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Jean-Michel BEAUDET

1997 Sopros da Amazônia: as orquestras tule dos wayãpi. [Tradução de Sou-


ffles d’Amazonie: les orchestres tule des wayãpi. Nanterre: Sociedade de Et-
nologia. 213 pp.]

tradução inédita
É FAVOR NÃO CITAR

Como se tornar um cacique cantando? Quando se pode se-


duzir uma moça nova com o toque da flauta? Por que os
músicos duma festa se deixam vitimar pela cobra sucuri?
É uma verdadeira encenação do sopro o que os wayãpi
nos fazem quando tocam as tule, estas grandes clarinetas
de bambu: alternâncias de timbres que remontam mesmo
aos princípios das músicas da América do Sul, um jogo en-
tre solista e grupo que exprime e produz interações sociais
no seio da aldeia.
Relatamos as seções musicais de maneira concreta, com
os comentários e mitos que a estas dizem respeito, a trazer
à tona a maneira como os wayãpi vivem a música. Vere-
mos assim como o seu pensamento musical se inscreve
nos sistemas amazônicos de representação: no delinea-
mento do ambiente natural, nas relações entre mulheres e
homens, na história antiga e na recente.

FOTO
Ilustração de capa: Com atenção e sopro constantes, Miso e Yemiwa participam da tule dos pei-
xes. Aldeia Pina, no Alto Oiapoque, 1981.

Jean-Michel Beaudet é um dos raros especialistas em músi-


ca sul-americana na França; esteve em numerosas ocasi-
ões a estudar nas aldeias ameríndias no Brasil, na Guiana e
na Bolívia, adquirindo assim um conhecimento tão íntimo
quanto erudito das culturas musicais da grande Amazônia.
É atualmente maître de conférences na Universidade de
Paris X, Nanterre.

Sob a égide da Sociedade Francesa de Etnomusicologia, a


coleção “Homens e Músicas” publica pesquisas substanciais
de conhecimento profundo na área. Encontra-se sob a dire-
ção de Mireille Helffer.
Comitê editorial: Vincent Dehoux, Bernard Lortat-Jacob,
Jean-Jacques Nattiez. Secretariado de edição: Laurence
Fayet; preparação, composição e paginação dos manuscri-
tos: Sophia Mejdoub. Montagem da capa: Jean-Marc Cha-
vy.
HOMENS E MÚSICAS
COLEÇÃO
DA
SOCIEDADE FRANCESA DE ETNOMUSICOLOGIA
III

A presente obra, sob os auspícios da


Sociedade Francesa de Etnologia, se publicou graças ao concurso do
Ministério da Cultura e da Francofonia
(Seção de Música e Dança)
e da Universidade de Paris X

© Sociedade de Etnologia 1997


ISBN 2-901161-56-1
[97-05]

Oykuwakatu neyowaka ipilau


Ipiipipewe neyowaka ipilau
Ikanikaningatu neyowaka ipilau.

“Bem vemos as vossas pinturas corporais,


grandes peixes
Mesmo no fundo d’água.
Como serpenteiam belas, as vossas pinturas,
grandes peixes!”
(Dança pilau, décima estrofe.)
PREÂMBULO

ESTE LIVRO trata da música da Amazônia. A diversidade musical, nesta imensa região, é
tão numerosa e tão sensível, que é impossível projetar uma imagem global de tais mú-
sicas, oferecer uma representação geral e sintética sua. Todavia, o sopro sonoro, que
em língua tupi se designa com o verbo pi, experiência e noção fundamentais a um só
tempo, consiste num dos fios da meada a nos guiar, com precisão, através de todas
estas civilizações musicais.
É certo que o sopro é o canto, as diferentes maneiras de cantar, mas é também os
gritos, às vezes bem ritualizados, e é, sobretudo, o sopro do xamã. Nas seções de xa-
manismo, o sopro é um objeto que se dispõe num cenário sonoro e, através da fumaça
do tabaco, num cenário visual.
Sopro dos cantos, dos gritos rituais, do panorama xamanístico, mas também sopro
dos instrumentos. Com efeito, em toda América do Sul, a música instrumental é, mais
que qualquer coisa, mais que alhures, uma música de instrumentos de sopro: os ae-
rofones, em solo, em duo, em orquestra, conformam a categoria de objetos sonoros
que é, de longe, a mais rica e diversificada.
Escolhi enfocar esta exposição duma música amazônica numa orquestra de instru-
mentos de sopro: as tule. As tule, grandes clarinetas de bambu, e as formações or-
questrais que a elas se associam, permaneciam bem mal documentadas, quase inau-
ditas, até os últimos anos. Todavia se as encontra em toda a Amazônia e, graças à di-
versidade das músicas que se toca nessas clarinetas, graças à diversidade das repre-
sentações que produzem, nos oferecem elas uma via de acesso privilegiada e apaixo-
nante por este universo sonoro amazônico.
Para ser ainda mais preciso, esta obra trata do repertório dum conjunto de aldeias:
as tule dos wayãpi do Alto Oiapoque, na Guiana Francesa. Com efeito, se trata duma
música de beleza surpreendente, tanto quanto ao material acústico, que cativa desde a
primeira audição, como quanto às sutilezas que a análise musicológica desvela. Tam-
bém compõe ela um repertório vivo, ativo nos intercâmbios sociais, e assim podere-
mos entrar na intimidade dessas aldeias através da música, vindo compreender os
homens através desta respiração coletiva que eles nos trazem à escuta.

*
* *

Reconhecer nossos débitos, no princípio duma obra, pode redundar no prazer de


reunir pessoas que pertencem a mundos às vezes bem distantes, algumas das quais
jamais se encontraram.
As mulheres e os homens do Oiapoque me ofereceram muita coisa: um prato de
peixe, um susto nas corredeiras, um riso súbito, um conserto do motor de popa, um
apelido incompreensível, um abraço do xamã, uma sutil lição de caça, uma cruel lição
de etiqueta, chamados na floresta, uma cabaça de cauim, outra cabaça de cauim...
Minha expectativa não é a de que eles se reconheçam neste texto, mas que reco-
nheçam nele o intercâmbio que mantivemos, ou seja, que este livro, à sua maneira,

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SOPROS DA AMAZÔNIA

participe da dinâmica desta aliança, traduza o prazer de escutar, de tocar, de pensar


juntos uma música e o seu mundo.
Este intercâmbio peculiar se inseriu primeiro, para os wayãpi e mesmo para mim,
num contexto científico que estabeleceram os pesquisadores do centro da Orstom
[hoje IRD] em Caiena. Entre eles, o botânico Jean-Paul Lescure, que principiou os pro-
gramas de etnociência, e depois Pierre e Françoise Grenand que, de certo modo, os di-
namizaram. A pesquisa sobre a música wayãpi tomou a forma de uma tese defendida
em 1983, a qual veio ensejar os materiais e as primeiras análises desta obra. Essa
tese contou com a orientação de Gilbert Rouget, com a consciência e a humanidade
que fizeram o seu renome. Eu o agradeço profundamente, assim como a Henri Lavon-
dès, François-Bernard Mâche e Patrick Menget que, com sua atenção paternal, contri-
buíram com orientação e encorajamento ao meu trabalho. Agradeço às seguintes ins-
tituições pelo seu apoio financeiro a essa pesquisa: o Instituto Francês de Pesquisa Ci-
entífica para o Desenvolvimento em Cooperação (Orstom), o Ministério da Cultura, o
Laboratório de Etnomusicologia (UMR 79957 do CNRS) e o conselho científico da Uni-
versidade de Paris X. Pela leitura cuidadosa, nas diversas etapas do manuscrito, agra-
deço a Suzanne Beaudet, Philippe Erikson, Mireille Helffer, Bernard Lortat-Jacob e Je-
an-Jacques Nattiez. Está claro que assumo a responsabilidade pelas insuficiências ou
pelos erros que restam nestas páginas. Agradeço também a Anne-Florence Borneuf e a
Laurent Venot. Por fim, saúdo a minha companheira Rosalía Martínez, cujo vigor inte-
lectual e generosidade de coração resultaram num aporte inestimável a esta obra.

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CONVENÇÕES ORTOGRÁFICAS

AS PALAVRAS wayãpi estão escritas em itálico. As convenções gráficas que aqui segui-
mos são conformes com as que usam os etnolinguistas da Guiana Francesa. Os sinais
correspondem à transcrição do Alfabeto Fonético Internacional, exceto as seguintes:

e no A.F.I. ε
ẽ εñ
o 
õ 
y j
ng ŋ
ñ 

O , que se pronuncia entre o i e o u, é próximo do y, na escrita da língua tupinam-


bá.

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INTRODUÇÃO

Uma noitada musical

AS TULE dos wayãpi são pequenos concertos, o mais das vezes dançantes que, animan-
do as reuniões de bebedeira{XE "Cauim, beber"}, embelezam a aldeia por uma noite.
Atos de prazer coletivo, realização e reverberação dum lazer comunitário, foi assim, ao
menos, que elas se me afiguraram no Alto Oiapoque, na Guiana Francesa, por volta de
1980.
Esses concertos são como que justapostos às reuniões de bebedeiras que, aliás,
ocorrem com maior freqüência que tal suplemento musical. São também imperfeitos,
sua execução é incompleta, e esta imperfeição sistemática é reconhecida, discutida.
Todavia, implicam eles questões tão importantes quanto a afirmação política{XE "Polí-
tica"} dum grupo de parentesco, assuntos dum âmbito tão profundo quanto uma defi-
nição característica de humanidade.
Contradição duma música risível e grave ao mesmo tempo, divertida e de outra era;
música que a um só tempo apresenta traços individuais e coletivos, parecendo não
querer se afastar destes pólos, como se a mistura, a multiplicidade lhe fossem própri-
as. E talvez a característica fundamental das tule seja justamente afirmar e pensar as
contradições, organizar uma experiência física, sensível da contradição, no âmbito de
uma dança e um sopro{XE "Sopro"} coletivos. Essa música orquestral oferece uma re-
presentação do mundo como variações individuais em torno dum centro heterogêneo,
posto que unitário. Os concertos participam da constituição da pessoa, integrando o
indivíduo ao grupo, sem mascarar as contradições inerentes a estas transposições. Isto
ocorre por ensejo duma música que se fundamenta numa alternância estrita entre so-
los e tutti, e duma organização orquestral que, por sua vez, se fundamenta numa in-
terdependência direta entre os músicos, num entrecruzamento literal das partes or-
questrais. Assim, a tule é, desde o princípio, um concerto, e o é na acepção primordial
do termo, ou seja, a natureza e a intenção dessa música, o ‘porquê’ das tule é tocar e
soar junto, é estar bem junto.
As tule exprimem esta integração, mas sobretudo elas a conformam, dão a esta
uma forma, à mesma maneira que o fazem, por exemplo, os trabalhos coletivos, ou
melhor, as reuniões de bebedeiras{XE "Cauim, beber"}, justo às quais aquelas se as-
sociam. Essa integração não releva uma norma imutável: é um arranjo cambiante, que
se reconhece como tal, ao qual os homens oferecem um sopro{XE "Sopro"} sonoro,
uma ressonância particular, à escuta e ao comentário. Os elementos estilísticos e o di-
namismo formal significam a tendência e o status dessa integração, do arranjo políti-
co{XE "Política"} da aldeia, e duma visão de mundo. Estas músicas wayãpi, do ponto-
de-vista do seu repertório e da sua execução, fazem parte dum sistema significante
mas, sobretudo, não se satisfazem elas com a expressão: com os seus componentes
de fixidez e variabilidade, essas músicas transformam os intercâmbios e a sua gramá-
tica. “A arte não reflete uma concepção do mundo, mas contribui, por meios específi-

6
INTRODUÇÃO

cos, para produzi-la” (Molino 1984: 295). Mais que de obras musicais, estarei a falar
aqui de músicas em ato.
Os conjuntos de clarinetas tule e o seu repertório estão entre as músicas mais vivas
do Alto Oiapoque; no entanto, não representam elas mais que uma fração do conjunto
da produção musical dos wayãpi. Para além de características sonoras assim tão parti-
culares, o dinamismo dessa música certamente contribuiu para que eu, no princípio
dos anos oitenta, me deixasse seduzir a ponto de fazer dela objeto de minha tese de
doutoramento. A maioria das observações e reflexões que aqui se apresenta datam,
portanto, de alguns anos. Mas as ambições que figuraram então na origem deste tra-
balho permanecem válidas hoje, e me levam, após uma re-elaboração do conjunto, a
rematar a sua publicação, com o suporte de novas visitas aos meus amigos wayãpi.
Trata-se, antes de tudo, de chamar a atenção para a música orquestral da
Amazônia. Se são famosas as orquestras andinas de flautas de pã, o mais das vezes se
ignora os conjuntos orquestrais das terras baixas, e este estudo específico se propõe a
contribuir para afirmar e definir o seu lugar. Já foi dito e redito (Seeger 1979 e 1987;
Beaudet 1982 e 1993) que a música das terras baixas da América do Sul é muito pou-
co conhecida: nenhum verdadeiro estudo geral, comparativo, e não mais que alguns
estudos de caso, raros, porém de qualidade. Assim, esta monografia se situa é no âm-
bito desta ignorância ainda excessiva das músicas da Amazônia, em que se concede,
conscientemente, um amplo espaço para a etnografia descritiva. Entretanto, estes
mundos sonoros (Aytai 1985; Canzio 1992) não só chamam a atenção pela riqueza
que desvelam, mas também pelo desafio que de pronto colocam para os etnomusicó-
logos: a impossibilidade de os compreender como sistemas autônomos, quer dizer,
apenas a partir de parâmetros de ordem musical.
A segunda proposição é de ordem metodológica: virá ela a apresentar a música
dum povo como um conjunto de jogos distintivos e contrastantes. Sob este ponto-de-
vista, as tule se definem e interpretam, tanto quanto possível, através da correlação
com outras produções musicais. Estas distinções não virão à luz, conforme veremos, a
menos que se integre todos os componentes musicais: instrumentos, acústica, técnica
de tocar, elementos formais, repertórios, atores, circunstâncias, representações corre-
latas...
Finalmente, trata-se de demonstrar que a natureza e a organização da música das
tule implica uma relação específica entre os músicos. A seguinte questão poderia então
formular a ambição teórica que estas análises subentendem: como cada operação mu-
sical contribui para formar e orientar a sociedade? Em outras palavras, quero afirmar
que as produções musicais não são condicionadas pelas possibilidades econômicas, não
se condicionam a um sistema de representações, mas participam diretamente das es-
colhas da civilização. Se creio ser necessário analisar este conjunto de músicas como
um sistema, me parece indispensável que se dê exemplos simultâneos da manipulação
de tal sistema, exemplos de linguagens atuantes; que se compreenda como os homens
se produzem, se reproduzem, se transformam ao fazer música. Esta perspectiva não é
tão nova na etnomusicologia. Trata-se tão-somente de contribuir para a construção
duma musicologia que não se restrinja às estruturas formais. Na realidade, as análises
que aqui se esboça pouco se afastarão duma sociologia musical, porquanto não se
abordará, a não ser de maneira periférica, temas aos quais estes conjuntos instru-
mentais dão ensejo, tais como a religião ou a experiência corporal.
No todo, a produção musical dos wayãpi me parece ter como dimensão principal a
relação com o outro. Fazer música é um ato dialógico; é uma maneira de se autodefi-
nir, de realizar e orientar a troca: “Sou eu quem faz essa música, e a ofereço a ti”. A
prática musical e os discursos acerca dela mostram de maneira explícita que os dois

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SOPROS DA AMAZÔNIA

interlocutores estão no mesmo nível: dois indivíduos, dois grupos de parentesco, duas
aldeias... Mostraremos também que um dado tipo de música corresponde a apenas um
desses níveis sociais, e que toda expressão musical, duma certa maneira, indica um
dado nível de troca. Por exemplo, realizar um grande ciclo de cantos é se posicionar no
nível das relações entre comunidades aldeãs, e portanto significa o acordo entre essas
aldeias. As produções musicais dos wayãpi podem ser consideradas como objetos de
troca, cuja significação primeira é precisamente este prazer da relação, e aos quais
não é necessário que o outro corresponda com música: a moça a quem se destina um
solo de flauta não o retribuirá com uma canção.
Sob esta perspectiva, toda composição{XE "Composição musical"} significa a pro-
posição, o princípio duma troca: para os wayãpi há, na origem de todo texto musical,
uma amizade, uma aproximação, um casamento, ou mesmo uma guerra{XE "Guer-
ra"}... seja entre dois amigos, entre um rapaz e sua namorada, entre um xamã e um
espírito da floresta, entre os wayãpi e uma etnia vizinha...
É certo que a música, enquanto objeto e expressão da relação com o outro, não é
uma idiossincrasia dos wayãpi; porém, seja do ponto-de-vista da sociologia, da história
ou da cosmologia, o que me parece importante é que, para os wayãpi, toda música se
situa num eixo horizontal, que ela não é concebível fora do seio duma relação igualitá-
ria. O grande ciclo de cantos pilau é, por exemplo, do ponto-de-vista da sua execução,
a expressão dum acordo entre duas aldeias{XE "Aldeia" \r "Aldeia"}. Porém, do ponto-
de-vista do texto — da letra —, também coloca ele a humanidade wayãpi e a coletivi-
dade dos grandes peixes pilau{XE "Pilau (dança dos grandes peixes)" \r "Pilau"} no
mesmo nível relacional: as palavras, se as dirige aos peixes na segunda pessoa; estas
atribuem a eles um comportamento social e ações iguais aos dos humanos, em parti-
cular, a bebedeira em companhia; elas também supõem neles uma intenção estética:
as cores dos peixes são ‘belas pinturas corporais’; é triste a despedida...
Em wayãpi, a palavra tule possui muitas significações. Ela designa, ao mesmo tem-
po, o instrumento musical — as grandes clarinetas sem orifícios de toque e com uma
única palheta1 —, a formação orquestral composta por essas clarinetas, o repertório
que estas formações executam — repertório que consiste num conjunto de verdadeiras
‘suítes’ — e, finalmente, a seção de música, o ‘concerto’.
Mas como se desenrola uma tal seção de tule, quem são os atores, o que estará em
jogo? Para delinear um quadro mais completo, eis duas narrativas relativas à enẽtu-
9 le{XE "En?tule (suíte do besouro)"} (“a suíte do besouro”, na faixa 9 do disco∗), em
execução de 1977; a primeira é um excerto de notas de campo, a segunda é um mito
de origem.

Akusiway, Teai, Naway estão prontas, bonitas. Há três dias estão elas a preparar o
cauim: desenterraram as raízes de mandioca, juntaram-nas e as descascaram, rala-
ram, espremeram-nas nos grandes tipitis, peneiraram a farinha, assaram os grossos
beijus, embeberam-nos em água, adicionaram os fermentos, misturaram vigorosa-
mente nos grandes ‘cochos-canoa’, misturaram e peneiraram de novo, provaram, de-
ram para os demais provarem... Por volta do meio-dia, seus maridos, Yawalu, Aso e
Suwi, com enfeites de penas e miçangas, fazem a volta, de ambos os seus lados, por
todas as casas, a fazer os convites para esta pequena festa de bebedeira. Para a de
hoje, Yawalu pediu a seu irmão mais velho Wlapile que organizasse uma seção de tule.
Os convidados chegam em pequenas famílias, com seus banquinhos e tabaco, e come-


No decorrer do trabalho, as referências às faixas do disco aparecerão apenas à margem do
texto (vide descrição no final).

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INTRODUÇÃO

çam a beber as grandes cabaças de cauim que lhes servem.


Os rapazes voltam da floresta vizinha com os bambus e bambuzinhos que acabaram de
cortar. Wilapile então corta os bambus, outra pessoa perfura os nós com um velho
arco; por último, Wilapile recorta as palhetas de bambuzinho, as coloca dentro dos tu-
bos de bambu e experimenta o conjunto. A preparação é longa, os ajustes são muitos.
Por fim, Wilapile distribui as clarinetas. Ele conserva as menores para si, a ‘responde-
dora' vai para Tatu, as médias para Kwataka e Moype, a grave para Tola.
Começam a música sentados, entre hesitações e risos{XE "Rir"}. Após várias peças
diferentes, em meio às quais os músicos bebem, vão urinar, bebem de novo, o som vai
pegando embalo, desembaraço, firmeza, e eles se levantam para dançar. Ainda mais
tarde, outros tomam os seus lugares; algumas mulheres chegam a se segurar, cheias
de sorrisos tímidos, nos braços dos dançarinos.
As crianças, pouco a pouco, adormecem e alguns pais abandonam a festa, cuja intensi-
dade vai baixando lentamente; mas até tarde da noite, a onda grave da tule irradia a
aldeia.

As festas de bebedeira, as caouinages conforme as chama, a partir da palavra tupi,


o cronista Jean de Léry (1975), se chamam kasili{XE "Kasili (cauim)" \t "vide cauim,
beber"}, provavelmente por metonímia, kasili sendo primeiro o coletivo das variedades
de bebida de mandioca fermentada. No Alto Oiapoque, a freqüência destas reuniões,
na estação das chuvas, é de cerca de quatro por semana. Na estação seca, são quase
que cotidianas. As representações musicais são visivelmente menos freqüentes: várias
semanas (às vezes vários meses) podem se passar sem que haja execução de música
coletiva. A quantidade de cauim, os locais de preparação e consumo, a origem e o nú-
mero dos convidados ou as variações no protocolo determinam os diferentes tamanhos
e diferentes status dos encontros. Às grandes reuniões de bebedeira correspondem os
grandes cantos, ao passo que, no Oiapoque, as tule correspondem a bebedeiras de
porte médio.
A fabricação dos instrumentos deve se dar a cada ocasião, pois seus materiais se-
cam e se deformam muito rápido: em dois ou três dias se inutilizam. É possível perce-
ber esta vida útil dos instrumentos como uma figuração do aspecto efêmero{XE "Efê-
mero"} destes conjuntos e da sua música: duma hora para outra há diferenças sensí-
veis no timbre{XE "Timbre"}, nas alturas, nos intervalos, na ordem das peças na suí-
te, na própria organização musical, o que faz de cada execução uma obra particular,
obra que se define em relação a um arcabouço de referência relativamente amplo, e
que define, ao mesmo tempo, uma condição particular da coletividade.
A maior parte dos conjuntos tule compreendem uma dezena de músicos; o da nar-
rativa acima não contava com mais de cinco, trata-se de uma formação mínima. Mas
parece que quatro deles eram irmãos reais ou classificatórios, o que configura uma
característica central destas orquestras: representam elas um grupo de parentesco.
Numa manhã, algum tempo após esta noitada de tule, após a refeição coletiva, na
hora em que os homens e as mulheres costumam parar, beber uma ou duas cabaças
de cauim{XE "Cauim, beber:kasili" \r "kasili"} e botar as conversas em dia, me pedi-
ram que trouxesse o meu gravador e colocasse umas gravações para tocar. Os fiz ou-
vir enẽtule, com o propósito de determinar os critérios musicais que permitiriam a dis-
tinção entre as diferentes suítes de tule, e perguntei à velha Sa’i Piye: “Reconheces
essa tule? Que peça é essa?...”. Por notório que fosse o seu saber, deu ela respostas
bem hesitantes então: “...Hmm ...Acho que é a dança do besouro... Quanto àquela
peça que escutamos... pode ser a do macaco cuatá...”. Esta senhora, uma das referên-
cias culturais mais respeitáveis da aldeia, costumava responder com precisão e segu-
rança a todas as perguntas relativas a botânica, genealogia, a mitos ou cantos, sem

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SOPROS DA AMAZÔNIA

jamais deixar de mencionar o seu finado marido. Mais tarde soube que esse famoso
marido, outrora um cacique{XE "Cacique, chefia" \t "vide política"}{XE "Políti-
ca:cacique, chefia"}, fora depositário da “dança do besouro”; ora, os músicos da ver-
são da gravação pertenciam à facção{XE "Facções" \t "vide política"}{XE "Políti-
ca:facções"} política oposta à de Sa’i Piye. Muito contrariada pela perda dessa dança
por parte de sua família, e pela sua presente apropriação pela família oposta, mas sem
poder fazer críticas muito duras em público, as suas hesitações queriam dizer: “Se fos-
se meu marido ou meus filhos a dançar essa tule, a interpretação seria mais correta, e
minha identificação mais fácil...”. Bem testemunhamos aí uma rivalidade política que
carrega consigo propriedades simbólicas, bem como observamos, no pátio da aldeia, a
sua vigência.

Foi há muito tempo. Pãtĩpãtĩ2, o vaga-lume, convidou enẽ3, o besouro, para tomar
cauim. Era de noite, e o besouro lhe disse: “Não tenho luz. Vem cá, vamos juntos.” Lá
foram eles, voando. De repente, o vaga-lume apaga a sua luz e o besouro cai entre as
raízes duma árvore, de onde tenta se levantar. Um homem que ia passando ouve en-
tão o zumbido do besouro dentre as raízes. Ele se aproxima, olha, e diz para si: “O be-
souro não pode fazer música assim”. Ele se afasta, escuta, vem ver de novo, e diz:
“Sim, é mesmo o besouro quem faz essa música”. Mais tarde, ele toca a música que o
besouro{XE "En?tule (suíte do besouro)" \r "En?tule"} fez nas clarinetas tule, e a ensi-
na ao povo de sua aldeia{XE "Aldeia" \r "Aldeia2"}.

Este pequeno mito de origem desta dança quem me contou foi Robert Yawalu, em
19774. Alguns anos mais tarde tive a oportunidade de ouvir, numa noite, um besouro
que, atraído pela luz, veio fazer uma visita ao nosso abrigo de caça, perto das nas-
centes do Oiapoque. É uma das minhas mais belas lembranças sonoras da floresta
amazônica. Este grande coleóptero, de cerca de oito centímetros, emite um som mag-
nífico quando voa: potente, grave, rico em harmônicos. São justo estas as principais
características acústicas das tule dos wayãpi.
Mas para que se fizesse música, esse zumbido, ainda que ressoando dentre os con-
trafortes da árvore onde o besouro se debatia, deveria vir sofrer uma tradução através
da inspiração dum homem, dum xamã; pois bem que aquele homem que caminhava à
noite devia ser um xamã5! Para o designar, o narrador empregou o termo yaneipi, que
pode tanto significar homens primevos, quanto ancestrais que, ainda que distantes,
possuem referências históricas. Onde estamos? Num mito, tal como sugere as conver-
sações entre os dois invertebrados? Ou será antes a descrição dum modo de composi-
ção{XE "Composição musical" \r "Composição"} prevalente entre os wayãpi: um xa-
mã{XE "Xamã, xamanismo" \r "Xamã"} a transformar os sons do ambiente para criar
o repertório de sua aldeia? É uma nova ambigüidade das tule: a multiplicidade das ori-
gens; como que uma confusão na formação desse repertório, confusão que o distingue
dos demais tipos de música. Em compensação, o que esta história livra de ambigüida-
des, o que se reafirma, é o laço entre a música das tule e o convite à bebida{XE
"Cauim, beber" \r "Cauimbeber"}. Ao sublinhar a intimidade que rege as relações en-
tre os homens e o seu ambiente natural, essa narrativa designa este, enfim, como
fonte explícita dos repertórios.

10
INTRODUÇÃO

O intercâmbio etnográfico, um interesse amistoso

Os wayãpi concebem a música como uma produção das mais prestigiosas; ela dá
peso a todas as trocas. E esta qualidade contribuiu para definir as modalidades e dire-
ções concretas do meu trabalho nas aldeias do Oiapoque. Em 1977 fui a Trois-Sauts,
onde Pierre e Françoise Grenand, respectivamente etnólogo e etnolingüista, desenvol-
viam, no âmbito da Orstom, uma série de estudos multidisciplinares, desde a botânica
até o estudo dos mitos, passando pela etnoistória. Por alguns anos este foi um traba-
lho de equipe, onde muito aprendi; a eles devo, em particular, todas as descrições e
análises lingüísticas e etnocientíficas (cf. bibliografia, e mais particularmente P. Gre-
nand 1980 e F. Grenand 1989).
Mas além das investigações científicas serem familiares aos habitantes das aldeias
do Alto Oiapoque (o que facilitou minhas próprias coletas), trazer as suas músicas ao
conhecimento dos outros, e em particular ‘aos franceses’, se me afigurou logo como
uma atitude diplomática da parte dos músicos wayãpi; para eles, o primeiro objetivo
do meu trabalho era gravar um disco. E se cantaram cantos de guerra{XE "Guerra"}
para que eu os gravasse, me pediram, a propósito, que estes não figurassem no disco,
já que “estamos num processo de paz com todos os nossos vizinhos”, disseram eles.
Uma outra conseqüência desta vontade comum foi o envio de dez músicos wayãpi —
de Camopi e Trois-Sauts — ao Festival de Avinhão, em 1987. A iniciativa deste espetá-
culo resultou do fato dos organizadores do festival, mais os notáveis wayãpi, verem
justo aí uma possibilidade de conhecer a França, sob cuja administração se encontram,
de visitar este país através da oferta dum produto que gozava de prestígio. Viram eles
também uma possibilidade de se fazer conhecer, de dar mais peso às suas ‘relações
exteriores’ (Menget 1985). Também estavam eles muito ciosos da repercussão que a
imprensa poderia dar à sua viagem6. Me pareceu que a sua motivação principal foi
contribuir para a abertura de suas comunidades ao mundo de hoje, de não permanecer
num isolamento a um só tempo geográfico — as aldeias se encontram nas cabeceiras
dos rios — e cultural —sabem eles que, neste mundo, o seu peso demográfico é muito
pequeno.
Esta vontade, esta necessidade confessa de se abrir se manifestava nas suas aldei-
as por meio duma hospitalidade prudente, lenta mas bem ampla, gradual mas sem
rejeição. Eles não podiam, na verdade, rejeitar estrangeiros; mas não se abriam em
sua amizade, não ofereciam as riquezas de sua cultura mais que lentamente, e por
etapas, a partir do progresso da adaptação do estrangeiro, observando a maneira na
qual ele “se acostuma”, como diziam; é como a domesticação dum pássaro da floresta,
da arara, do jacamim... Este francês... irá ele comer como nós? Irá beber litros de
caium{XE "Cauim, beber"} numa tarde? Fará progressos com a língua? Vai ficar? Ou
vai embora, como os outros? Os especialistas do mundo tupi perceberão que, além de
uma preocupação política{XE "Política"} imediata, e dum desejo real de amizade da
parte de seus hóspedes, o etnólogo se torna logo parte involuntária do paradigma ca-
nibal. Se o alimentam, engordam, se lhe oferecem uma mulher, é também para que
ele, duma certa maneira, se torne comestível.
Vivi ao todo cerca de dezesseis meses na aldeias do Alto Oiapoque e, mais precisa-
mente, na aldeia Zidock — que mantém o nome daquele que foi o seu cacique{XE "Po-
lítica:cacique, chefia"} desde 1969 até a sua morte, em 19787 — um estadia dispersa
em períodos de um a quatro meses, entre 1977 e 1993, de sorte tal que quando torno
a essas aldeias tenho a sensação, através do olhar de uns e outros, de ser um pouco
parte da ‘mobília antiga’8. Morei na casa e com a família de Charles Kwataka, casa
onde o aconchego, a gentileza e os rumores da vida cotidiana me proporcionavam um

11
SOPROS DA AMAZÔNIA

verdadeiro lar. Morei, excepcionalmente, com Alasuka: casa{XE "Casa" \r "Casa"}


grande, família grande, politicamente oposta à anterior, o que me permitiu ter uma
perspectiva diversa, emprestando nuanças à minha percepção desta aldeia{XE "Aldeia"
\r "Aldeia3"}. Estas estadias entre os wayãpi se desenrolaram no decorrer dos quatro
anos que passei na Guiana Francesa, ao longo dos quais pude trabalhar entre outras
etnias ameríndias (palikur e galibi). Este conhecimento de músicas ameríndias bem di-
versas me trouxe, por certo, alguns parâmetros comparativos, que aqui incorporo de
maneira pontual, sem a pretensão de comparações generalizantes9.

FOTO
{TC "Gravação na casa de Napi’ã, aldeia Zidock (Jean-Michel Beaudet)." \f f}Gravação na casa
de Napi’ã (aldeia Zidock, 1979).

Nas aldeias do Alto Oiapoque, alguns homens falavam um francês muito bom, com-
plexo e variado; outros falavam muito mal; com o resto não era possível comunicação,
a não ser na língua wayãpi. Hoje um número maior de homens, sobretudo jovens, se
exprime também em patoá crioulo, porquanto a prática do francês está diretamente li-
gada à escolarização: as crianças, até por volta dos quatorze anos — sobretudo os
meninos — falam francês com os não wayãpi sem problemas, e depois, não praticando
essa língua, perdem a fluência e o estímulo para falar. Músicos e não músicos fazem
bem poucos comentários sobre a própria música: falam dela bem menos que da caça,
do parentesco ou da história, e seu vocabulário musical é relativamente restrito10. Os
comentários, sendo expressos ao longo da execução, ou melhor, entre duas peças, são
sobretudo apreciações técnicas ou julgamentos de valor geral e simples: “está bom” ou
“não está legal”. Ao divergirem, alguns dias ou alguns meses após a performance, es-
ses comentários assumem então a forma de críticas políticas a músicos de outro grupo
de parentesco ou outra aldeia; contudo, quando a execução da música foi de fato boa,
alguns são capazes matizar estas picuinhas.
Não é possível citar aqui todos os músicos importantes, todas as pessoas que, des-
de o princípio, me ajudaram a compreender as suas tradições. Estas informações cos-
tumam vir sutis, em meias-palavras, entre sorrisos. Às vezes um olhar, um gesto rápi-
do ao longo da dança sublinha a articulação dos motivos musicais, ou traz à luz a si-
gnificação dum motivo de dança.
Saúdo em primeiro lugar a Miso, tão paciente ante a minha impaciência, e que, a
despeito de sua idade, demonstrava uma energia extraordinária nas danças. A última
dança que ele organizou foi a da “ventarola do fogo”, em 1988, poucos meses antes de
morrer. Saúdo a seu filho Kwataka, vivaz e brincalhão, cuja vontade de me ajudar ja-
mais fraquejou; ele teve a gentileza de me nomear “irmão mais velho”, ainda que eu
fosse absolutamente capaz de me perder na floresta; em todo caso, este apelido me
facilitou a assimilação do parentesco e das genealogias wayãpi. A Wilapile, o maior co-
nhecedor atual das tule. Yawalu, dançarino excelente, informante claro e seguro.
Jacky, o mais musical de todos, cujo saber musical é um componente explícito de sua
autoridade política{XE "Política" \r "Política"}. A Ilipe, infatigável, que carrega sobre os
ombros a herança bem pesada de seu pai Yakanali. A Alasuka, ‘aristocrata’, que sabe
escolher suas palavras. E também a Aso, Maypuli, Napi’ã, Kuyuli... Agradeço a todos
eles e às suas mulheres Tu’a, Kumaya, Kala, Sa’i Tucupi...
Hospitalidade, amabilidade: a abundância e liberdade das quais gozava esta socie-
dade impregnava a vida aldeã dum luxo cotidiano. Tendo familiaridade e prazer com as

12
INTRODUÇÃO

investigações científicas, ensinavam seu saber com precisão e generosidade, desejosos


de que se os traduzisse minuciosamente para os estrangeiros11.
Como avaliar o aporte dos trabalhos científicos neste jogo de independência e inte-
gração que conduzem os wayãpi? É certo que estes estudos encontram emprego nos
relatórios administrativos e conduzem à costumeira defesa dos direitos dos povos mi-
noritários sobre os seus territórios. É certo que esses trabalhos constituem, por si só,
um reconhecimento e valorização do saber, do pensamento desse povo12. Mas acredito
que os wayãpi os assumiram desde o início como um liame, a manutenção de suas re-
lações com o mundo dos franceses, os quais eles têm como seus aliados13.
Que estas páginas se impregnem da forma de vida que os wayãpi compartilharam
comigo; que possam elas levar este intercâmbio adiante.

