A epistemologia (filosofia das ciências) não se confunde com a
gnosiologia (teoria do conhecimento). Só existe epistemologia porque existem ciências. No entanto, a distinção, que fazemos, entre epistemologia e teoria do conhecimento (gnosiologia) não é usualmente feita na língua inglesa, nem na italiana. Alguns manuais de filosofia também não fazem esta distinção. O manual da Didática Editora, A Arte de Pensar, do 11º ano, não faz esta distinção e identifica a epistemologia com a teoria do conhecimento. O manual Logos, da Santillana (Constância), identifica a epistemologia com a teoria do conhecimento e considera que "a Filosofia da Ciência é uma área da Epistemologia (ou Teoria do Conhecimento), que se debruça sobre o conhecimento científico". O manual O clube das ideias, da Areal, utiliza o termo Epistemologia para designar a reflexão sobre o conhecimento proposicional e o termo Filosofia da Ciência para designar a reflexão sobre a ciência e o conhecimento científico.
Ainda que ambas (gnosiologia e epistemologia) tenham o conhecimento
como objecto, o esquema seguinte ilustra, bem, a distinção que propomos. Contudo, a distinção a seguir representada também nos parece válida quando se usa o termo Epistemologia para designar o estudo do conhecimento proposicional e o termo Filosofia da Ciência para designar o estudo do conhecimento científico, basta substituir o termo Gnosiologia por Epistemologia e o termo Epistemologia por Filosofia da Ciência. Conhecimento vulgar e conhecimento cientifico
O conhecimento vulgar ou senso comum é o primeiro nível de
conhecimento que se constitui a partir da apreensão espontânea e imediata do real; adquire-se no trato direto com as coisas e com os outros homens, não resulta de nenhuma procura sistemática e metódica, nem exige qualquer estudo prévio, como o conhecimento científico. Este senso é comum a todos os homens e forma as condições materiais e espirituais em que a realidade é fixada como mundo de confiança, intimidade e familiaridade. No entanto, difere, ou pode diferir, de comunidade para comunidade, no espaço e no tempo. É um saber que inclui aquelas crenças amplamente partilhadas cuja justificação decorre da experiência coletiva e acumulada dos seres humanos e da popularização dos conhecimentos científicos (o heliocentrismo é disso um exemplo). Não é fácil dizer o que está incluído neste género de conhecimento. Seja como for, o senso comum abrange aquelas coisas que quase toda a gente sabe e que se vão aprendendo, desde muito cedo, de uma forma espontânea. Apesar do conhecimento vulgar fazer parte da consciência de um povo e ser funcional, não proporciona a compreensão dos fenómenos, das coisas e da realidade e pode mesmo conduzir a uma visão errónea da realidade. O conhecimento científico, ao contrário do senso comum, resulta de um esforço intelectual sistemático, metódico e controlado pela experiência para explicar, tão profundamente quanto possível, os fenómenos conhecidos. Os cientistas testam as teorias, confrontam-nas com a experiência e têm uma disposição geral para as modificar caso, estas, não estejam de acordo com aquilo que observam no mundo. Para isso, dispõem de um método próprio assistido por tecnologias e instrumentos e de uma linguagem técnica adequada para representar o objecto do seu estudo.
A ciência é uma construção que, podemos dizer seguramente, se
inicia na Grécia antiga e que nos seus primórdios não se distinguia da filosofia. Os fisiólogos (filósofos pré-socráticos) procuraram explicar as coisas pelas suas causas, como afirmou Aristóteles. Nos séculos XVI e XVII, com Galileu, Copérnico, Francis Bacon, Kepler, Giordano Bruno, Newton, a ciência começa um processo de autonomização em relação à filosofia e transforma-se, no que hoje se denomina ciência moderna, num conhecimento que, recorrendo à linguagem matemática, procura formular leis capazes de explicar os fenómenos. A matematização do real, a experimentação, a ideia de determinismo, a ideia de causalidade e a lei científica marcam o modelo de racionalidade científica da ciência moderna. A ciência ganha um novo impulso com os trabalhos de Einstein, Heisenberg e Bohr. Porém, a teoria da relatividade e a física quântica estão marcadas por um modelo de racionalidade radicalmente diferente da do período moderno. O modelo de racionalidade científica da ciência do século XX (ciência pós-moderna) está marcado pelas ideias de probabilidade, incerteza, indeterminismo e relatividade.
