança admitindo a verdade
embaraçosa acerca do Miggs, e agora
essa passagem desajeitada para o
questionário. Assim não chega lá. É
estúpido e maçador.
CLARICE
Só lhe estou a pedir que olhe para
isto. Ou o faz ou não o faz.
DR. LECTER
O Jack Crawford deve estar cheio de
trabalho se já anda a pedir ajuda
aos seus estudantes. Muito ocupado
a caçar aquele novo, o Buffalo
Bill... Que grande malandro! O
Crawford mandou-a pedir-lhe a minha
opinião sobre ele?
CLARICE
Não, eu vim porque precisamos -
DR. LECTER
Quantas mulheres já ele usou, o
nosso Bill?
CLARICE
Cinco... até ao momento.
DR. LECTER
Todas esfoladas...?
!24
CLARICE
Parcialmente, sim. Mas, Doutor,
esse é um caso em investigação, e
não estou envolvida. Se puder -
DR. LECTER
Sabe porque lhe chamam Buffalo
Bill? Diga-me. Os jornais não
esclarecem.
CLARICE
Eu digo-lhe se olhar para este
questionário.
(ele reflete, depois
acena)
Começou como uma piada de mau gosto
no departamento de homicídios de
Kansas City. Comentaram ... que
este gostava de esfolar as suas
bossas.
DR. LECTER
Sem graça e sem sentido. Porque é
que acha que ele lhes retira a
pele, Agente Starling? Maravilhe-me
com a sua sabedoria.
CLARICE
Porque o excita. A maior parte dos
assassinos em série guardam algum
tipo de troféus.
DR. LECTER
Eu não guardava.
CLARICE
Pois não. Comia-os.
DR. LECTER
Mostre-me lá isso.
DR. LECTER
Ó Agente Starling... acha que me
consegue dissecar com este
instrumentozinho rombo?
CLARICE
Não. Tinha só esperança que o seu
conhecimento -
DR. LECTER
Você é tãoooo ambiciosa, não é...?
Sabe o que é que você me parece,
com a sua bolsa cara e sapatos
baratos? Parece uma saloia. Uma
saloia bem escovada, esforçada, com
um pouco de gosto... Uma boa
nutrição deu-lhe ossos bem
desenvolvidos, mas nem uma geração
a separa dos saloios miseráveis,
pois não, Agente Starling...? Esse
sotaque que se esforça tanto por
eliminar - pura Virgínia Oeste. O
que era o seu pai, minha querida?
Um mineiro do carvão? Tresandava a
óleo da lamparina...? Ah, sim, quão
depressa os rapazes repararam em
si. Todos aqueles agarranços
aborrecidos e pegajosos, nos bancos
traseiros dos automóveis, enquanto
sonhava em sair dali. Ir a qualquer
lado - sim? Ir até ao fim - para o
F... B... I...
CLARICE
Você é muito perceptivo, Dr.
Lecter. Mas é suficientemente forte
para apontar esse alto nível de
percepção a si mesmo? Que tal fazer
isso...? Olhar para si e escrever a
verdade?
(devolve a gaveta)
Ou talvez tenha medo de o fazer.
DR. LECTER
Você é uma durona, não é?
!26
CLARICE
Um pouco. Sim.
DR. LECTER
E como odeia pensar que possa ser
vulgar. Sim, isso ia doer! Bem,
vulgar você não é, Agente Starling.
Só tem o medo de o ser.
(pausa)
Agora terá de desculpar-me. Bom
dia.
CLARICE
E o questionário...?
DR. LECTER
Um inspetor do Censo uma vez tentou
testar-me. Comi o seu fígado com
favas e um belo chianti... Voe de
volta à sua escola, pequena
Starling.
CELA DE MIGGS
MIGGS
M-ordi o meu pulso para p-oder
morreeeer! V-ês como está a
sangraaaar?
CLARICE
DR. LECTER
DR. LECTER
Não queria que isto lhe tivesse
acontecido. A falta de cortesia é -
simplesmente horrível para mim.
CLARICE
Então, por favor - preencha esse
teste por mim.
DR. LECTER
Não. Mas vou fazê-la feliz... Vou
dar-lhe uma hipótese de fazer o que
mais gosta, Clarice Starling.
CLARICE
E o que será isso, Dr. Lecter?
DR. LECTER
Progredir, é claro.
(pausa)
Vá à Split City. Procure A Sra.
Mofet, uma antiga paciente minha.
M-O-F-E-T...
Vá, agora. Vá.
(um sorriso)
Acho que o Miggs não consegue
repetir, por muito maluco que seja
- não acha?
CORTA PARA:
NOTA: A tradução é de minha responsabilidade. O texto é usado apenas para efeitos didáticos.
!28
"Não há pozinho mágico que salve uma cena chata, inútil, redundante ou
David Mamet é um dos grandes argumentistas vivos. Um dos melhores. Um dos poucos
No meu blogue tive o prazer de traduzir um memorando que ele escreveu para um grupo
Esta secção será construída em cima desse texto, que é uma verdadeira aula de escrita de
O primeiro ponto que David Mamet salienta é que o objectivo de uma boa cena não é
para ver informação. Vocês não o fariam. Eu não o faria. Ninguém o faria nem o
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"Drama, uma vez mais, é a missão do herói para ultrapassar aquelas coisas
Estamos aqui completamente de acordo. Como vimos na secção anterior, o drama surge
caminho.