13
s

PRIMEIRO CAPÍTULO — Da sedução à guerra: os wayãpi e suas músicas

‘Nós, os wayãpi’

O TERMO wayãpi é uma autodenominação um tanto quanto enfática, cujo emprego é


raro, e mais relativo a situações de conflito. Esta palavra apresenta, portanto, as ca-
racterísticas do nome secreto que, para além do seu nome próprio e dos diversos tec-
nônimos e apelidos, se dá a alguém. Parece ter ela, assim, o valor dum nome coletivo
secreto. É palavra que aparece numa narrativa histórica dos wayãpi, segundo a qual
um grupo vizinho, em guerra{XE "Guerra"}, se refere aos wayãpi. Os próprios wayãpi
têm orgulho desse nome, que significaria “os guerreiros certeiros”, mas na vida cotidi-
ana eles se autodenominam yane, “nós”. A partir de 1990, mais ou menos, passaram a
empregar um pouco mais o nome wayãpi, em provável conexão com um movimento
tardio de tomada de consciência ameríndia na Guiana Francesa; de fato, parece que
este reconhecimento duma ‘amerindianidade’ geral é indissociável duma afirmação da
sua própria etnia: sem ser primeiro wayãpi, seria impossível ser ameríndio.
Este nome também figura na literatura após os princípios do século dezoito, sob
grafias diversas, sobretudo “Oyampi”, “Guayapi” e “Waiãpi”1. Estes textos antigos,
mais as descobertas arqueológicas de Curt Nimuendaju, nos dizem que os wayãpi vivi-
am na região do Baixo Xingu{XE "Xingu"}, ao sul do Amazonas, atravessando-a por
volta de 1700 para empreender, logo após, uma grande migração / conquista em dire-
ção ao norte. Os trabalhos de etnoistória são divergentes, seja quanto ao período des-
sa migração, seja quanto à forma que ela tomou. Segundo Pierre Grenand, “se deve
tomar [1736] como o momento decisivo do período migratório dos wayãpi, sendo que
este deslocamento se deverá estender por quase duas décadas” (1982: 262); este
autor fala de diferentes grupos formadores, mas omite a grande separação no con-
junto dos wayãpi. Gallois (1986) insiste, ao contrário, na repartição da migração em
duas grandes levas, sucessivas e distintas (vide MAPA I) que estariam na origem da
fragmentação cultural e localizações atuais da etnia.

14
DA SEDUÇÃO À GUERRA

MAPA I As migrações wayãpi (segundo Gallois 1986).

Neste fim do século XX, a etnia ocupa uma vasta região correspondente aos vales
dos rios Jari e Araguari (Amapá — Brasil), no caso dos wayãpi do sul, e ao do rio Oia-
poque (Guiana Francesa), no dos wayãpi do norte. Eles se repartem em quatorze al-
deias{XE "Aldeia"}, que se reconstituem em quatro agrupamentos geográficos — Mé-
dio e Alto Oiapoque, Inipuku e Onça / Karapanaty — aos quais se deve adicionar um
assentamento de uma dúzia de pessoas no parque de Tumucumac (provindas do
Kouc), e dois subgrupos ainda em isolamento. De fato, os dois grandes grupos —
wayãpi do sul, wayãpi do norte — apresentam diferenças sensíveis quanto a língua,
mitologia e música. As diferenças linguísticas, importando a fonologia e o léxico, mos-
tram que o linguajar do sul manifesta uma influência menor do contato com outras et-
nias (F. Grenand 1989). A mitologia, fundamentalmente tupi nas duas regiões, se
apresenta de maneira mais hierárquica no sul, com uma prevalência bem clara do deus
criador Yaneyar2. As diferenças musicais concernem tanto as características dos ins-
trumentos quanto os seus nomes, ou as significações que se dá aos eventos musicais
(cf. Fuks 1988 e 1990; Gallois 1988).

15
SOPROS DA AMAZÔNIA

MAPA II Leste das Guianas. Os wayãpi e seus vizinhos ameríndios.

Os wayãpi são, de par com os emerilhom [tekó], a mais setentrional das etnias tu-
pi. Eles chegaram à Alta Guiana No princípio do século dezenove, fazendo parte por-
tanto da segunda migração, tardia, dos tupi{XE "Tupi" \r "Tupi"} em direção ao norte
— a primeira, da qual os emerilhom{XE "Emerilhom" \r "Emerilhom"} são hoje os úni-
cos remanescentes, teve lugar no século dezesseis.
A população wayãpi totalizava cerca de 730 pessoas em 1988 (Gallois 1988: 4).
Este número, de aparência diminuta, indica entretanto uma forte recuperação demo-
gráfica3, depois das epidemias do século dezenove que, literalmente, haviam dizimado
este povo.

16
DA SEDUÇÃO À GUERRA

1824 1849 1890 1915 1935 1978 1982 1988


6000 700 500 450 480 569 666 750

FIGURA 1 Evolução demográfica de 1824 a 1988: total da etnia wayãpi.

(apud Gallois 1988; P. Grenand 1982; Grenand & Grenand 1985.)

Nas aldeias, o grande número de crianças confirma esta impressão positiva da saú-
de; mas a queda brutal e prolongada da população afetou em muito a vida cultural.

Caracterizando-se pela dispersão, pelo isolamento, e portanto pelo enfraquecimento da


dinâmica da aliança e do intercâmbio, o princípio do século XX é o período negro da et-
nia wayãpi... A vida social se reduzira a um grau tal que se colocava as manjedouras
de caxiri, as jarras, dentro das casas, e bem poucas comunidades mantinham um local
para dançar. Daí que não haja dúvida de que esta política de retraimento, danosa à ri-
queza cultural, mas corolário das experiências de contato no século XIX, contribuiu
para que a etnia se salvasse da extinção física pura e simples (P. Grenand 1982: 340–
341).

O desaparecimento ou enfraquecimento da continuidade cultural atingiu todas as


comunidades, e parece que, no século XX, a geração mais atingida foi mesmo a que
mais organizava danças. Por fim, as tristezas e os comportamentos sociais consecuti-
vos às mortes interditaram as músicas, pura e simplesmente: homens que, em 1990,
contavam com cerca de quarenta anos, por exemplo, cessaram todos, após a morte do
seu pai, de fazer música por muitos anos.
Aqui talvez se encontre a diferença fundamental entre os wayãpi do norte e os do
sul; com efeito, é nos períodos de crise que estes últimos dançam, de modo que, como
dizem eles, se acalme o demiurgo Yaneyar (Gallois 1988)4. No Alto Oiapoque, a música
wayãpi, bem importante na quantidade, não se encontrava em vias de desapareci-
mento; ela se encontrava oculta, ou na impossibilidade de se manifestar. O vácuo de-
mográfico afetara pouco a matéria própria da música, o conteúdo do repertório, mas
freara a sua realização em forma social, a sua atualização.
Hoje, os wayãpi dispõe de uma reserva territorial no Brasil (no Estado do Amapá),
ao passo que, na Guiana Francesa, apenas um decreto, antigo e sob ameaça, limita o
acesso ao sul do departamento, onde os wayãpi coabitam com outros povos amerín-
dios. No Brasil, bem como na Guiana, estas zonas às vezes sofrem a invasão de ga-
rimpeiros em busca de ouro... O governo de cada um destes países oferece assistência
sanitária e administrativa, o que leva à concentração e sedentariedade dos grupos5.
No Oiapoque, a ameaça de perda daquilo que resta de independência se confirma
sob a forma furtiva e banal de subvenções, projetos de desenvolvimento, ensino mal
adaptado, atraso no aprendizado das funções administrativas, e pressão dos empreen-
dimentos turísticos. Não se fez um estudo sistemático das mudanças contemporâneas,
e não é possível oferecer aqui mais que uma imagem subjetiva, parcial: no todo,
quando se tem a oportunidade, como o tive eu, de acompanhar e participar da intimi-
dade doméstica dos wayãpi por um período de mais de quinze anos, resta uma im-
pressão de estabilidade. É certo que houve mudanças: mais cigarros, mais motores de
popa, mais gasolina, mais álcool comercial... Se instalou a eletricidade solar, vieram as
tensões eleitorais, a natalidade está em alta... Entretanto, não se revela nenhuma
ruptura profunda na sua maneira de viver. Podemos esboçar uma ilustração naquele

17
SOPROS DA AMAZÔNIA

rapaz de dezessete anos, que todas as tardes calça as suas meias e chuteiras para ir
jogar com seus irmãos e cunhados até à noite, e que, ao fim de uma reunião de bebe-
deira, na intimidade de sua família, era capaz de narrar mitos por mais de duas horas.
A sua fala era rica e cheia de emoção, com uma voz grave, tensa, como que em tran-
se, com a capacidade de suscitar o riso{XE "Rir"} em seus companheiros do futebol,
provocando suas reações e perguntas.

FOTO
{TC "Uma seção de tule: Miso, Yemiwa, Wilapile, aldeia Pina (J.-M. B.)." \f f}Uma seção de tule:
Miso, Yemiwa, Wilapile (aldeia Pina, 1981).

FOTO
{TC "Jacky a pescar, Alto Oiapoque (J.-M. B.)." \f f}Jacky a pescar (Alto Oiapoque, 1979).

A leste das Guianas, os wayãpi vivem num ambiente típico da Amazônia: floresta
equatorial densa, chuva durante a maior parte do ano, seguindo, mesmo assim, um
ritmo de duas estações bem distintas — estação das chuvas de novembro a julho, es-
tação seca de agosto a outubro. A sua economia se baseia nos recursos do rio e da
floresta (peixe, caça, coleta) bem como no produto de suas roças (agricultura de coi-
vara). Assim, a alimentação que se tem por excelente é a carne de caça{XE "Caça" \r
"Caça"} e o peixe; os frutos das palmeiras wasey6, que crescem espontaneamente nos
grandes ‘palmeirais’ pantanosos, são o segundo produto vegetal a se consumir, depois
da mandioca brava. Da mandioca, se faz beiju (meyu), farinha torrada (kwaki) e cauim
(palakasi), que se bebe em quantidades bem grandes. As atividades econômicas se-
guem o ritmo sazonal: a cada estação seca, os homens limpam a vegetação rasteira e
derrubam as árvores, depois queimam esta superfície de um hectare onde as mulheres
plantam sobretudo a mandioca, mas onde cultivam também milho, inhame, cana-de-
açúcar e uma variedade de pequenas plantas. Cada família nuclear é responsável por
uma produção anual, mas o grosso do trabalho de preparação e de plantação se efetua
de maneira comunitária, aquando das seções de trabalho coletivo (mayuli), que dão
ensejo a reuniões de bebedeira bem freqüentes. Por este motivo, a estação seca é
também favorável às danças. A estação das chuvas, um período mais calmo, é sobre-
maneira propícia à caça e às atividades no interior da aldeia: cestaria{XE "Cestaria"},
construção de casas novas ou novas canoas... Se as reuniões em que se bebe o cauim
são menos freqüentes, a abundância de caça e de frutos da floresta estimula a vida
cultural (cf. Grenand e Haxaire 1977; P. Grenand 1980).

FOTO
{TC "A casa de Miso, aldeia Zidock (J.-M. B.)." \f f}A casa de Miso (aldeia Zidock, 1977).

18
DA SEDUÇÃO À GUERRA

Configurações sociais, configurações musicais

E-lena{XE "-lena (-l-ena, casa)" \t "vide casa"} (“minha casa”) é noção funda-
mental do pensamento social dos wayãpi: noção inclusiva, designa ela o pequeno ban-
co individual7 sobre o qual se assenta, ou seja, o lugar que se toma numa reunião de
bebedeira; -lena também designa a casa que abriga uma família nuclear e o seu fogo
de cozinhar; e-lena{XE "Casa:(-l-)ena" \r "lena"} pode significar “minha aldeia”, o
conjunto das casas que se articulam sob a representação política dum “cacique”
(tuwiyã) e, por fim, a parte do vale fluvial onde se estabelece a aldeia{XE "Aldeia" \r
"Aldeia4"}, em meio às demais. A definição deste termo se faz perceptível: na prática,
e dentro das representações wayãpi, a organização social e a localidade são indissociá-
veis. O local onde se construirá a minha casa, ali onde me abancarei numa reunião de
bebedeira, serão conseqüência de escolhas políticas.
A unidade de base — a que define o primeiro nível de integração social — é a casa
que abriga uma família nuclear: o casal e seus filhos. Além do liame matrimonial, esta
célula se define pelo liame econômico: o ideal é ser ela auto-suficiente, graças à sua
roça, que a cultiva a mulher, e graças aos produtos da floresta e do rio, dos quais se
encarrega o homem. A terminologia de parentesco de tipo dravidiano, junto com um
princípio de casamento preferencial com o primo cruzado, se associa, após o fim do
século XIX, a uma tendência bem clara à endogamia aldeã (P. Grenand 1982: 342;
Gallois 1988).
Em associação com uma filiação diferenciada, a residência responde mais por um
peso político conjuntural de cada grupo de parentesco que a um princípio residencial
forte; no Alto Oiapoque, a residência{XE "Residência" \r "Residência"} era, nos anos
oitenta, predominantemente virilocal8, porém o que importa é lembrar que a posição
espacial das casas contribui para a afirmação dos grupos de parentesco, delineando
assim um segundo nível de integração social: irmãos e pais classificatórios constróem
as suas casas de modo que, no mais das vezes, se reagrupem elas em pequenos
‘bairros’, conforme uma tendência patrifocal. A proximidade das habitações, às vezes
com alguns tetos se acavalando, talvez seja um resquício das grandes habitações cole-
tivas das sociedades tupi{XE "Tupi"}. Teríamos aqui um urbanismo semelhante ao dos
tapirapé{XE "Tapirapé"}, onde “cada casa era uma facção{XE "Política:facções"}”
(Wagley 1977, citado por Viveiros de Castro 1986: 94). Hoje em dia, cada casa dura
uma dezena de anos, e cada reconstrução pode constituir ocasião para um desloca-
mento sutil das afirmações político-espaciais. A cada um destes reordenamentos, se
associa uma kasililena (“casa{XE "Casa" \r "Casa2"} do cauim de mandioca”) a seu lo-
cal de danças, de nome seloka.
O terceiro nível consiste na aldeia que, em si, corresponde à unidade política. Cada
aldeia elege um cacique{XE "Política:cacique, chefia" \r "Cacique"} (tuwiyã), cuja au-
toridade é essencialmente moral e se exerce no campo diplomático: ele representa a
aldeia, é a imagem da sua unidade. A sociedade wayãpi é igualitária: sem estratifica-
ção vertical das relações sociais, sem hierarquia funcional; portanto esta chefia, cuja
ideal de transmissão é patrilinear, é palco permanente das lutas entres os grupos de
parentesco.
A associação entre o território e esta organização não é mais que tênue: não há
propriedade fundiária, e a configuração cambiante do terreno não depende mais que
superficialmente dos grupos de parentesco. Ao contrário dos perímetros de exploração
da floresta, os caminhos de caçadores{XE "Caça"} e de coleta se definem com res-
peito às unidades políticas{XE "Política" \r "Política2"}: as aldeias.

19
SOPROS DA AMAZÔNIA

Um quarto nível corresponde ao conjunto de aldeias vizinhas. Esta unidade geográ-


fica favorece os intercâmbios econômicos e cerimoniais entre essas aldeias{XE "Aldeia"
\r "Aldeia5"}: convites mútuos e regulares para participar de reuniões regadas a
cauim{XE "Cauim, beber:kasili" \r "kasili2"}, que às vezes são conexas a funções mu-
sicais dançadas.
Por fim, o nível superior de integração, o da ‘etnia wayãpi’, é problemático. Mais
que um conjunto homogêneo, com efeito, trata-se de agrupamentos e de desloca-
mentos de grupos formadores; além disso, a real diferença histórica e cultural entre os
grupos do norte e os do sul talvez dê a impressão de dois povos distintos, a ponto dos
wayãpi do sul situarem os do norte a uma distância igual à das demais etnias (Gallois
1988: 134). No entanto, se autodenominam eles todos da mesma maneira (yane,
wayãpi), procuram se reencontrar e, quando se reencontram, procuram delinear seus
laços de parentesco. Possuem eles, por fim, músicas em comum.
Três traços coerentes marcam uma distinção maior entre as diversas músicas
wayãpi: certas músicas se as deve dançar, outras não; as primeiras são coletivas, ou
seja, várias pessoas as tocam defronte a uma platéia, as segundas são individuais, ou
seja, os músicos as tocam sozinhos, sem um público próprio; por fim, as primeiras não
entram em cena sem o acompanhamento do cauim, ao passo que as segundas dispen-
sam a bebida.

música dançante música não dançante


coletiva individual
cauim necessário independente de bebida

Assim, entre os wayãpi, a expressão musical coletiva requer um envolvimento cor-


poral integral dos músicos, que se tornam ao mesmo tempo dançarinos, ao passo que
a expressão musical individual mobiliza o corpo do músico de maneira mais restrita.
Além disso, a noção de ‘coletividade’ significa a participação de muitos músicos, e de
muitos espectadores ao mesmo tempo: um conjunto de músicos se apresenta diante
duma platéia e, inversamente, um grupo de pessoas juntas para beber só conseguiria
prestar atenção a uma música de conjunto, jamais à de um indivíduo. Seria assim im-
possível encontrar um músico que canta ou dança sozinho em público. Esta distinção
fundamental se aplica a todas as etnias das Guianas, e a muitos outros povos da
Amazônia.
Estas características observáveis do fenômeno, que definem a totalidade da prática
musical, situam as formações de clarinetas tule e o seu repertório dentro do subcon-
junto ‘músicas coletivas’: se toca as tule aquando das reuniões de bebedeira{XE
"Cauim, beber" \r "Cauimbeber2"}, diante duma platéia de convivas — para retomar a
feliz expressão de Daniel Schoepf (1979: 16). No entretanto, conforme se mostrará
aqui, alguns tantos aspectos colocam as tule numa posição intermediária, e nos levam
a examinar de maneira mais atenta a organização da totalidade das músicas wayãpi,
conforme uma categorização mais complexa. Ficará claro então que essas diferentes
músicas não se organizam de acordo com uma oposição simples entre músicas coleti-
vas dançantes e músicas individuais não dançantes, mas de acordo com um contínuo,
dentro do qual as tule ocupam justo a posição central.
Tudo isto traz à tona uma característica fundamental da música wayãpi: o conjunto
desta produção musical se constitui de diversos tipos de música — melodias solo,
cantos de amor, suítes orquestrais e danças cantadas — que, ainda que claramente
distintos, são como que correlatos, contrastantes. Observando-o a partir dos parâme-

20
DA SEDUÇÃO À GUERRA

tros que vimos enunciar, esse conjunto denuncia uma coerência: cada música, con-
forme seja mais ou menos coletiva, conforme a natureza da implicação corporal e a
quantidade de bebida que acompanha a sua realização, ocupa um lugar preciso dentro
duma organização total. Em outras palavras, as diversas músicas wayãpi conformam
um sistema.
Trabalhos anteriores já trouxeram à tona a coerência dessa organização particular
da produção musical wayãpi: os wayãpi associam cada tipo musical a um dos níveis da
organização social, tais como foram descritos acima. Se dois tipos distintos de música
(cantos de ninar e de amor, por exemplo) podem se associar a um nível social apenas
(neste caso, a família nuclear), jamais um tipo de música poderá corresponder a duas
esferas sociais distintas. Jamais se poderá cantar um canto de amor numa reunião: a
sua execução é restrita à família nuclear. Assim, a performance duma música significa
colocar em jogo uma, e somente uma, entidade social específica. Cada música é mo-
novalente.
A abordagem sobre as complexas implicações das correspondências entre músicas e
esferas sociais se dará através da análise da música das tule. Mas, de início, o que te-
ríamos a depreender dum inventário rápido dos diferentes tipos de música wayãpi, tal
como os podemos situar na vida social, esquematicamente, em função dos atores, dos
locais e das ocasiões da execução?
As músicas individuais se associam ao primeiro nível de organização musical, a fa-
mília nuclear. Elas compreendem:
- as melodias para flauta solo e as melodias para trompa solo, que são músicas mas-
culinas;

FOTO
{TC " Napi’ã toca a flauta com conduto de ar yemi’apitekwa, aldeia Zidock (J.-M. B.)." \f
f}Napi’ã toca a flauta com conduto de ar yemi’apitekwa (aldeia Zidock, 1978).

- os cantos de amor e de ninar (oweloyẽnga omemi), cantados pelas mulheres;


- as lamentações fúnebres (oyaoa), interpretadas por um homem ou uma mulher.
Cada qual dessas músicas, se a executa uma só pessoa de cada vez. A mulher
canta para o seu namorado ou para uma criança, um flautista toca para si mesmo ou
se dirige a uma só pessoa, raramente mais, ainda que, é claro, um número maior de-
las possa ouvi-lo — estas não costumam prestar mais que uma atenção ‘factual’, se
contentando em reparar que ele está a tocar. Entre as músicas a se tocar em solo, as
melodias para flauta são, no Oiapoque, o tipo mais em voga hoje em dia; na interpre-
18 tação dos homens jovens, fazem elas referência à preguiça de quem as toca. Músicas
de sedução o mais das vezes, tocadas ao se deitar numa rede, ou ainda pelos cami-
19 nhos, exprimem elas o repouso, a calma, a distância que se toma do pátio da aldeia e
seu enredamento social. Na aldeia, essas músicas se as executa o mais das vezes nas
casas{XE "Casa"}, enquanto que a sua execução em público, como durante uma reu-
nião de bebedeira, provoca forte reprovação, ou não se a conseguirá levar a cabo sem
uma conotação cômica.
As suítes orquestrais se situam no segundo nível de integração social, nos agrupa-
mentos político-sociais no seio da aldeia (naquilo que chamo de facções)9. Este con-
junto reúne:
- uma suíte para flautas de pã elewu{XE "Elewu (suíte para flautas de pã)"}10;

21
SOPROS DA AMAZÔNIA

- uma dúzia de suítes para clarinetas tule.


Apenas os homens tocam tais instrumentos. Essas suítes, se as executa em con-
juntos instrumentais com partes que se entrecruzam, compreendendo de sete a quinze
músicos, os quais costumam pertencer à mesma facção. Em cada conjunto que se
constitui, a maioria dos músicos — os mais importantes — chama uns aos outros de
‘pai’, ‘filho’ ou ‘irmão’. A constituição do conjunto instrumental demonstraria que cada
reorganização política no interior da aldeia gira, na verdade, em torno dum grupo de
parentesco. Grosso modo, pode-se dizer que uma dessas facções convida o resto da
aldeia para beber cauim em seu local de reuniões, e que, nestas ocasiões, poderá
apresentar uma dessas suítes orquestrais dançantes.
As danças cantadas (no que se segue, neste texto, far-se-á referência a estas como
grandes danças, grandes ciclos dançados, ou grandes cantos) se associam à terceira
esfera de integração social, a comunidade aldeã{XE "Aldeia" \r "Aldeia6"}: apresenta-
das no pátio principal da aldeia{XE "Aldeia"} — okala, conforme Gallois — tais danças
acarretam uma grande quantidade de cauim (quatro ou cinco cervejeiras / serventes).
Assim, uma dúzia dessas danças se reagrupam sob o título genérico de kãwẽy’u, que
quer dizer “grande cauim”. Ao longo da cerimônia, se serve esse cauim de maneira
contínua e, ao mesmo tempo, de acordo com os intercâmbios sistemáticos entre dan-
çarinos e espectadores, criando assim uma espécie de ‘dinâmica dos fluidos’ entre a
música dos homens e a bebida das mulheres11. Os wayãpi conhecem mais de quarenta
e cinco desses cantos, cada qual podendo comportar de dez a trinta estrofes. Todos os
cantos são estróficos; as estrofes e os trechos instrumentais se alternam com regulari-
dade. Do ponto-de-vista da sua execução, cada um desses ciclos se apresenta como
um encadeamento aberto de dançarinos, que alternam entre o canto e toque dos ae-
rofones{XE "Aerofone"}: os dançarinos homens que cantam são os mesmos que to-
carão depois, e as mulheres, tomando o braço dos seus pares, podem também cantar.
Essas danças colocam muito mais participantes em cena que as suítes orquestrais.

FOTO
{TC " Uma grande dança: uma seqüência cantada de pilau, a dança dos grandes peixes, aldeia
Zidock (Jean-Michel Miso)." \f f}Uma grande dança: uma seqüência cantada de pilau, “a dança
dos grandes peixes”. Jacky porta uma clarineta kõõkõõ, Aso e Kwataka têm cada qual uma
flauta ipilãylaãnga, os outros, flautas pilalaãnga (aldeia Zidock, 1993).

Antigamente, era o cacique{XE "Política:cacique, chefia"} da aldeia que encomen-


dava tal dança, e ainda hoje se cuida que haja um equilíbrio, dentro do encadeamento
de dançarinos, entre todas as facções{XE "Política:facções" \r "facções"} da comuni-
dade presentes.
Entre essas danças cantadas, há algumas — umas dez — que se realiza, mais espe-
cificamente, aquando dos encontros intercomunitários. Estas cerimônias podem durar
muitos dias; envolvem elas uma grande quantidade de cauim{XE "Cauim, beber" \r
"Cauimbeber3"}, e são marcadas por mecanismos rituais que gravitam em torno da
dança: o canto introdutório para as almas dos mortos{XE "Morte, mortos"}, o roubo
de comida por parte dos dançarinos. Esta série de danças constitui um repertório que
podemos relacionar a um quarto nível político{XE "Política" \r "Política3"}-social: o da
associação entre várias aldeias vizinhas.
Um quinto nível, o representariam os cantos de guerra (yẽẽga yapisi lemẽ wale).
Cantos masculinos, em execução à capela, seriam compostos após cada guerra, para

22
DA SEDUÇÃO À GUERRA

celebrar os feitos e chorar as tristezas. Não se os dança, mas se os executa sentados,


quando os homens são tomados pela nostalgia da valentia pretérita de seu povo. Na
realidade, raramente se os canta, e não os escutara eu até que algumas lideranças me
pedissem que os gravasse. Esses cantos não são estróficos e, a cada vez, os cantaram
uns dez homens, em uníssono{XE "Uníssono"}, num registro grave e em voz baixa.
É claro que é discutível associar assim um quinto nível musical à ‘etnia wayãpi’,
pois, conforme dissemos, os wayãpi perfazem um conjunto de comunidades e grupos
que se separam ou aliam, bem mais que uma entidade homogênea (P. Grenand 1982;
Gallois 1986); todavia é notável que, em todos esses relatos, a autodenominação dos
wayãpi seja yane (“nós”), enquanto o termo wayãpi (“guerreiros certeiros” ) não apa-
rece senão em associação com a guerra{XE "Guerra" \r "Guerra"}.
À margem destas músicas, os xamãs e a sua produção sonora — interação de so-
pros{XE "Sopro"}, canto, maracá — se integram em todos os níveis da sociedade,
sempre se definindo em relação à maior esfera. Por um lado se encontra, na prática,
um xamanismo para cada esfera social: existe como que um contínuo, desde os ‘pe-
quenos xamãs’, que protegem a própria família, até os maiores, que podem organizar
verdadeiras seções de profilaxia para toda a aldeia, e atuar sobre grupos estrangeiros.
Esta progressão é assinalada pela diferenciação das técnicas e pelos usos e tipos de
maracás específicos, pela sua ausência ou presença — se designa o maracá e a per-
formance com maracá{XE "Maracá" \t "vide xamã, xamanismo"}{XE "Xamã, xama-
nismo:maracá" \r "maracá"} com o mesmo termo genérico: malaka{XE "Malaka (cho-
calho)" \t "vide xamã, xamanismo"}12. Por outro lado, o xamanismo se situa ideologi-
camente junto à guerra{XE "Guerra"}, em conjunção com a morte{XE "Morte, mor-
tos"} e a exterioridade, donde a posição ambígua do xamã wayãpi: quanto maior o
xamã, maior o seu raio de ação, e desfrutará ele de maior admiração, crédito e isola-
mento no seio da própria comunidade, o que é característica comum no xamanismo
tupi-guarani{XE "Tupi-Guarani"} (cf. Viveiros de Castro 1986)13. Em geral, se tem o
xamanismo tupi{XE "Tupi"} como um xamanismo de cura. Me parece que uma descri-
ção etnográfica rigorosa da prática xamanística poderia nos levar a uma reconsidera-
ção desta idéia. De início, já relevamos alguns exemplos dum xamanismo onde a meta
primeira é a comunicação com as entidades divinas (como é o caso dos asurini{XE
"Asurini"} ou araweté{XE "Araweté"}...); por outro lado, entre os wayãpi por exem-
plo, é certo que a maioria das seções de xamanismo tem a cura como pretexto, mas
ao se considerar a economia dessas seções, constatamos que três quartos do tempo se
os consagra aos cantos que convocam os espíritos{XE "Ayã (espíritos)" \t "vide xamã,
xamanismo"}{XE "Xamã, xamanismo:ayã"}, e a uma ‘auto-exegese’ simultânea do
xamã{XE "Xamã, xamanismo" \r "Xamã2"}, enquanto que as ações terapêuticas
ocorrem apenas na parte conclusiva da seção. Essas malaka{XE "Xamã, xamanis-
mo:malaka" \r "malaka"} se manifestam também como proposições cosmológicas, as
quais os habitantes da comunidade aldeã{XE "Aldeia"} aceitam ou questionam.
Estas observações nos levam a apresentar as correspondências entre configurações
musicais e configurações sociais conforme um esquema concêntrico, tomando por em-
préstimo a Sahlins (1968) a noção de esferas de integração social, em conformidade
com a noção de inclusão que vimos descrevendo (-lena{XE "Casa:(-l-)ena"}, “casa,
lugar”), e também de acordo com “a disposição concêntrica do campo social” e a “ide-
ologia endogâmica” que prevalece nas Guianas (Viveiros de Castro e Fausto 1993:
148). Por configuração musical, designo um grupo de eventos musicais onde a organi-
zação de gestos, sons, locais, atores, momentos... se associa a uma esfera, a uma
dada configuração social. Do ponto-de-vista descritivo, a configuração é uma categoria
intermediária entre o tipo de música e o sistema musical. Ao conjugar configurações

23
SOPROS DA AMAZÔNIA

musicais e configurações sociais, quero dizer que vou me interessar pelo componente
social dos fatos musicais, e apresentar o componente sensível (mais precisamente mú-
sico-sonoro) dos fatos sociais. Por fim, ao empregar o termo configurações, quero rea-
firmar que essa organização é ela também um “esquema movente” (Charles 1990:
409), que ela se afigura como um movimento, e produz esse movimento.

{XE "Política:facções"}

FIGURA 2 Esferas musicais, esferas sociais.

O conjunto da música wayãpi me pareceu ser muito importante em volume. É difícil


avaliar a dimensão duma tal totalidade, e é ainda mais problemático buscar compara-
ções significativas com etnias vizinhas. O importante é que os wayãpi valorizam a am-
plitude dos repertórios, o que vale dizer que enfatizam a quantidade de peças que cada
tipo de música compreende: ipuku (“é longo!”), iyati (“tem muitas [peças]!”). Eles
apresentam bem aos poucos o seu repertório aos demais, e ao etnomusicólogo em
particular, procurando criar um efeito de ‘sempre mais’. Em termos de repertório, a
música coletiva é mais volumosa que a música individual: a proporção é em torno de
três para um, só os grandes cantos correspondendo a mais da metade do total das
músicas. Mas em termos de atualização desses repertórios, da sua realização efetiva,
as proporções variam muito de geração para geração, sofrendo os efeitos da moda ou
da rejeição, que favorecem ou podem eliminar certos tipos de música por um mo-
mento. Não obstante, podemos constatar que, entre as músicas wayãpi, as que são
coletivas têm decerto um peso maior.
Por mais que, à primeira vista, possa saltar aos olhos este tipo de correlação entre
configurações musicais e configurações sociais, não é ele único na América. Muitos
estudos recentes fazem clara referência a sistemas comparáveis entre outros povos
ameríndios: entre os suyá{XE "Suyá"} (Seeger 1979), os kamayurá{XE "Kamayurá"},
os wakuénai{XE "Wakuénai"} (Hill 1979 e 1984), os xavante{XE "Xavante" \t "vide
Auw?-xavante"}{XE "Auw?-xavante"} (Graham 1986), os araweté{XE "Araweté"}
(Viveiros de Castro 1986), os yagua{XE "Yagua"} (Chaumeil 1993) e, nos Andes, en-
tre os jalq’a{XE "Jalq'a"} (Martínez 1994). De modo mais geral, o estabelecimento de

24
DA SEDUÇÃO À GUERRA

modelos músico-sociais se inscreve no reconhecimento tardio da realidade da música


como organização sociocultural (Feld 1984; Roseman 1984; Lortat-Jacob 1987; P. Ri-
vière 1993).
No caso específico da música wayãpi, o esquema que se vem apresentar poderá
parecer, aos especialistas, que está a oferecer uma representação surpreendente-
mente estruturada da integração social dum povo tupi{XE "Tupi"}. Na última parte
deste estudo, me empenharei em dar vida a esse esquema, o que contribuirá para lhe
emprestar nuanças e, sobretudo, para que não mais se o tome como não mais que um
enquadramento social, mas sim como uma matriz transformacional da pessoa.