A ciência foi ganhando, desde a sua criação, o estatuto de único
conhecimento legítimo e fiável e representa, hoje, o estado mais avançado de evolução do conhecimento. Mas não é consensual que exista apenas um modelo de ciência. O objecto das ciências da natureza (ex: Biologia, Química) é diferente do das ciências sociais e humanas (Sociologia, Economia) e do das ciências formais (ex: Matemática, Lógica), como é diferente a metodologia que cada ciência usa para abordar o seu objecto. Contra Comte, que defendia que todas as Ciências deveriam adotar a metodologia das Ciências da Natureza, Dilthey propôs a distinção entre Ciências da Natureza e Ciências do Espírito. Às Ciências da Natureza, atribuiu-lhes o objetivo de explicar os fenómenos físicos. Às Ciências do Espírito, atribuiu-lhes a finalidade de compreender os fenómenos sociais e humanos. De qualquer modo, é o rigor da linguagem e do método, ainda que diversos, que assegura o estatuto de cientificidade das diferentes ciências.
Os manuais de filosofia apresentam como principais características
distintivas da ciência relativamente ao senso comum a objetividade, a sistematicidade e o método. Sendo o senso comum um conhecimento subjetivo, assistemático, espontâneo, superficial e dogmático e a ciência um conhecimento objetivo, sistemático, metódico e crítico.
A história da filosofia dá-nos duas reflexões epistemológicas,
radicalmente diferentes, sobre o influxo do conhecimento vulgar na produção do conhecimento científico.
• Karl Popper admite que o senso comum é um ponto de partida, ainda
que inseguro, para a ciência e para a filosofia. Sendo a crítica o grande instrumento para progredir do senso comum para um conhecimento mais profundo do real.
A ciência, a filosofia, o pensamento racional, todos devem partir do senso
comum. Não, talvez, por ser o senso comum um ponto de partida seguro: a expressão "senso comum" que estou aqui a usar é muito vaga, simplesmente porque denota uma coisa vaga e mutável - os instintos, ou opiniões de muitas pessoas, às vezes adequados ou verdadeiros e às vezes inadequados ou falsos. Como nos pode fornecer um ponto de partida uma coisa tão vaga e insegura como o senso comum? A minha resposta é: porque não pretendemos nem tentamos construir (...) um sistema seguro sobre esses "alicerces". Qualquer das nossas muitas suposições de senso comum (...) da qual partamos pode ser contestada e criticada a qualquer tempo; frequentemente, tal suposição é criticada com êxito e rejeitada (por exemplo, a teoria de que a Terra é plana). Em tal caso, o senso comum é modificado pela correção, ou é transcendido e substituído por uma teoria que, por menor ou maior período de tempo, pode parecer a certas pessoas como mais ou menos "maluca" (...). Toda a ciência e toda a filosofia são senso comum esclarecido. (...) A minha primeira tese é, pois, que o nosso ponto de partida é o senso comum e que o nosso grande instrumento para progredir é a crítica.
K. Popper (1975), Conhecimento Objetivo, Belo Horizonte, Editora da
Universidade de S. Paulo e Itatiaia Limitada, p. 42. • Gaston Bachelard, pelo contrário, considera o senso comum um obstáculo epistemológico, algo que impede a produção de conhecimento científico e com o qual é necessário fazer um corte epistemológico.
A ciência, na sua necessidade de realização como no seu princípio, opõe-se
absolutamente à opinião. Se lhe acontece, num aspeto particular, legitimar a opinião, é por outras razões que não aquelas que fundamentam a opinião; de tal maneira que a opinião não tem de direito qualquer razão. A opinião pensa mal; ela não pensa: ela traduz necessidades em conhecimentos. Designando os objetos pela sua utilidade, ela interdiz-se de os conhecer. Nada se pode fundar sobre a opinião: é necessário primeiro destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a superar. Não bastará, por exemplo, retificá-la em pontos particulares, mantendo, como uma espécie de moral provisória, um conhecimento vulgar provisório. O espírito científico interdiz-nos de ter uma opinião sobre questões que não compreendemos, sobre questões que nós não sabemos formular claramente. G. Bachelard (1996), La Formation de l'Esprit Scientifique, Paris, J. Vrin, p. 14.