Isso deve acontecer ao nível de cada cena individual. Mamet defende mesmo que antes
A primeira questão realça o facto de que não é só o protagonista que quer alguma coisa
objectivos próprios. É quando estes objectivos são diferentes ou, melhor ainda, antagónicos, que
A segunda questão deixa em aberto a possibilidade do herói não conseguir o que deseja
ou, pelo menos, de não o conseguir de imediato. Isso é condição necessária para que possam
A terceira questão recorda que uma cena é apenas uma parte da cadeia de eventos que
compõem a estória. É consequência das cenas anteriores, e dá origem às cenas seguintes. Por isso,
numa estória bem pensada e escrita, cada cena tem um momento certo para acontecer.
tem de ter uma necessidade simples, linear, e urgente que o/a impele a estar
presente na cena. Essa necessidade é a razão para ter aparecido. É a razão de ser
episódio."
- Do resultado desse conflito gera-se uma nova situação, que determina a continuação da
estória.
Por exemplo, na cena que lemos anteriormente de "O Silêncio dos Inocentes", a jovem
agente-estagiária do FBI tem um objectivo: interrogar o perigoso Dr. Hannibal Lecter com vista
Lecter, por sua vez, tem objectivos de curto e longo prazo. No curto prazo, quer apenas
animar um pouco a sua monótona vida de prisioneiro de alta segurança; no longo prazo,
No fim da cena Clarice não consegue o seu objectivo explícito na cena, mas Hannibal
Lecter dá-lhe algo mais valioso: informações sobre o caso de um outro psicopata, levando Clarice
para a trama central do filme. Essas informações fazem avançar a estória para a etapa seguinte.
Cumprem-se dessa forma as três funções da cena: faz avançar o enredo; aumenta a
tensão dramática; e revela muita coisa, tanto sobre o caráter de Clarice como de Lecter.
Qualquer cena, pois, que não faça simultaneamente avançar o enredo e não se sustenha
por si só (ou seja, pelos seus próprios méritos dramáticos) ou é supérflua ou está mal escrita.
Uma coisa muito importante é não confundir conflito com discussão. Na cena analisada
Clarice e Lecter não precisam estar aos berros ou a lutar para que a cena tenha conflito e drama.
As palavras, e as ideias por trás delas, são suficientes para criar uma enorme tensão dramática.
A cena inclui também uma surpresa final, introduzida através de um outro paciente, que
O perigo da exposição
Outra coisa que David Mamet não se cansa de alertar é para o perigo das cenas que se
ficarmos a saber quais as circunstâncias em que ele ficou assim. A maneira errada de o fazer seria
colocar outro personagem a dizer-lhe: "Ó Pedro, que pena teres ficado paraplégico num acidente
!32
automóvel em que estavas a perseguir o teu pior inimigo. Se não fosse isso podíamos agora ir os
Uma maneira melhor de dar essa mesma informação poderia ser, por exemplo, com a
cena seguinte:
RUI
E então - o que é que diz?
PEDRO
O que é que esperavas?
RUI
Não vão pagar-te? Nem o carro?
PEDRO
O seguro particular não cobre
perseguições policiais. Nem tem de
cobrir, realmente. Não é da conta
deles.
RUI
Filhos da mãe! Se fosse para salvar
a pele, já te pagavam tudo. Filhos
da--
PEDRO
(interrompendo)
Guarda essa raiva para apanhar o
Morais. Vais ter de o caçar
sozinho.
PEDRO
E usa sempre o carro do
departamento.
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Não será uma cena brilhante, mas transmite exactamente a mesma informação de uma
"Alguém tem de fazer com que a cena seja dramática. Isso não é tarefa dos
atores (a tarefa dos atores é serem verdadeiros). Não é tarefa dos realizadores. A
tarefa deles é filmar a cena sem complicar e lembrar os atores para falarem
Escrita visual
A pequena cena anterior também serve para demonstrar a preocupação com que Mamet
da escrita para televisão, incluindo a nossa, soa a rádio. A câmara pode dar as
fazer – literalmente. Onde é que mexem, o que estão a ler. O que assistem na
televisão, o que estão a ver. Se fingirem que os personagens não podem falar, e
A escrita para cinema e para televisão é uma escrita especial, porque se destina a ser
Há cinéfilos que consideram que o cinema, no que tem de mais específico e original,
terminou com a chegada dos filmes sonoros. É uma posição radical e exagerada, mas não deixa
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já estavam desenvolvidos e eram praticados no início do século XX, nos que agora chamamos de
filmes mudos.
ver na cena de "O Silêncio dos Inocentes", e como veremos na cena com que termina esta
Vamos ler então a cena seguinte, retirada do filme "Chinatown", escrito por Robert
Towne, e façamos um pequeno exercício. Aplicar a esta cena o teste com que David Mamet
"CHINATOWN"
Escrito por
Robert Towne
EMPREGADO CHINÊS
Espere aqui.
GITTES
(frase curta em chinês)
Espere você.
EVELYN
Como estás? Estava a ligar para ti.
GITTES
Sim?
EVELYN
Conseguiste dormir?
GITTES
Claro.