Os instrumentos musicais

O sistema músico-social que expusemos, a partir das condições de execução da


música, também se manifesta por meio de parâmetros puramente musicais. O con-
junto dos instrumentos musicais e de suas características sonoras oferecem uma de-
monstração inicial sua que é digna de nota.
Na língua wayãpi, não há termo genérico equivalente ao francês ‘música’. Mesmo
para os da etnia que falam um francês bastante bom, a palavra francesa ‘música’, que
traduziam para o wayãpi yemi’a, designa sempre os instrumentos musicais e, por ex-
tensão, os instantes de música nas grandes danças cantadas. Inversamente, é difícil
fazer uma tradução estrita e justa de yemi’a, na ignorância do seu radical /mi’a/14. Na
prática, este termo pode designar com igual propriedade uma flauta, trompa ou clari-
neta; pode-se utilizar yemi’a como termo genérico para todos os instrumentos de so-
pro, exceto a clarineta tule e o zunidor. É assim que o dançarino que conduz, durante
as grandes festas, se chama yemi’aya (“mestre do yemi’a”). O nome de yemi’aya pode
também ser dado, sem cerimônia, a um homem em quem se reconhece os conheci-
mentos e as qualidades de músico. Por fim, yemi’a é o nome que outrossim se dá à
vitrola e ao gravador. Além disso, os músicos podem dar uma designação afetuosa ao
seu instrumento; será então o nome do seu material — kwamã (bambu Guadua) ou
ama’i (árvore Cecropia). Em todo caso, sempre resta uma questão: por que se exclui a
tule, dentre tantos instrumentos, duma categoria tão essencial e genérica como a de
yemi’a{XE "Yemi’a (aerofone)" \r "Yemia"}? Nem comentários fortuitos, nem conver-
sações profundas com os melhores músicos — Ilipe, em particular — nos permitiram
inferir qualquer classificação dos instrumentos musicais (Beaudet 1983: 48–52). Nas
suas verbalizações, os músicos misturam os critérios da matéria-prima e do uso, de
modo a não designar nenhuma grande oposição, nem que fosse entre instrumentos
melódicos e instrumentos rítmicos, conforme o fazem por exemplo os kamayurá{XE
"Kamayurá"}, que distinguem “os instrumentos musicais que cantam, dos instrumen-
tos musicais que acompanham” (Menezes Bastos 1978: 127).
Dos vinte e cinco instrumentos distintos recenseados entre os wayãpi do Oiapoque
(Beaudet 1983), quatro são idiofones — bastão de ritmo, jarreteira de guizos, carapa-
ça de tartaruga para fricção, maracá — e vinte e um são aerofones — um zunidor e
trompas, clarinetas, flautas.
A carapaça de tartaruga, se a toca apenas como acompanhamento duma flauta de
pã, em performance solitária. Os guizos e o bastão de ritmo{XE "Ritmo" \r "Ritmo"},
se os utiliza nas danças das suítes orquestrais e nos grandes ciclos dançados. Já o
maracá, se o associa unicamente ao xamanismo.

25
SOPROS DA AMAZÔNIA

O instrumentarium wayãpi, com as suas duas dezenas de trompas, clarinetas e


flautas, em todas as formas e todos os tamanhos, se me afigura como um arquétipo
do instrumentarium amazônico. A importância e variedade dos instrumentos de sopro
na música ameríndia, já se as conhece há muito tempo. Na obra de Izikowitz (1935),
duzentas páginas — ou seja, a metade do livro — se lhes consagra, contra cento e cin-
qüenta para os idiofones, menos de trinta para os membranofones, e cinco para os
cordofones; a desproporção é flagrante. Se a presença dos membranofones pré-
colombianos se verifica nas terras altas (afrescos maia{XE "Maia"} de Bonampak, ce-
râmica andina, etc.), estes são notavelmente menos numerosos na bacia amazônica;
ali, nas terras baixas, a maior parte destes tambores de pele apresentam, conforme
foram eles descritos15, características evidentes de forma ou de denominação euro-
péias ou africanas (cf. Camêu 1977; Izikowitz op. cit.). Igualmente, o arco musical
que, por toda bacia amazônica, se encontra em freqüente associação com o violino
europeu, seria o único cordofone de origem pré-colombiana, mas mesmo isto é ainda
discutível (Cloutier 1988).
Esta preponderância dos instrumentos de sopro, os trabalhos da etnologia contem-
porânea permitem generalizá-la a pelo menos todos os grupos aruaque{XE "Arua-
que"}, caribe{XE "Caribe"}, tukano{XE "Tukano"} e tupi{XE "Tupi"} — os jê{XE
"Jê"}, os jívaro{XE "Jívaro"} e os yanomami{XE "Yanomami"} apresentando, por sua
vez, uma música essencialmente vocal. Como interpretar este traço tão saliente da or-
ganologia amazônica? Na Amazônia, a composição{XE "Composição musical"} musical
costuma se associar ao xamanismo; ora, durante a cura, o xamã chama os seus espí-
ritos{XE "Xamã, xamanismo:ayã"} aliados através do canto, e os estimula com o seu
maracá{XE "Xamã, xamanismo:maracá" \r "maracá2"}, mas se comunica com o do-
ente através do seu sopro fumacento e sonoro, que coloca em ação toda uma arte de
amplificação e distorção. O estudo minucioso destas técnicas xamanísticas de teatrali-
zação do sopro seria uma primeira etapa na análise do que poderíamos descrever, ain-
da, como uma contiguidade entre a atividade xamanística e a predominância dos ae-
rofones. Esta associação viria, assim, se incluir numa vasta combinação de relações
entre o audível e o visível. Para os wayãpi, o xamanismo{XE "Xamã, xamanismo" \r
"Xamã3"} apresenta um sopro visível, audível, sem instrumento sonoro, ao passo que
a música opera um sopro invisível, audível, com instrumento sonoro visível. Alhures,
com os instrumentos{XE "Instrumentos musicais secretos"} secretos, ausentes entre
os wayãpi, mas que se encontra tanto pela Amazônia (por exemplo, o zunidor que os
bororo{XE "Bororo"} giram à noite), a proposição será: sopro{XE "Sopro" \r "Sopro"}
invisível, audível, com instrumento sonoro invisível.

FOTO
{TC "Wilasilili, a dança do pássaro tangará, aldeia Roger (J.-M. B)." \f f}Wilasilili, “a dança do
pássaro tangará” (aldeia Roger, 1981). Pilolo e Yapalaka tocam as trompas retas ama’iwu; Kiyu,
Kolokolo e Amamã tocam as flautas de pã elewu.

Esta variedade dos instrumentos de sopro — variedade organológica, acústica e na


técnica de tocar — permite, por si só, a operação duma grande profusão de distinções
significantes (cf. também, para os Andes, Martínez 1994). Por fim, e voltarei a isso na
última parte deste trabalho, os aerofones costumam figurar, na Amazônia, em associa-
ção com uma representação mítica da virilidade e uma definição ritual dos sexos. Re-
tenhamos aqui apenas que as mulheres wayãpi, que estão aptas a “cantar com os ho-

26
DA SEDUÇÃO À GUERRA

mens, se souberem [o repertório]”, não tocam aerofones; é uma interdição, uma in-
terdição forte e pan-americana.
No sistema sócio-musical dos wayãpi, parece que cada aerofone que se usa corres-
ponde a um só tipo de música, ou seja, a um e apenas um nível de integração social,
assim estabelecendo uma relação unívoca entre música e sociedade.

Nível 1: família / solos


- 8 flautas:
1 flauta de pã (elewu);
5 flautas com fendas (yemi’akwamã, so’okãnge, tiliyoyemi’a, talilipolo,
meluluwiyãyemi’a);
1 flauta com conduto de ar (yemi’apitekwa);
1 flauta nasal transversa (kulipawa);
- 1 trompa transversa (ama’ipoko).

Nível 2: grupo de parentesco / suítes orquestrais


- 1 clarineta de palheta única (tule);
- 1 flauta (tubo com a extremidade inferior fechada e sem orifício de toque
— elewu).

Níveis 3 e 4: aldeia{XE "Aldeia"} / ciclos dançados


- 2 clarinetas com diversas palhetas (kõõkõõ, ama’iati);
- 1 clarineta com palheta única (takwaliyemi’a);
- 2 trompas transversas (tilutilu, yemi’apuku);
- 1 trompa reta (ama’iwu);
- 3 flautas com conduto de ar (pilalaãnga, ipilãylaãnga, tuleaãnga);
- 1 flauta de pã de dois tubos (elewu).

Nível 5: etnia / cantos de guerra{XE "Guerra"}


- zunidor (mũũmũũ)

Nenhum instrumento musical toca qualquer tipo de música diferente daquele para o
qual se o fabricou. Por exemplo, uma flauta doce que se toca em solo jamais poderá
intervir numa dança coletiva e, ao contrário, uma clarineta com diversas palhetas, ou
uma flauta com conduto de ar que se destina aos níveis 3 e 4, não se as utilizará ja-
mais em solo ou com um conjunto instrumental de suítes do nível 2. Parecia mesmo
que nenhum instrumento deveria ser tocado fora das circunstâncias e da esfera cor-
respondentes: o toque de flauta solo durante uma reunião, mesmo quando não há
dança, é muito mal visto16.
Os mesmos materiais, sobretudo o bambu Guadua macrostachya e a árvore Cecro-
pia, podem servir para instrumentos musicais de todos os tipos, mas os instrumentos
‘individuais’, só se os fabrica com materiais secos, se conservam por vários meses e
têm um dono; as clarinetas tule das suítes do nível 2 são fabricadas aquando de cada
performance, com materiais verdes, e podem se conservar por no máximo dois ou três
dias; por fim, os aerofones{XE "Aerofone" \r "Aerofone"} que se utiliza nos ciclos dan-
çados são destruídos após a cerimônia.

27
SOPROS DA AMAZÔNIA

Ainda que seja perceptível uma progressão, através dos conjuntos, no tamanho dos
instrumentos, não se pode traçar uma correspondência estrita entre as suas dimen-
sões e o seu uso. É sobremaneira notável que, nas suítes do segundo nível, as forma-
ções se constituam de diversos instrumentos do mesmo tipo — de sete a quinze clari-
netas tule de diferentes dimensões —, enquanto que as grandes danças reúnem mui-
tos instrumentos de tipos diversos, com denominações, sonoridades e aspectos dife-
rentes. Na progressão desde as flautas solo até os ciclos dançados, se faz sentir, en-
tão, uma crescente heterogeneidade organológica e sonora.
Esta progressão acústica entre os tipos musicais, entre cada nível social, recebe
ainda o reforço de outras características sonoras. Primeiro vêm as flautas que se toca
em solo, que apresentam o som mais fino, mais sinusoidal. Depois, os conjuntos de
flautas ou de clarinetas configuram uma massa sonora mais espessa, sobretudo as
clarinetas, cujo espectro se constitui de mais de cinqüenta harmônicos. Mas a diferen-
ça essencial provém aqui do que estas formações instrumentais de partes entrecruza-
das colocam em jogo, opondo as partes tocadas por um só instrumento e as partes to-
cadas por diversos instrumentos, ao passo que os temas{XE "Tema musical"} destas
suítes acentuam este contraste através da embutidura de curtos motivos de solo e tu-
tti. Por fim, nos grandes cantos dançados, o som das seqüências instrumentais é ainda
mais espesso, e muito mais confuso: os instrumentos, desde as pequenas flautas até
as grandes trompas ou clarinetas de múltiplas palhetas, bem graves, tocam num tutti
heterofônico{XE "Heterofonia"} constante que simplifica, reduz o ritmo e a melodia a
uma oposição binária de registro e timbre.
Também é evidente uma espécie de gradação entre os solos de flauta, que re-
querem uma acuidade de alturas e intervalos, os conjuntos de tule, cujas diferentes
partes se definem bem mais por faixas de altura e timbres{XE "Timbre" \r "Timbre"}
que por intervalos precisos, e por fim os momentos instrumentais das grandes danças,
que não apresentam mais que oposições sumárias entre grave e agudo, numa massa
sonora muito fluida, sem dar forma a nenhum intervalo.

FOTO
FIGURA 3 Três espessuras acústicas.

De baixo para cima: um solo de flauta, uma peça de tule, uma seqüência instrumental
dum grande ciclo cantado (fragmentos). Não se apresenta aqui estes três sonogramas
para fins de análise, mas para permitir a visualização sumária das distinções de timbre
instrumental entre as diferentes esferas músico-sociais.

Enfim, de um tipo musical ao outro, não há dúvida de que o volume sonoro cresce
com o número de instrumentos — 1... 9... 16, via de regra — e também conforme o
tamanho da platéia. Ao mesmo tempo, há um traço comum a todos os tipos de músi-
ca: qualquer que seja a peça, se a toca sem nenhuma dinâmica interna; jamais um
crescendo ou decrescendo, apenas um acento forte nas codas. As diferenças dum ‘ní-
vel musical’ ao outro decorrem da imobilidade ou do deslocamento das fontes sonoras:
o flautista fica quase sempre imóvel nos solos, enquanto os músicos / dançarinos, nas
suítes orquestrais, na sua coreografia da melodia da dança, criam variações de inten-
sidade no nível da percepção musical dos espectadores. Voltarei a este ponto, ao anali-
sar da dança. Os grandes ciclos dançados aguçam a percepção destas variações{XE

28
DA SEDUÇÃO À GUERRA

"Variação" \r "Variação"} dinâmicas, e isto graças a uma coreografia de maior ampli-


tude e rapidez.
A tabela abaixo pode resumir todas estas características instrumentais:

CONFIGURAÇÕES MUSICAIS
CARACTERÍSTICAS
DOS INSTRUMENTOS solo familiar suítes orquestrais das facções ciclos dançados nas
aldeias
instrumentação um único instrumento conjunto de instrumentos do conjunto de instru-
de cada vez mesmo tipo, de dimensões mentos diferentes
diferentes
materiais secos verdes verdes e secos
duração de uso se conservam por se os utiliza por alguns dias se os destrói depois
muitos meses da festa
acústica som fino som denso
intervalos precisão imprecisão
número de músicos e crescente
volume sonoro
percepção da dinâmica crescente
{XE "Dinâmica musi-
cal" \r "Dinâmica"}

FIGURA 4 Correspondências entre configurações musicais e diversos aspectos atinentes aos


instrumentos musicais.

Assim os instrumentos musicais, em suas propriedades e seus usos, delineiam um


eixo de continuidade entre os diversos tipos de músicas: heterogeneidade e espessu-
ra{XE "Espessura acústica" \r "Espessura"} acústica crescentes, imprecisão dos inter-
valos e simplificação dos temas melódicos. A esta diluição progressiva das possibilida-
des instrumentais duma ‘esfera sócio-musical’ à outra se associa uma afirmação cres-
cente do vocal: os cantos solo perfazem um repertório restrito, e raramente se os
canta. As peças das suítes orquestrais são dobradas por peças vocais cuja principal
função parece ser mnemônica, e que pouco se executa, também. Quanto aos grandes
ciclos dançados, as seqüências cantadas e as seqüências instrumentais que se alter-
nam têm o mesmo peso musical, segundo dizem os músicos e pelo seu tempo de exe-
cução. Por fim, os cantos de guerra{XE "Guerra"} são cantados a capela, sem dança;
só importa a presença da voz.
É interessante colocar esta distinção entre música individual e música coletiva —
que se revela como um critério importante de caracterização não só das músicas dos
wayãpi, mas também nas das terras baixas da América tropical — sob a mesma pers-
pectiva daquela que Seeger propõe para uma compreensão de toda a vida suyá{XE
"Suyá"}, partindo da oposição entre modo ritual e modo não ritual: “A alternância en-
tre períodos rituais e não rituais, bem como entre as atividades, as relações e os sen-
timentos correlatos a cada um deles, perfaz o tecido da vida social” (1987: 6). Será
essa oposição generalizável para toda a Amazônia? Como combiná-la com a distinção
individual / coletivo, em se sabendo que, dependendo de cada povo, essas oposições
podem se apresentar de maneira estanque ou, ao invés, gradual? Para os wayãpi do
Oiapoque, seria possível esquematizar as posições respectivas dos principais gêneros
musicais da seguinte maneira:

29
SOPROS DA AMAZÔNIA

MÚSICA RITUAL * malaka{XE "Xamã,


xamanismo:malaka"}
(seções de xamanismo)
* grandes cantos
* tule
MÚSICA NÃO RITUAL * solos de flauta
MÚSICA INDIVIDUAL MÚSICA COLETIVA

Conforme vimos, cada música tem o seu lugar em função destes dois parâmetros —
coletivo, ritual — e, nesta organização, as tule do Oiapoque ocupariam, uma vez mais,
uma posição intermediária. Importa sublinhá-lo, pois que Gallois, quanto aos wayãpi
do sul, bem como Jangoux (1978) e Müller (1990), quanto aos asurini{XE "Asurini"}
— primos bem distantes e antigos dos wayãpi — apresentam as tule como seus rituais
mais importantes; considera-se outrossim as tule dos emerilhom{XE "Emerilhom"}
como parte duma programação cerimonial afirmativa (Tiiwan Maurel, comunicação
pessoal 1994). Porém, no Alto Oiapoque, em se lhes ‘aduzindo’ os parâmetros de pro-
gramação, de investimento físico, de comunicação com uma entidade sobrenatural,
uma noitada de tule porta uma carga ritual relativamente fraca.
Tomamos a palavra -lena{XE "Casa:(-l-)ena"} como fundamento duma representa-
ção concêntrica da integração social e organização da música, mas não encontramos
verbalização de classes musicais, nem para cada um destes ‘níveis sócio-musicais’17,
nem para a primeira grande distinção que determinamos — coletivo / individual. Os
instrumentos musicais, por seu uso e por algumas de suas características, confirmam
essa representação sociológica concêntrica. Pode-se mesmo dizer que eles a designam,
que constituem um de seus ‘diacríticos’ mais claros. Todavia, os nomes dos instru-
mentos e a terminologia que a eles se aplica não se organizam em classes coerentes:
não há assim verbalização de classificação musical, nem para os repertórios, nem para
os instrumentos18. Os atos e os objetos musicais não se reagrupam em conformidade
com certas categorias verbais que constituiriam taxonomias, por exemplo; são antes
descritos, qualificados de acordo com um gradiente variável de juízos, cuja forma seria
próxima a paradigmas de múltiplas entradas, imperfeitos e elásticos. Um exemplo: a
realização da dança pilau, em maio de 1993, começara discretamente, e fora marcada
por um incremento extra-musical imperceptível, uma dinâmica emocional bem lenta
que terminou na noite seguinte em grande intensidade sonora, coreográfica e convivi-
al, com exclamações e risos contínuos da platéia. Um dia depois, Paul Zidock fez esse
comentário: “Sabe como é... a pilau é uma dança triste... É como a yaoke{XE "Yaoke
(dança das lamentações)"}, a dança das lamentações...”. Temos aí uma boa indicação
duma reclassificação das danças (“é como”) que aponta, por sua vez, para certas ca-
racterísticas implícitas (instrumentos, prelúdio dedicado aos ancestrais, referência aos
peixes...), mas tal reclassificação não será fechada, não se a determina explicitamen-
te, dando ensejo a que se coloque justo aí a dimensão emocional dessa dança específi-
ca.
Essa dança deixa os aldeãos tristes porque revive a separação física com respeito
aos grandes peixes da várzea amazônica19, rememorando o abandono de um meio
natural rico, reacendendo a nostalgia duma época histórica, sendo nostálgica. A pi-
lau{XE "Pilau (dança dos grandes peixes)" \r "Pilau2"} talvez seja a maior dança
wayãpi, e na alegre bebedeira e nos risos{XE "Rir" \r "Rir"}, celebra a tristeza. Deve-

30
DA SEDUÇÃO À GUERRA

mos tomar a ausência de classificação musical entre os wayãpi, penso eu, como uma
afirmação destas sutilezas, destes fluxos e difrações rituais.

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CAPÍTULO II — As clarinetas e o seu som, o toque e a dança

Quando o povo do rio Kouc chegou, as suas tule soa-


vam diferente das nossas: bem mais forte.
Yawalu (1978)

COMO DE COSTUME, o linguajar dos wayãpi diz muito em poucas palavras: as pessoas do
Kouc são os wayãpi que migraram deste rio em direção ao Alto Oiapoque entre 1967 e
1972. Este pequeno grupo de imigrantes ainda não se integrara por completo, aquan-
do do comentário de Yawalu, e era alvo de manobras de sedução, de esforços de alian-
ça, bem como de pequenas rejeições quase que xenófobas da parte de seus anfitriões.
Yawalu, bom conhecedor das tule, era um dos que abria as portas para a sua real inte-
gração— ele lhes dera a sua irmã em casamento — e a sua curta frase nos mostra a
importância que os músicos wayãpi dão ao próprio som das tule; e isto a ponto de
atribuírem a cada grupo regional uma sonoridade orquestral particular. Isso vale dizer
que definem os diversos grupos regionais também pelas características acústicas: tim-
bre{XE "Timbre"}, registro, intensidade. Seria o caso, para retomar uma terminologia
contemporânea, duma territorialização acústica.
A afirmação deste músico do Alto Oiapoque, pela sua formulação no pretérito, sua
referência a um passado próximo, consumado, significa também que o povo do Kouc,
imigrantes recentes, teve de modificar o som de suas clarinetas para se integrar. As-
sim, as pessoas que chegaram em 1971 e fundaram a aldeia{XE "Aldeia"} Pina têm
um repertório particular, porém o tocam com a ‘sonoridade do Alto Oiapoque’. O as-
sentamento do novo grupo no vale que o acolheu passou pela participação recíproca
em conjuntos de clarinetas. Se aos que chegavam se pedia que tocassem novas fór-
mulas melódicas, que mostrassem figurações de dança novas, tal só seria possível se
adotassem o timbre das clarinetas do Alto Oiapoque1. A integração social passava por
uma integração acústica.
Estas características físicas das tule, tão determinantes para ouvidos ameríndios,
serão aqui tema de análise organológica e acústica; mas a observação de Robert
Yawalu por si só comporta a descrição e apreciação da sonoridade das tule no âmbito
duma questão maior e preliminar, a da geografia de tais instrumentos e conjuntos.

As clarinetas amazônicas

Qual é o lugar das clarinetas wayãpi e das suas formações orquestrais no panorama
global da música no continente sul-americano? Qual será a sua origem, como se difun-
diram? Tratou-se destas questões em detalhe (Beaudet 1989) através da coleta de da-
dos junto aos grupos ameríndios da Guiana, assim como num escrutínio da literatura.
Os inventários etnomusicológicos recentes (nem todos já publicados) lançam uma nova
luz sobre tais questões de origem e difusão. Enquanto Izikowitz duvidava, em 1935, da

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AS CLARINETAS E O SEU SOM, O TOQUE E A DANÇA

origem pré-colombiana das clarinetas americanas, a ‘amerindianidade’ da clarinetas de


tipo tule é hoje mais fácil de se demonstrar.
Um olhar panorâmico sobre as clarinetas ameríndias revela uma diversidade de fei-
tio e uso bem grande. Perante tal riqueza organológica, toda tipologia é forçosamente
reducionista; todavia, a partir do trabalho de Izikowitz, e não obstante algumas exce-
ções, é possível classificar as clarinetas das terras baixas segundo os seguintes tipos:
1. a clarineta curta com pavilhão (a qual Izikowitz chama de “tipo chaco”)2. Estas cla-
rinetas são, na grande maioria, bem curtas — em torno de quarenta centímetros —
, e comportam todas um pavilhão de cuia, cabaça ou chifre. Na execução, a palhe-
ta{XE "Palheta"} fica dentro da boca do músico. Essas clarinetas se encontram
com muita evidência na periferia sudoeste da Amazônia, ao longo dum arco Bolívia
– Paraguai – Brasil Meridional (cf. MAPA III);

MAPA III Distribuição da clarineta curta nas terras baixas.


As palavras designam as etnias.

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SOPROS DA AMAZÔNIA

2. as turê (turê, ou tule, é sem dúvida o termo mais freqüente para este tipo de clari-
neta). Costumam ser de bambu, bem grandes, podendo medir de 0,50 a 2 metros
de comprimento. A palheta não se sustenta na boca do músico, mas é fixa dentro
do primeiro compartimento (ou bocal) do tubo. Alguns destes instrumentos com-
portam um pavilhão de cuia (entre os warao{XE "Warao"} e os palikur{XE "Pa-
likur"}). A sua distribuição é mais vasta e menos homogênea que a do tipo anterior
(cf. MAPA IV). Talvez se possa inferir uma direção tendencial de circulação do sul
para o norte; estes eixos de difusão são claros no noroeste amazônico, seguindo os
rios Tapajós, Xingu{XE "Xingu"} / Paru, Jari, Oiapoque, bem como ao longo da
costa do Amapá. Recordemos que os aparaí, wayana{XE "Wayana"}, emeri-
lhom{XE "Emerilhom"}, wayãpi e aruã{XE "Aruã"} imigraram do sul, nos séculos
passados;

MAPA IV Distribuição das turê.

3. as clarinetas de múltiplas palhetas. São clarinetas de tipo turê, mas que compor-
15 tam diversas palhetas de bambuzinho, que se afixam junto do bocal. Não sei da

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AS CLARINETAS E O SEU SOM, O TOQUE E A DANÇA

sua existência a não ser entre duas etnias vizinhas: os aparaí{XE "Aparaí" \r
"Aparaí"} e os wayãpi.
A perspectiva que se nos apresenta nos mapas de distribuição da clarineta curta e
da grande clarineta turê torna evidente, de maneira surpreendente, uma oposição ge-
ográfica3 que separa o sudoeste amazônico de um lado, e de outro o centro e o norte
desta região. Todavia, até o presente, não dispomos de dados que dos permitam in-
terpretar a peculiar distribuição destes instrumentos.
Estes três tipos de clarinetas não possuem orifícios de toque4, podendo ser idio-
glotas ou heteroglotas. Um levantamento da etnografia publicada permite delinear um
quadro provisório das correspondências entre essas diferentes clarinetas, e as forma-
ções nas quais se as toca:
- a clarineta curta, é possível tocá-la em solo, em duo, em conjunto homofônico ou
heterofônico, jamais em conjunto alternante{XE "Alternância"}, ao que parece;
- as turê se as toca aos pares, ou em conjunto alternante, mas nunca noutras for-
mações;
- a clarineta de diversas palhetas só participa de conjuntos homofônicos{XE "Homo-
fonia"} ou heterofônicos{XE "Heterofonia" \r "Heterofonia"}.
Nas terras baixas, é bem raro que se toque as grandes clarinetas de tipo turê, de
palheta{XE "Palheta" \r "Palheta"} única, junto com aerofones diferentes, de outro
tipo.
Izikowitz questiona a veracidade da origem pré-colombiana de todas essas clari-
netas, adiantando vários argumentos a este respeito: “Na América do Sul, os arqueó-
logos jamais encontraram clarinetas, e tampouco se as menciona na literatura antiga
do Peru” (1935: 262). A isto podemos responder que a palheta é, na grande maioria
dos casos, feita de bambuzinho, material particularmente deteriorável, efêmero{XE
"Efêmero"}. Por outro lado, a etnomusicologia andina recente mostra que as clarinetas
são por demais freqüentes nos Andes. Além das clarinetas heteroglotas, com evidente
influência européia, se nota uma rica presença de clarinetas idioglotas com ressoador,
em associação com músicas pouco mestiças (Martinez, comunicação pessoal 1990); na
Bolívia, a sua presença se atesta entre os chipaya (Baumann 1981: 206), entre vários
grupos da região de Sucre: os tarabuco{XE "Tarabuco"} e os jalq’a{XE "Jalq'a"}, de
língua quíchua (Martinez 1990), os chumpina{XE "Chumpina"} de língua quíchua e os
llamero{XE "Llamero"} da região de Sucre, de língua quíchua e aimara (Martinez, co-
municação pessoal 1990).
Izikowitz acrescenta que a clarineta curta parece ter um parentesco próximo com
instrumentos de palheta dos campos europeus: “instrumentos exatamente do tipo cha-
co, de chifre de boi e com pavilhão com dentes em serrilha, são usados pelos pastores
da Estremadura, em Portugal (Balfour, citado por Izikowitz 1935). Em todo caso, é
notável que este tipo de clarineta se o encontre sobretudo ao longo do grande eixo de
circulação dos tupi{XE "Tupi"} à chegada dos europeus, de oriente a ocidente.
Quanto ao tipo turê, é verdade que não encontramos qualquer menção na litera-
tura anterior ao século XVIII. Mais precisamente, antes desta data, não encontramos
menção explícita nem a instrumentos de palheta{XE "Palheta" \r "Palheta2"}, nem à
organização orquestral de partes alternantes{XE "Alternância"}. Os textos dos pri-
meiros cronistas a descrever o Brasil5 costumam mencionar aerofones{XE "Aerofo-
ne"}, mas os designam com termos genéricos imprecisos, tais como “flauta”, “pífaro”,
“corneta” (Thevet 1981: 75; Léry 1975: 202) ou ainda “gaita” (Cardim 1925: 162; So-
ares de Souza 1879: 305)6.

35
SOPROS DA AMAZÔNIA

Cardim, cuja visita aos tupinambá{XE "Tupinambá"} data de 1584, nos oferece a
primeira descrição de música puramente orquestral entre os ameríndios das terras bai-
xas. A sua descrição parece corresponder a um conjunto orquestral de partes que se
entrecruzam, podendo mesmo se tratar do turê:

...todos eles com as ‘gaitas-de-cana’, todos a percutir o solo ao mesmo tempo com um
ou outro pé, sem se desviar, ao mesmo tempo e à mesma medida em que sopram nos
tubos, e não há nem canto nem palavra, e como eles são numerosos e os bambus são
mais ou menos grandes, além de ensurdecer a floresta, fazem eles uma harmonia que
mais parece uma música dos infernos, mas eles a têm como se fosse a mais doce do
mundo (Cardim op. cit.).

Izikowitz considera também que a distribuição geográfica deste instrumento é res-


trita, o que seria uma indicação de sua novidade na América do Sul (do contrário ha-
veria ele de ser mais comum, em virtude de todas as migrações dos tupi{XE "Tupi"}).
Entretanto, o estudo mais recente da literatura revela uma distribuição mais rica e
vasta das turê; Izikowitz não tinha conhecimento de mais que uma dezena de referên-
cias a esses instrumentos, nós temos quarenta: o extremo sul do Brasil, três bacias de
grandes afluentes da margem esquerda do Amazonas, e uma distribuição quase que
contínua do leste das Guianas até o Orinoco (cf. também as datações das referências
mais antigas, MAPA IV).
Hoje os wayãpi fazem, dentre o seu repertório de danças tule, uma distinção bas-
tante clara entre as que aprenderam ao migrar para o norte, no século XVIII (com a
etnia kalanã{XE "Kalanã"}, em particular), as que aprenderam dos wayana um pouco
mais tarde, e por fim as que conheciam dantes (as suítes moyutule{XE "Moyutule (su-
íte da sucuri)"} e enẽtule{XE "En?tule (suíte do besouro)"}, por exemplo). Podemos
então afirmar que, pelo menos desde o início do século XVIII, os wayãpi já conheciam
bem as tule; lembremos que, de acordo com os estudos de etnoistória, viriam eles a
atravessar o Amazonas rumo ao norte, a partir do princípio do século XVIII, em vagas
sucessivas. Outros trabalhos mais recentes (Müller 1990; Estival 1994) confirmam que
estas formações de clarinetas turê ocupam um lugar importante entre as etnias do
Baixo Xingu{XE "Xingu"} (arara{XE "Arara"}, asurini{XE "Asurini"}, parakanã{XE
"Parakanã"}). Pareceria também, logo à primeira escuta, que o estilo dos asurini de
tocar as tule é mais próximo ao dos wayãpi que dos atuais vizinhos dos asurini. Uma
análise precisa desta constante através dos tempos (por cerca de duzentos e cinqüenta
anos) e do espaço (mais de quinhentos quilômetros) poderia ser suficiente para de-
mostrar que essas clarinetas não foram empréstimos de populações alógenas.
Ao distinguir as danças tule que vieram por empréstimo, aquando da sua migração,
daquelas que conheciam dantes, os músicos wayãpi nos mostram também que, antes
da chegada dos wayãpi, essas formações instrumentais já existiam na Alta Guiana.
Enfim, a tradição oral nos apresenta mitos de origem das danças tule entre os pa-
likur{XE "Palikur"}, os wayana{XE "Wayana" \r "Wayana"} e os wayãpi, o que au-
menta em muito a escala temporal que concerne a estas músicas, podendo vir apontar
para a adaptabilidade da mitologia aos contatos culturais.
Sabemos dumas trinta denominações diferentes dessa clarineta, dentre as quais
/tule/, /turê/ ou /toré/ são as mais comuns; mais precisamente, são as únicas que en-
contramos (com pequenas variações fonológicas) em pelo menos seis etnias diferen-
tes. Todavia não pudemos traçar qualquer etimologia, nem qualquer significação para
este termo.

36
AS CLARINETAS E O SEU SOM, O TOQUE E A DANÇA

A maior parte das descrições de que dispomos ressalta o espanto do viajante diante
do som dos instrumentos, e é raro se precisar o número dos músicos e a organização
orquestral. O arranjo em conjunto alternante{XE "Alternância"} é, em todo caso, mais
freqüente que os duos7. Por outro lado encontramos, na América do Sul, estes dois ti-
pos de formação — conjunto alternante e duo — em associação com outros aerofo-
nes{XE "Aerofone"} além das clarinetas, mas não encontramos música vocal arranja-
da em hoqueto8.
Aos conjuntos de tule dos wayãpi se associa um vocabulário específico, assim como
um repertório com caracterização e verbalização precisas; tal pode constituir prova da
origem pré-colombiana destas clarinetas; entretanto a existência, nesta ampla região,
de ‘conjuntos alternantes’ de flautas torna verossímil o deslocamento desta técnica e
desse repertório duma formação à outra9.
Certos viajantes, ao descrever tais conjuntos, se esforçam por traçar paralelos com
as músicas européias, mas as suas impressões costumam se deixar dominar pela sur-
presa acústica. Ainda hoje, entre ocidentais, o exotismo sonoro destas clarinetas cos-
tuma provocar o riso, a comparação com as vacas, e a interação entre as partes tende
a passar desapercebida. Já os wayãpi, bem como os seus vizinhos ameríndios, não se
consideram a sós, enquanto clarinetistas; têm plena consciência de sua história{XE
"História (das tule)"} musical e da circulação dos repertórios. É mesmo possível afir-
mar que esta perspectiva que sustentam sobre a sua música faz parte duma reflexão e
afirmação históricas globais.
Podemos afirmar que, em torno dos 1700, diferentes etnias tocavam essas grandes
clarinetas, sem descontinuidade geográfica, desde o Baixo Xingu{XE "Xingu"} até o
litoral das Guianas; mas é difícil reconstituir a área cultural das turê numa Amazônia
culturalmente em pedaços. O mais prudente continua sendo considerar a turê como
instrumento centro-amazônico.
Esta visão panorâmica torna evidente, por um lado, que o objeto ‘grande clarineta’
tem larga difusão em toda a região amazônica e, por outro, que as tule dos wayãpi
pertencem a uma organização orquestral (entrecruzamento das partes, alternância{XE
"Alternância"}) que é também comum nessa região; isto, enfim, põe em evidência um
fato que poucos reconheceram até o presente: a importância da música puramente or-
questral nas terras baixas da América do Sul.