Ciência e construção – validade e verificabilidade das
hipóteses É, sem dúvida, o método que confere credibilidade e objetividade ao conhecimento científico, mas a escolha de um método, isto é, dos meios (tecnologias, teorias, instrumentos) orientados por regras que estabelecem a ordem das operações, no sentido de se alcançar um determinado resultado, está dependente do tipo de objecto que se tem em vista. É o método, também, que permite distinguir os conhecimentos científicos dos que não o são, isto é, permite demarcar a ciência do senso comum e da metafísica. A filosofia da ciência (epistemologia) sistematizou dois grandes modelos metodológicos: o indutivo e o hipotético-dedutivo (conjetural). O método indutivo Chamamos método indutivo aos procedimentos metodológicos que formulam hipóteses a partir de dados de observações, isto é, partindo dos factos. O método indutivo começou a ser usado por Francis Bacon (século XVII) e foi, depois, defendido por Stuart Mill, Comte e pelos filósofos do Círculo de Viena (Mach, Schlick, Carnap). O indutivismo assenta em duas crenças: 1. o raciocínio indutivo é um raciocínio científico; 2. a experimentação é critério de confirmação empírica das teorias científicas. As operações fundamentais do método indutivo são:
O modelo indutivo parte da observação, analisa os dados para
estabelecer relações entre eles e submete as relações (hipóteses) à experimentação. Se a hipótese se confirmar, será generalizada e transformar-se-á em lei aplicável a todos os fenómenos do mesmo tipo. O método indutivo tem sido alvo de inúmeras críticas. Uma delas foi formulada de modo radical por David Hume e que podemos designar por problema da indução, por estar relacionada com a legitimidade racional da indução. Segundo Hume, a relação causal que se estabelece entre os fenómenos decorre do hábito. É após a conjugação constante de dois fenómenos que somos determinados pelo costume a esperar um a partir do aparecimento do outro. Assim, a generalização indutiva não é mais do que uma crença psicológica de que os fenómenos se repetirão do mesmo modo, tal como sempre aconteceu. Assim, a tentativa de justificar a indução por meio da experiência é circular porque implica um raciocínio indutivo que carece de justificação. Para Hume, a repetição e o hábito não são garantia racional ou lógica da indução, antes partem da crença na uniformidade da natureza. A crítica de Hume permanece viva e levanta, pelo menos, três dificuldades ao uso da metodologia indutivista na investigação científica. 1. Levanta, em primeiro lugar, o problema da legitimidade lógica da indução, ou seja, o problema da justificação lógica da passagem de enunciados particulares para enunciados gerais (da verdade de uma proposição particular não se pode inferir a verdade da proposição universal correspondente), o mesmo é dizer, o problema da legitimidade das leis científicas. 2. Levanta, em segundo lugar, o problema da validade dos juízos acerca do futuro ou de casos desconhecidos, o mesmo é dizer, o problema da legitimidade das previsões científicas. As previsões pertencem àquilo que ainda não foi observado e não podem ser inferidas logicamente daquilo que já foi observado, porque o que aconteceu não impõe restrições lógicas àquilo que acontecerá. 3. Levanta, ainda, o problema da causalidade, ou seja, o problema da legitimidade da conexão causal entre acontecimentos. A ilusão da causalidade provém, segundo Hume, da confusão entre conjunção ou sequência de acontecimentos com a sua conexão causal. Na verdade, «p e q» não é o mesmo que «p implica q». Segundo Hume, a ideia de conexão necessária resulta de um sentimento interno adquirido pelo hábito. O método hipotético-dedutivo Podemos dizer que foi Karl Popper o grande teórico do método conjetural, também chamado de método crítico, mas o método hipotético- dedutivo tinha sido já teorizado, como metodologia da investigação científica, por Galileu e Descartes, criadores da ciência moderna. Também Popper foi um