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Sobre a morte

Em seus estudos, Freud criou a conexão entre a perda, incluindo a perda familiar,
com a morte. Segundo ele, a morte gera sentimentos ambíguos no ser humano,
moldando a forma do luto que este viria a sentir. Cada morte teria efeitos diferentes
nesse ente a depender de quem partiu.

Ele ainda ressalta que, por exemplo, a morte de algum inimigo seria muito mais
aceita e compreendida. Isso porque o instinto de sobrevivência o fazia eliminar
adversários para sobreviver. Contudo, a perda familiar seria muito mais sentida. Não
só o ente partiu, mas a maior parte do que foi cultivado em conjunto foi levado.

Por conta disso, Freud afirmou que a humanidade passou a acreditar na existência
após a morte. Isso daria continuidade àquela figura que causava afeto em nós. Não
o bastante, também serviria para figurar a sua permanência, ainda que em outro
plano de existência. Em suma, note que é mais fácil se desfazer de um inimigo que
perder um ente familiar.

O luto

O luto é um processo natural instalado para a elaboração da perda, que pode ser
superado após algum tempo e, por mais que tenha um caráter patológico, não é
considerada doença, sendo assim, interferências tornam-se prejudiciais.

O luto é um processo lento e doloroso, que tem como características uma tristeza
profunda, afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a
pensamentos sobre o objeto perdido, a perda de interesse no mundo externo e a
incapacidade de substituição com a adoção de um novo objeto de amor (FREUD,
1915).

Durante o desenvolvimento, o indivíduo passa por constantes experiências de


perdas que se constituem em modelos de estados psíquicos que são incorporados
na mente e poderão ser vividos em situações semelhantes . Freud (1926) constata
que as primeiras experiências traumáticas constituem o protótipo dos estados
afetivos, que são incorporados na mente, e quando ocorre uma situação semelhante
são revividos como símbolos mnêmicos.

Para Freud (1923), em O Ego e o ID, o ato de nascer é o primeiro grande estado de
ansiedade, que ocorre por ocasião de uma separação da mãe, diante de um perigo
de desamparo psíquico, torna-se assim a fonte e o protótipo do estado de
ansiedade. Inicialmente, a imagem mnêmica que a criança tem da pessoa pela qual
ela sente anseio é intensamente catexizada, em seu estado ainda pouco
desenvolvido, essa imagem mnêmica é provavelmente de forma alucinatória, e a
criança não sabendo como lidar com sua catexia de anseio, origina uma ansiedade
como uma expressão de desorientação.

No útero, o bebê se identifica (identificação primária) com o interior da mãe, sua


temperatura, seus ruídos viscerais indiscerníveis, seus movimentos, seu toque
indireto, com o líquido amniótico deglutido, e com, quem sabe, o toque direto de
inconscientes. Assim configura-se sua vida mental primitiva, feita de fantasias (o
que antecede ao pensamento) corporais, somáticas. O objeto escolhido/imposto é
“inseparável” (o germe da onipotência e do narcisismo?) daquele com o qual se
identifica, e com ele se faz um e um mesmo. Laplanche e Pontalis definem
identificação primária como: “Modo primitivo de constituição do indivíduo segundo o
modelo do outro, que não é secundário a uma relação previamente estabelecida em
que o objeto estaria inicialmente situado como independente. A identificação
primária é estreitamente correlativa da chamada relação de incorporação oral.” (J.
LAPLANCHE & J.-B. PONTALIS, VOCABULÁRIO DE PSICANÁLISE, LIVRARIA
MARTINS FONTES EDITORA LTDA., 9a ED. BRASILEIRA, pág. 301, 1986).

Mais tarde, o bebê, ao perceber-se separado e singular, vai identificar-se de modo


secundário, com um outro. Nesta separação, além do luto, haverá espaço para a
melancolia, onde à perda, soma-se a idealização do objeto perdido, “perdido
enquanto objeto de amor”, “perda objetal retirada da consciência” (SIGMUND
FREUD, LUTO E MELANCOLIA, SE, XIV, pág. 251). O objeto perdido, fruto de uma
escolha narcísica, é incorporado ao EU por identificação (identificação secundária)
através da retirada da libido livre para esse mesmo EU: “Assim a sombra do objeto
caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial,
como se fosse um objeto, o objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetal se
transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa
separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela
identificação.” (SIGMUND FREUD, LUTO E MELANCOLIA, SE, XIV, pág. 255).