As tule wayãpi

Conforme vimos, antes de designar a seção de música, a palavra tule nomeia, em


wayãpi, o instrumento musical: as grandes clarinetas sem orifícios de toque e de pa-
lheta única. Neste âmbito, esta palavra se opõe àquelas que designam as clarinetas
com múltiplas palhetas (kõõkõõ, ama’iati). Por fim, a tule designa também o repertório
que corresponde a este tipo de música: as suítes para conjunto de grandes clarinetas.
Tomando-a neste sentido, a palavra tule pode servir à recriação, formando o nome das
suítes, por exemplo: tulepuku{XE "Tulepuku (grande suíte)" \t "vide também
tãp?tule"}{XE "Tulepuku (grande suíte)"} (“a grande suíte”), moyutule{XE "Moyutule
(suíte da sucuri)"} (“a dança da sucuri”), tuleãkã{XE "Tuleãkã (dança da cabeça)"}
(“a dança da cabeça”). Todas essas suítes devem ser dançadas, e portanto chamare-
mos a esta unidade do repertório de ‘suíte’ ou ‘dança’, indiferentemente.

37
SOPROS DA AMAZÔNIA

Assim, o campo semântico do lexema /tule/ seria comparável ao de ‘quarteto de


cordas’, por exemplo, que concerne, ao mesmo tempo, a uma formação, uma forma
de composição e um repertório.
Do ponto-de-vista musical, a tule é uma suíte composta por várias peças que lhe
são exclusivas. Numa performance de tule, costuma-se executar apenas uma dessas
suítes. Escolhe-se por antecipação a suíte que se virá executar, o que condiciona a fa-
bricação dos instrumentos, já que a constituição do conjunto orquestral pode variar
duma suíte para outra. Além disso, é raro que se toque a totalidade das peças perten-
centes à suíte. À medida em que a performance se desenrola, e nos intervalos entre
cada peça, os músicos escolhem aquelas que tocarão. Em termos absolutos, existe na
suíte uma ordem ideal dessas peças, ainda que, durante a seção de tule, seja fre-
qüente a modificação dessa ordem.
As peças que fazem parte duma mesma suíte se constituem dum tema que, con-
forme veremos no capítulo seguinte, possui características próprias por um lado, e por
outro possui elementos que conferem uma coerência musical ao todo, à suíte.
Até onde sei, o repertório das tule, entre os wayãpi do Oiapoque, compreende doze
suítes, somando cerca de duzentos e trinta peças distintas10:
- enẽtule{XE "En?tule (suíte do besouro)"}{XE "En?tule (suíte do besouro)" \t "vide
também tuleko"} (“a dança do besouro”): também com o nome de tuleko{XE "Tu-
leko (suíte do besouro)" \t "vide também en?tule"}{XE "Tuleko (suíte do besou-
ro)"}, palavra cujo sentido é desconhecido, essa suíte é tida como ‘bem antiga,
bem nossa’ e difícil de tocar. Depois do falecimento de Yakanali, em 1969, seu
genro Wilapile se fez seu depositário. Na geração precedente se encontraria, em
cada aldeia, um homem apto a assumir a responsabilidade por essa dança. De
acordo com o lugar, pode ela comportar de quinze a vinte peças;
- moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"} (“a dança da sucuri”): esta suíte, que
também faz parte das tule ‘bem antigas’, é considerada muito difícil de se tocar.
Ela comporta mais de trinta peças diferentes. Hoje haveria três variantes: a do
pessoal do rio Kouc, conhecida pela família do cacique Pina; a do Alto Oiapoque,
pela qual Yapa’i seria o responsável — atualmente, é Mopea quem a conhece me-
lhor; enfim, a versão do Médio Oiapoque, que quem detinha era o cacique{XE "Po-
lítica:cacique, chefia" \r "Cacique2"} Eugène Inãmu, o qual fez dela a sua dança de
despedida, em 1977: numa determinada cerimônia, dançou ele a última peça recu-
ando até o rio, depois quebrando as clarinetas, a indicar que esta seria a última
dança que realizava antes de morrer{XE "Morte, mortos" \r "Morte"} (Navet, co-
municação pessoal 1978);
- tuleãkã{XE "Tuleãkã (dança da cabeça)"} (“a dança da cabeça”): segundo Jacky,
esta suíte provém dos wayana. É considerada a mais fácil de se tocar de todas as
tule, e é a única onde a improvisação é de fato possível e freqüente; só se pode
improvisar na parte ta’i. Compreende ela quase vinte peças. A diversidade dos in-
térpretes, e as suas atitudes durante a dança, indicam que não se a associa a um
indivíduo ou uma família em particular;
- pilatule{XE "Pilatule (suíte dos peixes)"} (“a dança dos peixes”): esta suíte é co-
nhecida sobretudo pelas pessoas da aldeia{XE "Aldeia" \r "Aldeia7"} Pina. É uma
música ‘antiga’, compreendendo vinte peças, e é a mais difícil de se tocar;
- panalitule{XE "Panalitule (suíte dos wayana)"} (“a dança dos wayana{XE "Waya-
na" \r "Wayana2"}”): os wayãpi dizem ter aprendido esta suíte através do seu
contato direto com este povo vizinho, sobretudo graças ao pai de Yakanali, que era

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AS CLARINETAS E O SEU SOM, O TOQUE E A DANÇA

aparaí{XE "Aparaí"}. Essa tule, que não parece ter um titular responsável, é a que
compreende o maior número de peças, provavelmente em torno de quarenta;
- tulekalanã{XE "Tulekalanã (suíte kalanã)"} (“a dança kalanã”): os kalanã{XE "Ka-
lanã"} são uma etnia do Médio Oiapoque que se dispersou em diversas direções no
princípio do século XVIII, extinguindo-se em seguida. A visita de Tawika, um
wayãpi do sul, reintroduziu esta suíte no repertório, no princípio dos anos setenta;
às vezes também se designa esta música como kamalakũtule{XE "Kamalakutule
(suíte dos wayãpi do sul)"}{XE "Kamalakutule (suíte dos wayãpi do sul)" \t "vide
também tulekalanã"} (“a dança dos wayãpi do sul”). A sua execução costuma
acompanhar brincadeiras, palhaçadas, e zombarias acerca dos wayãpi do sul e do
seu sotaque. Aquando da apresentação que assisti em 1977, a cada peça se suce-
dia a sua versão vocal, a qual cantavam os músicos. As letras dos cantos são ricas
em comparações com as demais suítes tule, e a sua atmosfera sempre suscita
muitos risos. Comporta uma dúzia de peças;
- pailãtule{XE "Pailãtule (suíte do periquito pailã)"} (“a dança do periquito pailã”):
pailãpailã é o nome que se dá, quando se o aprisiona, ao periquito tapi’ilaãnga,
aquele que ‘parece com a anta’11. Esta suíte, tida como dos wayãpi do sul, não era
bem conhecida no Alto Oiapoque, salvo por um homem apenas — Posisa —, morto
em 1978;
- tãpẽtule{XE "Tãp?tule (suíte do gavião-tesoura)" \t "vide também tulepuku"}{XE
"Tãp?tule (suíte do gavião-tesoura)"} (“a dança do gavião-tesoura”)12: também
chamada tulepuku{XE "Tulepuku (grande suíte)"} (“a grande suíte”); nunca vi sua
execução, pois o seu ‘depositário’, Alexandre Kolokolo, já estava muito velho e
cansado nos idos de 1980. Segundo Yawalu, essa tule viria dos kaikusiana{XE
"Kaikusiana"}, um povo hoje extinto, do qual os wayãpi em parte descendem;
- yãwĩtule{XE "Yãwitule (suíte da tartaruga)"} (“a dança da tartaruga”)13: originária
do Médio Oiapoque, esta suíte era dançada sobretudo na aldeia Masikili, pelo caci-
que Eugène Inãmu, que era um dos homens mais cultos do rio;
- wasewa{XE "Wasewa (nome duma suíte tule)"}: o sentido deste nome é desco-
nhecido; tal como a precedente, se a dança à noite, e a princípio deve-se cantar
cada seção com a clarineta no ombro, para depois tocá-la nos instrumentos;
- alalawayu: é o nome de uma sucuri mítica. Esta suíte também faz parte do reper-
tório originário da aldeia Masikili. Hoje é Raoul Mata, filho de Inãmu, que é o seu
depositário. Não é muito difícil de se tocar, e compreende uma dúzia de peças;
- tulemiti{XE "Tulemiti (pequena suíte)"} (“a pequena dança”): por comportar pou-
cas peças (uma dúzia), se chama esta de suíte ‘pequena’. É considerada como
‘wayãpi mesmo’ e, segundo o cacique Pina, os wayãpi do Brasil a dançam com fre-
qüência. Jacky diz, por sua vez, que foi Kwata, o pai de Pina, quem foi o principal
depositário, mais especificamente na aldeia Tayau’a. É uma música tida como fácil,
mas que é pouco tocada e, portanto, se a costuma esquecer.

Características organológicas

A tule consiste de um tubo e uma palheta{XE "Palheta"}. De preferência, se faz o


tubo no interior dum bambu, perfurando-se os nós; ele é cilíndrico, medindo de 0,60 a
1,60 metros. A palheta, sempre de bambuzinho, é fixa no nó superior do bambu; na
realidade, trata-se esta duma pequena clarineta idiófona, maciça: o bambuzinho per-
manece, na extremidade inferior, no seu formato de pequeno tubo aberto, enquanto a

39
SOPROS DA AMAZÔNIA

extremidade superior se fecha naturalmente num nó do bambuzinho; a palheta propri-


amente dita se destaca da superfície do próprio tubo, na sua parte superior (cf.
FIGURA 5). Antes de colocá-la dentro do tubo de bambu, é possível, sugando o ar pela
extremidade inferior, tirar som dessa pequena clarineta.
Nenhum segredo ou rito particular acompanha a fabricação destes instrumentos{XE
"Instrumentos musicais secretos"}. Ainda que se os prepare com cuidado, carecem
eles de ornamentação, tendo muito poucos desenhos (algumas incisões simples feitas
à faca). Jacky me confirmou que as tule jamais tiveram uma ornamentação especial,
de penas por exemplo, ou de tiras de casca de árvore, como entre os aparaí{XE
"Aparaí"}, ou de desenhos em vermelho e branco, como entre os asurini{XE "Asurini"}
(Müller 1990: 115). “Porém antes, diz ele, na aldeia de Itusãsãy [quer dizer, até
1967], se enfiava uma folha trançada da palmeira wasey em cada clarineta; se chama
aquela tule’a, e se a emprega apenas para a dança moyutule{XE "Moyutule (suíte da
sucuri)"}. Hoje em dia, se as faz depressa demais”.
Se fabrica as tule sempre com materiais frescos, verdes, não durando elas mais que
três dias14. Vimos que são instrumentos efêmeros{XE "Efêmero"}, que se confecciona
a cada ocasião. Algumas horas antes da dança, os jovens vão cortar bambus num
bambuzal perto da aldeia (num raio de seiscentos metros). Antes de partirem, aquele
que conduzirá a dança avisa qual se irá realizar e, em função desta, qual o tamanho
desejável dos bambus. Isso significa que cada suíte corresponde a um registro, quer
dizer, a uma combinação particular de altura e timbre{XE "Timbre"}. Ainda que, con-
forme veremos, uma grande imprecisão de alturas seja tolerável, esta indicação já nos
mostra que os wayãpi pensam as suas suítes orquestrais, que as concebem através da
associação de cada qual com uma sonoridade global específica.

40
AS CLARINETAS E O SEU SOM, O TOQUE E A DANÇA

FIGURA 5 Esquema da clarineta tule: tubo e palheta.

O bambu favorito é o kwamã15: mais fino e leve, é mais conveniente para os dife-
rentes comprimentos e diâmetros desejados, mas também se pode utilizar os bambus
ilipala16 e tawo17; às vezes se usa a árvore oca ama’i18, sempre abundante, mas isto é
mais raro (os wayãpi do rio Jari empregam também o bambu takwãsĩ).
Uma vez feito o corte, os bambus de quatro ou cinco metros são trazidos à aldeia e
submersos no rio. Por fim, três dos futuros músicos fabricam os instrumentos, num
momento tal que, com muita freqüência, a reunião de bebedeira já começou. O pri-
meiro corta os bambus no comprimento e no diâmetro correspondentes às partes que
tocarão: mais curtos e estreitos para a parte aguda (ta’i), mais longos e largos para a

41
SOPROS DA AMAZÔNIA

parte mais grave (mãmã). O entalhe da embocadura é feito com capricho, para que
não se machuque os lábios. O segundo perfura os nós de cada bambu com a ponta
dum arco velho, que serve de furador; esta operação costuma ser delicada. Por fim, o
mestre da dança molda as palhetas, escolhendo as alturas, e as fixa no primeiro nó do
bambu.
Vimos que a fabricação dessas clarinetas é totalmente pública e simultânea à reuni-
ão de bebedeira{XE "Cauim, beber" \r "Cauimbeber4"}. Seguindo Pierre Schaeffer
(1966), certos compositores da música ocidental contemporânea afirmam a necessida-
de duma “ruptura entre o som e as fontes sonoras”: “Na verdade, numa autêntica mú-
sica de todos os sons, as fontes sonoras reais não têm importância alguma (por fonte,
entendo não somente a causa inicial do som, mas os detalhes de suas manipulações e
dos seus tratamentos)” (Chion 1986: 8). Me parece que, ao contrário, parte do traba-
lho dos etnomusicólogos consiste em determinar como cada grupo humano associa
uma forma acústica a uma fonte real. Um dos eixos desta problemática colocaria dum
lado a questão das máscaras, dos instrumentos{XE "Instrumentos musicais secretos"}
secretos, e doutro a exposição, a disposição das fontes sonoras à mostra. Os maracás
dos galibi{XE "Galibi"} são um exemplo simples desta oposição: os xamãs{XE "Xamã,
xamanismo"} giram os maracás de cabaça esférica que, sombrios, encerram pedrinhas
brancas que guardam em si toda uma vida sobrenatural, toda uma história misteriosa;
em compensação, durante as cerimônias de luto, as mulheres percutem na vertical os
maracás fixos a lanças; esses maracás{XE "Xamã, xamanismo:maracá" \r "maracá3"}
são pequenos recipientes alongados, de palha trançada{XE "Cestaria"}, que permitem
que se veja o conteúdo: sementes de Thevetia, um arbusto comum que se planta
junto às casas. É nesse sentido que é importante sublinhar que os wayãpi fabricam as
tule inteiramente à vista, com o conhecimento de todos: se as prova, reprova, se es-
culpe as palhetas, se as ajusta... tudo isso às vistas{XE "Ver" \r "Ver"} do público, em
meio a mulheres, crianças e homens de todas as idades.
Esta fabricação é também coletiva, uma produção ‘em cadeia’: cada fabricante do
instrumento se especializa por um momento (há uma hierarquia entre as diversas
operações). Este modo de fabricação prefigura a disposição orquestral e coreográfica
das tule: música coletiva, interdependência entre as partes musicais, dança em cadeia.
As palhetas se chamam takwali, que é o termo genérico para o bambuzinho19, ou às
vezes ipo, que significa “seu conteúdo” (se trata aqui do conteúdo da clarineta; num
senso genérico, este termo pode designar tanto o cartucho numa espingarda quanto o
tabaco num cigarro).
A palheta é simples e vibrante. O bambuzinho se fecha naturalmente na extremida-
de anterior com um de seus nós (cf. FIGURA 5), e a palheta propriamente dita (iapekũ,
“sua língua”) se destaca do canalete com a incisão duma faca. Acusticamente, é uma
palheta um tanto forte, quer dizer, sofre o estímulo duma boa pressão de ar, aferindo
a sua freqüência ao tubo. Essa freqüência da palheta resulta duma escolha precedente,
ainda fora do tubo (independentemente do bambu), afim de corresponder à sua finali-
dade, ou seja, à parte que irá ela ocupar no conjunto orquestral. Se a faz mais grave
alongando a lingüeta da palheta, e mais aguda encurtando-a, com um amarrilho. Às
vezes se a faz mais fina (apipĩ, “eu descasco”), quando parece estar grossa demais
(ianã). Jamais se apõe a ela qualquer sobrecarga (cera de abelha, por exemplo).
É comum que a palheta que mantém a sua forma cilíndrica inicial permaneça presa
ao seu canalete e, ao se testá-la fora do tubo, seja preciso levantá-la e liberar a pas-
sagem do ar. Dentro do tubo, estando a palheta fixa numa primeira câmara 20, tal como
no cromorno, decerto são as perturbações do ar que levam a palheta a se levantar.

42
AS CLARINETAS E O SEU SOM, O TOQUE E A DANÇA

Essas palhetas são muito frágeis, em virtude do seu material, logo se deformando
no decurso da dança (ikane’a e’i: “seu / arquejamento / ela / pronuncia”, quer dizer,
“ela treme”). Em meio a duas peças, se as costuma remodelar, alongar, encurtar ou
mesmo trocar.
Quando se coloca a palheta dentro do tubo, será preciso, caso o primeiro furo do
bambu for muito grande, amarrar um fio de algodão, um pedaço de tecido ou de corti-
ça no bambuzinho, para o impedir de escorregar dentro do bambu e, ao mesmo tem-
po, servir de junta (cf. FIGURA 5). Às vezes, se esfrega cera de abelha no tubo de
bambuzinho para que ele se firme melhor no nó do bambu. Uma particularidade orga-
nológica facilita excepcionalmente a improvisação, numa das suítes: para que a pa-
lheta soe mais forte, fende-se ela longitudinalmente (iapekũ omopo, “faz-se um talho
na sua língua”), ela fica bífida. Esta originalidade se aplica à suíte tuleãkã{XE "Tuleãkã
(dança da cabeça)"} (“a dança da cabeça”), que compreende quatro partes; as duas
partes mais agudas, o mesmo músico pode executá-las com apenas um instrumento; é
o único caso, entre os wayãpi, onde uma clarineta tule pode tocar várias alturas; isto
se dá em se a soprando mais ou menos forte:

waiwo a opi o yẽ’ẽ kõlĩ


(“forte / eu / sopro / ele / soa / agudo [a tule]”)
“eu sopro forte para tocar mais agudo”

mewe au a opi o yẽ’ẽ ngu


(“docemente / um pouco / eu / sopro / ele / soa / grande”)
“eu sopro{XE "Sopro" \r "Sopro2"} mais docemente para tocar mais grave”

Outra particularidade, desta vez regional: segundo o cacique Pina, os wayãpi do sul
dispõe diferentemente a palheta dentro do bambu: eles recortam um imawa (“disco,
rodela de fuso”), que colocam a dez centímetros no tubo, substituindo o primeiro nó do
bambu21; “costumam tirar a palheta do tubo bastante também”, acrescenta Pina.
A despeito do cuidado que se toma na confecção das clarinetas, jamais se as mede
com muita precisão: os tubos de bambu são medidos a olho, comparando-os entre si,
julgando-se de ouvido as palhetas, uma boa aproximação sendo aceitável. O tubo pode
medir desde 0,60 metros, para a menor parte (ta’i), até 1,60 metros para a parte mai-
or (mãmã). Durante a sua fabricação, os músicos se esforçam para que, em todos os
instrumentos que tocarão a mesma parte, o comprimento da primeira câmara seja
idêntico. O diâmetro dos bambuzinhos, por sua vez, sempre varia mais ou menos entre
0,80 e 0,90 centímetros.
As mensurações relativas aos instrumentos de algumas formações (cf. Beaudet
1983: 108–110) revelam que as progressões respectivas do comprimento total e do
diâmetro do tubo, bem como as do comprimento da lingüeta da palheta, correspondem
às diversas partes, porém não de maneira estrita, nem regular. Por outro lado, a soma
destes três parâmetros segue uma progressão conforme a das partes. O comprimento
total do tubo estabelece de pronto, no seu aspecto visível, as correspondências entre
as partes do conjunto orquestral: vê-se, e é preciso que seja visto, que a parte mãmã
é maior que a parte mite, que por sua vez é maior que a parte ta’i... Ainda ali, também
se trataria de apresentar uma definição visual{XE "Ver" \r "Ver2"} da música, de tor-
nar aparente as fontes sonoras — antes na confecção do instrumento, aqui na técnica
orquestral.

43
SOPROS DA AMAZÔNIA

As mensurações e o modo de fabricação indicam sobretudo que os músicos esco-


lhem as diferentes emissões de altura mais no nível da palheta, ao passo que as di-
mensões do tubo de bambu determinam sobretudo o timbre.
As grandes variações, tanto de freqüência quando de timbre, sempre presentes nas
características dos instrumentos que tocam a parte central (mite — sempre há vários
músicos a tocar juntos essa mesma parte), indicam que os nomes dados às partes não
são referências exclusivas às alturas, mas também aos timbres: o tubo da parte mais
grave (mãmã) não poderá ser estreito ou curto demais, o da parte “criança” (ta’i) não
poderá ser demasiado longo ou grande. A constância, duma suíte a outra, da hetero-
geneidade dos instrumentos da parte central sugere que o conseqüente som denso,
carregado, tal amálgama, tal ‘cluster’ bem grave e evidente é uma escolha consciente
dos músicos, um elemento central nesta estética musical.

Acústica

“O saxofone é uma bela maçaroca sonora”, dizia Rossini. O som das tule é particu-
larmente pastoso, espesso{XE "Espessura acústica"} (ou mesmo encaroçado, quando
as palhetas{XE "Palheta" \r "Palheta3"} se deformam). Para tentar compreender esta
sonoridade, descrevendo as suas características, realizamos análises sonográficas com
o concurso de Gilles Léothaud, do Laboratório de Acústica Musical da Universidade de
4
Paris IV. Essas análises foram feitas acerca de moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucu-
ri)"} (“a suíte da sucuri”).
Uma primeira imagem sonográfica em grande escala (80–8.000 hertz) logo mostra,
desde a primeira apresentação do motivo da peça, a característica maior deste som: a
sua riqueza em harmônicos. Enquanto as clarinetas européias, já bem ricas em har-
mônicos, apresentam quarenta em média, as tule possuem mais de cinqüenta. Toda-
via, a despeito de sua importância, os músicos wayãpi não reconhecem nem nomeiam
os harmônicos.
Um sonograma em menor escala (4–4.000 hertz) torna evidentes os seguintes as-
pectos: existem muitos formadores, o que aproxima esta sonoridade da voz humana
(os formadores são regiões privilegiadas do espectro, energizadas pelo tubo). Os prin-
cipais estão presentes até 4.000 hertz; a degressão (perda de energia na direção su-
perior do espectro) é lenta então, o que é característica dum instrumento brilhante.
Esta importância dos formadores se faz contrabalançar por alguns ‘vazios’ ou que-
das de energia sonora. Na parte yakãngapiya, estes vazios se situam no nível dos
harmônicos 8 e 16, ao passo que estes últimos correspondem ao nodo da onda no
tubo. É provável que tal se deva à conformação do instrumento: irregularidades na su-
perfície interna do bambu, nós que foram apenas perfurados, e não eliminados... É di-
fícil estabelecer uma correlação precisa entre a repartição energética do espectro so-
noro e essas irregularidades do material, pois estas acarretam perturbações acústicas
bem complexas. Seria interessante, por outro lado, ver se músicos de outros povos,
através duma intervenção diversa no tubo, buscam um outro tipo de espectro nas suas
clarinetas.
Outra característica, a incrível estabilidade espectral do instrumento, corresponde à
constância do timbre ao longo da peça: seja no decorrer duma única emissão sonora,
entre duas emissões da mesma parte num mesmo motivo, ou entre duas emissões da
mesma parte ao longo da peça, não há qualquer variação na sonoridade do instru-
mento. Os músicos wayãpi valorizam muito essa estabilidade do timbre{XE "Timbre" \r

44
AS CLARINETAS E O SEU SOM, O TOQUE E A DANÇA

"Timbre2"}, procurando soprar sempre do mesmo modo, e corrigindo ou trocando a


palheta à menor deformação.

45
insetos

FOTO

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SOPROS DA AMAZÔNIA

ta’i yakãngapiya ta’i

FIGURA 6 Sonograma do princípio duma peça de tule. Escala: 80–8.000 Hz.


(Para os nomes das partes — ta’i, yakãngapiya —, vide o capítulo seguinte.)
poucos ruídos brancos de ataque

FOTO

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AS CLARINETAS E O SEU SOM, O TOQUE E A DANÇA

FIGURA 7 Sonograma dum fragmento da peça tukã de moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"}. Escala:
40–4.000 Hz.
clareza de ataque: os harmônicos limpeza e doçura de ataque da
superiores começam depois dos parte mãmã
harmônicos inferiores

FOTO

48
SOPROS DA AMAZÔNIA

FIGURA 8 Sonograma dum fragmento da peça tukã de moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"}. Es-
cala: 40–4.000 Hz.
AS CLARINETAS E O SEU SOM, O TOQUE E A DANÇA

Uma última característica notável está nos ataques, que são, ao mesmo tempo,
muito doces e muito limpos:
- doçura: os transitórios22 de ataque são muito leves; há poucos ruídos brancos no
ataque, o que corresponderia a golpes de língua ou a interferências acidentais da
palheta{XE "Palheta"}. A palheta fica presa numa primeira câmara; ao contrário da
clarineta européia, ou de certos turê da Amazônia central, a palheta não fica ali em
contato com a boca do músico, o que talvez explique esta ausência de ruídos bran-
cos. É também digno de nota que esses ruídos brancos se manifestem mais nos
instrumentos agudos que nos graves. A doçura do ataque da parte mãmã é excep-
cional, mas é difícil saber se estas leves diferenças provêm do estilo de cada ins-
trumentista, se elas são determinações do tamanho do instrumento, ou se elas são
características musicais intencionais;
- clareza: os harmônicos agudos começam um pouco depois dos primeiros harmôni-
cos; é característica dum ataque muito limpo (aqui, é ainda mais notável que não
haja golpe de língua). Esse traço se verifica em toda a parte mite, uma conjunção
de vários instrumentistas, para os quais este é um critério estético: é preciso co-
meçar no momento justo, e bem junto23.

Técnica de toque

Toca-se as tule sentado e de pé. Em princípio, se segura o instrumento na mão es-


querda — situando-a mais ou menos no meio do bambu — pois que, para a dança, a
mão direita se apóia sobre o ombro do dançarino à frente.
Ao longo de todo o decurso da peça, a boca — yulu — fica colada à embocadura —
yulu: o instrumento e o músico jamais se separam. Qualquer que seja a peça, o seu
andamento e as suas figurações de dança, o instrumentista fica sempre bem calmo,
com um sopro{XE "Sopro"} estável, tranqüilo na relação com o seu instrumento. As
clarinetas costumam balançar de cima para baixo, seguindo a pulsação da música;
este movimento amplo, que é como o passo das tule interage com o passo dos dança-
rinos, se o realiza em uníssono{XE "Uníssono"}, em fase com todos os músicos.
Como nas demais danças, as tule às vezes acompanham o ritmo de guizos feitos
dos frutos de Thevetia (away [port.: agaí]), presos abaixo da panturrilha ou no bastão
de ritmo{XE "Ritmo"} do condutor da dança. Os wayãpi do Oiapoque não cultivam
mais esta planta e, desde há alguns anos, sempre obtêm guizos feitos pelos waya-
na{XE "Wayana"}.
Ainda que bem sonoras — é fácil ouvir a sua música para além da periferia da aldeia
— não é cansativo tocar as tule. Para tal há, primeiro, uma razão técnica: a primeira
câmara do bambu poupa pressão e esforços da boca. Além do mais, nenhuma peça
apresenta dificuldade de sopro; a alternância das partes, a respiração, costumam ser
fáceis e regulares. Os músicos-dançarinos podem tocar por toda a noite sem se res-
sentir do cansaço.
Cada clarineta não emite mais que uma só altura de som, e os músicos não são ca-
pazes de tocar o tema, realizar a linha melódica, a não ser soprando{XE "Sopro" \r
"Sopro4"} uns após os outros. Mas por que tocar este repertório com tal técnica alter-
nante? Por que tal entrecruzamento das partes instrumentais? Eis uma questão que se
colocará nos capítulos seguintes. Do ponto-de-vista puramente físico, a forma, o ta-
manho, o registro bem grave das tule não permitiriam a perfuração de buracos possí-
veis de se tocar. Além disso, a potência sonora destes instrumentos não permitiria que

49
SOPROS DA AMAZÔNIA

um músico repetisse{XE "Repetição"} o tema sozinho por dez minutos, e muito menos
que tocasse toda uma suíte com uma noite de duração. A conformação deste tipo de
clarineta nos poderia então fazer crer que a alternância é uma imposição dos parâme-
tros do instrumento. Mas esta organização também existe, entre os wayãpi, nos con-
juntos de flautas de pã, onde ela não é fisicamente compulsória. Portanto, tal técnica
orquestral é uma opção musical, à qual as características organológicas e acústicas das
tule dão uma forma própria. Redutível a um só instrumento musical tocado por vários
instrumentistas24, o conjunto de tule associa assim um som grave e possante a uma
relação particular do grupo. Estas músicas podem se manifestar graças a uma forma
de atenção e disciplina pouco habitual nesta sociedade. Timbre, registro, alternân-
cia{XE "Alternância" \r "Alternância"} das partes orquestrais, concentração mental dos
músicos, todos estes elementos primários, a produzir a homogeneidade a partir dos
contrastes, concorrem para que as tule se coloquem numa posição intermediária entre
a música solo e os grandes cantos. Esta energia não é expressão nem do uníssono{XE
"Uníssono"} social — o das grandes danças cantadas — nem da individualidade, da in-
timidade das flautas que se toca em solo; é porém o arranjo dum organismo de ele-
mentos diferenciados, entrecruzados e inseparáveis.
Enfim, com respeito a esse conjunto, que é redutível, conforme acabamos de ver, a
um só instrumento tocado por vários músicos-dançarinos, a coreografia do conjunto
também há de ser vista como um gesto musical.

A dança

— Selokamokatu: “que se prepare o local da dança!”, é assim que se intitula a se-


gunda peça da suíte moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"}. Entretanto, jamais vi
a preparação do local da dança, a não ser para os grandes ciclos cantados; é um tra-
balho longo e muito minucioso: é preciso capinar, nivelar o solo ao máximo e, sobre-
tudo, catar cuidadosamente cada osso, a menor espinha de peixe, um resto de raiz,
um caco... Quando alguns rapazes começam a revolver este chão, a escavar prazen-
teiramente tal sedimento da vida cotidiana, então toda a aldeia percebe que haverá
uma grande festa. Não vá ninguém se machucar: os dançarinos têm os pés descalços.
O movimento de base de qualquer dança wayãpi é simples: é um caminhar balan-
ceado, chapando os pés no chão, com uma acentuação marcada no pé direito (amo-
molay, “eu danço, eu marco o ritmo”). Polay, ou molay{XE "Molay (dançar)" \t "vide
polay"}, é uma raiz muito importante nas línguas tupi{XE "Tupi"} (cf. H. Clastres
1975: 62). Em wayãpi momolay também significa “ninar [uma criança]”, ou seja, fazer
um balanço ritmado; por outro lado, a dança wayãpi consiste fundamentalmente em
marcar o tempo arrastando o pé, ou seja, em imprimir no corpo e mostrar através do
corpo a pulsação musical; a associação destes dois dados sugere que a raiz polay{XE
"Polay (dançar)" \r "Polay"} remete, em princípio, a tais noções de pulsação, de
ritmo{XE "Ritmo" \r "Ritmo2"}. Mas para os wayãpi, cujo andar habitual é o dos des-
locamentos na floresta, esse movimento de base da dança é um tipo de passo pouco
comum. Os homens, cuja atividade principal é a caça{XE "Caça"}, devem caminhar
rápido, ao mesmo tempo em silêncio{XE "Silêncio"}, e com um risco mínimo para os
seus pés descalços; é um movimento característico, comum a pelo menos todos os
seus vizinhos ameríndios do sul das Guianas, cujo princípio é conservar o peso do cor-
po sobre a perna de apoio o maior tempo possível, qualquer que seja a velocidade do
deslocamento. Disto resulta um andar leve, no qual o tronco permanece quase que na
vertical, um andar um pouco saltitante, preciso, cheio de precaução e ao mesmo tem-

50
AS CLARINETAS E O SEU SOM, O TOQUE E A DANÇA

po vivaz. A dança wayãpi na aldeia{XE "Aldeia"}, no pátio que se prepara para a dan-
ça é, ao contrário, um caminhar pesado, com o tronco inclinado, onde a acentuação
sobre o pé direito mostra esta afirmação do peso, de maneira mais econômica e mais
elegante que os apoios fortes e marcados por igual sobre os dois pés. O wayãpi, dan-
çando, afirma o seu peso sobre a terra, ao passo que na floresta ele procura ser mais
leve, o menos presente possível; a floresta não é um local de afirmação. Assim pare-
ceria que, para os wayãpi do norte, dançar é ser pesado; isso atribuiria um valor posi-
tivo à noção de peso (powi), como entre os araweté{XE "Araweté"}, onde a alegria
(tori) pesa (Viveiros de Castro 1986: 480), enquanto que entre os wayãpi do sul
(Gallois 1988) o peso se associaria a um comportamento imoral e seria um empecilho
para a ascensão aos céus. A etnografia das danças da Amazônia ainda está para se fa-
zer, mas é bem evidente que este passo, esse movimento de base tem grande difusão:
o encontramos entre os wayana{XE "Wayana"} e os ye’kuana{XE "Ye’kuana"} por
exemplo, mas também no Alto Xingu{XE "Xingu"}; e as descrições das crônicas e
narrativas de viagem do final do século XVI nos levam a crer que, aquando da chegada
dos europeus, as populações da costa do Brasil dançavam conforme o mesmo movi-
mento fundamental25.
Como já dissemos, para os wayãpi, toda dança se associa à música coletiva; dançar
sozinho é inconcebível. A disposição dos dançarinos-músicos, o dispositivo coreográfico
é também comum a inúmeros povos amazônicos; é uma dança em cadeia, e os movi-
mentos dos dançarinos são sincrônicos: molaytããkũ oymoikupa (“os dançarinos se ali-
nham”). Cada dançarino, enquanto segura o seu instrumento com a mão esquerda,
coloca a mão direita sobre o ombro esquerdo do dançarino (ou da dançarina) que lhe
está à frente. Os dançarinos não ficam exatamente lado a lado nem, na realidade, uns
atrás dos outros; avançam em diagonal, em relação à orientação do seu tronco. Quan-
do as mulheres participam da dança, elas seguram o braço esquerdo dos seus pares e
não marcam o passo, contentando-se em seguir o do cavalheiro. Tal ‘passividade’ sis-
temática das dançarinas é também freqüente na Amazônia, e a sua zona de difusão
parece corresponder a do ‘caminhar balanceado’ enquanto passo de base. No Médio
Oiapoque, segura-se o dançarino, o cavalheiro, pela cintura; o conjunto se apresenta
assim como uma seqüência de casais, e não como um encadeamento, coisa que o
povo do Alto Oiapoque critica muito. Pode-se considerar esta característica como um
‘diacrítico’ regional: seqüência de casais para os wayãpi de Camopi (bem como para os
palikur{XE "Palikur"}), dança em cadeia para os de Trois-Sauts e do sul.