crítico do raciocínio indutivo, ainda que com argumentos diferentes daqueles que foram usados por Hume. O Modelo hipotético-dedutivo sustenta a tese de que as hipóteses são criações do espírito humano, propostas como conjeturas que respondem a um facto- problema/fenómeno. O conjecturismo assenta em duas crenças: 1. o raciocínio indutivo não é um raciocínio científico, o raciocínio científico é dedutivo; 2. é impossível demonstrar através da experimentação a verdade empírica de uma teoria científica, a experiência apenas a pode refutar/falsificar; Os momentos fundamentais do método conjetural são:
Sabemos que do ponto de vista de uma racionalidade lógica, as
inferências indutivas não conferem ao conhecimento científico uma validade universal, nem uma necessidade lógica. Contudo, a perspetiva de Popper, apesar de parecer ser mais consistente que o indutivíssimo, não está isenta de críticas. 1. Uma delas resulta do facto de que a refutação ou a falsificação de muitas teorias científicas não ser assim tão simples. É verdade que basta uma observação para refutar uma hipótese. Contudo em ciência, as teorias são complexas e pressupõem um conjunto de leis, hipóteses e condições que eventualmente podem não estar corretas sem que isso coloque em causa a teoria geral explicativa dos fenómenos. Pode-se sempre proteger uma teoria invocando um argumento retirado da complexa teia de relações em que está inserida ou mesmo do estado do desenvolvimento tecnológico. Aliás, mesmo para Popper, os dados empíricos são falíveis e estão eles próprios dependentes da teoria. Assim, quando uma evidência que resulta da experiência entra em conflito com a teoria, pode ser que seja a observação que esteja errada e não a teoria. 2. Outra resulta do facto do processo falsificacionista não ser a prática habitual dos investigadores. Os cientistas pesquisam sobretudo com o propósito de confirmar as hipóteses e continuam a defendê-las ainda que algumas evidências empíricas não as suportem e enquanto não aparece nenhuma teoria alternativa capaz de as substituir. 3. Podemos ainda comentar que se, como afirma Popper, as teorias, mesmo as que vão resistindo às tentativas de falsificação, não deixam de ser meras conjeturas, então não temos quaisquer razões para confiar nelas. Assim, parece que confiar nelas é de alguma forma irracional. No entanto, os artefactos que se foram construindo com base nelas vão funcionando e comportam-se do modo como elas o descrevem. De certa forma, podemos afirmar que Popper tende para uma perspetiva cética e para o relativismo. O problema da legitimação das hipóteses O que permite distinguir teorias científicas de teorias não científicas? Esta pergunta constitui o que, depois de Popper, passou a ser designado por problema da demarcação. Karl Popper é um crítico do modelo indutivo e, seguindo Hume, afirma a impossibilidade lógica de verificação de uma hipótese científica, isto é, nega que a indução possa ser adotada como um procedimento científico, pois não reconhece que esteja na formulação de hipóteses ou na sua confrontação experimental. Para ele, o modelo indutivo não pode nunca fazer verdadeira uma teoria, nem mesmo mostrar que é verdadeira. Quem julgar que a partir da verificação das consequências que se deduziram da hipótese é possível comprová- la, está a cometer a falácia da afirmação do consequente. O único objetivo dos testes a que se submete uma hipótese é o de falsificá-la e não o de verificá-la, pois basta um facto contrário para a refutar e nenhum número de factos favoráveis é suficiente para a confirmar. A refutabilidade é, para Popper, o critério de demarcação entre o que é ciência e o que não é ciência (pseudociência) e, deste modo, altera a relação da ciência com a verdade. Uma teoria científica deixa de poder ser considerada verdadeira e só pode ser considerada verosímil. Todas as teorias científicas são conjeturas que vão sobrevivendo enquanto forem resistindo aos testes, mais cedo ou mais tarde serão substituídas.