EVELYN
E almoçaste? O Kyo will pode
preparar alguma coisa.
GITTES
(abruptamente)
Onde é que está a miúda?
EVELYN
Lá em cima. Porquê?
!36
GITTES
Quero vê-la.
EVELYN
...está a tomar banho... porque é
que a queres ver?
GITTES
Vão para algum lado?
EVELYN
Sim. Temos que apanhar o comboio às
4:30. Porquê?
GITTES
J. J. Gittes para o Tenente Escobar
EVELYN
O que é que estás a fazer? O que é
que se passa? Disse-te que temos de
apanhar o das 4:30.
GITTES
(interrompendo-a)
Vão perder esse comboio!
(para o telefone)
Lou, vem ter comigo a 1412
Adelaide. é acima do Santa Monica
Canyon... sim,logo que possas.
EVELYN
Porque é que fizeste isso?
GITTES
(um momento, e depois)
Conheces bons advogados de direito
criminal?
EVELYN
(baralhada)
Não...
GITTES
Não te preocupes. Posso recomendar
alguns. São caros mas tu podes
pagar.
!37
EVELYN
(neutra mas com grande
raiva)
De que raio se trata isto?
GITTES
Encontrei isto no teu quintal. No
lago dos peixes. Pertenciam ao teu
marido, não é verdade?... não é
verdade?
EVELYN
Não sei. Quero dizer, provavelmente
sim.
GITTES
Com certeza que sim. Foi lá que ele
se afogou...
EVELYN
O que é que estás a dizer?
GITTES
Não está na altura de se mostrar
chocada com a verdade, Sra.
Mulwray. O relatório do médico-
legista prova que ele foi morto em
água salgada. Pode acreditar nisso.
Agora só quero saber quando e como
isso aconteceu. E quero saber antes
do Escobar chegar aqui, porque
gostava de ficar com a minha
licença.
EVELYN
Não sei do que é que estás a falar.
Iso é a coisa mais louca... a coisa
mais maluca que alguma vez...
GITTES
Pára! vOu tornar isto mais fácil
para ti. Estavas com ciúmes,
lutaram, ele caiu, bateu com a
cabeça. Foi um acidente mas a sua
miúda viu tudo. Tiveste de lhe
!38
EVELYN
...não...
GITTES
Quem é ela? E não me venhas com
tretas de ser tua irmã. Não tens
nenhuma irmã.
EVELYN
Eu digo-te a verdade...
Gittes sorri.
GITTES
Isso é bom. Como é que ela se
chama?
EVELYN
Katherine.
GITTES
Katherine?... Katherine quê?
EVELYN
Ela é minha filha.
GITTES
Quero a verdade!
EVELYN
É minha irmão.
EVELYN
É minha filha.
EVELYN
Minha irmã.
!39
Bate-lhe de novo.
EVELYN
Minha filha, minha irmã.
GITTES
Eu disse que queria a verdade.
EVELYN
(quase a gritar)
Ela é minha irmã e minha filha!
EVELYN
(continuando; em chinês)
Por amor de Deus, Kyo, não a deixes
descer, volta para cima!
EVELYN
O meu pai e eu, compreendes, ou é
muito difícil para ti aceitar isso?
EVELYN
...ele teve um colapso nervoso... a
barragem rebentou... a minha mãe
morreu... ele tornou-se uma
criança... eu tinha quinze... ele
perguntava-me oq ue devia comer ao
pequeno-almoço, que roupas
vestir!... E então aconteceu... e
eu fugi...
GITTES
Para o México...
EVELYN
O Hollis apareceu e tomou... conta
de mim... depois dela nascer... ele
disse... ele tomou conta dela... eu
não podia vê-la... eu queria mas
não podia... só queria vê-la de vez
!40
GITTES
...então é por isso que o odeias...
EVELYN
Não... por me ter virado as costas
depois disso acontecer! Ele não
conseguia encarar os factos...
(chorando)
Odeio-o.
GITTES
Sim... para onde é que a estás a
levar agora?
EVELYN
De volta ao México.
GITTES
Não podes ir de comboio. O
Escobar'll via procurar-te em todo
o lado.
EVELYN
E de avião?
GITTES
Pior ainda. Desaparece daqui. Põe-
te já a andar, deixa tudo.
EVELYN
Tenho que ir a casa apanhar as
minhas coisas.
GITTES
Eu trato disso.
EVELYN
Para onde é que podemos ir?
GITTES
...onde é que o Kyo vive?
EVELYN
Connosco.
!41
GITTES
Nos dias de folga. A sua morada
exacta.
EVELYN
Okay...
Pára de repente.
EVELYN
Não eram do Hollis.
GITTES
Como é que sabes?
EVELYN
Ele não usava bifocais.
Gittes pega nos óculos, olha para lente, fica perdido por
alguns momentos.
EVELYN
EVELYN
Diz olá ao Sr. Gittes, querida.
KATHERINE
(das escadas)
Olá.
GITTES
GITTES
Olá.
EVELYN
(falando para baixo)
Ele vive 1712 Alameda... sabes onde
é?
REACÇÃO – GITTES
!42
GITTES
Claro. É em Chinatown.
NOTA: A tradução é de minha responsabilidade. O texto é usado apenas para efeitos didáticos.