51
SOPROS DA AMAZÔNIA

Passo de base da dança Caminhar cotidiano

FIGURA 9 Representação dos movimentos conforme a notação Laban.

Em todas as danças wayãpi a cadeia de dançarinos costuma ter forma circular, se


deslocando em sentido anti-horário. Este percurso pode admitir numerosos retornos e
meandros, mas não gira sobre si; é uma forma simples daquilo que a filosofia dos au-
tômatos chama de dedal (Rosensthiel 1990: 1425–1432), e cujo efeito primeiro é os
dançarinos jamais se darem as costas.

Molaytããkũ opalawilikupa: Molaytããkũ opalawiliwilikupa:


“os dançarinos giram”. “os dançarinos serpenteiam”.26

FIGURA 10 Percurso da cadeia dos dançarinos.

Estas circunvoluções podem se estender por vinte ou trinta metros; outras possibi-
lidades são freqüentes: o círculo pode se fechar, a cadeia se torna reta e translativa,
ou ainda se recolhe; se diz então: oikwaliwo (“eles vão para trás”). Estes percursos
são os mais comuns; se aplicam a diversas peças de tule e à maioria das estrofes dos
grandes ciclos cantados, mas certas peças de tule, certas estrofes dos grandes ciclos
são dançadas em motivos bem figurativos, ou mesmo em pequenas imagens que di-
zem respeito ao assunto da peça, quando os músicos imitam o comportamento dum
macaco, ou quando vão tomar banho, ou ainda quando, cada qual com uma cabaça de
cauim{XE "Cauim, beber"}, dão de beber à platéia; eis aqui alguns exemplos que se
destacam, na suíte moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"}:
- peça tukã (“o tucano{XE "Tucano"}”): sempre a tocar, os músicos se agacham e
saltitam de lado, como o pássaro na árvore;
- peça wakilo (“o engole-vento”): os dançarinos colocam algodão no chão e ‘se sen-
tam’ em cima, como o pássaro no seu ninho, nas pedras da beira do rio;
- peça kwasi (“o quati”): o músico que conduz, tocando ta’i, segura a tanga de um
dançarino (tomando-a assim pela cauda do animal), e todos os dois giram em tor-
no do círculo dos outros dançarinos. O de trás cambaleia, imitando o comporta-
mento cabotino deste pequeno carnívoro;
- peça eyũ peyo’o (“tira o meu espinho”): um dançarino levanta o seu pé e os ou-
tros, passando por ele, coçam o seu calcanhar.
Nos grandes ciclos cantados, as coreografias figurativas ocorrem em certas estrofes
específicas, contribuindo assim para pontuar esses diversos ciclos conforme uma es-
trutura recorrente. Nas tule, ao contrário, esta alternância de coreografias figurativas e

52
AS CLARINETAS E O SEU SOM, O TOQUE E A DANÇA

não figurativas é irregular; as danças tule não apresentam referências cíclicas, e o seu
percurso é mais aleatório.
Os dançarinos têm grande prazer em representar o universo natural no qual vivem,
e de fazer o papel dos animais{XE "Animais"} que caçaram alguns dias antes. Mas
estas pequenas cenas alegres também muito ensinam às crianças, e divertem as ve-
lhas que há muito não podem ir mais à floresta: os grandes movimentos sincrônicos da
cadeia de dançarinos, os seus motivos bem estilizados ou figurativos se endereçam à
platéia, são um elo com o resto da aldeia, a abertura do núcleo do conjunto a todos
aqueles que não dançam. Mais precisamente, a cadeia de dançarinos pode apresentar
dois tipos de comportamento: perfaz ela aqueles movimentos que se dirigem ao exte-
rior — aos espectadores —, ou se fecha em torno de si mesma num círculo relativa-
mente pequeno, cujas clarinetas serão os raios que se entrecruzam e balançam. Cola-
dos uns aos outros, os músicos serão então os primeiros a sofrer o impacto da densi-
dade de sua própria música. Esta segunda forma é menos freqüente, como se os dan-
çarinos tivessem medo de se fechar no seu próprio som, fazendo uso desta recarga
energética apenas quando ela se faz necessária.
No decurso duma única peça, os dançarinos que seguem o primeiro de todos podem
marcar o passo sem sair do lugar, avançar com passos de tamanho regular, ou se
deslocar em grandes passadas: kumakayula pupe noko pilasayupa (“é, então, no lugar
que se chama Kumakayula, onde se dança com passos largos”), é a variação vocal da
oitava peça da suíte moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"}. O dançarino da fren-
te, com a sua mão direita livre, pode marcar a pulsação com o auxílio dum bastão de
ritmo; mais freqüentemente, é uma taquara de flecha wiwa27. O balanço do conjunto
dos músicos se transmite aos instrumentos, que executam um movimento de pêndulo,
numa amplitude variável que é determinada pelo dançarino da frente: duma maneira
geral, essa amplitude é inversamente proporcional à velocidade do deslocamento da
cadeia de dançarinos (quanto mais lento o seu deslocamento, mais amplo o movi-
mento das clarinetas). O passo da dança é a unidade de tempo da música, a visualiza-
ção da pulsação de base; esta não é perfeitamente isócrona: o andamento pode com-
portar múltiplas e ligeiras variações, mas permanece, no todo, bastante homogêneo. A
grande variação na amplitude dos passos — que sempre correspondem à mesma pul-
sação, no mesmo andamento da música — confere assim um ritmo{XE "Ritmo" \r
"Ritmo3"} próprio à dança, funcionando assim como uma espécie de ‘contraponto de
andamentos’ entre a música e a coreografia: o percurso da cadeia de músicos, que
pode permanecer no seu lugar, girar em roda ou se deslocar em grande velocidade,
oferece jogos de contraste com os passos de base, com a própria música, cujo anda-
mento{XE "Andamento" \r "Andamento"} é relativamente estável. Entre os grandes
ciclos cantados, as acelerações bruscas dos dançarinos são sobremaneira freqüentes
nos ciclos dos peixes (paku, kumalu, pilau{XE "Pilau (dança dos grandes peixes)"}...),
15 contribuindo assim para representar o caráter irrequieto dos peixes, e também desen-
cadear grandes explosões de riso{XE "Rir"}, sobretudo entre os mais jovens, que dan-
çam ao fim da cadeia.
No decurso do próximo capítulo, a estrutura musical das tule (tema, repetição, etc.)
será analisada em detalhe; mas as poucas indicações que demos sobre a coreografia
permitem pressentir que aqui, do ponto-de-vista estrutural, a música e a dança não
são interdependentes. Nos grandes cantos, o mestre da dança define um ou dois pon-
tos no pátio da dança onde a cadeia cantará sem se deslocar, e a partir dos quais ele
poderá começar uma nova reiteração de estrofe ou uma nova estrofe. Em compensa-
ção, nas tule, as circunvoluções da cadeia de dançarinos, os motivos coreográficos não
se associam formalmente aos motivos musicais. Por exemplo, um movimento da ca-

53
SOPROS DA AMAZÔNIA

deia de dançarinos pode corresponder a sete ou oito repetições{XE "Repetição" \r "Re-


petição"} do tema musical, sem que o princípio ou o fim do movimento corresponda ao
princípio ou fim do tema. Pela sua dança, bem como por sua estrutura musical, a peça
de tule tem um ‘final aberto’ (Draper 1980), ela se repete ad libitum. É claro que não
se pode interromper uma peça durante um motivo coreográfico ou vocal, mas nenhum
movimento anuncia ou prepara o final da peça.
Vimos que a execução de solos, conjuntos instrumentais e coros se dá sem dinâmi-
ca: qualquer que seja a peça, não se ouve mais que variações de intensidade bem
curtas e periódicas — os balanceamentos — presentes em cada reiteração do tema{XE
"Tema musical"}{XE "Tema musical" \r "Tema"}; não há jamais crescendos ou de-
crescendos. No nível da produção do som, a dinâmica da música wayãpi é, assim, es-
sencialmente estável. No entretanto, através dos deslocamentos da cadeia de músicos,
a dança cria variações de intensidade no nível da percepção da música, por parte dos
espectadores.
Acredito que esta escolha acústica e coreográfica é expressão duma lei cosmológica:
ela torna audível, e ao mesmo tempo visível{XE "Ver"}, que a energia não se cria,
mas se desloca. A encontraremos no que concerne a origem dos repertórios: a ausên-
cia de criação. Também muito explícita a esse respeito é a história, narrada por Miso,
dum cacique{XE "Política:cacique, chefia"} e xamã do século XIX, que perdeu todos os
seu poderes quando, na sua ausência, um rival veio a sua casa e lhe “roubou os espí-
ritos de dentro do seu maracá{XE "Xamã, xamanismo:maracá"}”. A dinâmica sonora
que os espectadores duma dança percebem não é mais que um dos modos de exprimir
tal generalidade: seja uma técnica de caça, um repertório, um estilo vocal, a força
moral ou, ainda, os ‘espíritos’{XE "Xamã, xamanismo:ayã"} do xamã{XE "Xamã, xa-
manismo" \r "Xamã4"}, a capacidade de realizar, os poderes ordinários ou extraordi-
nários se transformam, se os troca ou rouba, eles circulam. O novo não é invenção ou
descoberta, mas é sempre implicação duma troca, pacífica ou guerreira.
Voltemos à dança. Esta mobilidade dos instrumentistas permite uma combinação
rara em instrumentos elétricos: ela associa as variações na dinâmica (que aqui se per-
cebe) a uma completa estabilidade do timbre emitido. Essas variações são de dois ti-
pos: os deslocamentos da cadeia de dançarinos são, como acabamos de ver, impor-
tantes e codificados. Os espectadores percebem assim as variações dinâmicas de todo
o conjunto instrumental. Crescendos e decrescendos são determinados pelo trajeto e
pelo comportamento da cadeia de dançarinos. Por outro lado, a dança valoriza os jogos
de intensidade inerentes à organização do conjunto sonoro. Se a cadeia se desloca de-
fronte dos espectadores, as diferenças de intensidade entre cada parte são percebidas
como acentos particulares. Se os dançarinos giram no centro do pátio, o balancea-
mento dinâmico da conjunto parece mais equilibrado, menos contrastante. Quando os
dançarinos se afastam de fato, é a onda pesada e regular da parte central que se so-
brepõe ao conjunto. A partir duma distância de vinte a trinta metros entre músicos e
ouvintes, os temas{XE "Tema musical"} se reduzem, para estes últimos, à fórmula
rítmica daquela parte central. Por exemplo:

[1]

{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"}{XE "Tule-


ãkã (dança da cabeça)"}

54
AS CLARINETAS E O SEU SOM, O TOQUE E A DANÇA

{TC "Fórmula rítmica de duas suítes tule."}Fórmula rítmica de duas suítes tule.

Mas os temas apresentam alternâncias{XE "Alternância"} tanto de timbre, quanto


de desenhos melódicos; assim, a partir duma repetição estrita do tema, os desloca-
mentos dos dançarinos-músicos criam variações de dinâmica{XE "Dinâmica musical" \r
"Dinâmica2"} que, por sua vez, implicam variações{XE "Variação" \r "Variação2"}
perceptíveis do timbre{XE "Timbre" \r "Timbre3"}, e portanto alterações no tema{XE
"Tema musical" \r "Tema2"}, perceptíveis como efeito dum ‘zoom sonoro’.
Assim, afora a relação entre o passo de dança e a pulsação rítmica{XE "Ritmo"}, há
uma independência muito grande entre música e coreografia: pode-se mesmo dizer
que a dança brinca com a música quando, a despeito dum princípio primordial de re-
petição estrita, releva a maleabilidade, propondo, como diz Guilcher, “uma nova inteli-
gência”28.

55
CAPÍTULO III — O agenciamento musical das tule, uma alternância

ESTEJAM ELES sentados uns contra os outros, ou dançando uns com as mãos nos ombros
de outrem, os músicos estão sempre muito próximos fisicamente. Formam eles uma
unidade sensível, como um corpo sonoro autônomo. Em conexão com a respiração e o
passo da dança, a música envolve muito os instrumentos; onda grave que requer uma
atenção estável, centro de energia que regenera a si mesmo, conduz a dança, anima a
aldeia; este conjunto gira em torno de si mesmo e não há motivo que o pare. Como
pode o dançarino da frente, aquele que decide pôr um fim à peça quando bem lhe pa-
rece, como pode ele distanciar-se desta pesada embriaguez? Com algumas irregulari-
dades propositais que pontuam a repetição — micro-variações, figurações de dança...?
Será que é a vontade de beber, de rir com os outros, antes de dar andamento a uma
nova peça?
Irá a festa wayãpi se definir por esta alternância{XE "Alternância"} entre emoção
poderosa e tiradas alegres, ditando o ritmo livre das seqüências do espetáculo? Será a
alternância o princípio estético que define estes encontros musicais, que unifica a fei-
tura dos instrumentos, a técnica de toque, a organização orquestral e musical, a dança
e o espetáculo?
Alternância complexa, multívoca, cuja primeira impressão é propriamente musical.
A música de fato associa uma alternância horizontal — a melodia, que necessaria-
mente se constitui da sucessão das partes orquestrais — a uma alternância vertical —
a sucessão estreita dos solos e do arranjo simultâneo das diversas partes. É ali que o
dinamismo formal das tule se manifesta.

A organização orquestral

Os músicos-dançarinos se chamam molaytããkũ (“os dançarinos”, singular molaytãã


ou opalayma’i). O conjunto, em si, não possui nome, e o vocabulário wayãpi não com-
preende o termo a significar literalmente ‘músico’ ou ‘cantor’. Pode acontecer de se to-
car ou cantar sentado, sem dançar, mas nenhum homem dança sem tocar ou cantar.
As partes do conjunto orquestral possuem nomes próprios. Esses nomes designam
tanto os próprios instrumentos (enquanto estão em processo de fabricação, por exem-
plo) quanto as partes, e os músicos que as tocam. Durante a dança, estas três signifi-
cações se confundem; quando há um erro, por exemplo, o mestre da dança pode di-
zer: “as mite não entraram onde deviam”. Conforme a suíte que se toca, a orquestra
pode se dividir em três, quatro, cinco ou seis partes.
Como estas clarinetas não emitem, em princípio, mais que uma única altura sonora,
a realização da linha melódica não é possível senão pela sucessão de partes: se o tema
melódico utiliza, por exemplo, quatro graus, estes se distribuirão, se repartirão, por
quatro clarinetas diferentes, ou seja, quatro partes orquestrais. Todavia, cada suíte
comporta uma parte chamada mite que, por reunir diversas clarinetas, possui uma so-
noridade particular.

56
O AGENCIAMENTO MUSICAL DAS TULE, UMA ALTERNÂNCIA

Este tipo de organização orquestral é muito difuso pelo mundo, e alguns etnomusi-
cólogos escolheram o termo ‘hoqueto’ para designá-lo (Arom 1985)1. Os etnomusicó-
logos anglo-saxões preferem a expressão ‘interlocking parts’, mais neutra, menos
correlata a uma época musical européia (Hood 1979; Feld 1988). A tradução desta
fórmula, ‘conjunto de partes entrecruzadas’, convém bem às tule dos wayãpi, pois ex-
prime a interdependência entre os músicos da orquestra. Uma terceira denominação
possível é ‘conjunto instrumental alternante{XE "Alternância"}’ ou ‘conjunto de partes
alternantes’. Aqui se utiliza todas estas designações, sem distinção.
Estes conjuntos reúnem uma dezena de músicos, sendo que esse número varia
muito de acordo com a ocasião. Certas partes as toca um único músico, outras, deve
tocá-las um grupo. As diferentes partes destas formações orquestrais são:
- ta’i (“o pequeno”). Esta palavra, significando pequeno em tamanho, se inclui tam-
bém na terminologia de parentesco sob as formas ya’i (“criança”: termo vocativo,
homem e mulher falando) e -la’i (“filho”; termo de referência, homem falando). É a
parte mais aguda; ela sempre principia todas as peças de todas as suítes. Um úni-
co músico toca a ta’i, aquele que conduz a dança: iya (“seu mestre”). Em certas
suítes, o mesmo homem toca duas ta’i, a mais aguda não intervindo senão em
curtas fórmulas introdutórias;
- yakãngapiya (“aquela que sempre responde a ta’i”: é assim que os melhores in-
formantes francófonos traduzem o nome desta parte, sem se satisfazer, entretan-
to, com tal tradução). Termo especificamente musical, reservado a esta formação,
exprime ele a articulação e, ao mesmo tempo, a ‘partição’ da melodia. De fato, se
todas as peças começam pela ta’i, os demais músicos entram sempre depois da
intervenção da parte yakãngapiya, executando-a um único instrumentista;
- mite (“meio, centro”; por exemplo: ulupẽ mite, “o centro da peneira”). A palavra
mite, se a pode empregar também na terminologia de parentesco, como na palavra
mitepo (“criança mais nova”: termo de referência, homem falando). Vários músicos
tocam esta parte simultaneamente (pode ser uma dezena ou mais), e suas clari-
netas não são idênticas, nem do ponto-de-vista do timbre{XE "Timbre"}, nem do
ponto-de-vista da altura. Não obstante, ainda que as alturas sejam diferentes, os
instrumentos que formam o “centro” ocupam uma tessitura intermediária do regis-
tro. Assim, a execução dessa parte produz, como resultante, uma massa sonora
que se distingue do som mais agudo ou mais grave das outras partes;
- mite’i (“o pequeno centro”);
- mitelu (“o grande centro” ou “o pai do centro”): estas duas últimas partes, tocadas
por vários músicos, substituem a parte mite nas suítes pilatule e tulekalanã{XE
"Tulekalanã (suíte kalanã)"};
- mãmã (“mamãe”: termo vocativo, homem e mulher falando; às vezes se emprega,
sobretudo em Camopi, o tempo de referência i-yi, que significa “sua mãe”). É a
maior e a mais grave das clarinetas. Esta parte, não a executa mais que um dan-
çarino, ainda que, na suíte pilatule{XE "Pilatule (suíte dos peixes)" \r "Pilatule"},
segundo Ilipe, vários músicos deveriam tocá-la. Na grande maioria dos temas mu-
sicais, ela entra na música depois de todas as demais partes.
Assim, mais que pelas relações entre intervalos fixos, as diferentes partes se defi-
nem por relações de alturas: a clarineta ta’i será sempre mais aguda que yakãngapiya,
mas a relação intervalar destas poderá ser tanto mais próxima a uma segunda maior,
quanto mais próxima a uma terça maior (cf. FIGURA 13). Assim, do ponto-de-vista das
alturas, cada suíte se caracteriza mais por um contorno melódico que por uma organi-
zação precisa desses intervalos.

57
SOPROS DA AMAZÔNIA

Tal como os demais aerofones wayãpi, os componentes da clarineta tule se definem


por meio duma terminologia anatômica: a embocadura é “a boca”, a palheta é “a lín-
gua”, ela “perde o fôlego”... Porém, conforme acabamos de ver, as partes do conjunto
orquestral relevam mais uma terminologia de parentesco, segundo uma relação que
será, talvez, da ordem da metáfora.
Na Amazônia, parece ser muito freqüente esta terminologia aplicada aos elementos
dum conjunto orquestral: se a reencontra, por exemplo, entre os asurini{XE "Asurini"}
(Müller, comunicação pessoal 1978; Estival 1994), entre os arara{XE "Arara"} (Estival
op. cit.), e entre os palikur{XE "Palikur"}. As clarinetas tocadas aos pares parecem
seguir, antes, uma terminologia do tipo fêmea / macho (cf. Dumont 1977, para os pa-
nare{XE "Panare"}). Mas será que de fato se trata aqui duma metáfora? Noutras pala-
vras, será que os wayãpi consideram esses conjuntos como uma representação fabri-
cada da vida social, ou encaram os instrumentos como seres à parte mesmo? Para
tentar responder a esta pergunta, devemos fazer um desvio geográfico. O mito de ori-
gem das flautas yaku’i, dos kamayurá2, parece demonstrar que esses instrumentos
podem ser tudo aquilo a um tempo só. Nesse mito, o herói Ianama tem de capturar as
flautas, seres aquáticos, com uma linha, depois conversa com elas, e as presenteia:
são seres vivos que dançam no fundo da água. Porém, diz o avô de Ianama, não po-
demos utilizá-las na aldeia, devemos fabricar outras flautas a partir deste modelo. Esta
fabricação de cópias a partir do protótipo3 implicará, por outro lado, uma nova aliança,
uma aliança com a cutia, o que significa, na narrativa, a troca de tabaco e pimenta por
informação tecnológica. Portanto, de maneira explícita, os aerofones são artefatos, re-
produção social de seres vivos originários. É verdade que esse mito não é wayãpi, po-
rém os kamayurá{XE "Kamayurá" \r "Kamayurá"}, assim como os wayãpi, por um
lado pertencem à cultura tupi{XE "Tupi"} da Amazônia central, e tal mito se inclui, por
outro lado, num amplo paradigma amazônico que associa os aerofones ao mundo aqu-
ático e a um perigo: a inversão da polarização mulheres / homens (cf. capítulo IV: as
mulheres, as tule e os mitos). Veremos que essa polarização se traduz, o mais das ve-
zes, no fato de que alguns desses instrumentos{XE "Instrumentos musicais secretos"}
são secretos, quer dizer, interditos à vista das mulheres e dos não iniciados. Assim,
portanto, durante os ritos de passagem, são contíguas a crença das crianças de que
estes sons extraordinários vêm de seres originários, a visão das mulheres que fingem
o acreditar, a dos homens adultos, que sabem que se trata de artefatos, e a dos inicia-
dos, que estão a ponto de sabê-lo. Nestes processos míticos e rituais, se atualizam as-
sim representações distintas que, simultaneamente, fazem desses aerofones{XE "Ae-
rofone" \r "Aerofone2"} seres originários e operadores artificiais da distinção social: a
terminologia organológica faz deles um corpo vivo, ao passo que os termos aplicados à
formação instrumental fazem com que os músicos toquem estas partes no sentido mu-
sical e teatral do termo (“a criança”, “a mamãe”..., ou melhor ainda: “o homem” / “a
mulher”).

58
O AGENCIAMENTO MUSICAL DAS TULE, UMA ALTERNÂNCIA

FIGURA 11 O conjunto tule no desenho dum músico wayãpi.

Da esquerda para a direita: ta’i, yakãngapiya, mite, mite, mãmã.

A ordem pela qual se vem apresentar as diferentes partes corresponde à sua ordem
de entrada na música, bem como à ordem espacial dos dançarinos na cadeia: o dan-
çarino da frente toca a ta’i (“o pequeno”), a ele se segue o que toca yakãngapiya (“o
que responde”); o dançarino que toca a parte mãmã vem em último lugar, ao passo
que aqueles que são responsáveis pela parte mite (“o meio”) ocupam a posição cen-
tral.
Assim, cada parte se distingue pelo seu nome, pelo nome dos músicos que a tocam,
pela sua ordem de entrada na música e sua posição espacial. Todas essas partes não
se apresentam de forma idêntica nas doze suítes tule, o que traz conseqüências sobre
a organização espacial do conjunto.
Cada uma das suítes do repertório das tule se organiza conforme um certo número
de partes. Esta organização pode diferir de uma suíte a outra, mas é idêntica, fixa, em
todas as peças duma mesma suíte.

NÚMERO DE PARTES SUÍTES


três tuleãkã{XE "Tuleãkã (dança da
quatro cabeça)"}
cinco tuleko{XE "Tuleko (suíte do be-
souro)"}, alalawayu{XE "Ala-
seis
lawayu (nome de uma suíte
tule)"}, tulemiti{XE "Tulemiti
(pequena suíte)"}
moyutule{XE "Moyutule (suíte
da sucuri)"}, panalitule{XE "Pa-
nalitule (suíte dos wayana)"},
tulekalanã{XE "Tulekalanã (suíte
kalanã)"}
pilatule{XE "Pilatule (suíte dos

59
SOPROS DA AMAZÔNIA

peixes)"}

Nota sobre as transcrições.

Cada peça de suíte possui uma ‘variante cantada’; esta pode ser cantarolada por
aquele que conduz, antes da execução instrumental, quando não se compreendeu a
peça, ou mesmo quando alguns músicos a esqueceram. Aqui, na transcrição das vari-
antes cantadas, se usa a notação ocidental clássica. Entretanto, na transcrição das
versões instrumentais, transcrição que pretende ser um simples esquema a colocar em
evidência o arranjo entre as partes, os valores rítmicos são escritos sobre linhas que
não representam intervalos iguais, mas as partes dos conjunto; há portanto tantas li-
nhas quantas são as partes4. A razão principal desta escolha é que, conforme vimos no
capítulo anterior, as partes designam muito mais timbres que alturas sonoras, e não
podem ser assimiladas às ‘notas’ do sistema musical ocidental. A parte mite, em parti-
cular, é uma espécie de feixe de harmônicos e parciais, e uma nota numa partitura re-
dundaria numa tradução bem falsa. Essa parte central se a representa por quadrados,
para lembrar que ela se aproxima mais dum som espesso que dum som sinusoidal; tal
permite visualizar, além da sua espessura{XE "Espessura acústica"} acústica, a sua
preponderância dentro do conjunto. As alturas escritas à direita das transcrições não
são mais que indicativos. Conforme veremos, essas alturas variam, com efeito, de
execução para execução. As que aqui se indica correspondem aos registros no arquivo
do musée de l´Homme 5.
No geral, não se notou as pausas, uma vez que certas partes podiam permanecer
em silêncio durante uma grande extensão do tema, fazendo com que a quantidade de
pausas a se notar tornasse a transcrição deveras confusa, quiçá ilegível.

A organização do texto musical

Existem princípios musicais comuns ao conjunto das tule? Existem elementos que
permitem diferenciar as suítes entre si?
Como todo o resto da música wayãpi, a execução das tule segue um padrão essen-
cialmente repetitivo. Qualquer que seja a suíte, cada uma das peças que a compõe é
formada por um tema de uns dez segundos, repetindo-se à sua semelhança por vários
minutos. Esta repetição faz com que, dum ponto-de-vista analítico, a peça e o tema se
confundam.

Estruturas.

Tratarei aqui, por um lado, da maneira pela qual os motivos melódicos se combinam
na peça para conformar o tema e, por outro lado, daquilo que se poderia chamar de
macro-estrutura, ou seja, da organização das diferentes peças dentro da suíte.
Optou-se aqui pela seguinte terminologia de segmentação melódica (se trata dum
vocabulário analítico, nenhum destes termos possui equivalência na língua wayãpi):
- célula, para a menor unidade melódica (da ordem de três pulsações);

60
O AGENCIAMENTO MUSICAL DAS TULE, UMA ALTERNÂNCIA

- motivo, para o menor segmento a se repetir no âmbito do tema (da ordem de cinco
pulsações, podendo compreender de uma a três células);
- tema, para a sucessão completa de motivos, da maneira conforme esta se repetirá
ao longo de toda a duração da peça; dependendo da peça, dependendo da suíte, o
tema pode compreender de dois a oito motivos, somando de dez a cinqüenta pul-
sações.
A peça de tule começará com uma pequena fórmula introdutória, da ordem da cé-
lula, sendo freqüente sem contudo ser obrigatória, e que pode variar, na mesma suíte,
de uma peça a outra. Em seguida, repete-se o tema por um número imponderável de
vezes. Os músicos marcam o fim da peça com uma fórmula cadencial, idêntica para
todas as peças de todas as suítes.
A estruturação do tema de cada peça se baseia na justaposição de dois tipos de
motivos: nos primeiros, predomina a alternância{XE "Alternância"} entre as partes
solo, e é aí que a organização melódica virá ser posta em primeiro plano; nos segun-
dos, é a simultaneidade da execução em tutti que predomina; esse tutti se constitui
essencialmente da parte central — executada por vários músicos —, mas às vezes
também da superposição dessa parte central com partes solo; a conseqüência é um
efeito de massa sonora, uma textura de som essencialmente diferente. Esses dois ti-
pos de motivos se apresentam sempre na mesma ordem: de início o motivo A, onde
predomina a alternância melódica das partes solo, seguindo-se do motivo B, onde se
impõe a simultaneidade, o grupo. Esse último motivo é, na realidade, um motivo ca-
dencial, pois marca ele a conclusão do tema, bem como cada uma das segmentações
internas:

[2]

{TC "Estrutura da peça matuitui da suíte moyutule."}Estrutura da peça matuitui da suíte


moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"}.

Neste exemplo, o tema consiste no redobramento quase idêntico (AB – A’B) da


justaposição dos dois motivos contrastantes. Noutras peças, é possível encontrar vári-
os motivos de tipo melódico (A, C, D...), mas o motivo onde predomina o grupo e a
simultaneidade (B) permanece sempre invariável e reiterativo.
Em se os aplicando enquanto tal, estes princípios de estruturação do tema resultam
em combinações bastante escassas e, do ponto-de-vista de sua estrutura, as diferen-
tes peças deveriam ser semelhantes. Mas dois novos procedimentos, a variação e a
repetição de um motivo, entram em cena para criar combinações novas de uma peça a
outra.

61
SOPROS DA AMAZÔNIA

[3]

{TC "Peça walimã da suíte moyutule."}Peça walimã da suíte moyutule{XE "Moyutule (suíte da
sucuri)"}.

Assim, a justaposição de dois materiais musicais contrastantes cria uma tensão que
é, a um só tempo, a mola propulsora desta música e o princípio que estrutura todas as
peças. Mas os músicos wayãpi tratam esse princípio de maneira engenhosa e variável,
e a análise do conjunto das peças do repertório tule mostra que, através desta multi-
plicidade de combinações, uma parte importante da criatividade se orienta para tal
jogo estrutural. Além disso, durante a execução de certas peças, às vezes acontece do
primeiro músico, que toca a ta’i (“o pequeno”) intervir pontualmente tocando uma se-
gunda clarineta ta’i, mais aguda, ou mesmo provocando uma ou várias repetições dum
mesmo motivo. Este tipo de intervenção gera novas variações na estrutura da peça,
variações{XE "Variação" \r "Variação3"} que acarretam uma transformação efêmera
do tema, rapidamente reiterado e repetido{XE "Repetição" \r "Repetição2"} tantas ve-
zes na estrutura original. Este procedimento, que é da ordem da interpretação musical,
traduz, ainda, uma flexibilidade com respeito aos princípios da estruturação.
A análise das diferentes peças duma mesma suíte sugere que a organização estru-
tural é justamente um dos traços que contribuem para a caracterização de cada peça.
Na tabela seguinte, os motivos A, C, D, E... são tocados principalmente pelas partes
solo, e exprimem a alternância{XE "Alternância"} melódica, ao passo que, com o mo-
tivo B, o que predomina é a simultaneidade, o grupo:

62
O AGENCIAMENTO MUSICAL DAS TULE, UMA ALTERNÂNCIA

peça 1: walimã AA BA’B A’B


peça 2: selokamokatu CB
peça 3: uluwaluwa DD BD’B D’B
peça 4: kaway pelu EB
peça 5: kakãytõlĩ F BB’B
peça 6: pakuwa G BG’B
...
peça 9: kwata HHH B
peça 10: palanayaapiyapi IIII BBBB
...
peça 12: uluwila J BJ’B
peça 14: tukã K BKB LBLB
...

FIGURA 12 Estrutura das peças da suíte moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"}.

A tabela acima nos permite visualizar os diferentes tipos de organização estrutural


das peças duma mesma suíte; mas também nos lança uma luz fundamental para a
compreensão da estrutura das suítes tule: dos dois conjuntos de motivos que funda-
mentam o tema de cada peça, o primeiro, que se caracteriza pela alternância{XE "Al-
ternância"} melódica das partes solo, é peculiar e único em cada peça, ao passo que o
que traz a simultaneidade e espessura{XE "Espessura acústica"} acústica é comum a
todas as peças da suíte.
Assim, os motivos melódicos (A, C, D, E, etc.) permitem o reconhecimento e a
identificação de cada peça, ao passo que o motivo B integra a peça num conjunto mais
amplo, que é a suíte. A análise do conjunto do corpus das tule mostra que, em cada
suíte, esse motivo B é diferente. Constitui ele assim uma espécie de ‘assinatura{XE
"Assinatura temática" \t "vide tema musical"} temática{XE "Tema musical:assinatura
temática (definição)"}’ de cada suíte, distinguindo umas das outras, e perfazendo a
coerência musical que unifica as diferentes peças duma mesma suíte:

[4]

{TC "Assinatura temática da suíte moyutule."}Assinatura temática da suíte moyutule{XE


"Moyutule (suíte da sucuri)"}.

As peças de tuleko ou enẽtule{XE "En?tule (suíte do besouro)"} (“a suíte do be-


souro”) apresentam uma estrutura binária do tipo AB ou, com maior freqüência, do
tipo AA’BB’.

63
SOPROS DA AMAZÔNIA

[5]

{TC "Peça kwata da suíte tuleko."}Peça kwata da suíte tuleko.

Aqui, de novo, A é o motivo que permite o reconhecimento de cada peça, ao passo


que B é a assinatura temática{XE "Tema musical" \r "Tema3"} dessa suíte:

[6]

{TC "Assinatura temática da suíte tuleko."}Assinatura temática da suíte tuleko{XE "Tuleko (su-
íte do besouro)" \r "Tuleko"}.