A racionalidade científica e a questão da objetividade
Os processos metodológicos, o rigor e universalidade da linguagem e o
efeito operatório dos conhecimentos que a prática científica tem vindo a produzir, imprimiram ao conhecimento científico um estatuto de racionalidade e objetividade quase inquestionáveis. Apesar de existirem outras formas de apropriação do significado do real, como a religião, a arte ou a filosofia, nenhuma possui esse estatuto de objetividade. Mas qual é o valor da racionalidade científica? É o conhecimento científico objetivo? Para Popper a sucessão das teorias constitui o progresso da ciência em direção à objetividade. As teorias que vão sendo rejeitadas inscrevem-se no movimento racional de aproximação à verdade, meta inalcançável. Thomas Khun foi um crítico das teorias indutivista e falsificacionista e desenvolveu, com base no estudo atento da história da ciência, uma teoria em que se destaca a ideia de que a ciência não tem a objetividade e a racionalidade que usualmente se lhe atribui. A perspetiva de Thomas Kuhn Segundo Kuhn, a ciência suficientemente amadurecida estrutura-se e orienta-se por paradigmas. Na ausência de um paradigma, não existe ainda ciência propriamente dita. Permanece-se, ainda, no período da pré-ciência. A pré-ciência corresponde à atividade desorganizada e diversa que marca o período que precede a formação de uma ciência e que termina quando uma comunidade científica adere a um paradigma. Neste período, não existe ainda um trabalho concertado entre os investigadores, nem um acordo acerca dos fundamentos da investigação científica. São os paradigmas que fundam a ciência e organizam o trabalho dos cientistas. Um paradigma é uma estrutura teórica que oferece a uma comunidade de investigadores uma visão do mundo e uma forma específica de fazer ciência. O período pré-científico é ultrapassado quando alguém propõe uma teoria de tal modo poderosa que toda a comunidade de investigadores se une em seu torno. O conceito de paradigma apresenta-se como o conceito central da filosofia da ciência de Kuhn e encerra em si alguns elementos distintivos. 1. Um paradigma inclui, antes de mais, leis e pressupostos teóricos fundamentais. Centra-se num corpo de leis científicas e de pressupostos gerais acerca do que uma teoria científica deve ser. Por exemplo, o paradigma copernicano centra-se na tese heliocêntrica, e o paradigma newtoniano nas leis do movimento e na lei da gravitação universal de Newton. 2. Um paradigma inclui também regras para aplicar as leis à realidade, ou seja, mostra como lidar com objetos e situações concretas a partir das leis. Por exemplo, o paradigma newtoniano inclui regras para aplicar as leis de Newton a objetos como planetas, pêndulos e bolas de bilhar. 3. Além disso, um paradigma integra regras para usar instrumentos científicos. Por exemplo, o astrónomo dinamarquês Tycho Brahe (1546- 1601) desenvolveu instrumentos para o paradigma copernicano que permitiram formular as leis do movimento dos planetas. Um paradigma diz que instrumentos se devem usar e como fazê-lo. 4. Por fim, um paradigma envolve princípios metafísicos e filosóficos. Um paradigma diz-nos que coisas existem no mundo e contém pressupostos gerais sobre a natureza e o funcionamento do universo, como o pressuposto de que tudo o que acontece tem uma causa e obedece a leis deterministas. A ciência normal Kuhn defende que, depois da instituição de um paradigma, se inicia um período de ciência normal. O paradigma determina o trabalho dos cientistas durante este período. Quando surge o paradigma é bastante impreciso e deixa em aberto uma infinidade de questões, o que permite que se desenvolva muita investigação a partir dele. A ciência normal caracteriza-se, pois, pelas tentativas de desenvolver o paradigma, tornando-o mais pormenorizado e completo. Os investigadores envolvidos na ciência normal não estão interessados em grandes problemas. Em vez disso, resolvem enigmas geralmente muito específicos e detalhados à luz de um paradigma. Um dos muitos enigmas teóricos que os cientistas que trabalhavam sob o paradigma newtoniano enfrentaram foi o de desenvolver pressupostos adequados para aplicar as leis de Newton ao movimento dos fluidos. E um enigma