!43
Já vimos que uma cena é como uma mini-estória, com os mesmos princípios dramáticos
em funcionamento. Já vimos quais as questões a colocar para garantir que esses princípios
dramáticos são aplicados. Vamos agora entrar num campo um pouco mais prático, analisando a
Para esse efeito vamos apoiar-nos num artigo de um outro importante guionista, o
americano John August, conhecido pelas suas colaborações com Tim Burton, entre as quais o
John August tem um óptimo blogue no qual já publicou uma enorme quantidade de
informação útil. É um recurso indispensável para quem domine a língua inglesa. Entre os seus
artigos mais populares encontramos este texto sob o seu método para escrever uma cena, que
passaremos a analisar.
É muito importante perceber que as dez etapas que John August recomenda são apenas
indicativas. Cada guionista tem um processo mental próprio, desenvolvido ao longo do tempo,
Ao fim de muita prática a maior parte dos guionistas deixa de pensar analiticamente
nestas etapas (se alguma vez o fez) e integra-as naturalmente no seu processo de escrita. Mas
tendo em conta os objectivos deste livro é importante adoptarmos um método, e este é tão bom
cena?
Passo a passo
Isto liga-se com o que vimos na secção anterior. Cada personagem entra na cena com
objectivos definidos, que vai tentar alcançar. No artigo, John August aparenta discordar da
opinião de Mamet. Argumenta que devem ser os guionistas a mandar na cena, e não os
personagens. É tudo uma questão de semântica - no fundo, somos sempre nós, os autores, que
decidimos quais são os objectivos dos personagens e se eles os vão alcançar ou não, em função do
curso que queremos dar à estória. Isso tem de estar definido antes de começarmos a escrever a
cena.
Se nada de mal acontecer se retirarmos a cena, então o melhor é retirá-la mesmo; nada
de importante está a acontecer nela. Pode até ser dramática ou divertida, mas não faz falta. Nesse
caso é melhor passar o que ela tem de bom para outras cenas que façam falta.
O facto de termos muitos personagens não implica que os tenhamos de usar em todas as
cenas. Parte da arte do guionista é definir quem entra em cada cena, e o que está a fazer lá. Se,
por imposição da lógica da estória, tivermos de ter vários personagens na cena, é bom
encontrarmos formas de tornar a sua presença relevante e interessante. Isso pode passar por dar-
Nem sempre podemos escolher onde uma cena vai decorrer. Por vezes por uma questão
de lógica da estória, a cena tem de ocorrer num determinado local. Outras vezes, por questão de
Mas quando podemos escolher, muitas vezes vamos pela solução mais óbvia ou natural. E
esta nem sempre é a que mais valoriza a cena. Antes de escrever a cena devemos pensar em
!46
várias opções de localização que sejam adequadas mas possam acrescentar valor - interesse,
drama ou surpresa.
cena?
Este é o passo mais original que John August sugere, mas pode conduzir a resultados
muito interessantes. Consiste em esquecer um pouco os objectivos que definimos para a cena e
fazermos um pequeno jogo: imaginar a coisa ou coisas mais surpreendentes que poderiam
Estamos a falar aqui de eventos realmente inesperados - por exemplo, um carro irromper
pela parede. Em 90% dos casos será apenas um jogo e uma forma de mantermos acesa a
imaginação durante a fase da escrita, mesmo que não aproveitemos as ideias. Em 9%, poderá
conduzir a versões mais interessantes e provocadoras das cenas que tínhamos imaginado. E no
Nem todas as cenas têm a mesma duração numa estória. Muitas vezes isso está
relacionado com a importância da cena, mas nem sempre: uma cena muito curta pode ter um
De qualquer forma, essa alternância de momentos mais longos ou mais curtos contribui
para o ritmo da estória. É pois importante decidir previamente que dimensão a nossa cena
O conselho que se dá aos guionistas é começar a cena o mais tarde possível, e sair dela
logo que o essencial da cena tenha acontecido. Se, por exemplo, a nossa cena consiste num
!47
encontro entre três amigos num bar, não precisamos de assistir à chegada de cada um deles, aos
cumprimentos, à encomenda das bebidas, etc. Podemos cortar para o encontro já em curso, com
os três sentados à mesa, a beber e falar, e terminar a cena logo que o conflito dramático tenha
Mas John August recorda-nos que não nos devemos ficar por este começo "natural" da
cena. Porque não começá-la com os três amigos na casa de banho, a urinar em conjunto; ou com
os três a tentar reparar a máquina de café do bar; ou com os três a ser expulsos do bar pelos
seguranças? O importante, uma vez mais, é questionarmos a solução que nos ocorre de imediato
e procurarmos alternativas viáveis, mesmo que no fim regressemos à primeira opção - que muitas
recostados na cadeira, vamos imaginar como a cena se vai desenrolar, como se estivéssemos a ver
o filme na nossa imaginação. Onde estamos; a que horas; quem está presente; o que acontece;
Nem sempre vamos conseguir visualizar tudo, e muitas coisas vão mudar quando
passamos à escrita. Mas é importante fazermos este esforço, para dar realidade e consistência ao
detalhados. Apenas notas, apontamentos, emoções. Deve ser uma etapa muito rápida, enquanto
Com base no rascunho anterior, passamos então a escrever a cena na sua versão
completa. Não digo "versão final" porque é provável que, até ao fim do processo, ela ainda passe
descrições, completando as ações, e criando os diálogos. Mas isto não quer dizer que o rascunho
que fizemos esteja escrito na pedra. É apenas uma fundação que a qualquer momento pode
A 11ª etapa é um toque de humor, para nos recordar que boa parte do trabalho do
Escrever um guião é trabalho duro; escrever um bom guião, é hercúleo. Mas o resultado
do esforço podem ser cenas tão fantásticas como a que se segue, retirada do filme "Romance
"ROMANCE PERIGOSO"
Argumento de
Scott Frank
a partir do romance de
Elmore Leonard
NEGRO
FOLEY (VO)
Estás confortável?