As peças de alalawayu{XE "Alalawayu (nome de uma suíte tule)"} (suíte duma su-
curi mítica) se constituem também a partir duma estrutura globalmente binária, de
tipo AB, cuja assinatura temática é:

[7]

{TC "Assinatura temática da suíte alalawayu."}Assinatura temática da suíte alalawayu.

Pilatule (“a dança dos peixes”) é tida como a mais difícil de se tocar: ela se organiza
em seis partes orquestrais; os temas e motivos que as compõem são claramente mais
longos e mais complexos que os das demais suítes (cf. ex. [8]).

64
O AGENCIAMENTO MUSICAL DAS TULE, UMA ALTERNÂNCIA

[8]

{TC "Peça tasia da suíte pilatule."}Peça tasia da suíte pilatule{XE "Pilatule (suíte dos peixes)" \r
"Pilatule2"}.

É raro que se execute esta suíte de maneira correta, de modo que os músicos se
dêem por satisfeitos, e é difícil inferir uma assinatura temática precisa a partir das
gravações. O motivo B é, provavelmente, a característica musical de pilatule:

[9]

{TC "Assinatura temática da suíte pilatule."}Assinatura temática da suíte pilatule{XE "Pilatule


(suíte dos peixes)" \r "Pilatule3"}.

Tuleãkã (“a dança da cabeça”), mais fácil de se tocar, apresenta uma estrutura di-
ferente: cada peça se constitui dum conjunto de motivos curtos, juntos uns dos outros,
cuja seleção e combinação define cada peça. O dinamismo e a tensão do tema se pro-
duzem a partir do mesmo contraste das outras suítes — alternância melódica / simul-
taneidade do grupo —, mas esse contraste se situa num nível sintático inferior: não
entre dois motivos, mas entre as células. Aqui, a alternância é mais estreita.

65
SOPROS DA AMAZÔNIA

[10]

{TC "Peça tamanuwa da suíte tuleãkã."}Peça tamanuwa da suíte tuleãkã.

Todavia, em todas as peças dessa suíte tuleãkã, as intervenções da parte central


mite possuem características comuns — essencialmente rítmicas — que fazem com
que esta fórmula rítmica cumpra o papel de assinatura temática da suíte. Como nas
outras suítes tule, é ainda o arranjo da parte coletiva que, ao caracterizar a suíte, mar-
ca as diferentes peças com um caráter comum.

[11]

{TC "Assinatura temática da suíte tuleãkã."}Assinatura temática da suíte tuleãkã.

Vimos que, com exceção da suíte tuleãkã{XE "Tuleãkã (dança da cabeça)" \r "Tu-
leãkã"}, seria possível inferir, dentro do total das tule que se toca, um modelo teórico
gerador de cada peça:

(i) + n [A + B] + z

Nesse modelo: i é a fórmula de introdução, n é o número de repetições{XE "Repeti-


ção"} do tema — ele varia livremente de uma execução para outra —, A é o motivo
característico da peça, B é o motivo característico da suíte, z é a fórmula cadencial —
ela é idêntica para todas as peças, em todas as suítes.
Aqui, ainda, esse modelo estrutural e suas exceções levantam a questão da histó-
ria{XE "História (das tule)"} destas músicas: não se aplicando à suíte tuleãkã{XE
"Tuleãkã (dança da cabeça)"}, a mais recente, ele pareceria caracterizar as suítes
mais antigas do repertório.
Quanto às variantes cantadas, são elas problemáticas, pois a sua estrutura é, em
primeira análise, mais diversificada, e esta não é, sobretudo, idêntica à das contrapar-
tidas instrumentais. É certo que as melodias cantadas estão sob a influência do fenô-
meno conhecido como ‘expansão de solfejo’ — aqui, na versão cantada, as células
melódicas costumam ser redobradas —, mas como poderia uma música, em se base-
ando sobre uma alternância{XE "Alternância"} de timbres{XE "Timbre"}, ser expressa
num redobramento, em termos melódicos, duma monodia vocal? Uma solução veros-
símil é o uso sistemático da onomatopéia ten{XE "Ten (onomatopéia das partes graves
das tule)"} nas passagens correspondentes às partes centrais, ao jogo coletivo.
A estrutura dessas versões cantadas podem apresentar combinações binárias ou
ternárias dos diferentes motivos:
AB, ABC, AA’B, ABCD... (tuleko)
AABC, ABA’B, ABABA’BC... (moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"})

66
O AGENCIAMENTO MUSICAL DAS TULE, UMA ALTERNÂNCIA

Mas quando se reduz esta estrutura a um modelo{XE "Modelo musical" \r "Mode-


lo"} o mais esquemático possível, reencontra-se a concepção do toque das tule, a sa-
ber, a associação dum motivo específico da peça (A) com um motivo característico de
toda a suíte (B).
Assim, na suíte tuleko, o motivo comum é:

[12]

{TC " Motivo comum das variantes cantadas da suíte tuleko."}Motivo comum das variantes
cantadas da suíte tuleko.

Mas isto designa mais um desenho melódico que uma forma fixa; de fato, de acor-
do com as peças, a duração da nota final pode variar, ou as alturas das notas prece-
dentes podem diferir num tom. Nesta suíte, o motivo característico da peça costuma
se submeter a uma variação{XE "Variação"} por transposição, de maneira que a opo-
sição estrutural entre A e B se redobra, aqui, numa tendência à simetria melódica, si-
metria raramente estrita, que sugere, à distância, a composição em espelho:

[13]

{TC " Peça mãkwãsili da suíte tuleko."}Peça mãkwãsili da suíte tuleko.

Na suíte moyutule, o motivo comum é:

[14]

{TC " Motivo comum das variantes cantadas da suíte moyutule."}Motivo comum das variantes
cantadas da suíte moyutule.

Também se repete, por sua vez, o motivo específico de cada peça, às vezes trans-
posto:

[15]

{TC " Peça uluwila da suíte moyutule."}Peça uluwila da suíte moyutule.

67
SOPROS DA AMAZÔNIA

Nas versões cantadas dessas duas suítes, o maior modelo generativo seria do tipo
AA’B, ou seja, uma estrutura definitivamente ternária inclusa numa estrutura binária,
ainda que, nas versões instrumentais, a estrutura ternária não apareça de maneira as-
sim tão sistemática.
Ainda que divirjam tanto uma da outra, a versão instrumental e a versão cantada
da mesma suíte têm em comum, então, que cada uma das suas peças se constitui por
meio da associação entre um motivo que identifica a peça e um motivo que identifica a
suíte. Tal procedimento coloca em relevo o nível macro-estrutural da própria suíte.
Com efeito, bem mais que um simples ajuntamento de peças, reunidas sob um nome
comum e uma formação orquestral comum, a tule se apresenta como um conjunto
musicalmente coerente, cujos diversos componentes, as peças, se regem por princípi-
os estruturais semelhantes (o contraste entre dois tipos de motivos) e contêm de
modo explícito um elemento, o motivo comum, que designa e constrói esta macro-
estrutura que é a suíte. Ainda que, ao ouvinte menos atento, a seção de tule possa
parecer uma execução de peças similares, a análise revela que a execução da tule
corresponde ao desenrolar progressivo dum todo único e organicamente estruturado.

As melodias: componentes e fisionomia do conjunto.

Além da assinatura temática, o registro bem aparenta ser um elemento de distinção


importante entre as diferentes suítes do repertório de tule; conforme vimos no capítulo
precedente, a cada suíte se associa um registro: moyutule{XE "Moyutule (suíte da su-
curi)" \r "Moyutule"}, uma das mais antigas, sempre se a toca bem grave; tulekala-
nã{XE "Tulekalanã (suíte kalanã)"} e panalitule{XE "Panalitule (suíte dos wayana)"},
suítes que, explicitamente, se tomou por empréstimo de etnias vizinhas do passado ou
do presente, se situam em registros mais agudos. Seria então possível perguntar se,
para os músicos do Alto Oiapoque, o registro não seria conexo à idade do repertório.
Será que os registros agudos são relativos a empréstimos reconhecidos, ao passo que
os registros graves seriam um marcador daquilo que se considera como o cerne mais
arcaico destas músicas?
Estando sempre, em linhas gerais, no grave, em comparação com as outras músicas
dos wayãpi, o registro das tule se situa, dentre a totalidade das suítes, entre as se-
guintes alturas:

[16]

{XE "Tulekalanã (suíte kalanã)"}


{TC " Tessitura de duas suítes."}Tessitura de duas suítes.

A tessitura é extremamente variável, tanto de uma suíte para a outra6 quanto en-
tre duas versões duma mesma suíte (500 cents, por exemplo); esta observação é mais
uma indicação daquilo que será exposto abaixo, a saber, que as diferentes partes do
conjunto se caracterizam tanto por seu lugar no registro, quanto por relações interva-
lares precisas.

68
O AGENCIAMENTO MUSICAL DAS TULE, UMA ALTERNÂNCIA

Escalas e intervalos.

A comparação entre as escalas de sete suítes diferentes não coloca em evidência


qualquer organização escalar em comum. Por outro lado, as diferenças entre os inter-
valos utilizados na mesma suíte, de uma execução para outra, são demasiado grandes
para que se possa afirmar que existe uma escala específica para cada tule (cf. FIGURA
13)7.

FIGURA 13 Escalas utilizadas na execução de diferentes suítes.

8
É provável que os músicos que fabricam e testam os instrumentos tenham em
9 mente o duplo cantado da suíte que irão interpretar. Mas a análise coloca em evidên-
cia, por um lado, a instabilidade das escalas em uso de uma execução cantada para
outra e, por outro lado, o emprego de escalas diferentes na mesma suíte cantada, ao
passo que não há modificação na escala do conjunto orquestral durante a execução da
mesma suíte de canções. Não se pode considerar os duplos cantados, então, como re-
ferências escalares.
Assim, cada parte tocada por um único músico se define, com respeito às demais,
conforme o lugar que ocupará ela na tessitura. Entretanto, a parte central, tocada por
um conjunto de instrumentos de alturas diferentes, se caracteriza pela extensão da
tessitura que ela ocupa. Na moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucuri)" \r "Moyutule1"},
por exemplo, os seis instrumentos dessa parte, tocados e gravados em separado,
apresentaram alturas num gradiente de 460 cents. Tal disposição da parte mite não é,
em absoluto, um caso particular entre os diversos conjuntos de tule dos wayãpi. Isto
resulta, já o dissemos, na criação de uma espessura{XE "Espessura acústica"}, uma
coloração sonora totalmente particular nessa parte, um efeito de cluster, de massa so-
nora.
A observação do tratamento do som no conjunto tule mostra claramente como as
noções de altura e timbre se encontram aqui intimamente conexas. A terminologia

69
SOPROS DA AMAZÔNIA

musical, tal como se aplica a estas formações, coloca igualmente em evidência uma
interdependência entre esses dois parâmetros musicais. Assim, durante a execução
dum único instrumento (uma flauta, por exemplo), quando as mudanças de alturas
não colocam em jogo variações significativas de timbre, os músicos wayãpi usam o
termo ngu (“gordo”) para designar o registro grave, e kõlĩ (palavra puramente musi-
cal) para nomear os sons agudos. Em contraste, se usa akiti (“grave”) e kunawii
(“agudo”), termos cuja etimologia comporta uma noção de direção, para comparar
sons tais como os das partes dos conjuntos tule nos quais a oposição de alturas é do-
brada por uma oposição de timbres. Além disso, se emprega os juízos de valor ta’iluwã
(“grande demais”) e kiãwĩ (“fino demais” ou “magro demais”) durante a fabricação das
tule, a qualificar as características sonoras que concernem tanto o registro quanto o
timbre. Assim, se aplica ta’iluwã aos sons que se tem por graves demais, e que, ao
mesmo tempo, não possuem a textura, o timbre que se deseja. Ao contrário, kiãwĩ de-
signa a associação entre um registro agudo demais e uma textura específica.

ngu (“grave”),
kõlĩ (“agudo”):
concernem as mudanças de altura executa-
das por um mesmo instrumento.
ALTURA
akiti (“grave”),
kunawii (“agudo”):
concernem as comparações estruturais en-
tre diferentes partes orquestrais.

ALTURA ta’iluwã (“grande demais”)


E kiãwĩ (“fino demais, magro demais”)
TIMBRE qualificações de valor, apreciações irredutí-
veis ao componente tímbrico apenas ou
apenas à altura.

FIGURA 14 Terminologia wayãpi concernente à associação timbre – altura.

O estudo das escalas de tule confirma o que a descrição acústica deixara entrever:
a exatidão das alturas e dos intervalos não tem importância maior, não constitui a
base principal do sistema musical das tule. De fato, a melodia se funda sobre as oposi-
ções entre faixas de altura (mais agudo, menos agudo, grave, mais grave), às quais se
sobrepõe um tratamento da textura, do timbre.
Vê-se que o timbre, no sentido de fisionomia geral (Chion 1986), define aqui quatro
níveis de caracterização musical: o timbre próprio das clarinetas; o jogo de oposição
das espessuras{XE "Espessura acústica"} acústicas no interior de cada peça — aquilo
que Lévi-Strauss chama de “compacidades relativas” (1964: 22); o timbre próprio de
cada suíte tule que, conforme vimos, o determina o registro, em particular; enfim, a
sonoridade do conjunto instrumental, que surge como marcador de grupos regionais
(cf. capítulo II).

70
O AGENCIAMENTO MUSICAL DAS TULE, UMA ALTERNÂNCIA

Dizer que a alternância{XE "Alternância"} entre solos e tutti é o princípio formal


desta música eqüivale a dizer também que a estruturação destas peças se baseia no
timbre. Em todo caso, acredito que a combinação entre timbre e estrutura está na
base não apenas das tule das Guianas e da Amazônia central, mas também de diver-
sas outras estéticas musicais da Amazônia.
Escalas e intervalos não são, então, critérios pertinentes para diferenciar as suítes
tule entre si. Em compensação, parece que as escolhas de timbre e os gradientes rela-
tivos dos intervalos determinam as distinções entre os diferentes tipos de música
wayãpi e, para precisar este ponto de comparação, convém abrir aqui um parêntese.
Se observarmos a totalidade dos intervalos de outros gêneros musicais wayãpi, logo
de início surge a notável constatação da atenção que se tem com a fabricação dos ins-
trumentos, e da simultânea variedade das dimensões que diversos instrumentos de
mesmo tipo, de mesmo nome, podem apresentar8. Isso traz conseqüências, tanto
quanto à variabilidade dos intervalos quanto sobre o registro.
A comparação entre as escalas em uso em todas as diversas flautas que se toca em
solo volta a desenhar uma imagem heterogênea: modos de fabricação, técnicas de to-
que, caraterísticas melódicas tornam evidente uma vontade de precisão na emissão
das alturas, ao passo que não definem qualquer organização escalar. Noutros termos,
os intervalos tocados na flauta são bem diferentes a cada melodia, mas em cada melo-
dia, a tolerância relativa às flutuações de altura possíveis é bem limitada.
Nos grandes ciclos dançados, a análise coloca em evidência a heterogeneidade das
escalas das seqüências vocais, bem como uma relativa tolerância quanto às alturas
que se canta. Em sendo música social por excelência, que dá lugar a vivas e críticas
freqüentes, o juízo sobre a interpretação deste repertório se dá a partir dos desvios
com respeito às palavras, à coreografia, à orquestração, nunca das flutuações dos
graus que se canta. As seqüências instrumentais desses grandes ciclos não colocam
em questão mais que oposições simples entre grave e agudo, numa massa sonora bem
fluida, onde não se distingue intervalo algum. Durante a preparação duma grande dan-
ça, a fabricação dos instrumentos não dá ensejo a qualquer comparação entre eles: a
sonoridade resultante, maciça e imprecisa, é bem intencional ali.
15 Assim, quer se considere a música wayãpi na sua totalidade, quer em cada tipo mu-
sical, se caracteriza ela por uma falta de unidade entre os materiais escalares. Porém
aparece, sobretudo, uma espécie de gradação entre as flautas solo, onde os músicos
buscam precisão na emissão dos graus, as tule, cujas diferentes partes se definem
tanto por tessituras de alturas e timbres quanto por intervalos, e os grandes ciclos
dançados, que admitem uma tolerância relativa para as alturas cantadas, e cujas pas-
sagens instrumentais não apresentam mais que oposições sumárias de registro e de
timbre{XE "Timbre" \r "Timbre4"}. Estas diversas concepções de ‘afinação’ supõem
processos perceptivos e cognitivos diversos, dos quais faz parte a associação entre o
ouvinte e o músico, seja no caso da flauta, da tule, ou dos grandes cantos. Este tipo de
organização musical não é exclusivo dos wayãpi9, correspondendo ao que Molino cha-
ma de “variabilidade sincrônica e heterogeneidade das estruturas cognitivas numa
cultura” (1984: 241).
Diferentes concepções de ‘afinação’, sonoridade confusa das seqüências instrumen-
tais dos grandes ciclos cantados, ‘cânone heterogêneo’ das mulheres ao longo desses
mesmos cantos: tudo isso, qualifiquei como intencional. Com efeito, importa sublinhar
que estas confusão acústica e descoordenação das vozes são intencionais; são quali-
dades estéticas. Estas últimas estão presentes de maneira crescente, na medida em
que se ascende de ‘nível sócio-musical’, e se as afirma, em particular, nas músicas que
os wayãpi mais valorizam. A heterofonia está presente em todos os continentes, atra-

71
SOPROS DA AMAZÔNIA

vés de formas várias, e parece particularmente difusa na América do Sul indígena10.


Hoje nos distanciamos de certas descrições musicológicas que, ainda até a metade do
século XX, viam tais heterofonias{XE "Heterofonia" \r "Heterofonia2"} dum ponto-de-
vista evolucionista (uma desordem primitiva, premissas precárias e incompletas da
verdadeira polifonia européia, clássica). Na realidade estas são, repetimos, descoorde-
nações sonoras intencionais; ali reencontramos formas musicais que se baseiam na
descoordenação, e nada nos permite dizer que tais formas são mais simples, mais fá-
ceis de se criar, de se constituir e executar que as músicas de coordenação forte (mar-
cha militar) ou complexa (sinfonia).
Voltemos às nossas tule. Conforme ressaltamos, as diferentes partes do conjunto de
tule se definem também pela sua posição na melodia: a ‘pequena’, a ‘criança’ sempre
principia. A ela se segue a ‘respondente’, com a qual se delineia uma curto intercâmbio
melódico que, o mais das vezes, resultará no motivo característico da peça. A ‘respon-
dente’ funciona também como uma articulação que permite que a parte ‘central’ entre
em jogo; por fim, ‘a mamãe’ é sempre a última. Esta entrada sucessiva das diversas
partes do conjunto em cena cria uma organização de base — de tessitura e timbre{XE
"Timbre"} — comum a todas as peças das tule. Assim, constitui-se ela num fator im-
portante para a homogeneidade do repertório; todavia, a partir destes princípios bási-
cos da construção da peça de tule, é possível realizar múltiplas combinações.
Assim, tal como em toda música wayãpi, as melodias das tule possuem um contor-
no geral descendente e ondulatório, ao passo que, de modo geral, quanto mais graves
as partes, maiores são os intervalos entre elas.

ta’i
yakãnga-
piya

mite

mãmã

FIGURA 15 Contorno melódico típico das tule.

A mite (“o centro”) ocupa, então, uma posição intermediária na sucessão das par-
tes, bem como sob o ponto-de-vista do registro. Além disso, é a parte que apresenta a
maior duração de emissão, e que, tocada pelo maior número de músicos, tem o maior
nível sonoro, tal como uma acentuação sistemática em todos os temas, em todas as
suítes11. Assim, a mite constitui sempre um pólo, em torno do qual o arranjo das de-
mais partes se estrutura e ganha sentido.

Ritmo e tempo.

A música das tule é feita, antes de tudo, para se dançar. Vimos que as figurações de
dança podem variar, mas o passo da dança é quase sempre o mesmo; é uma marcha

72
O AGENCIAMENTO MUSICAL DAS TULE, UMA ALTERNÂNCIA

regular, uma perna após a outra. O balanço do corpo, de frente para trás, é forte-
mente acentuado, e o passo dos dançarinos é a pulsação básica de todas as músicas;
nas transcrições, é a esse passo que correspondem as notas pretas.
Ainda que organização rítmica das tule apresente, em geral, pouca complexidade
(ritmo global binário, pouca diversidade de valores), levanta ela questões importantes,
no que se refere à sua natureza. Com efeito, ao se escutar as tule, o seu ritmo parece
se basear, numa primeira abordagem, numa pulsação regular que, conforme dissemos,
a marca o passo da dança. A cadeia de dançarinos-cantores avança como um corpo só,
sendo sincrônicos os seus movimentos. Ora, as muitas fórmulas deveriam propiciar um
descolamento global do tema com relação à pulsação de base, como podemos ver no
exemplo a seguir, um fragmento de tema{XE "Tema musical" \r "Tema4"} (dois moti-
vos) da peça tukã da suíte moyutule, cujos elementos rítmico-melódicos são em tudo
representativos de toda a música das tule:

[17]

{TC " Fragmento da peça tukã da suíte moyutule."}Fragmento da peça tukã da suíte moyutu-
4 le.{XE "Moyutule (suíte da sucuri)" \r "Moyutule2"}

Como se pode alongar a duração duma semínima num valor aproximativo de uma
semicolcheia e permanecer dentro do âmbito do passo da dança? Como, depois deste
descompasso, deste ‘deslocamento melódico’, os músicos voltam ao passo com seus
pés? De fato, este procedimento não parece perturbar o desenrolar da dança. De ma-
neira em tudo natural e imperceptível, a música e o gesto parecem se acomodar mu-
tuamente a estas flutuações da pulsação que, além do mais, costumam implicar o uso
de valores não proporcionais. Porém, por quais mecanismos se faria esta ‘acomoda-
ção’? Às vezes é a pulsação marcada pelos passos que parece se impor, e é sobretudo
a música que, nas intervenções das partes superiores, se conforma ao movimento cor-
poral; em outros momentos, são os corpos que parecem discretamente retardar ou
acelerar os seus movimentos para seguir os da música. Nestes conjuntos instrumentais
de partes alternantes, conforme sugere Estival, que trabalhou com os asurini{XE
"Asurini"} do Xingu (comunicação pessoal 1990), é provável que se conceba, se baseie
o ritmo na práxis, não a partir de unidades de tempo, mas a partir da sucessão de
partes orquestrais; tal o testemunham os gestos do dançarino da frente que, com a
mão ou a clarineta, ‘dá a entrada’ das partes superiores; mais um indicativo desta
concepção do ritmo mais como uma sucessão que como divisões: em todos os gêneros
musicais wayãpi, os silêncios{XE "Silêncio"} entre duas reiterações do tema, parece
que não se os mensura12. Por sua vez, essa concepção do ritmo decerto se associa a
uma representação mais ampla da temporalidade: o calendário dos recursos sazonais
que, tal como para os achuar{XE "Achuar"} da Amazônia equatoriana, “cobre todo o
ano com um entrelaçamento de índices tangíveis em sucessão inelutável, porém de
aparição localmente flutuante” (Descola 1986: 92). Poder-se-ia mesmo extrapolar, sob
o risco de parecer excessivo, o estabelecimento desta correspondência entre um ritmo
musical e um ritmo sazonal: é certo que os índices naturais duma dada estação apare-
cem de maneira flutuante de um ano para o outro, mas simultaneamente para a mes-
ma estação (quanto os frutos das palmeiras estão maduros, lá estão os tucanos); da
mesma forma, o ritmo das tule se submete a micro-flutuações várias, mas quando a

73
SOPROS DA AMAZÔNIA

orquestra toca em tutti, deve estar ele em fase. Além das questões que um tal fenô-
meno suscitaria com respeito ao modo no qual se percebe e pensa o ritmo musical, é
importante notar que aqui, contrariamente ao que se poderia acreditar, a dança coleti-
va não requer a presença imperativa duma pulsação exatamente isócrona, gerindo-se
coletivamente a relação gesto / música com uma grande flexibilidade.
Estas flutuações discretas porém incessantes da pulsação permanecem ligeiras, não
obstante, e se colocam no âmbito duma certa regularidade: não há grandes mudanças
de ritmo{XE "Ritmo" \r "Ritmo4"}, nem mudança real de andamento durante a peça.
Além do mais, na totalidade das peças, no conjunto das suítes, o tempo em si apre-
senta uma grande homogeneidade, de cerca de noventa passos por minuto.
A organização temporal desta música se caracteriza então pelo uso freqüente de
valores não proporcionais e por uma elasticidade constitutiva do andamento{XE "An-
damento" \r "Andamento2"}.
É essa flexibilidade, esta espécie de rubato13 que sustenta o jogo entre música e
dança, que torna possível a alternância{XE "Alternância"} entre as sutilezas melódicas
das partes solistas e os ataques limpos, em cima dos passos de dança, dos tutti. Gra-
ças ao tema, música e dança pesam ou se avivam mutuamente durante a peça. Dança
de músicos, respiração de conjunto e sutileza melódica se misturam intimamente en-
tão, e o ímpeto, o ‘suingue’ dum tal conjunto não se o atinge facilmente, diretamente.
Em geral, o mestre de dança (a tocar “o pequeno”) se esforça para tocar mais lenta-
mente no princípio de cada peça, para que todo mundo a compreenda bem, liberando
depois os músicos da parte central, os quais pouco a pouco impõem o passo deles.
Enfim, esta conjunção que se obtém entre deslocamento melódico, passo de dança
e irregularidade de valores, é o que torna a repetição possível. Pois se a repetição é
um princípio estético geral, é preciso ainda que cada tema tenha, em si, um recurso
musical que lhe permita a reprodução, a órbita indefinida em torno de si mesmo.

Repetição e variação

A repetição é um dos princípios fundamentais comuns a todas as formas estéticas


wayãpi, e à música em particular. O encontramos, outrossim, no conjunto das músicas
guiano-amazônicas. Se trata da sucessão dum número infinito do mesmo objeto, visu-
al — motivo de cestaria, conta de colar —, sonoro — tema duma peça —, gustativo —
cabaça de cauim{XE "Cauim, beber"}... Para todas estas formas, as práticas, os valo-
res e os discursos juntam repetição a quantidade: iyati, (“tem muito!”). Esta acumula-
ção do idêntico não se associa aqui a um estado de transformação da consciência
(transe), mas antes a um prazer dos sentidos. Em sendo a adição infinita do mesmo, a
repetição é, nesta região, uma forma estética, uma estrutura cognitiva e um prazer fí-
sico.

FOTO
{TC "Detalhe de uma peneira. Motivo yelusi, a juriti (J.-M. B)." \f f}Detalhe de uma peneira.
Motivo yelusi, “a juriti”.

A peça musical, tal como os motivos trançados dos objetos domésticos (paneiros,
peneiras...), não descreve um assunto / tema da peça ao longo de todo o espaço so-
noro ou visual que ela ocupa, mas repete um número teoricamente ilimitado de vezes

74
O AGENCIAMENTO MUSICAL DAS TULE, UMA ALTERNÂNCIA

uma imagem estilizada e curta. Quando escutavam de novo um trecho de gravação, os


intérpretes insistiam em ouvir o todo, a repetição estrita do mesmo tema por seis, sete
minutos: é claro que a repetição é uma necessidade estética. Todavia, nos seus co-
mentários, não é a repetição (elesa’u, “fala de novo, repete”) que os músicos relevam,
mas a duração da execução (-ipuku, “é longo”). De fato, a repetição varia um pouco
conforme o tipo de música que se toca — flauta, tule, grandes danças — mas ela se
torna sempre mais forte, e é nela que os dançarinos e ouvintes wayãpi encontram seu
prazer e sua emoção.
Esta escolha estética não é privilégio da música; acabamos de citar a correspondên-
cia entre as tule e a cestaria: durante a fabricação duma peneira, os olhos e os dedos
entrecruzam os bambuzinhos conforme uma forma que se pode codificar — três por
baixo, dois por baixo, três por baixo, dois por baixo... por exemplo. A atenção se volta
para o que os dedos contam e, ao mesmo tempo, pelo motivo que resulta, que emer-
ge. Este motivo, ao se repetir, cria um ritmo novo, uma imagem nova14. Além do mais,
os bambuzinhos são demasiado longos, e suas extremidades livres, ainda não trança-
das, se embaraçam, se atam por si só; daí o cesteiro{XE "Cestaria" \r "Cestaria"} pára
e desembaraça os bambuzinhos, liberando-os com delicadeza: a atenção e as mãos
tomam fôlego. Igualmente, uma peça de tule, numa dinâmica tão estável, se fecha
numa fórmula cadencial que todos tocam num crescendo, seguindo-se dum urro de
satisfação. Depois, de braços dados, os músicos vão urinar e beber: o sopro{XE "So-
pro"} e a atenção se desfazem. “Quando tocamos as tule, a atenção está na língua”,
nas palavras de Yawalu.
Este princípio de repetição musical, onde “todos os elementos se apresentam duma
vez só” (Avron 1978), diz respeito ao fato de que são peças ‘em final aberto’ (Draper
1980: 154): o fim da peça, o término da repetição não é em nada previsível: simples-
mente o mestre de dança acha por bem, sente que o tema foi ‘dito’ de maneira justa e
por um número suficiente de vezes. Poder-se-ia dizer que a ‘recusa’ da alternância{XE
"Alternância"} é a indicação do fim. Os demais músicos se juntam a ele, produzindo
assim um acorde em crescendo:

[18]

{TC " Fórmula conclusiva das peças das tule."}Fórmula conclusiva das peças das tule.

Essa fórmula conclusiva simples é idêntica em todas as peças, de todas as suítes. A


ela deverá seguir um grito intenso e agudo de todos os músicos: molaytããkũ opõẽpõẽ
(“os dançarinos gritam”). Este urro é particularmente possante quando os músicos
estão contentes consigo mesmos, quando se compreendeu e executou bem a peça,
com bastante ímpeto: musicalmente necessário, esse grito final é também a medida, a
expressão da concordância entre os dançarinos. Saliência dinâmica{XE "Dinâmica mu-
sical"} única, esta expansão energética, encerrando todas as peças de tule, sucede
também a cada estrofe das grandes danças cantadas, e corresponde à coda sistemáti-
ca das músicas em solo: a nota mais aguda da escala, se a toca forte. Todos os vizi-
nhos ameríndios dos wayãpi (emerilhom{XE "Emerilhom"}, wayana{XE "Wayana"},
palikur{XE "Palikur"} e galibi{XE "Galibi"}) pontuam a sua música com este tipo de

75
SOPROS DA AMAZÔNIA

auto-aclamação sistemática e formalizada, e concluem os seus solos de flauta com


estas pequenas codas agudas.
É claro que podemos discernir uma gradação sutil entre as suítes orquestrais de
empréstimo reconhecido (tuleãkã{XE "Tuleãkã (dança da cabeça)"} em particular) e
as suítes mais antigas, onde a repetição é mais marcada. Porém, mais que delinear
uma história{XE "História (das tule)"} das tule, a repetição é um parâmetro formal
que contribui, por sua vez, para diferenciar as esferas sócio-musicais: quanto mais se
ascende nas esferas sociais, mais intensa é a repetição. Detalhemos brevemente este
ponto: nas seções tocadas numa flauta solo, o tema de cerca de vinte e cinco segun-
dos é tocado novamente por três minutos em média, a saber, em sete reiterações. Os
segmentos melódicos que compõem esse tema se organizam diferentemente a cada
repetição, as variações de improviso são freqüentes. Para as suítes orquestrais, o tema
de dezessete segundos em média se repete por cinco minutos, a saber, em dezessete
reiterações. Ao longo de toda uma suíte de árias, estas se transformam, mas mantêm
em comum o motivo — aquilo que chamei de assinatura temática — que caracteriza tal
suíte orquestral particular. Os cantos repetem uma estrofe de trinta segundos por doze
minutos em média, a saber, em vinte e quatro reiterações. A repetição aqui é bem
forte: as palavras decerto são as mesmas, sendo o tema musical o mesmo a cada re-
petição, e um tema musical idêntico para todas as estrofes do canto. Já os cantos de
guerra{XE "Guerra"} repetem um tema de trinta segundos por cerca de seis minutos
em média, mas esses cantos não são estróficos, e cada canto se constitui de palavras
e um tema específicos; eles não se inscrevem, então, num contínuo crescente de re-
petição.
“Sucuri”, “peixes”, “besouro”... cada conjunto de peças pode se definir como uma
suíte graças à presença deste motivo comum, a assinatura temática da suíte, que se
reencontra em todas as peças dum mesmo conjunto. Entretanto, esse motivo não é ri-
gorosamente idêntico a si mesmo de uma peça a outra, mas sofre um certo número de
variações. Estas são, na realidade, micro-variações (presença ou ausência duma apo-
jatura, nota em staccato ou não...)15 que não são da mesma natureza que as verda-
deiras mudanças melódicas do(s) outro(s) motivo(s) da peça.
De uma peça a outra, as variações se combinam de maneira muito complexa, quase
inapreensível, numa mistura de todos os níveis do discurso musical:

organização orquestral
timbre{XE "Timbre"} – escala
AUSÊNCIA DE estrutura rítmica
VARIAÇÕES dinâmica em toque
fórmula cadencial
princípio da repetição

andamento
MICRO-VARIAÇÕES assinatura temática{XE "Tema musical"
\r "Tema5"}

76
O AGENCIAMENTO MUSICAL DAS TULE, UMA ALTERNÂNCIA

motivos de cada peça


dinâmica{XE "Dinâmica musical" \r
VARIAÇÕES "Dinâmica3"} percebida
MUITO SENSÍVEIS estrutura
variantes cantadas
coreografia
conotação dos assuntos

FIGURA 16 As áreas de variação dentro duma mesma suíte.

Assim, cada suíte tule se baseia num princípio de repetição, ao qual se agrega toda
uma combinação de variações cruzadas. O estudo dos níveis de reiteração, a duração
da peça, os diferentes tipos de variações na suíte, a duração da suíte, parecem pedir a
noção de tempo{XE "Andamento" \r "Andamento3"} estrutural, de velocidade relativa
da estrutura formal, quer dizer, a relação entre a duração dum enunciado musical
(peça ou suíte) e a quantidade de eventos que operam as distinções, e isto em todos
os níveis estruturais. A tule apareceria assim como uma forma relativamente auditiva,
e para bem compreendê-la, é necessário ouvi-la não por dois minutos, nem por dez,
nem por uma hora, mas por uma noite mesmo. Ouve-se cada tule, também, como
uma imensa variação16.
Dançar ou ver a dança, soprar ou ouvir um mesmo motivo, tão grave, por toda uma
noite, cria um estado emocional, e se associa a um pensamento musical que passa,
procura passar uma sensação e uma inteligência de tempos diferentes. O princípio de
repetição das tule — cujo funcionamento emocional, cognitivo, estético é da ordem da
impregnação — é indissociável da variação que, aqui, oferece a diferença à escuta,
sem ordená-la. A estrutura repetitiva da identidade duma suíte (que a sua assinatura
temática representa) é a um tempo só bem pesada, bem forte — ela se repete{XE
"Repetição" \r "Repetição3"} por toda a noite —, e é sujeita, ela mesma, a micro-
variações{XE "Variação" \r "Variação4"} que lhe tolhem a rigidez.