experimental foi o de tornar mais rigorosas as observações telescópicas. A ciência normal é uma atividade de resolução de enigmas, tanto teóricos como experimentais, governada pelas leis e regras do paradigma. Durante os períodos de ciência normal, os cientistas não são críticos em relação ao paradigma no âmbito do qual trabalham. O paradigma é aceite por uma comunidade científica que, ao contrário do que acontece no período de crise do paradigma ou, até mesmo, no período da pré- ciência, não questiona os pressupostos teóricos a partir dos quais a sua atividade se desenvolve. Esta atividade consiste num esforço para alargar o leque dos factos explicáveis pelo paradigma e de articular as teorias que o paradigma já inclui. No entanto, a comunidade científica não procura a invenção de novas teorias, nem a descoberta de novos tipos de fenómenos. Aliás, nem todos os fenómenos da natureza interessam ao cientista, é o paradigma no qual trabalha que determina que fenómenos observáveis têm interesse, uma vez que são aqueles que terão solução dentro dele. Anomalias e crise do paradigma A atividade de resolução de enigmas nem sempre corre da melhor forma. Por vezes, os cientistas vêem-se confrontados com um enigma que não conseguem resolver recorrendo ao paradigma - mas que supostamente deveriam conseguir resolver. Surge então uma anomalia. Uma anomalia é um enigma, teórico ou experimental, que não encontra solução no âmbito do paradigma vigente. Quando surge uma anomalia, como uma falsificação experimental, não se consegue fazer ajustar devidamente a natureza ao paradigma: a natureza não se comporta como seria de esperar. Mas a mera existência de anomalias isoladas não provoca uma crise, não conduz a uma quebra de confiança no paradigma. Numa primeira fase, a comunidade científica é levada apor em causa a investigação ou o investigador que a conduziu. Uma anomalia só será considerada séria se ameaçar os fundamentos do paradigma, se resistir durante demasiado tempo às tentativas de solução ou se puser em causa a satisfação de qualquer necessidade social. E, sempre que podem, os cientistas procuram ignorar a anomalia ou diminuir a sua importância, esperando que um dia o fenómeno que lhe dá origem possa ser acomodado pelo paradigma. Kuhn critica o falsificacionismo de Popper porque o que observa na prática científica é uma tentativa de salvar a todo o custo o paradigma vigente, e não um esforço constante para falsificar as teorias adotadas. Apesar disto, a existência de anomalias que ameacem os princípios fundamentais do paradigma ou tenham importância prática favorece, de facto, a emergência de uma crise. Uma crise é um período de insegurança evidente durante o qual a confiança num paradigma é abalada por sérias anomalias. Ciência extraordinária e revolução científica As anomalias tornam-se tema de amplo debate na comunidade científica. Progressivamente instala-se um momento de ciência extraordinária, indispensável ao surgimento de uma revolução geradora de um novo período de ciência normal. A ciência extraordinária corresponde ao período de crise, em que se confrontam propostas explicativas novas e incompatíveis a com os procedimentos e crenças do paradigma vigente. Durante este período, os fundamentos do paradigma vigente acabarão por ser questionados e serão levadas a cabo disputas metafísicas e filosóficas que, geralmente, em nada contribuem para a manutenção do paradigma. O fim de uma crise na ciência depende, obviamente, do surgimento de um paradigma rival que conquiste a adesão da comunidade científica. Todavia, a implantação de um novo paradigma não ocorre rápida e facilmente. Os cientistas resistem a abandonar o paradigma no qual trabalham, chegando mesmo a negar a evidência de algumas anomalias. Além disso, para que um novo paradigma se imponha, é preciso que primeiro surja uma nova teoria proposta por um cientista profundamente envolvido na crise. Só quando isso acontece, pensa Kuhn, se dá o passo decisivo para uma revolução científica. A revolução científica corresponde ao abandono de um paradigma e à adoção de outro paradigma (novo) por parte de toda a comunidade científica. Contrariamente a Popper, que acredita que a ciência está em permanente revolução, Kuhn afirma que