KAREN (VO)
Se tivesse um pouco mais de espaço.
FOLEY (VO)
Isso não há. Tens um monte de
tralha aqui. O que é esta porcaria
toda, afinal? Algemas, correntes...
O que é esta lata?
KAREN (VO)
É para o hálito. Podias
experimentar. Esguicha um pouco na
tua boca.
FOLEY (VO)
Sua marota, é gás-pimenta, huh? E o
que é isto - um cacete? Usas isto
nos pobres desgraçados dos
delinquentes.
FOLEY (VO)
Onde é que está a tua arma, a tua
pistola?
KAREN
Na minha bolsa, no carro.
!50
KAREN (CONT'D)
Sabes que não tens nenhuma chance
de te safares. A polícia já anda aí
fora, vão parar o carro.
FOLEY
Eles agora andam lá no canavial a
caçar cubanos. Eu fiz bem as contas
para me escapar entre as gotas da
chuva, se assim podemos dizer.EXT.
CARRO - NOITE
FOLEY
Bolas, cheirava mal lá em baixo.
KAREN
Acredito. Acabaste com um fato de
novecentos dólares que o meu pai me
ofereceu.
FOLEY
Sim, devia ficar mesmo a condizer
com a tua caçadeira de dois canos.
(depois)
Diz-me lá, como é que alguém como
tu se torna num xerife federal?
KAREN
Atraiu-me a ideia de caçar tipos
como tu.
FOLEY
Tipos como eu, huh. Bem, ouve,
apesar de ter andado celibatário
nos últimos tempos, não me vou
forçar em ti. Nunca fiz isso na
vida.
!51
KAREN
Nem vais ter tempo. Logo que
passarmos por uma barragem na
estrada eles vão identificar o
carro e descobrem em cinco segundos
a quem pertence.
FOLEY
Se conseguirem montá-las a tempo, o
que eu duvido. E mesmo que
consigam, estão à procura de um
monte de latinos baixotes, e não
dum negro grandalhão a conduzir um
Ford.
KAREN
Deve ser um amigaço, para arriscar
o couro desta forma.
FOLEY
Quem, o Buddy? Sim. É um tipo às
direitas. Quando cumprimos pena
juntos ele telefonava à irmã todas
as semanas sem falhar. Ela é uma
cristã-nova, faz a contabilidade de
um tele-evangelista. O Buddy liga-
lhe sempre para confessar os seus
pecados, contar-lhe acerca de cada
banco que assalta.
KAREN
Buddy. Esse é mesmo o nome dele?
FOLEY
(woops, pausa)
É o nome que eu lhe dou, sim
(para dentro)
Porra...
KAREN
E então, como é que te chamas? Vais
estar nas notícias amanhã, de
qualquer jeito.
FOLEY
Jack Foley. Possivelmente já
ouviste falar de mim.
KAREN
Porquê, és famoso?
FOLEY
Na altura em que fui preso na
Califórnia? O FBI disse-me que
tinha roubado mais bancos que
qualquer outra pessoa no
computador.
KAREN
Quantos foram mesmo?
FOLEY
Para dizer a verdade, nem sei.
Comecei aos dezoito, a conduzir o
meu tio Cully, e o parceiro dele, o
Gus. Uma vez foram a um banco em
Slidell, o Gus salta o balcão para
apanhar as caixas registadoras e
parte uma perna. Acabámos os três a
cumprir pena em Angola.
KAREN
Isso foi engraçado.
FOLEY
Também achei, por acaso.
KAREN
Se fosse eu, tinha deixado o velho
Gus a rebolar no chão.
FOLEY
Acredito que sim. Noutra vez, fiz
sete anos em Lompoc. E não estou a
falar do porta ao lado onde os
tipos do Nixon foram.
KAREN
Eu sei a diferença. Estiveste em
Lompoc USP, a prisão federal. Já
!53
FOLEY
(pausa)
Basicamente. Sim. Se voltar agora,
levo trinta anos sem possibilidade
de sair. Consegues imaginar uma
coisa dessas?
KAREN
Não preciso. Não ando a assaltar
bancos.
FOLEY
Não pareces muito assustada.
KAREN
É claro que estou.
FOLEY
Não te estás a portar como tal.
KAREN
O que é que queres que eu faça?
Grite? Acho que não ia ajudar
muito.
(depois)
Vou só ficar por aqui, relaxar, e
esperar que vocês façam asneira.
FOLEY
Jesus, pareces a mina ex-mulher a
falar.
!54
KAREN
Foste casado? Com todas essas
prisões, nem sei como tiveste
tempo.
FOLEY
Foi só um ano, mais dia menos dia.
