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(8/8/1999)
MILTON SANTOS
Cada época tem suas verdades e cria os seus mitos. A época atual é, por definição,
mitológica e dificulta o encontro da verdade.
A partir da constituição do Estado moderno, tudo isso era considerado como base
da soberania nacional e da competição entre nações. O exemplo mais eloquente é o
de Colbert, ministro de Luís 14, engenheiro, geógrafo, economista, estrategista e
estadista, preocupado com o traçado das estradas e canais na velha França, base,
ao mesmo tempo, do crescimento do país e da sua competição com os vizinhos e
com a Inglaterra. O território, assim visto, constituía um dado essencial da
regulação econômica e política, já que do seu manejo dependiam os volumes e os
fluxos, os custos e os preços, a distribuição e o comércio, em uma palavra, a vida
das empresas e o bem-estar das populações. Era por meio desses instrumentos
incorporados ao território que o país criava sua unidade e funcionava como uma
região do Estado. "Regio" tanto significa região quanto reger, governar.
Com a globalização, o território fica ainda mais importante, ainda que uma
propaganda insidiosa teime em declarar que as fronteiras entre Estados já não
funcionam e que tudo, ou quase, se desterritorializa. Na verdade, se o mundo
tornou possível, com as técnicas contemporâneas, multiplicar a produtividade,
somente o faz porque os lugares, conhecidos em sua realidade material e política,
distinguem-se exatamente pela diferente capacidade de oferecer às empresas uma
produtividade maior ou menor. É como se o chão, por meio das técnicas e das
decisões políticas que incorpora, constituísse um verdadeiro depósito de fluxos de
mais-valia, transferindo valor às firmas nele sediadas. A produtividade e a
competitividade deixam de ser definidas devido apenas à estrutura interna de cada
corporação e passam, também, a ser um atributo dos lugares. E cada lugar entra
na contabilidade das empresas com diferente valor. A guerra fiscal é, na verdade,
uma guerra global entre lugares.
Por isso, as maiores empresas elegem, em cada país, os pontos de seu interesse,
exigindo, para que funcionem ainda melhor, o equipamento local e regional
adequado e o aperfeiçoamento de suas ligações mediante elos materiais e
informacionais modernos.
Não é simples metáfora dizer, a partir desse raciocínio, que está havendo uma
entrega acelerada do território, já que o modelo econômico consagrado recusa ao
país as ferramentas da sua regulação, pondo-as em mãos outras (geralmente
estrangeiras), cujos projetos e objetivos podem ser inteiramente estranhos ou
adversos ao interesse nacional. É desse modo que áreas inteiras permanecem
nominalmente no território, fazendo parte do mapa do país, mas são retiradas do
controle soberano da nação.