as revoluções na ciência são raras. Uma revolução científica corresponde à aceitação, pela comunidade científica, de um novo paradigma incompatível com o anterior. A incomensurabilidade dos paradigmas Cada paradigma apresenta-nos um mundo constituído por objetos diferentes. A química anterior a Antoine Lavoisier (1743-1794), por exemplo, afirmava que na natureza existia uma substância chamada flogisto que explicava a combustão, mas no paradigma de Lavoisier o flogisto desapareceu. A teoria do eletromagnetismo de James Clerk Maxwell (1831-1879) postulava a existência de um éter no universo, mas o paradigma de Einstein eliminou o éter. Os conceitos que fazem parte de um paradigma não são, pois, aqueles que surgem com o paradigma posterior. E assim, sustenta Kuhn, não há forma de fazê-los corresponder, ou seja, é impossível dizer que um conceito de um paradigma corresponde a um outro conceito do paradigma que o substituiu. As questões investigadas no âmbito de cada paradigma são também bastante distintas, assim como os critérios que permitem determinar o que importa observar e o que é central ou periférico na teoria. Além disso, os cientistas que aderem a paradigmas diferentes aceitam pressupostos metafísicos diferentes e trabalham à luz de métodos específicos também distintos. A mudança de paradigma é holística (palavra de origem grega holos, que significa todo), porque os aspetos que constituem o paradigma mudam em conjunto, como um todo e não de forma isolada ou independente. O paradigma determina de tal forma a sua visão do mundo que, quando olham na mesma direção, dois cientistas que aceitam paradigmas diferentes vêem mundos diferentes. Entre os paradigmas existe, portanto, um abismo intransponível. Os paradigmas são, afirmava Kuhn, incomensuráveis. A incomensurabilidade dos paradigmas é a impossibilidade de compará-los objetivamente de maneira a concluir que um é superior ao outro, uma vez que eles propõem modos incompatíveis de conceber a realidade e a ciência. Dado que Kuhn pensa que os paradigmas são incomensuráveis, pensa igualmente que não dispomos de um critério neutro, de uma medida comum, que nos permita afirmar que o novo paradigma está mais próximo da verdade que o paradigma anterior - não se pode mostrar que o novo paradigma constitui um avanço em direção à verdade. Dizer que um paradigma constitui um avanço em relação ao seu antecessor implicaria comparar paradigmas entre si. Por isso, os proponentes do velho paradigma não podem ser objetivamente compelidos a rejeitá-lo. Critérios objetivos e fatores subjetivos A tese da incomensurabilidade pode levar-nos a pensar que Kuhn defende que a escolha de paradigmas é completamente arbitrária. Todavia, como vimos, Kuhn acredita que as boas teorias científicas partilham certas características, que as demarcam da má ciência ou da pseudociência. 1. A exatidão ou precisão consiste na concordância entre as previsões decorrentes do paradigma (ou entre as previsões decorrentes das teorias fundamentais que compõem o paradigma) e os resultados das experimentações e das observações. Este é o mais decisivo dos cinco critérios, por ser o mais preciso e, também, por si especialmente valorizado pelos cientistas. 2. A consistência de um paradigma (ou de uma das suas teorias fundamentais) é tanto a sua consistência lógica interna, como a sua compatibilidade com outras teorias amplamente aceites e com aplicações reconhecidas a fenómenos afins. 3. O alcance ou a abrangência de um paradigma (ou de uma das suas teorias fundamentais) consiste na quantidade e na diversidade de fenómenos e de leis que o paradigma (ou uma das suas teorias fundamentais) abrange. 4. A simplicidade de um paradigma (ou de uma das suas teorias fundamentais) é parcimónia das suas explicações. Uma explicação é tanto mais parcimoniosa quanto menor é o número de leis a que apela para explicar os fenómenos observáveis e também quanto maior é o número de fenómenos dispares que, desse modo, consegue explicar. 