O princípio formal das tule: a alternância

A partir de tudo o que acabamos de ver, podemos definir a tule, em definitivo, como
uma suíte (dançada) de melodias executadas por um conjunto instrumental de partes
entrecruzadas, que se agrupam através do assunto geral que dá o seu nome à suíte
como um todo, se agrupando, também, por meio duma organização orquestral parti-
cular (número, nome, local, timbre e altura das partes) e por uma ou várias caracte-
rísticas formais em comum (sobretudo aquilo que chamei de assinatura temática).
Os componentes musicais que definem uma suíte (organização das partes, alturas,
estrutura, ordem das peças, etc.) têm uma ampla gama de utilização; de modo que
nenhum deles pode ser por si só determinante, na caracterização duma dada suíte; é o
seu agenciamento numa execução particular que permite o reconhecimento duma suí-
te. Essa gama de uso dos seus componentes é talvez uma necessidade formal, mes-
mo: não há identidade, mas uma zona de aproximação multidimensional onde a suíte
pode ser reconhecida e aceita como tal, sendo essa zona mais restrita para as suítes
antigas.

77
SOPROS DA AMAZÔNIA

Seja numa mesma peça, ou no âmbito de toda a suíte, a composição{XE "Composi-


ção musical"} não parece jamais colocar em operação princípios de ampliação ou di-
minuição, seja no que se refere ao andamento{XE "Andamento" \r "Andamento4"}, ou
ao volume, à escala, à estrutura, etc.. De fato, o principal recurso musical destes re-
pertórios, o que provoca a vontade de tocar a tule, reside no intercâmbio entre a parte
central mite, tocada por diversos músicos, e as partes tocadas, cada qual por um mú-
sico diferente. Hoje, mas talvez tal não seja tão recente, o dinamismo da música das
tule nasce duma relação de força entre a sutileza melódica, pela qual são responsáveis
13 as partes solistas, e o vigor sonoro, um tanto ‘quadrado’, das mite. Os músicos dessa
parte central apresentam, com efeito, uma tendência a avançar por sobre as outras
partes e simplificar o tema. Num fim de tarde, em que este tipo de antecipação fora
excessivo, o mestre da música se esgoelava para reequilibrar o intercâmbio, com a se-
guinte recomendação: “deixem que soem as pequenas clarinetas da parte ta’i, só de-
pois vem a vez de vocês [das mite] propriamente”. A tradução literal dessa recomen-
dação marca bem a oposição entre o aspecto melódico (“um pouco... um pouco”) e a
afirmação do tutti (repetição de “vocês”, e uso do advérbio ipi, que significa “com cer-
teza”):

t e’i la’i ta’i kũ la’i


“para que / ele diga / um pouco / ta’i / plural / um pouco”

ayawile peyẽ tapenẽ ipi


“depois / vocês / para que vocês / certamente”

Extrapolando os dados históricos, e sem possibilidade de verificação, mas apoiando-


se sobre o evidente dinamismo formal das tule, pode-se imaginar que, há mais de cem
anos, os “processos de atividade formadora” (Souris 1959) das tule estavam centrados
em torno da complexificação do repertório, com os esquemas de empréstimos interé-
tnicos relativos à migração por um lado e, por outro, uma tendência a criar suítes de
seis ou sete partes, tendência conexa à competição entre os grupos sociais. Noutros
momentos, noutros contextos, o interesse dos músicos teve em princípio de voltar
para o que se poderia chamar de ‘suingue’, quer dizer, a relação entre repetição e as-
simetria da estrutura temática{XE "Tema musical"}, entre rubato real da execução e
passo da dança. Mas estes componentes do dinamismo formal, aquilo que poderia ter
constituído a sua preponderância momentânea, estão todos sujeitos ao jogo da alter-
nância.
Essa alternância vertical, visando sempre o aspecto geral duma oposição entre solo
e tutti pode, dependendo da suíte, assumir diversas formas. A suíte tuleãkã{XE "Tule-
ãkã (dança da cabeça)"} se constrói sobre uma oposição simples, onde a sucessão de
partes solistas e a parte que vários músicos tocam se superpõe, ‘adere’ à melodia (cf.
supra ex. [10]: transcrição da peça tamanuwa). Na suíte moyutule{XE "Moyutule (su-
íte da sucuri)"}, a alternância se diversifica mais, e a parte central, com vários instru-
mentos, às vezes toca sozinha, depois com as partes ‘criança’ e ‘mamãe’, ao passo que
a parte ‘respondente’ mantém o seu papel de articulação melódica. Na suíte pilatu-
le{XE "Pilatule (suíte dos peixes)"}, que conta com mais possibilidades orquestrais
(um número maior de partes), a alternância é mais complexa: um arranjo isolado das
cinco partes agudas, onde a ‘mamãe’ — a parte mais grave — jamais toca sozinha, e a
alternância combinada, variável de acordo com as peças, do toque de duas, três, ou
quatro partes simultâneas (cf. supra ex. [8]: transcrição da peça tasia).

78
O AGENCIAMENTO MUSICAL DAS TULE, UMA ALTERNÂNCIA

Dizer que a alternância é o principal recurso musical das tule significa encontrar a
resposta à pergunta antropológica, “por que se toca as tule?”, no cerne dessa música,
na sua própria forma. Aquilo que buscam os ouvintes, o que os instrumentistas perce-
bem, é o entrecruzamento das partes orquestrais e a múltipla alternância das espes-
suras{XE "Espessura acústica"} acústicas. A alternância solo / tutti é um princípio mu-
sical ativo que define a tule como um concerto que coloca incessantemente em opera-
ção um movimento: o vai-e-vem do indivíduo (figurado pelos diversos solistas que já
se alternam entre eles) ao grupo. Assim, o que a dinâmica da alternância sonora vem
criar, aqui, são passagens múltiplas e reiterativas do ser individual ao ser coletivo. Em
outras palavras, é a própria transição que as tule colocam em execução, aqui.
Este traço fundamental, que distingue as tule das demais músicas wayãpi, informa
diretamente o estilo da performance. Isto quer dizer que, a cada peça de tule, esta
integração sonoro-social se instala progressivamente durante a performance: é uma
particularidade das tule com respeito aos grandes cantos, e ao mesmo tempo uma
particularidade das tule wayãpi vis-à-vis os conjuntos de clarinetas de outros povos —
dos palikur{XE "Palikur"} e kamayurá{XE "Kamayurá"}, por exemplo. A execução de
cada peça começa de maneira alternante, como uma sucessão de ataques. Depois,
este toque adquire legato, fraseado, e se embala no suingue17, num suingue longo e
lento. Depois de reafirmar tal alternância balanceada e fluida, a peça finda com um
acorde sustentado e uma aclamação desse acorde. O desenrolar ideal duma peça
ocorre quando o desenvolvimento do estilo musical ultrapassa a repetição do tema: a
partir dum tema, a partir da exposição dos seus componentes, quer dizer, da organiza-
ção estrutural de suas partes, graças à repetição{XE "Repetição" \r "Repetição4"} infi-
nita desse tema{XE "Tema musical" \r "Tema6"}, o conjunto recria, a cada vez, a sua
consonância. À diferença dos grandes cantos, esta concordância se estabelece no gru-
po dentro da própria performance, emergindo ao longo da peça. Assim, numa noitada
de tule se reafirma um movimento que, a partir do som, produz e expõe a integração
social{XE "Alternância" \r "Alternância2"}.

79
CAPÍTULO IV — Atos musicais

CADA MÚSICA wayãpi é, do ponto-de-vista das esferas sociais, a descrição, a afirmação


dum estado da pessoa: um noivado, ou mesmo um estado tal que se define em rela-
ção a um grupo de parentesco, ou à comunidade aldeã... Agora, a partir dos traços
musicais que se trouxe à tona, e das características da produção musical, convém pre-
cisar a natureza e as implicações destas correspondências entre configurações musi-
cais e configurações sociais.
A música das tule se baseia na interdependência estreita entre os músicos e numa
alternância acústico-melódica. A interdependência, que assume a forma duma organi-
zação orquestral de partes entrecruzadas, é figurada, e ao mesmo tempo facilitada
pela proximidade física entre os dançarinos-instrumentistas, ao passo que a alternân-
cia gira em torno duma massa sonora espessa{XE "Espessura acústica"}: a parte do
conjunto que se chama, justamente, “o centro”.
A análise, da qual alguns pontos se retomou aqui1, mostra que importantes carac-
terísticas formais das diversas músicas wayãpi — relação instrumental / vocal, homo-
geneidade / heterogeneidade acústica, escolha dos intervalos, dinâmica sonora, im-
portância da repetição{XE "Repetição"} — vêm confirmar aquilo que, no primeiro ca-
pítulo, o esboçara a descrição das diversas condições de execução — atores, locais,
carga religiosa, etc.; todos estes componentes dos fatos musicais concorrem, com sua
distribuição, para exprimir e produzir as diferenciações sociais. A totalidade dessas
músicas bem forma um verdadeiro sistema músico-social, onde as tule ocupam uma
posição central, intermediária:

SOLO TULE GRANDE CANTO


indivíduo, família nuclear fac- aldeia{XE "Al-
ção{XE deia" \r "Al-
"Políti- deia8"}
ca:facç
ões"}

Mas esta posição central não constitui apenas um lugar dentro dum sistema musical
global e seu esquema analítico, é também a significação primeira destas músicas das
tule. Estas, com efeito, reúnem em si mesmas os traços opostos que por um lado os
veiculam as músicas ‘solo’, e por outro, os grandes cantos: individual / coletivo, mobi-
lidade / estabilidade... Posição intermediária, contradição, mas também transição entre
estados diferentes da pessoa: como as atualizações destas expressões sonoras agem
sobre o mundo, a sociedade e a pessoa? No presente capítulo, consideraremos os di-
ferentes atos musicais conforme as perspectivas da constituição da pessoa, da defini-
ção do ambiente natural, das relações entre homens e mulheres e, enfim, das trocas
intra- e inter-comunitárias.
As tule fazem da relação entre solo e grupo sonoro a sua motivação musical funda-
dora e superior, é a essência da sua forma; ou seja, essa relação se define, também, a
cada nível músico-social, e a cada vez, de maneira particular.

80
ATOS MUSICAIS

O indivíduo se distingue, logo de cara, através das melodias que toca em solo. Com
efeito, é sobre o fundo sonoro da multifonia cotidiana que se destaca a melodia aguda
duma flauta, ou os possantes toques da trompa.
Depois, os conjuntos instrumentais de partes entrecruzadas, as tule em particular,
realizam a alternância{XE "Alternância"} entre solo e tutti, indivíduo e grupo. Não se
trata duma alternância binária, simples, porém, conforme já vimos, duma alternância
complexa: as diferentes partes individuais (três ou quatro, conforme a suíte) alternam
ainda entre si, sempre gravitando em torno da parte central, em torno do grupo. Isto
gera combinações múltiplas, tantas quantas há maneiras de exprimir ou produzir esta
relação entre individuação e fusão no grupo. Além disso, a parte central, interpretada
por diversos instrumentistas e que encarna o grupo, é tocada sobretudo pelos jovens
e, eventualmente, por aqueles que não conhecem bem o repertório; todo mundo pode
participar dessas orquestras; a priori, não é necessário ser um bom instrumentista
para tocar, a integração à orquestra se dá graças a essa parte central. Essa parte se
apresenta como uma amálgama sonora, uma totalidade indiferente, um lugar onde as
individualidades se confundem. Podemos compreender assim os temas das suítes or-
questrais como arranjos entre a precisão e a massa, e a alternância, como uma ex-
pressão dos arranjos entre o indivíduo e o seu grupo social. Esta realização orquestral
requer uma forma de atenção e de disciplina particular, pouco comum nesta sociedade.
E os jovens que aprendem a tocar — bem que eu ouvia os seus risos{XE "Rir"}, as su-
as exclamações, a cada vez que erravam — aprendem bem mais a se coordenar com
os outros que a memorizar os temas melódicos, ou a soprar{XE "Sopro"} os bambus
corretamente.

FOTO
{TC "Uma seção de tule na aldeia Pina (J.-M. B)." \f f}Uma seção de tule na aldeia Pina (1979).
Da direita para a esquerda: Maypuli, Kwataka, Amamã, Aili.

Nos grandes ciclos dançados, compostos de seqüências instrumentais e cantadas,


as partes instrumentais apresentam uma massa sonora confusa, donde emerge uma
oposição sumária de registro e de timbre. As seqüências cantadas apresentam uma
oposição solista / coro —devem elas ser executadas em forma responsorial —, e uma
oposição homens / mulheres — o coro de homens canta com uma voz grave, neutra,
em uníssono{XE "Uníssono"} perfeito, enquanto as mulheres a quem dão o braço
cantam o mesmo tema{XE "Tema musical" \r "Tema7"} melódico, as mesmas pala-
vras, mas com vozes bem agudas e em ‘cânone heterogêneo’, ou seja, cada uma delas
começa o verso cantado quando quer, sem dar atenção aos homens ou às demais
mulheres. Essas seqüências cantadas propõe uma nova definição da comunidade al-
deã, que assim apresenta, como arcabouço formal:
a) o posicionamento do cacique em relação ao seu grupo: o solista é o dançarino da
frente, é o único a tocar a clarineta kõõkõõ, de palhetas múltiplas, e é chamado ye-
mi’aya (“o mestre da música”). Se trata de correspondências simbólicas, e o “mestre
da música” não é necessariamente o cacique{XE "Política:cacique, chefia"} da aldeia,
ainda que tal bem seja um excelente trampolim para esta posição;
b) a diferenciação entre homens e mulheres, que afirma a necessidade da união dos
homens na sua aldeia, e a esta opõe uma nova individualidade, a das mulheres. Uma
interpretação possível é que a mulher não participa ativamente nem da política{XE
"Política"}, nem da guerra: se encontra livre, então, para afirmar a sua personalidade

81
SOPROS DA AMAZÔNIA

no pátio principal da aldeia{XE "Aldeia" \r "Aldeia9"}. Na verdade, as dançarinas ma-


nifestam um comportamento um tanto tímido. Voltaremos a esta oposição. Aqui a re-
lação indivíduo / grupo coloca então em relevo um homem de status elevado, que se
distingue do grupo organizado que lidera, e uma superposição de partes musicalmente
distintas.
Enfim, os cantos de guerra{XE "Guerra" \r "Guerra2"}, por sua vez, são cantados
em uníssono perfeito e com vozes totalmente neutras, impessoais2. Lembremo-nos,
com Schaeffner (1968: 330), “que o uníssono{XE "Uníssono" \r "Uníssono"}, não mais
que a oitava, não é a identidade” do produto musical: é uma intenção e um reconhe-
cimento. Aqui, o grupo é totalmente homogêneo, excluindo a possibilidade duma ex-
pressão individual.
Conforme vimos, o indivíduo e a coletividade não são estados incompatíveis; os
componentes de individuação e integração ao grupo se afirmam como interdependen-
tes, não exclusivos, e por vezes no seio da mesma performance musical, ao passo que
toda a estética musical wayãpi coloca em jogo tais componentes de maneira variável,
de acordo com o nível de integração social.

Os repertórios

Cada tipo de música wayãpi tem o seu repertório específico, as melodias não são
intercambiáveis3. As características não musicais destes repertórios, tal como o modo
de renovação e a propriedade, confirmam o contínuo músico-social que esboçamos.

Composição, improvisação e empréstimos.

Estas diversas modalidades de renovação são possíveis, bastante freqüentes e rela-


tivamente valorizadas na música individual, onde o intérprete afirma a sua personali-
dade.
O repertório das suítes orquestrais é mais estável. Ele se caracteriza pela pluralida-
de das origens: mitos, empréstimos, roubo, xamanismo. A improvisação é ainda possí-
vel dentro de certas suítes, em particular naquelas que são explicitamente de emprés-
timo recente. As outras suítes são tidas como ‘verdadeiramente wayãpi’, não obstante
algumas peças de evidente origem caribe{XE "Caribe"}, e algumas possibilidades li-
mitadas de ornamentação improvisada.
Ao contrário, os músicos afirmam que todos os grandes ciclos cantados são inte-
gralmente wayãpi; eles valorizam a antigüidade deste repertório e excluem qualquer
possibilidade de improvisação. Se a análise permite destacar uma parte menor de te-
mas melódicos e de palavras que parecem alógenas, esse repertório se apresenta hoje
como um arquétipo fechado e fixo. Alguns desses grandes cantos se incluem no mundo
mítico, outros são tidos como compostos há muito tempo, por homens com dons de
comunicação com as potências sobrenaturais da floresta.
Quanto aos cantos de guerra{XE "Guerra"}, a ideologia que os inspira e permeia
não dá lugar a qualquer possibilidade de empréstimo ou improvisação.
Vê-se então que, tanto pelo seu discurso, quanto pela sua prática, os wayãpi consi-
deram a composição como uma atividade menor e, de fato, não há hoje mais nenhuma
composição{XE "Composição musical" \r "Composição2"} nova. Quanto a si, o contí-
nuo músico-social se reforça através duma coerência particular que associa de maneira

82
ATOS MUSICAIS

notável empréstimo e improvisação, ou seja, dois aspectos que concernem a relação


entre fixidez e transformação do repertório.

A transmissão.

Nas músicas individuais, a transmissão se dá de modo bem livre, conforme a afini-


dade. Deste ponto-de-vista, essas músicas se associam de perto à amizade formal, às
relações de intercâmbio entre amigos preferenciais, que em wayãpi se chamam molipa
ou yepe. Assim, uma peça solo para trompa transversa ama’ipoko faz referência direta
à uma amizade formal{XE "Amizade formal" \r "Amizadeformal"} com um emeri-
lhom{XE "Emerilhom"}: ela se intitula mote peleo emolipa (“chegas de [canoa a] mo-
tor, meu amigo”).
Em compensação, cada suíte orquestral tem um proprietário, e em princípio se a
transmite no interior da facção, ou seja, a um músico bem dotado do mesmo grupo.
Vimos que a apropriação duma dessas suítes pode representar uma questão políti-
ca{XE "Política"} entre duas facções{XE "Política:facções" \r "facções2"} rivais (cf. p.
9, a história da avó).
Os grandes ciclos cantados têm depositários reconhecidos, podendo um homem ser
depositário de diversas danças. Respondendo à pergunta “Quem te a ensinou?”4, os
músicos de hoje podem remontar uma espécie de genealogia de cada dança, na con-
tramão nomeando, para cada qual, a sucessão dos dançarinos da frente, as aldeias
onde se a dançou, e precisando como se efetuou a transmissão de cada dança. De
modo bem explícito, deve-se transmitir a responsabilidade de um grande canto de pai
para filho. Por exemplo Jacky, um homem de quarenta anos, reconhecido como um
dos principais músicos da aldeia{XE "Aldeia" \r "Aldeia10"} Zidock, fazia questão de
afirmar que herdara de Pawe, seu pai, a maior parte do seu saber musical. Todavia, se
os músicos dizem que se deve transmitir essas danças de pai para filho, na prática as
perdas demográficas dificultaram a aplicação deste princípio.
Em geral, nesses tipos de música, no seu conjunto, o aprendizado se realiza por
osmose, ou seja, através de participações sucessivas nas execuções. Todavia os gran-
des cantos podem ser objeto de seções de ensaio onde os homens se sentam e cantam
16 juntos. É notável que aí cantem eles de uma forma diferente: não mais em forma res-
ponsorial, mas em homofonia{XE "Homofonia"}, sem solista e com uma ligeira defa-
sagem no seio do coro, no início da estrofe5. Conforme já observei (Beaudet 1993), a
presença ou ausência duma aprendizagem formalizada é um critério pouco analisado
na caracterização das músicas das terras baixas. Ocorre com freqüência que, conforme
a circunstância — aprendizagem ou cerimônia —, a execução dum mesmo canto não
obedeça às mesmas características musicais: entre os kayapó{XE "Kayapó"}, por
exemplo, os cantos são cantados no registro grave durante os ensaios, e num registro
bem agudo durante as próprias cerimônias6. Entre os wayãpi, esta diferença marcante
entre os modos de execução (responsorial / cerimonial vs. homofonia / aprendizado)
cria um nível de performance que neutraliza os grandes repertórios, ao tolher a maior
parte da sua carga religiosa e política. Isto significa que num mesmo tipo musical, num
mesmo repertório, há vários níveis de competência e vários níveis de performance. Tal
não é idiossincrasia dos wayãpi7, mas o que se releva aqui é que esses níveis de per-
formance são sistematizados através de características formais distintas.

83
SOPROS DA AMAZÔNIA

FOTO
{TC "Um emerilhom em visita toca a trompa ama’ipoko, aldeia Yawakokõnga (Étienne Bois)." \f
f}Um emerilhom em visita toca a trompa ama’ipoko (aldeia Yawakokõnga 1967).

Por fim, nenhum sentido de propriedade parece se associar aos cantos de guerra.
Parece que, para se compreender bem a música wayãpi, na sua totalidade, é neces-
sário observar também a organização destes repertórios segundo uma representação
inversa daquela das esferas sociais: os grandes ciclos dançados e os cantos de guer-
ra{XE "Guerra" \r "Guerra3"} formam o ‘núcleo duro’ da cultura wayãpi. As músicas
individuais estão na periferia, por onde podem vir mudanças, empréstimos e criações;
uma grande parte deste repertório é tido como proveniente de etnias vizinhas. As suí-
tes orquestras mantêm elas mesmas uma posição intermediária. Retomando os termos
de Carvalho e Segato (comunicação pessoal 1990), estaríamos assim na presença de
diferentes repertórios interligados, cujos processos de criação{XE "Composição musi-
cal" \r "Composição3"} se orientariam da periferia para o centro.
Há um debate entre certos etnólogos acerca da existência pretérita de clãs entre os
wayãpi. Por algumas de suas características, os grandes ciclos cantados poderiam ter
sido emblemas de alguns eventuais clãs. Que se os deva transmitir de pai para filho,
idealmente, pode ser um indicador, pois se trataria de clãs patrilineares. Por outro lado
os clãs wayãpi teriam, segundo P. Grenand (1982), a particularidade de serem alta-
mente localizados, ao ponto de se confundirem com os grupos locais. Ora, a abertura
de cada grande canto é uma localização; por exemplo, o canto do pássaro yapu, o
mutum de crista negra, começa com esta estrofe:

Mãa lupi katu keleyo yapua?


Kumilili lupi keleyo yapua

“De onde vens, então, mutum?


Vens do rio Kumilili, mutum.”

São estes princípios de localização que associam os cantos e os clãs, mais que a re-
alidade, que a correspondência efetiva entre os locais que se nomeia. Conhecemos,
por outro lado, a difusão do uso dos topônimos como procedimento mnemônico; não
temos aqui no verso um nome de lugar, mas uma estrofe inteira que introduz cada
canto com um movimento no espaço. Uma pergunta e sua resposta nomeiam o sujeito
da dança em tela — na sua chegada — com relação a uma referência hidrográfica.
Enfim, a distinção marcada dos gêneros nestas danças — a oposição formal entre
homens e mulheres —poderia se associar, acredito, a uma exogamia clânica pretérita:
se o clã se identificava com o grupo local, em tese, as mulheres casadas seriam es-
trangeiras na aldeia, o que manifestariam elas ao dançar dando o braço a seus mari-
dos, ao cantar a mesma coisa, porém em heterogeneidade sonora8. Hoje elas pratica-
mente nunca cantam, e são sobretudo as mulheres solteiras que dançam, dando o
braço a seus consangüíneos; estaria isto ligado ao fato de que os clãs estão inativos, e
que a endogamia aldeã prevalece, em todas as comunidades wayãpi? Já o unísso-
no{XE "Uníssono"} dos homens se manteve, em concordância com a necessidade de
coesão na comunidade aldeã{XE "Aldeia" \r "Aldeia11"} que, no final do século XIX, se
tornou a principal instância política a ocupar todo o espaço social (P. Grenand 1982;
Gallois 1986).

84
ATOS MUSICAIS

A distinção formal entre as expressões vocais simultâneas das mulheres e dos ho-
mens ocorre entre outros povos das terras baixas, tais como os galibi{XE "Galibi"} e
os grupos jívaro{XE "Jívaro"}, cantando as mulheres jívaro também em heterofo-
nia{XE "Heterofonia"}. Para compreender esta distinção, seria necessário analisar de
maneira mais completa, entre os wayãpi, dentre as suas diversas relações no âmbito
da dança, da fabricação e da oferta de cauim, bem como no âmbito dos intercâmbios
de alimento, formalizados por um roubo simbólico nalguns grandes ciclos cantados.
Minha hipótese seria que tal definição complexa dos gêneros recobre uma distinção
abstrata, geral, entre homens co-residentes e mulheres não co-residentes{XE "Resi-
dência" \r "Residência2"}.
Gallois (1988: 170–171), ao criticar as conclusões de P. Grenand, nega a existência
de clãs{XE "Clãs" \r "Clãs"} localizados entre os wayãpi. Em todo caso, mais que pro-
priedades simbólicas invariáveis, as quais se herda ou apropria, estas músicas apare-
cem, uma vez que se as apresenta, como objetos maleáveis e manipulados (presentes
com maior ou menor freqüência, com mais ou menos aparato, a relevar este ou aquele
parâmetro formal, etc.). São locais, momentos nos quais um grupo social, uma unida-
de política{XE "Política" \r "Política4"} se define e se afirma.

Os modos de execução: transições da pessoa

Uma das peças para solo de flauta de osso se intitula alekota (“vou me casar”). Al-
gumas dessas peças para flauta solo têm por título nomes de animais{XE "Animais"}
da floresta, ou de animais que foram aprisionados: “juriti”, “colibri”, “papagaio”, mas
vários de seus títulos são referências mais ou menos diretas a histórias de amor: emi’a
(“meu amante”), Alapanu (nome duma mulher amada), ya’iwaĩwĩ (“moça nova”), eyo
(“vem!”), meyu (“beiju de mandioca”, oferta da amante)... Repousando manemolente
sua rede, ou sozinho na periferia da aldeia, o flautista se distingue por sua ociosidade.
Em meio às atividades aldeãs, tranqüilas porém contínuas, esta indolência, esta pre-
guiça afirmativa é típica da juventude, época de conquistas amorosas que precedem o
7 casamento. É o período em que os rapazes, com pouca pressa para se submeter às
obrigações de esposo e genro, passam seus dias a se depilar, a se pintar e lançar
19 olhares às belas vizinhas. Uma vez sob compromisso, estes comportamentos de sedu-
ção e o toque da flauta deverão ser mais discretos, sobretudo após o nascimento do
primeiro filho. Esta ruptura que a idade traz à voluptuosidade tem clara expressão no
célebre mito dos gêmeos, tal como nesta região se o narra: segundo os wayana-
aparaí{XE "Wayana-aparaí"}, o herói criador fecunda a sua fêmea terrena ao nela en-
costar a sua flauta (Schoepf 1976: 56), ao passo que, para os wayãpi, “é porque lhe
despedaçaram a sua flauta que Yaneya partiu, deixando sua esposa grávida” (F. Gre-
nand 1982)9. Mais tarde, um de seus filhos gêmeos, hipersexual e sentindo falta duma
mulher, irá atrair e enlouquecer todas as mulheres duma aldeia graças a sua flauta.
Nesse mito, já objeto de ampla análise e interpretação por parte dos antropólogos, e
do qual um dos eixos é uma moral de regulação sexual (F. Grenand op. cit.), a flauta
importa a passagem da alegria juvenil à aceitação da paternidade. Estamos bem pró-
ximos da definição de família nuclear10.
A flauta partida do herói criador, os homens casados a parar de tocar a flauta, tudo
isto é também relativo ao silêncio: um silêncio tal, muito ritualizado em certas civiliza-
ções, que o casal deve se impor “antes que o nascimento do primeiro filho permita
transcender a oposição entre o silêncio e o ruído, ao se retomar o diálogo” (Lévi-
Strauss 1964: 335). Após sua tentativa de tomar uma mulher terrena, o herói civiliza-

85
SOPROS DA AMAZÔNIA

dor dos wayãpi retorna ao céu, porque se tentara lhe impor o silêncio{XE "Silêncio" \r
"Silêncio"}. A mulher, por sua vez, o jaguar a comerá, ao passo que a história de seus
filhos, os gêmeos, é também a das relações entre a Terra e o Céu, uma definição da
medida e do excesso, uma reflexão sobre a distância justa. Nesse mito, a flauta é o
operador inicial do reencontro entre o Céu e a Terra, pois provoca este uma desordem
social da sexualidade. Entre os wayãpi, não obstante, os homens não retomam os so-
los de flauta após o nascimento do primogênito, e creio que, nesta categoria de flau-
tas, o valor da sedução é preponderante na vida cotidiana.

FOTO
{TC "Indolência, sedução. Nami se pinta, aldeia Zidock (J.-M. B)." \f f}Indolência, sedução. Na-
mi se pinta (aldeia Zidock 1977)

Nas pequenas bebedeiras, as mais corriqueiras — as que correspondem à esfera so-


cial dos grupos faccionais — as famílias convidadas chegam a uma das casas dos anfi-
triões, ou a um dos pequenos pátios que definem o centro dum dos ‘bairros’ da aldeia,
o espaço social duma facção{XE "Política:facções" \r "facções3"}. Cada família chega
com seus bancos e seu tabaco11; cada qual escolhe o seu lugar em função das afinida-
des do momento, os homens dum lado, as mulheres doutro — sendo que esta separa-
ção não é estrita —, e começam a beber as cabaças de cauim que lhes servem. Sói
ocorrer desta reunião ir bem adiantada quando se decide animá-la com uma tule. En-
tão, em meio à bebedeira e à falação, alguns músicos fabricam e testam os instru-
mentos. Daí, dentre os que estão a beber, uma dezena de homens se reagrupam e,
sempre sentados, começam a tocar. Após algumas peças, os músicos se levantam
para dançar e, mais para o fim da suíte, voltam a se sentar. Este conjunto não se
destaca do resto do grupo senão aos poucos. Aquilo que, ao longo da noitada, devém
uma verdadeira representação, com atores e espectadores, não é hoje o objeto, o
motor desta reunião, mas o seu acordo, a sua parafernália. Trata-se dum suplemento
musical que o grupo oferece à aldeia como um todo.
Ao contrário da suíte orquestral, a dança cantada é sempre o centro, o ponto focal
da festa que a enquadra. A grande dança se desenvolve no pátio principal da aldeia,
onde os dançarinos realizam uma verdadeira entrada em cena com os instrumentos
específicos desta chegada: as trompas tilutilu. O cauim, os instrumentos musicais e os
paramentos{XE "Parafernália" \r "Parafernália"} requerem um importante trabalho de
preparação. Os músicos-dançarinos se vestem com seus maiores panos vermelhos, se
pintam com jenipapo ou urucum, se enfeitam com contas e plumas. Nas danças mais
importantes, os dançarinos colocam grandes máscaras de tiras de casca de árvore12. A
árvore deve ser derrubada dois dias antes da festa, depois deve-se confeccionar as
máscaras que, na realidade, são grandes capas que se coloca sobre a cabeça, e por
fim se as tinge com barro. Tudo isto os homens levam a cabo coletivamente, na flo-
resta. É, então, um grupo homogêneo de seres mascarados que irrompe na aldeia aos
gritos e com os bramidos da trompa. A festa começa, e assim se define formalmente, a
partir da separação entre os dançarinos e o resto da aldeia{XE "Aldeia" \r "Aldeia12"}.
Aquando das representações musicais, a posição intermediária das tule se manifesta
outrossim através da bebida, do dispositivo coreográfico e da linguagem do corpo.
As bebidas fermentadas e a bebedeira coletiva ocupam, como sabemos, uma posi-
ção privilegiada na vida dos povos da América do Sul. No nordeste amazônico, não se
saberia fazer música comunitária sem bebida. Dançar sem beber é inconcebível. Atra-

86
ATOS MUSICAIS

vés desta forte associação, a música e o álcool contribuem para estruturar as festas
numa programação conjunta, e reativam uma definição formal das relações entre ho-
mens e mulheres13. Ora, as trocas entre música e bebida, entre os músicos e as ser-
ventes, ou seja, entre os homens e as mulheres, são bem mais complexas e sistemati-
zadas nas grandes danças que nas tule.