Quer dizer, não é que a gente não
se entendesse bem. Até nos
divertimos, mas não tínhamos
aquela... aquela coisa, percebes?
Aquela faísca, sabes do que estou a
falar? Tens de ter isso.
KAREN
(pensativa)
Uh-huh.
FOLEY
Mas continuamos a falar, apesar de
tudo.
KAREN
Claro.
KAREN
Sabes, isto não vai acabar bem,
estas coisas nunca acabam bem.
FOLEY
Bom, sim, se eu acabar aí abatido
como um cão, pelo menos é na rua, e
não numa maldita vedação.
KAREN
Deves achar que és algum Clyde
Barrow.
FOLEY
Oh, queres dizer, como em "Bonnie e
Clyde"? Hm. Já viste fotografias
dele, da forma como usava o chapéu?
Consegue ver-se que ele tinha
aquele ar de estou-me-nas-tintas.
KAREN
Do chapéu não me lembro, mas
lembro-me das imagens dele morto na
estrada, abatido pelos Rangers do
Texas. Sabias que ele estava
descalço?
FOLEY
A sério?
KAREN
Fizeram cento e oitenta e sete
buracos de bala no Clyde, na Bonnie
Parker e no carro que conduziam. A
Bonnie estava a comer uma
sanduíche.
FOLEY
És uma verdadeira enciclopédia de
factos interessantes, não és?
KAREN
Foi em Maio de 1934, perto de
Gibsland, na Louisiana.
FOLEY
Essa parte do filme em que eles são
abatidos? Warren Beatty e a... não
me lembro do nome dela.
KAREN
Faye Dunaway.
FOLEY
Sim, gostei dela naquele filme
sobre a televisão...
!56
KAREN
Network. Sim, ela ia bem.
FOLEY
E o gajo que dizia que não ia
aceitar mais merdas de ninguém...
KAREN
Peter Finch.
FOLEY
Sim, isso. Seja como for, a cena
em que o Warren Beatty e a Faye
Dunaway são abatidos? Lembro-me que
na altura pensei que não era uma má
forma de partir, se tivesse de ser.
KAREN
A sangrar numa estrada rural.
FOLEY
Não foi bonito de ver, não, mas se
fosses naquele carro - a comer uma
sanduíche - nem sabias o que tinha
acontecido.
FOLEY
É mesmo fácil falar contigo. Estou
aqui a pensar - imagina que a gente
se conhecia noutras circunstâncias,
e metesse conversa, por exemplo, se
estivesses num bar e eu me
aproximasse -- o que é que
aconteceria.
KAREN
Nada.
!57
FOLEY
Quero dizer, se não soubesses quem
eu era.
KAREN
Provavelmente ias dizer-me.
FOLEY
Estou só a dizer que acho que se
nos tivéssemos conhecido noutras
circunstâncias...
KAREN
Deves estar a brincar.
FOLEY
Outro da Faye Dunaway de que
gostei, Os Três Dias do Condor.
KAREN
Com o Robert Redford, quando era
jovem.
FOLEY
Sim...
KAREN
No entanto, nunca achei que fizesse
sentido, a forma como eles ficam
juntos tão depressa.
FOLEY
Na realidade?
KAREN
Quero dizer, romanticamente.
FOLEY
Uh-huh.
(depois)
Bom, mas e se --
BUDDY (OS)
Ainda estão vivos aí dentro?
FOLEY (OS)
Onde raio é que estamos?
BUDDY
A autoestrada é já ali. O Glenn
está lá à espera com o outro carro.
FOLEY
OK, doçura, podes sair daí.
KAREN
Ponham as mãos no ar e virem-se.
Agora.
FOLEY
Merda...
NOTA: A tradução é de minha responsabilidade. O texto é usado apenas para efeitos didáticos.
!59
Os Arquétipos
Num livro de grande influência para as gerações de guionistas mais recentes, "Writer's
Journey: Mythic Structure for Writers", o autor Christopher Vogler analisa o que ele designa pela
chamada "Viagem do Herói", presente em todas as tradições, para as necessidades das narrativas
contemporâneas.
determinados tipos de personagens com padrões de comportamento comuns que são uma
herança partilhada da raça humana, e aparecem nas tradições narrativas de todas as épocas e
civilizações – fábulas, lendas, contos tradicionais, textos mitológicos, tradições orais, etc.
Estes arquétipos não devem ser confundidos com os estereótipos, que são personagens
Os arquétipos, pelo contrário, são peças muito profundas e antigas daquilo que o
psicólogo Carl Jung designou como o inconsciente colectivo de todas as culturas, uma espécie de
Há um grande número de arquétipos, que devem ser encarados não como papéis rígidos
e imutáveis, mas como funções desempenhadas temporariamente por certos personagens para
Nesta perspectiva, defendida por Vogler, os arquétipos são como máscaras que os
• O Herói
• O Mentor
• O Guardião da Passagem
• O Arauto
• O Mutante ("shapeshifter")
• O Sombra
• O Impostor/trapalhão ("trickster")
qualquer um dos anteriores: o Lobo, o Caçador, a Mãe, a Madrasta Malvada, a Fada Madrinha,
Vejamos então, segundo a análise de Vogler, o que caracteriza e quais são as funções dos
principais arquétipos:
!61
O Herói - é aquele que existe para proteger e servir. Grande parte das histórias são
narrativas de um Herói que sacrifica o seu conforto para devolver o equilíbrio ao seu mundo, à
sua comunidade.