Continuando, Freud tinha a ideia de luto como uma reação, uma consequência à
partida e perda de um ente querido. Isso também incluiria a perda de qualquer
entidade abstrata que ocupou o lugar deste, como o ideal de liberdade ou o próprio
país. A natureza do luto se configura por um desolamento profundo e doloroso que
impede de se interessar pelo mundo ou novos objetos.

Contudo, embora seja difícil, é um período de reorganização libidinal. Aqui o sujeito


realoca a energia em objetos e ações para realizá-las enquanto se adapta. A
Psicanálise estuda o luto e atribui a ele um caráter singular. Dessa forma, consegue
ser vivenciado de muitas maneiras, com perdas ligadas diretamente a uma morte ou
perdas mais subjetivas.

Consequências da perda familiar

Perder alguém na família vai além da morte do indivíduo. Com ele vai também uma
grande parte nossa. Seria algo como amarrar uma corda a um peso e deixá-lo cair
em um rio. Contudo, na outra extremidade estaria um indivíduo sentindo aquilo o
arrastar.
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Essa força que o puxa para baixo com o falecimento de um ente acaba por declinar
a sua saúde. Algumas das consequências mais visíveis são:

Sensação de irrealidade

Custamos acreditar que aquele indivíduo tenha partido, negando o fato ainda que
apresente as provas. A sua essência permanece no mesmo ambiente, mas figurada
como uma ausência. Por conta disso, acreditamos que o mesmo irá contrariar a
opinião pública e retornar.

Depressão

Com a partida de um ente se cria uma aura de apatia. Mesmo que não tenha
percebido, esse desinteresse pelo mundo abre as portas para a depressão. Em
alguns casos está ligada com a ideia de honrar o familiar que se foi. Dessa forma,
se não estou vivendo a vida, estou mais perto de quem partiu e honrando sua
morte.

Culpa

Procuramos por todo o acontecimento da morte do familiar para entender as causas


da partida. Quando encontramos algo, tomamos isso para a gente. Procuramos
alguma justificativa para nos responsabilizarmos pela morte do familiar.

Raiva
A perda familiar é um catalisador natural para que sintamos raiva. Neste caminho,
podemos odiar as causas que resultaram na morte, de outras pessoas por estarem
bem e do próprio falecido. Isso porque, junto com a culpa que procuramos sentir,
também atribuímos o acontecimento como responsabilidade do próprio falecido.

Receio da solidão

A experiência de perder alguém nos coloca em uma situação de insegurança quanto


a vida. Isso porque temos ali a prova de que ninguém pode ser poupado. Com essa
clareza, percebemos que poderemos ficar sós a qualquer momento. A morte nos dá
medo do vazio e isso acaba conosco.

Pulsão da morte

Em contrapartida com o desejo da vida, chamado de Eros, há um impulso na


direção contrária. É o impulso da morte, Thanatos, visto como uma caminhada a
não-existência. O Thanatos busca a indução de impulsos destrutivos e agressivos,
procurando a quebra da matéria e o retorno a um estado inorgânico.

Quando perdemos um parente, podemos apresentar uma agressividade com os


outros e até conosco. É um movimento bem singular, caracterizado por:

Autodestruição interior

Com a perda, nutrimos um forte sentimento desintegrador. Ele é capaz de evaporar


as emoções e relações que nutrimos com o mundo exterior. A exemplo de outros
parentes, podemos feri-los de alguma forma, verbal principalmente.

Repetição

O sofrimento aqui ganha um viés quase que sado-masoquista. Ainda que soframos
a perda de alguém, tendemos a repetir o fato quantas vezes acharmos necessárias.
É uma flagelação à própria mente. Contudo, ainda que machuque, não
conseguimos nos liberar dela de imediato.

Reclusão
Os indivíduos buscam fugir da expansividade do impulso Eros, buscando diminuição
do desejo sexual. Isso acontece porque busca um descanso dessa força aquele
momento.

Perder um parente pode ser desolador para qualquer pessoa, visto que parte de nós
morre com ele. Os laços cultivados durante toda uma vida se desintegram sem a
menor cerimônia, algo que provoca rachaduras em nossa estrutura com a perda
familiar. De imediato, o impulso de segui-lo e resgatá-lo surge, mas acaba por nos
prejudicar também.

Ainda assim, devemos nos esforçar para nos libertar da sua partida. Aqui não está
em questão esquecer o parente, de modo algum, mas honrar a sua memória
continuando bem e vivos. Temos a chance que a ele foi retirada e devemos tirar o
melhor proveito que podemos. A vida é um bem único: deve ser aproveitada
enquanto vigente e respeitada quando acaba.

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