5. A fecundidade de um paradigma (ou de uma das suas teorias fundamentais) é sua capacidade para originar novas descobertas científicas. Ora, estas características (precisão, abrangência, consistência, simplicidade e fecundidade) deveriam poder também contribuir significativamente para a comparação de paradigmas rivais, tornando a escolha de um deles um processo de decisão inteiramente objetivo. De facto, estes critérios objetivos de apreciação de teorias têm um papel a desempenhar na escolha dos investigadores. Contudo estes critérios não bastam para que a mudança de paradigmas se possa classificar como um processo objetivo. Kuhn afirma que a exatidão, a consistência, o alcance, a simplicidade e a fecundidade, embora sejam características valorizadas por todos os cientistas, não determinam a escolha entre paradigmas. Partindo do mesmo conjunto de critérios, dois cientistas podem chegar a conclusões muito diferentes; ou porque um valoriza mais um desses critérios do que o outro, ou até porque os interpretam de maneira diferente. O modo diferente como aplicam o mesmo conjunto de critérios (um cientista valoriza mais a simplicidade enquanto o outro prefere uma teoria menos simples e mais fecunda, por exemplo) só é explicável com recurso a fatores pessoais, como a experiência anterior e a personalidade; a fatores sociais, como o contexto político, económico e religioso; e a fatores grupais, como a pressão dos pares ou dos elementos mais influentes da comunidade científica. São estes fatores subjetivos ou critérios individuais, associados aos critérios objetivos ou partilhados, que explicam a preferência por um ou outro paradigma. O desenvolvimento da ciência não é, portanto, um processo absolutamente racional de eliminação de teorias falsas à luz de critérios objetivos, mas uma sucessão de paradigmas escolhidos por uma combinação de critérios objetivos e fatores subjetivos. As mudanças que ocorrem na ciência estão, assim, dependentes dos contextos sociais e psicológicos em que os cientistas se movem. A experimentação e os testes empíricos não podem servir de critério objetivo na separação das boas ou más teorias (critério de demarcação), como pensava Popper, uma vez que é o paradigma que confere sustentabilidade a uma teoria. Podemos afirmar que, segundo Kuhn, o desenvolvimento da ciência processa-se do seguinte modo: Pré-ciência → Paradigma → Ciência normal → Crise do paradigma/Ciência extraordinária → Revolução científica → Paradigma → … Crítica à perspetiva de Kuhn É a tese da incomensurabilidade que recebe as principais críticas que se pode fazer à perspetiva de Kuhn. Kuhn afirma que um paradigma entra em crise quando a acumulação de anomalias coloca em causa os seus fundamentos, quando este já não é capaz de responder aos enigmas colocados pela experiência. O novo paradigma que emergiu é capaz de solucionar os aspetos enigmáticos da experiência que levaram ao abandono do velho paradigma. Assim, a tese da incomensurabilidade parece não fazer sentido. Os paradigmas não são completamente incomensuráveis, uma vez que o novo paradigma parece apresenta-se como superior ao velho e as anomalias que existiam no anterior deixaram de existir no novo. Outra crítica que se faz a Kuhn radica igualmente na ideia de incomensurabilidade. Se os paradigmas são incomensuráveis, como defende Kuhn, e por isso não é possível compará-los entre si, nem concluir que um é superior ao outro. E se a impossibilidade de comparação impede a convicção de aproximação à verdade, então podemos acusar Kuhn de ser relativista , apesar dele ter recusado esta acusação. A tese de que não há, em ciência, uma aproximação à verdade até pode ser verdadeira, mas que as teorias hoje aceites permitem explicar, prever e controlar com mais sucesso os fenómenos também é verdade, como se pode depreender das aplicações científicas mais atuais que produzem melhores resultados do que as aplicações científicas mais antigas. A ciência parece, assim e cada vez mais, trilhar os caminhos da racionalidade e da objetividade. As perspetivas de Popper e Kuhn acerca da evolução e da objetividade da ciência. Depois das reflexões epistemológicas de Popper e Kuhn, a ciência deixa de ser definida a partir das categorias de objetividade, neutralidade e universalidade, para ser enquadrada a partir das noções de intersubjetividade, contextualidade e relatividade. Popper e Kuhn deram um contributo determinante para a compreensão da natureza da ciência e para o modo como esta se desenvolve.