É com o Herói que a audiência se identifica no decurso da narrativa, são as suas acções
que segue, é através da sua transformação ou sacrifício que o espectador tira satisfação da estória.
A sua função dramática é desafiar o Herói, criar os obstáculos para que os seus feitos
sejam ainda mais notáveis. Esta máscara da Sombra pode ser usada por um só personagem ao
longo da estória, ou por vários. Até o Herói pode, em certos momentos, ser a sua própria
Sombra.
representa o lado da nossa personalidade que está mais atento às coisas, mais ligado ao
conhecimento e à evolução.
sua viagem são passagens, portais para outro nível de evolução da estória.
defendem dos transgressores, tornando-se assim antagonistas do Herói. Não são geralmente os
Está muitas vezes associado ao gatilho, ao inciting incident da estória, aquele evento que
torna impossível ao herói continuar com a sua vida normal e o obriga a lançar-se à viagem para
incógnita no caminho do Herói, que vai assumindo contornos diversos conforme a estória vai
evoluindo.
momentos esta máscara. Para Jung ele representa o animus ou anima, os elementos masculinos
ou femininos que complementam o nosso inconsciente feminino ou masculino, e que nós não
entendemos. E como não entendemos estas figuras Mutantes, elas contribuem com tensão e
Em muitas estórias de pendor cómico o próprio Herói pode usar esta máscara de
Impostor/Trapalhão. Na maior parte das estórias, contudo, é a um aliado que compete essa
função. E em alguns casos, como o Joker da saga Batman, ela pode até cair no antagonista, ou
personagem deve utilizar, que função pode ou deve desempenhar na evolução da narrativa.
O formato do guião
Os guiões têm um formato próprio que, mais coisa menos coisa, é praticamente universal.
Este formato desenvolveu-se ao longo do tempo até atingir o estado actual. Há, pois, razões
Um formato estandardizado permite aos autores escrever sem terem de estar a inventar a
Simplifica a vida de todos os profissionais que trabalham em cinema. De cada vez que
entram num projecto novo não precisam de estar a aprender de novo a ler um guião.
Finalmente, como uma página de guião escrita neste formato corresponde, em média, a 1
minuto de filme, fica muito mais simples avaliar a duração do guião e o seu ritmo.
Este último ponto causa muitas dúvidas aos guionistas iniciantes. A sua preocupação é
sempre como atingir o objectivo de um minuto por página. É uma preocupação infundada e
!64
desnecessária. Estamos a falar de médias, que são influenciadas por muitas coisas: o tipo de filme,
O importante é escrever com o formato correcto e apontar para alguma coisa como 90 a
120 páginas de guião. Tudo o que saia desses números vai causar estranheza e dúvidas a quem
Elementos do formato
que todos os símbolos, letras e algarismos, e até os espaços, têm exactamente a mesma largura.
Uma cena constitui uma unidade de acção dramática independente, no tempo e local em
• Cabeçalhos
• Descrições
• Nomes
• Diálogos
• Parênteses
• Transições
O Cabeçalho
Num guião de cinema uma cena é uma unidade dramática definida por um determinado
Se mudarmos de local devemos começar uma nova cena. Se houver uma passagem de
tempo, mesmo que o local se mantenha, também devemos começar uma cena nova.
CABEÇALHO.
Deve começar indicando se é uma cena passada num interior ou exterior, INT. ou EXT.
ou NOITE
ou
Também são válidos, e usados por vezes em Portugal e no Brasil, os cabeçalhos escritos
ou
Não tem ponto final depois do INT; não tem lógica um campo de râguebi ser interior;
Deveria ser toda em maiúsculas; começar com EXT.; ser escrita em Courier Normal;
As Descrições
Cada nova cena começa com um Cabeçalho, como vimos. O parágrafo seguinte, sepa-
Descrição, ou Ação, são os parágrafos do guião onde se descreve o que pode ser visto ou
ouvido no filme (com a excepção dos Diálogos, que têm outro tratamento).
Isto inclui a descrição dos locais onde as cenas decorrem, dos adereços ou veículos impor-
tantes para a cena, dos personagens, incluindo a sua aparência e roupas, dos efeitos especiais ou
sonoros, etc.
Também inclui a descrição das ações, comportamentos, gestos, movimentos dos persona-
Tudo o que deva ser visto ou ouvido no filme deve ser colocado nas Descrições. Os ameri-
canos têm uma frase para isso; "If it's not on the page, it's not on the stage" – se não está na
Por exemplo:
!67
grita.
gritei.
Devem incluir apenas a informação necessária e suficiente para perceber o local, as pes-
soas, as relações e as ações. Informação em excesso pode tornar um guião muito difícil de ler;
Sempre que um personagem é apresentado pela primeira vez num guião, o seu nome
deve ser indicado em MAIÚSCULAS. Também é costume dedicar- lhe uma pequena descrição,
Os parágrafos de Descrição são normalmente curtos, com duas ou três linhas, como
demonstrei num artigo do blogue. Isto torna a leitura mais fácil e fluida.
Podemos dar a entender o ritmo de uma cena através da sucessão e do ritmo da escrita
das Descrições.
Na maior parte dos filmes – mesmo nos mudos – os personagens falam. E, quando bem
escalada do drama.
- Não são óbvios nem expositivos. Não estão na cena apenas para cumprir alguma função
- São vivos, dinâmicos, interactivos, e variados. Contribuem para o ritmo e dinâmica das
cenas.
- Soam a verdadeiros, parecem retirados da vida real, embora, quando analisados à lupa,
- São adequados aos personagens que os falam; às suas características sociais, históricas,
psicológicas.
chama o "subtexto".
Em termos formais, para apresentar os diálogos num guião usam-se três elementos: os
O elemento Personagem identifica quem fala; o elemento Diálogo identifica o que ele diz;
e o elemento Parênteses dá indicações adicionais que não sejam óbvias da leitura do diálogo. Por
exemplo, um tom especial (irónico) ou a quem se dirige a fala, quando há várias pessoas (para
Rita).
PEDRO
Queres saber o que me aconteceu
hoje?
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RITA
(irónica)
Mal posso esperar...
PEDRO
(pausa)
Queres saber, ou não?
RITA
(para a sala)
Paula, tomas um cafézinho?
(para Pedro)
Estavas a dizer...?
Quando procuramos na net guiões para ler muitas vezes encontramos os chamados
shooting scripts, ou guiões de rodagem. São versões dos guiões que já foram rescritas para servir
de guia durante a rodagem do filme e incluem muitas indicações técnicas, como planos,
ANGLE, DISSOLVE TO:, etc., sucedem-se nas páginas desse tipo de guiões, o que pode criar a
Os guiões normais em que trabalhamos são os chamados guiões literários. O seu objetivo
é contar a estória do filme de uma forma envolvente, que transporte o leitor para dentro do
forma de passagem de uma cena para outra: CUT TO, DISSOLVE, SMASH CUT, etc.
Transição. Tal como os Parênteses, devemos reservá-las apenas para quando não sejam óbvias e
acrescentem algo de especial à narração. A Transição por defeito é o CORTA PARA:, e por isso
excesso de indicações.
A direção que podemos e devemos fazer num guião é indireta e subjetiva. Por exemplo, se
escrevermos
Software de escrita
Nos tempos antigos os guionistas escreviam os seus guiões em máquinas de escrever, essas
lindas peças quase arqueológicas que agora só usamos para decoração. Respeitar o formato
correcto das páginas do roteiro era um quebra-cabeças, que só muito tempo, e prática constante,
acabavam por resolver. Os grandes estúdios de Hollywood, por exemplo, tinham departamentos
de estilo que dactilografavam todos os guiões finais para assegurar a consistência do formato.
!71
trabalho conseguimos criar modelos que respeitam, quase automaticamente, as regras correctas
de formatação de um guião.
Mas o trabalho do guionista deve ser escrever boas estórias e boas cenas, não andar a
O mais conhecido destes softwares é o Final Draft, um programa profissional mas muito
caro. Mas há muitas alternativas mais baratas, como o Scrivener (acessível, e o meu favorito), e
É este último que recomendo para o desafio individual que deverá ser efectuado na
Porquê o WriterDuet?
a ser proposto como a forma mais prática de escrever um guião a meias com outro autor, via
web, mas é também um excelente programa de escrita de guiões para qualquer pessoa que tenha
maioria dos softwares congéneres usam – a combinação das teclas de "tabelação" e "parágrafo"
para mudar entre os diferentes elementos do texto, como Cabeçalhos, Personagens, Diálogos, etc.
Mas tem mais: opções sofisticadas como os diálogos paralelos, notas, um completo e
intuitivo modo de planeamento dos guiões que permite rearranjar interactivamente as cenas do
guião, por arrasto, página de título editável, opção de numeração das cenas, etc.
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autores diferentes. O programa inclui um sistema de conversa que permite trocar impressões com
O WriterDuet permite ainda importar guiões escritos noutros programas, o que pode ser
muito útil na fase de revisão de um guião já escrito e que esteja em pré-produção. Consigo
imaginar diversos cenários em que uma aplicação como esta me teria poupado muito tempo e
trocas de emails.
Melhor ainda, o WriterDuet tem excelentes opções de exportação nos formatos mais
convenientes e utilizados: PDF, FinalDraft, CeltX e até Fountain (uma sintaxe para formatar
correctamente um guião em formato de texto simples). Isso garante-nos que, aconteça o que
acontecer a esta aplicação web, poderemos sempre ficar com cópias dos nossos guiões.
Se tivermos em atenção que tudo isto nos é oferecido gratuitamente, mediante uma
Exercício final
Termino este livrinho com um exercício prático para completar por si mesmo - o bom e
O desafio é imaginar e escrever uma cena de três minutos, correspondentes a três páginas
de texto.
conflitantes. Pense num local interessante e escreva a cena aproveitando todos esses factores.
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Conclusão
Escrever as cenas é apenas uma parte do trabalho do guionista. Mas é uma parte
Como todas as capacidades humanas, também esta melhora com a prática intencional: a
repetição, conduzida de forma disciplinada, com vista à evolução, em que se avaliam resultados,
Espero que este pequeno livro o estimule a escrever e a refletir sobre a escrita, a procurar
BOAS ESCRITAS