FOTO
{TC "Um movimento duma dança dos peixes, aldeia Zidock (Michel Lucas)." \f f}Um movimento
duma dança dos peixes (aldeia Zidock 1988)

Nos grandes ciclos cantados, a ordem da cadeia de dançarinos se distingue por um


protocolo manifesto: a posição dos dançarinos corresponde a seu peso político{XE "Po-
lítica"} e sua idade, os mais jovens se posicionando atrás. Já nos conjuntos de clari-
netas, os jovens e os convidados da facção{XE "Política:facções"} anfitriã tocam a
parte central, a mais fácil.
Nas grandes danças, como acabamos de ver, o corpo se paramenta ao máximo,
mas é também mascarado, vale dizer, desindividualizado e desumanizado: não se
trata mais de um tio ou um irmão, é um peixe ou uma onça14. Contrariamente, os jo-
vens em situação de sedução apresentam uma parafernália sobreindividualizante. De-
pilação, perfume, pinturas corporais atraem o olhar para si, desviando o olhar dos ou-
tros: o sipi, a pasta de maquilagem de urucum, costuma ser também um encanta-
mento de amor. Todos os ornamentos — visuais, sonoros, odorantes — formam uma
parábola, cujo foco é o indivíduo em apresentação amorosa. Quando toca as tule, a
pessoa se arruma bem porque já está numa reunião de bebedeira, mas a coisa pára
por aí, não se busca ficar o mais bonito possível e não se coloca máscara. Porém, so-
bretudo, os níveis de ornamentação dos dançarinos são bem diferentes uns dos outros,
desde aquele que veste um simples pano até aquele que se aprontou a ponto de figu-
rar com um cocar de penas e muitas contas15. Em todo caso, hoje não há um tipo es-
pecífico de parafernália das danças tule, não há mais uma especialização nos para-
mentos{XE "Parafernália" \r "Parafernália2"} da cadeia dos dançarinos (o líder, que
usaria mais penas que os outros, por exemplo). Os anfitriões são, em geral, os que
melhor se ornamentam, mas eles não necessariamente dançarão.
Ornamentos, embriaguez{XE "Cauim, beber" \r "Cauimbeber5"}, maneiras de dan-
çar, experiências singulares com o sopro{XE "Sopro"}: as atividades musicais devem
ser entendidas não apenas como produções sonoras, mas também, e tanto quanto,
como práticas corporais que contribuem, ao seu modo, para a definição e construção
da pessoa (cf. Seeger, da Matta e Viveiros de Castro 1987). A descrição desses modos
de agir confirma as correspondências entre música e sociedade, tais como as coloca-
mos em evidência. Mas, sobretudo, a nossa compreensão dessas práticas musicais se
torna mais ampla; tendo em vista todos esses modos de agir, agora parece mais cor-
reto dizer que cada música wayãpi não somente designa um estado da pessoa, mas
também faz com que se passe de um estado ao outro: de solteiro a pai de família, de
indivíduo a membro dum grupo, de membro duma facção{XE "Política:facções"} a
agente da unidade aldeã... Aqui, as atividades musicais são transições da pessoa. Po-
demos tentar delinear do seguinte modo as transformações do “eu” (iye) até os diver-
sos “nós” (yane):

IYE YANE YANE YANE

87
SOPROS DA AMAZÔNIA

solo tule grande canto guer-


ra{XE
"Guerr
a"}

Mas que ninguém se engane, neste devir não há nada de rígido, nem de desconexo.
Estados diferentes da pessoa podem ser simultâneos: no mesmo período, um jovem
pode tocar música individual, as tule, e participar duma grande dança; um pai de famí-
lia pode participar duma tule, duma grande dança ou dum canto de guerra{XE "Guer-
ra"}. Para cada um, passagens simultâneas. Não se trata aqui dum paradoxo gratuito,
é exatamente aquilo que os temas{XE "Tema musical"} das tule exprimem: tanto pela
alternância{XE "Alternância"} de timbres{XE "Timbre"} como pela fisionomia própria
da sua melodia, operam eles de maneira repetida, complexa e variada as possibilida-
des múltiplas de transição do um ao múltiplo. Entre a mobilidade dos solos e a estabi-
lidade das grandes danças, não seriam as tule uma música de contradição e transição?
Esta interpretação encontra uma confirmação ao considerarmos a ocorrência da tule.
Enquanto que as músicas solo podem ter lugar a qualquer hora do dia ou da noite, que
os grandes cantos transcorrem, de preferência, ao longo de todo o dia para termina-
rem na boca da noite, e as seções de xamanismo{XE "Xamã, xamanismo"} começam
quando já é noite funda, quase todas as seções de tule começam ao fim da tarde, con-
tinuam pelo crepúsculo e terminam no meio da noite. Se é possível dizer que os gran-
des cantos são uma música mais diurna16, as tule, por sua vez, acompanham a passa-
gem do dia à noite plena.
Assim, pelos seus contrastes, as diversas músicas wayãpi permitem a expressão de
várias personalidades, as várias personalidades simultâneas do mesmo indivíduo: elas
definem a pessoa como um ser social múltiplo. As próprias atividades musicais surgem
como tantos pontos de transição da pessoa; e entre estes, não seriam as tule aqueles
que, sobremaneira e de modo mais profundo, colocam em jogo a contradição inerente
a essas transições?

Música e natureza: um jogo perigoso

Quando tocamos a suíte da sucuri{XE


"Sucuri"}, vem ela escutar a sua música.

A proximidade física e conceitual dos povos ameríndios com o seu ambiente natural
é um dado já bem conhecido, e a totalidade das expressões sonoras wayãpi sublinha,
em princípio, a densidade das relações entre os homens e o seu ambiente natural.
Práticas musicais e discursos sobre as mesmas apresentam a própria floresta como
origem da alteridade e do perigo.
Em toda a música wayãpi, a grande maioria das peças, sejam elas vocais ou ins-
trumentais, fazem referência ao mundo natural no seu título, nos seus elementos rít-
mico-melódicos, nas suas palavras, ou na origem que se lhes atribui. Este uso prefe-
rencial de modelos animais, esta ‘tradução’ do ecossistema na linguagem musical
wayãpi pode assumir diversas formas, mas o contorno melódico parece ser uma base
freqüente para estes procedimentos composicionais{XE "Composição musical"}: uma
melodia tocada na flauta transversa reproduz o canto e o comportamento alegre do tu-

88
ATOS MUSICAIS

cano com um balanço melódico rápido, onde as notas pivô não são acentuadas; a di-
nâmica{XE "Dinâmica musical"} impressionante do canto da guariba é ‘reduzida’ na
flauta doce a uma sucessão de células melódicas curtas e ascendentes, ao passo que o
cacarejo do mutum no canto dos homens, com o timbre{XE "Timbre"} dum sino, vira
uma melodia em ziguezague17. Esta referência ao ecossistema é manifesta em todos
os gêneros musicais, mas a presença e definição do ambiente natural não são unifor-
mes: quanto maior a esfera social à qual a música diz respeito, mais importantes são,
proporcionalmente a cada repertório, as referências à natureza; os diversos modos de
enunciação e narração, assim como as diferentes temáticas implicam, sobretudo, um
tipo particular de relação com a natureza em cada esfera social.
Primeiro os exemplos no nível da música individual: i tĩ tĩrĩtĩtĩ, uma melodia de
flauta com contorno em sobressaltos, se intitula “os mosquitos me picam através de
minha rede”. Kumaya, a fazer seu bebê saltar sobre seus joelhos, cantava para ele
direto nos olhos, com adoração, moy ne suuta, “a cobra vai te morder!”. Mesmo se
certas peças se intitulam “a pomba”, “o tucano{XE "Tucano" \r "Tucano"}”, “a guari-
ba”, todo o repertório solo designa o mundo real, cotidiano, doméstico. Toda peça de
música solo é autônoma, e a relação entre este mundo essencialmente feminino (a
casa{XE "Casa"}, a aldeia{XE "Aldeia"}, as roças, o amor) e a natureza se manifesta
de maneira anedótica, pontual, instantânea.
No segundo nível, cada suíte tule apresenta uma relativa unidade musical, mas ne-
nhuma unidade nos assuntos presentes, nenhuma ordem obrigatória na sucessão das
peças. Toda tule apresenta uma reunião de informações sobre o mundo natural numa
desordem aparente. Os títulos das peças e as letras dos duplos cantados podem figurar
sob forma nominal (sem indicação de ação) ou sob forma verbal, na primeira, segunda
ou terceira pessoa. Tomemos como exemplo os nomes das primeira peças da “suíte da
sucuri{XE "Moyutule (suíte da sucuri)" \r "Moyutule3"}”18:
1. walimã: planta que se usa no ritual inicial que permite a execução deste reper-
tório (cf. p. 131, n. 24);
2. selokamokatu: “se prepara o pátio de dança”;
3. uluwaluwa: grande lesma aquática inexistente no Oiapoque;
4. kaway pelu: “tragam os chocalhos!”;
5. kakãytõlĩ: acauã;
6. pakuwa: gavião-pescador;
7. selokalusu pupe noko pilasayupa “é, então, na grande arena de dança, onde se
dança com passos largos”;
8. kumakayula pupe noko pilasayupa “é, então, no lugar que se chama Ku-
makayula, onde se dança com passos largos”; kamakayula é também um cipó
através do qual, dizem, os xamãs podem subir nas sumaúmas durante as suas
viagens;
9. kwata sele sele ten: “a mão do macaco cuatá é tal como uma colher”;
10. palanayaapiyapi: “as ondas do mar” — a marola, a ressaca, a pororoca do
Amazonas?;
11. tule’a: folha de palmeira que adorna as clarinetas;
12. uluwila: pássaro batará de pescoço negro;
13. uluatootoo: pássaro tovacuçu;
14. tukã: pássaro tucano{XE "Tucano"};
15. kãkã: pássaro carcará de pescoço vermelho;
16. pãwõ: pássaro anambeúna;

89
SOPROS DA AMAZÔNIA

17. kãwẽynali: sentido desconhecido, tratando-se provavelmente dum cauim;


18. aykawale: “cinto”, na língua wayana...
Estas designações misturam dados concretos sobre um tal animal, uma brincadeira
sobre um tal outro, um breve fragmento de viagem xamanística, o reencontro com um
ser poderoso, um detalhe isolado dum mito, uma referência ao cauim{XE "Cauim, be-
ber" \r "Cauimbeber6"} de mandioca, o canto dum pássaro, etc.. É o que chamaria eu
duma “forma heteróclita”; esta coletânea de curiosidades, este bricabraque de xa-
mã{XE "Xamã, xamanismo" \r "Xamã5"}, propõe também uma visão do ambiente
natural sob o domínio do múltiplo e da diversidade, de maneira análoga à forma do
conjunto de sensações e informações que um caçador que anda pela floresta recebe;
nisto, tal forma se opõe à dos grandes cantos.
Nesses grandes cantos, os dançarinos-cantores se comportam como se fossem pei-
xes, pássaros, etc.: fazem eles o papel destes animais, e o dizem em segunda pessoa
e depois em terceira; enfim, estes mesmos animais se comportam como homens: eles
se enfeitam, se reúnem e bebem; é uma forma daquilo que Viveiros de Castro chama
de reverberação, reverberação que se baseia aqui nas diferentes linguagens da ceri-
mônia (1986: 587 sq.). As letras das grandes danças apresentam todas as ações (com
um verbo); a primeira estrofe está sempre em segunda pessoa, como se vê nestes
fragmentos das primeiras estrofes de yaoke{XE "Yaoke (dança das lamentações)"} (“a
dança das lamentações”):

Eleyo ipila upa


Eleyo kumalu upa
Yane l’ii lupi kayo.

“Vocês chegam, peixes,


Vocês chegam, peixes kumalu,
É pelo nosso rio que vocês chegam.”

As outras estrofes são todas na terceira pessoa:

Oylosemã ipila upa.


“Eles se parecem, os peixes.”
[...]
Oymousu ipila upa.
“Eles se parecem para se alinharem, os peixes.”
[...]
Oyke ipaky upa.
“Eles entram, os peixes pacu.»

Os grandes cantos possuem uma unidade musical e temática muito grande, sendo
consagrados à apresentação global dum animal{XE "Caça" \r "Caça2"} ou planta en-
quanto ‘espécie’, como uma entidade, com suas regras de comportamento, sua inte-
gração ecológica. A ordem do discurso é aqui sublinhada: é de se notar a sucessão das
estrofes, a se visualizar com um ‘rosário de dança’; trata-se dum simples fio de algo-
dão ao qual se ata um objeto qualquer a cada nova estrofe (penas diversas, bolinhas
de algodão, contas, pedaços de papel...). Se o chama yengalaãnga (“imagem do can-

90
ATOS MUSICAIS

to”) ou yenga’a (“cantar / vez”); por extensão, yenga’a designa a semana ocidental de
sete dias. Não se pode deixar de sublinhar a correlação bem marcante entre esses ro-
sários de dança e os fios com nós que permitem a contagem dos dias a várias etnias
amazônicas: entre os caribe das Guianas, estes ‘calendários de fios’ eram utilizados
aquando das festas em que uma aldeia mandava convites às comunidades que dista-
vam vários dias de caminhada (cf. Farabee 1967); entre os txicão{XE "Txicão"}, povo
caribe{XE "Caribe" \r "Caribe"} do Alto Xingu, e entre os chacobo{XE "Chacobo"},
povo pano{XE "Pano"} da Bolívia, os calendários de fios permitem o ajuste do pro-
grama das diversas equipes que preparam o ritual (aquelas que vão pela floresta caçar
ou pescar, as que permanecem na aldeia)19. Para os wayãpi, assim como para os ya-
gua{XE "Yagua"} da Amazônia peruana (Chaumeil 1993), materializar assim uma sé-
rie de enunciados é em si uma marca de oficialidade, e conota diretamente a ordem, o
protocolo. Esta história natural é uma exposição canônica.
A comunicação acústica é, como sabemos, preponderante neste tipo de floresta tro-
pical grande, “visualmente opaca e acusticamente transparente” (Roseman 1984:
435). E os chamados de caça, que constituem o primeiro nível de estilização dos sons
da floresta para os homens, traduzem também esta necessidade de manter liames so-
noros com os animais. Os chamados, assobiados ou gritados pelos caçadores, servem
em princípio para atrair a caça ou, com maior freqüência, para retardar a sua fuga.
Devam ou não ser o mais próximo possível dos chamados e cantos dos animais, já as-
sumem eles, no entanto, os moldes da estética wayãpi: enquanto o tucano{XE "Tuca-
no"}, por exemplo, jamais emite a totalidade do seu canto duma vez, já os caçadores
reproduzem de maneira estritamente repetitiva o modelo completo; o canto original do
pássaro já se transforma, na direção do isocronismo e da repetição{XE "Repetição" \r
"Repetição5"}. Além disso, é muito grande a quantidade desses chamados para que
não tenham mais que esta função cinegética; na floresta ou no rio, o seu uso é literal-
mente incessante. Mesmo os pescadores nas suas canoas, calmamente à deriva, ao
sabor da corrente, e sem o menor ânimo de correr atrás de caça na floresta, de todo
concentrando-se nas suas linhas, chamam sem parar macacos, antas, imitam os pás-
saros que ouvem — ainda que estes não sejam presas de caça{XE "Caça" \r "Caça3"}
—, respondendo a esta ou aquela ave doméstica, ou ainda rindo-se bem alto dela, se o
seu canto foi, de algum modo, fora do comum.
Este tipo de comunicação direta, sob a forma de diálogos cotidianos, sugere que
estas trocas com os animais são concebidas nas representações wayãpi como relações
de igualdade que se desenrolam sobre um ‘plano horizontal’ (Gallois 1988), ao invés
de seguir planos ordenados hierarquicamente (P. Grenand 1980). Enfim, tal demonstra
que a música, assim como a psicologia, e todo o pensamento deste povo, não é antro-
pocêntrico20.
Todavia, esta densidade de relações com os seres da floresta e do rio se faz acom-
panhar do estabelecimento duma distância para com eles, estabelecimento significati-
vo para a prática musical.
O vocabulário que se aplica aos sons compreende poucas palavras especificamente
musicais, umas quinze, a se excetuar os nomes dos instrumentos musicais. Ao lado de
diversas palavras de uso restrito, tais como “retumbar”, “roncar”, três raízes verbais
apresentam um amplo espectro de aplicação: ‘e (“dizer”), yẽ’ẽ (“tocar”), yenga (“can-
tar”). Adicionemos a palavra polay (“dançar”), e observemos as distinções que seus
usos operam21:

91
SOPROS DA AMAZÔNIA

HUMANOS ANIMAIS INSTRUMENTOS

nos mitos na floresta

dizer + + + +

tocar – – + +

cantar + – – –

dançar + + ? –

O verbo polay{XE "Polay (dançar)" \r "Polay2"} também designa, por metonímia, o


ato de se reunir para fazer uma festa. Que os animais dos mitos se reunam para be-
ber{XE "Cauim, beber"} e dançar, corresponde a uma “concepção sociomórfica do
cosmos” (Viveiros de Castro 1992) que é amplamente difusa e predominante na
Amazônia; que os animais não cantem (yenga{XE "Yenga (cantar)"}) exprimiria uma
separação marcante entre humanos e não humanos. Assim, o vocabulário musical
mostra que as atividades sonoras importantes são compartilhadas entre os humanos e
os demais habitantes do mundo e, por outro lado, opera ele uma distinção forte entre
uns e outros. Como interpretar esta tensão? A análise do risco relativo à prática musi-
cal nos permitirá compreender melhor esta ambivalência.

O risco.

Se a prática musical se inclui na vida da comunidade aldeã, os wayãpi reconhecem


que as fontes da música estão para além da aldeia, para além do humano. “Flauta de
osso de veado”, “flauta-imagem de peixe”, clarineta que “ruge”... Pelos nomes e quali-
ficativos que se lhes atribui, os instrumentos musicais podem ser tomados como uma
imagem desta origem não humana das músicas — origem que confere aos diferentes
repertórios um grau crescente de risco.
Tal aparenta estar ausente das músicas individuais, mas no caso das tule, o risco já
é, claramente, mais sensível; eis aqui alguns exemplos: yãwĩtule{XE "Yãwitule (suíte
da tartaruga)"} (“a suíte da tartaruga”), suíte de origem piriu{XE "Piriu"}22, pratica-
mente não se a dança mais no algo Oiapoque, pois “ela arriscaria fazer a mandioca
apodrecer”; moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"} (“a suíte da sucuri”), se diz
que estes animais{XE "Animais" \r "Animais"} a ensinaram aos homens. Para o povo
de Trois-Sauts, foi Pesuke, o homem que se casou com uma mulher sucuri, que
transmitiu essa dança após a sua estadia na aldeia das sucuris (cf. F. Grenand 1982:
325–329). Paul Suitman, de Camopi, narrou uma versão diferente e mais precisa da
origem dessa tule:

Um homem jovem, cujo primogênito acabou de nascer, repousa em sua rede após o
banho23. Uma sucuri fêmea, sob a aparência duma bela mulher, reconhece o seu cheiro
e vem lhe trazer cauim{XE "Cauim, beber"} de mandioca. Ele recusa. Ela volta no dia
seguinte, de novo à luz do dia. Daí conta ele a história a seu irmão mais velho, que
toma o seu lugar na rede. E a mulher traz o cauim. Ele bebe e lhe devolve a cabaça. A
mulher diz: “Não era tu quem estava na rede ontem, mas venha à minha casa assim
mesmo”. Como o irmão mais velho não tem mulher, ele a segue; sobe na canoa dela;
é um jacaré; chegando a um grande remanso, o jacaré mergulha.

92
ATOS MUSICAIS

Na aldeia das sucuris, a moça diz: “Eis o meu marido!” “Não é aquele”, responde o seu
pai, mas ele lhe traz muitas clarinetas tule para que as distribua, e lhe pede que lhes
ensine uma dança. Mas ele não conhece nenhuma. Seu sogro insiste: “Sim, tu conhe-
ces! Toque!” Daí distribui ele os instrumentos e começa a tocar... belas peças, com um
belo som.
No dia seguinte, ele volta a subir com a mulher sucuri e eles dormem juntos sobre a
praia. Chega o seu irmão, e lamenta não ter ido. Mais tarde, a mulher sucuri viria mo-
rar com os homens.

Esta suíte, uma das mais importantes e mais antigas, começa com um ritual que
protege a aldeia{XE "Aldeia" \r "Aldeia13"}24. Com efeito, para o povo do Oiapoque, a
ruptura entre as sucuris e os homens é conseqüência duma tentativa vã de aliança
matrimonial, casamento em prol do qual as sucuris deram o primeiro passo e oferece-
ram a sua dança de clarinetas. Hoje, as faltas no ritual que se destina a manter as su-
curis à distância, ou os erros de execução da música, revivem a sua cólera, que se tra-
duz em doenças nas aldeias, dores nos braços e nas pernas dos músicos; estes, se o
ritual não os proteger, podem mesmo se metamorfosear em sucuris{XE "Sucuri" \r
"Sucuri"}.
No terceiro nível sócio-musical, o risco existe em grau máximo. O dançarino da
frente (yemi’aya) é o depositário e responsável pelo grande canto que conduz; isto si-
gnifica que ele garante a conformidade da letra e da coreografia com o arquétipo25. Em
termos etnomusicológicos, esses arquétipos correspondem a representações prescriti-
vas da música. Todo erro, toda omissão, pode ter conseqüências graves.
Em 1977, Miso conduziu uma bela apresentação da “dança da palmeira wasey”; dois
anos mais tarde, Alasuka (que pertencia à facção{XE "Política:facções"} política
oposta) me explicou que, se houvesse poucos frutos nas palmeiras após duas esta-
ções, a culpa recairia sobre Miso, que errara uma ou duas vezes durante a festa. Em
1980, em plena estação propícia, havia muito poucos frutos de inga26. Me explicaram
que, algum tempo antes, um homem de outra aldeia executara a dança destes frutos
para uns turistas e cometera diversos erros. Enfim, soube tardia e fortuitamente da
existência duma “dança da grande garça”27, que o depositário não queria mais cantar,
pois qualquer erro atrairia muitas cobras à aldeia.
Assim, nas representações, estes perigos são diretamente associados ao saber. As
apreciações que se ouve com maior freqüência durante a dança não são específicas ao
mundo sonoro: owaso (“é bonito”) pode exprimir qualquer emoção estética; ikatu (“é
bom”) tem, na música, sobretudo o sentido de “está correto”; ayawi (“eu errei”), se o
emprega do mesmo modo quando se perde uma presa. Porém a primeira, a grande
apreciação relativa a toda dança é okuwa katu (“ele sabe bem”) ou nokyway (“ele não
sabe”). Um músico me disse, por exemplo: “Eu gosto quando Jacky canta porque ele
sabe bem; já Miso nem sempre sabe muito bem”. Outro fez este comentário ao retor-
nar duma pequena festa numa aldeia{XE "Aldeia" \r "Aldeia14"} vizinha: “O pessoal
do Pina não sabe bem esse canto”. Esse último comentário possui uma forte carga ide-
ológica: a crítica era fácil, pois a comunidade anfitriã imigrara recentemente e se dis-
tinguia politicamente; no primeiro exemplo, ao contrário, o músico criticou (privada-
mente, para o etnomusicólogo) o seu pai classificatório, que era um dos que tinham a
maior disponibilidade para organizar as danças. Estes exemplos mostram bem que a
primeira qualidade dum músico é a boa memória:

okuwawiya, okuwayĩ: “ele se lembra”


(etimologia: “conhecer / ainda, conhecer / de novo”)

93
SOPROS DA AMAZÔNIA

naya’ay: “não me recordo mais”


(etimologia: “negação / pensar / de novo / negação”)

Estas etimologias mostram que a memória não se relaciona aqui a um dos sentidos
— sobretudo à audição ou à vista, como entre outras etnias ameríndias —, mas é tida
como um processo mental: Yawalu afirma que “quando se canta, é a cabeça que tra-
balha”.
Uma grande dança requer portanto um virtuosismo de memória, e as falhas virtuais
e ocasionais desta fazem com que uma dança seja perigosa tanto por suas conseqüên-
cias concretas sobre toda a comunidade, quanto pela inevitável exploração política da
menor falta.
Graças a esta adequação entre o produto musical e o seu arquétipo, pesa uma res-
ponsabilidade desmedida, religiosa, sobre o dançarino da frente, que coloca a cada vez
em questão a ordem do mundo e a sobrevivência da comunidade: sobrevivência física
(ausência de frutos da floresta, invasão de serpentes) e sobrevivência cultural (risco
de metamorfose em sucuri). O toque, o canto não são inocentes, e a decisão de reali-
zar uma grande dança é tomada pela representação política global da aldeia{XE "Al-
deia"}, sendo o estilo de execução — portamento da voz, passo de dança — cheio de
gravidade, ao passo que a conformidade se submete a um controle político{XE "Políti-
ca" \r "Política5"} por parte de todas as facções{XE "Política:facções"}.
Quanto maior for o todo social ao qual se destina, maior o risco do fazer musical, o
que também será um fator de estabilidade dos repertórios. Mas afinal porque a per-
formance da música exprime a tensão entre os homens e a sua natureza?
Certas danças, “a palmeira wasey”, “o peixe paku”, “o milho awasi”, por exemplo,
tem a ver com o momento em que as frutas estão maduras, ou com os períodos favo-
ráveis para certas pescarias, mas no todo, a atividade musical não condiz com as esta-
ções. De maneira mais genérica, não há um calendário musical, sazonal ou não. Certos
povos andinos dizem que “a música faz os tempos andarem”, que a música pode agir
sobre a natureza e a transformar (Martínez 1994). Entre os wayãpi do Alto Oiapoque,
parece mais ser o caso contrário.
A prática musical como um todo é aqui circunstancial, e não funcional: se dança, a
princípio, porquanto há boas condições para tal — abundância de frutos da floresta,
saúde e paz na aldeia. Não é possível dançar se o ambiente — natural e social — não
for favorável. É o ambiente que condiciona a produção musical; além disso, esta deve
se conformar aos arquétipos que são tidos como provenientes da floresta e do rio. En-
fim, a natureza pode reagir a essas músicas, mas aí seria de maneira negativa, pri-
vando a aldeia de certos recursos alimentares (frutos de palmeira), atacando-a dire-
tamente (cobras) ou metamorfoseando os seus habitantes (em sucuris). Se é certo
que estes repertórios são propriedades simbólicas, eles circulam e são tratados em
dois níveis de representação do homem em seu mundo: quando um mestre de música
lidera uma dança (tule ou grande canto), ele se afirma como titular genealógico deste
objeto vis-à-vis outros possíveis pretendentes: este é o nível sociopolítico{XE "Políti-
11
ca"}, humano. Por outro lado, este dançarino líder assume assim a responsabilidade
pública, oficial, da boa realização duma obra que não pertence aos humanos. A for-
mulação dos riscos associados às músicas coletivas parece mostrar, com efeito, que a
maior parte destes repertórios permanece sendo propriedade dos ‘deuses terrestres’
(sucuris{XE "Sucuri" \r "Sucuri2"}, por exemplo) ou dos ‘mestres’ dos animais{XE
"Animais"} (iya), não conservando e não mantendo os homens mais que um direito de

94
ATOS MUSICAIS

uso controlado. Em compensação, jamais ouvi dizer que erros durante a panalitule{XE
"Panalitule (suíte dos wayana)"} (uma dança que provém dos wayana) pudesse causar
doenças. Entretanto, as relações de força históricas e atuais com este povo vizinho são
francamente enfáticas. Reencontramos aqui a gradação, própria do repertório das tule,
entre as suítes mais antigas, mais estáveis e mais valorizadas, e aquelas mais recentes
e de empréstimo reconhecido, que comportam uma carga religiosa fraca28.
O liame direto entre a música e a aliança, que o mito de origem da suíte moyutu-
le{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"} ressalta, nos permite interpretar a tensão das re-
lações humanos / não humanos no âmbito da noção de distância média, que já escla-
receu diversos traços das civilizações amazônicas: assim como não se guerreia, não se
faz alianças e não se dança senão com grupos humanos que não estejam nem muito
próximos nem muito distantes, também só se define relações reais de troca simbólica
com o universo numa zona média, numa zona de tensão entre a generosidade e a
hostilidade.
Mas então por que dançar? Por que correr tais riscos? Seria o silêncio{XE "Silên-
cio"} um risco maior? Se errarmos ao cantar podemos não ser mais nós mesmos, mas
não poderemos ser nós mesmos se não corrermos o risco{XE "Risco" \r "Risco"} de
cantar. Estas músicas, essas danças que nos falam de tucanos a saltitar e peixes que
deslizam uns contra os outros podem ser interpretadas, também, como parte duma
estética do perigo; o que nos remete ao ethos guerreiro{XE "Guerra" \r "Guerra4"}
que deu a este povo o seu nome, assim como deu uma razão de viver a todos os tupi-
guarani{XE "Tupi-Guarani"} (cf. Menget 1985; Saignes 1990; Cambés 1992).

FOTO
{TC "Moscas! Aldeia Zidock (J.-M. B.)." \f f}Moscas! (aldeia Zidock 1978)

As mulheres, as tule e os mitos

As mulheres são indispensáveis às noitadas de tule, assim como a toda reunião de


música com dança. Elas preparam e servem o cauim{XE "Cauim, beber"}, mas não
tocam as clarinetas, bem como não tocam qualquer aerofone. Todavia, os mitos
wayãpi dizem que os repertórios das tule — repertórios específicos dos aerofones —
foram transmitidos aos wayãpi pelas mulheres. Vejamos os dados deste misterioso
equilíbrio.
Que as mulheres não toquem as tule corresponde, então, a uma proibição geral
acerca dos aerofones. É uma importante proibição. Ela recobre todos os aerofones —
os grandes, os pequenos, de todas as formas e categorias —, trata-se duma proibição
pan-americana: dos mapuche{XE "Mapuche"} do sul do Chile aos salish{XE "Salish"}
da Colúmbia Britânica, em parte alguma é lícito às mulheres tocar instrumentos de so-
pro (mas elas às vezes o fazem, conformes veremos mais adiante). É uma proibição
difusa, descrita também na África e na Oceania. Enfim, pode ela ser expressa diversa-
mente de acordo com os povos, às vezes de maneira bem violenta — ameaças de
morte{XE "Morte, mortos"} ou de estupro coletivo —, e comportar valores e aplica-
ções diferentes entre os mesmos povos: entre os kamayurá{XE "Kamayurá"} do Alto
Xingu{XE "Xingu"}, por exemplo, as mulheres não tocam as flautas uruá, e não têm
sequer o direito de ver{XE "Ver"} as flautas yaku’i. Essa proibição é um tema sobre-

95
SOPROS DA AMAZÔNIA

maneira rico, provavelmente fundamental em numerosas civilizações no mundo; na


Amazônia, o seu estudo está em andamento, e não apresentarei aqui mais que um es-
boço, a partir da vida musical do Oiapoque.
Entre os wayãpi, conforme vimos no capítulo II, nenhum segredo ou rito particular
se associa às clarinetas, e na proibição relativa aos instrumentos musicais não figura
aquele aspecto dramático e radical que encontramos alhures. Aplicando suas leis com
um estilo flexível e tolerante, as mulheres e os homens wayãpi são pouco explícitos
quanto a essa proibição: “...Não fazemos assim, e há muito tempo assim decidimos”,
comentava com seus filhos a velha Sa’i Piye. Uma anedota proveniente dos palikur, vi-
zinhos distantes dos wayãpi, nos coloca na pista: as mulheres palikur{XE "Palikur" \r
"Palikur"} não podiam mais tocar a clarineta aramtem, mas um dia, durante uma gra-
vação, em 1981, uma jovem um tanto quanto independente quis tentar; impediram-
na, dando uma explicação fisiológica: “Isso traria problemas de parto, isso bloquearia
o seu ventre”. Esta referência à obstetrícia designa diretamente o vasto complexo sim-
bólico que gira em torno dessa proibição: soprar{XE "Sopro"} os instrumentos é in-
compatível com botar crianças no mundo.
Se as mulheres não tocam aerofones, vários mitos amazônicos, em compensação,
contam que os homens tiveram de roubar-lhes estes instrumentos. Nos mitos do Alto
Xingu{XE "Xingu"}, foi-se um tempo em que eram as mulheres quem tocava as flau-
tas secretas yaku’i, ao passo que os homens ficavam escondidos nas casas. Os papéis
dos homens e das mulheres eram inversos, então. Não satisfeitos com este estado de
coisas, o Sol e a Lua fabricaram um zunidor gigante, cujo som assustava as mulheres.
Os homens puderam então sair das casas{XE "Casa" \r "Casa3"} e tomar posse das
flautas. Acrescentemos também que o zunidor possui uma forma de peixe, e que, se-
gundo os kamayurá{XE "Kamayurá"}, as menstruações das mulheres foram criadas
por peixes que subiam por suas vaginas29.
Menget (1984) demonstra que o mito de apropriação dos aerofones é indissociável
do mito das yamurikumã. As mulheres yamurikumã se transformam em espíritos da
floresta quando os homens, em expedições de pesca para a cerimônia de iniciação dos
rapazes, não trazem peixes à aldeia. Permanecer entre os homens e consumir o que se
pescou no ambiente do acampamento da floresta é, com efeito, um prazer e uma ten-
tação bem concreta neste tipo de expedição. A versão que Menget cita determina
mesmo que a criança que fazia a ligação entre as mulheres na aldeia e os homens no
acampamento da pescaria revela a mentira dos homens, ao trazer para a aldeia{XE
"Aldeia" \r "Aldeia15"} peixes escondidos dentro de uma flauta. Segundo a sua inter-
pretação, os adolescentes em iniciação são “de gênero incompleto, intermediário entre
os homens e as mulheres [...]. Os iniciandos precisam dos homens e das mulheres
para se tornar adultos, [e] o mito adverte os homens sobre uma catástrofe iminente,
se eles negligenciarem o seu papel, catástrofe da mesma natureza que a conjunção
entre os homens e os espíritos{XE "Xamã, xamanismo:ayã" \r "ayã"} das águas”
(Menget op. cit.).
No oeste amazônico, e em particular na região do Uaupés{XE "Uaupés"}, a maioria
das etnias possui instrumentos secretos utilizados durante a cerimônia dos rapazes, e
cuja vista é proibida às mulheres. Stephen Hugh-Jones (1979), associando a compre-
ensão dos mitos à dos ritos da sociedade barasana desta região, propõe uma bela aná-
lise estrutural da relação entre mulheres e flautas. Essa análise, que completa e preci-
sa amplamente aqueles que a precederam (Schaden 1959 ; Lévi-Strauss 1968 : 138)
pode se resumir assim:

96
ATOS MUSICAIS

O herói mítico Yurupari é, depois do seu nascimento, roubado de sua mãe pelos ho-
mens. Mais tarde, ele é queimado e de suas cinzas nasce, entre outras, uma palmeira
(Iriartea exorrhiza, trata-se duma palmeira que dá na beira do rio) da qual se faz os
instrumentos sagrados que são, ao mesmo tempo, os ossos do herói. Romi Kumu, a
mãe do herói, na companhia das demais mulheres, rouba esses instrumentos dos ho-
mens: estes, demasiado preguiçosos, ficavam deitados nas suas redes em vez de ir
tomar banho e ir procurar eles mesmos os instrumentos submersos na água. Então, os
homens ficaram como as mulheres: cultivavam a mandioca, tinham menstruações e fi-
cavam sob a dominação política das mulheres. Mais tarde, os homens inverteram a si-
tuação: eles estupraram as mulheres, lhes tomaram os instrumentos e os forçaram na
sua vagina, para que elas tivessem menstruações.
Hoje, esses instrumentos são utilizados na grande cerimônia de iniciação dos rapazes.
Os barasana dizem que, se as mulheres vissem os instrumentos, um período de caos
sobreviria, no qual os homens matariam uns aos outros. Já as mulheres ficariam ‘de-
masiado abertas’, ou seja, faladeiras, curiosas e licenciosas. Esta moral feminina, con-
dicionada pelo segredo das flautas, se associa à menstruação, durante a qual, segundo
as representações dos barasana{XE "Barasana" \r "Barasana"}, as mulheres ficam
particularmente abertas.
O domínio dos instrumentos e a possibilidade de ter menstruações são, então, tidas
como complementares e mutuamente exclusivas, e se tem, de um lado, a flauta e a
predominância política dos homens, e de outro, a menstruação e a possibilidade das
mulheres terem filhos. Neste contexto, a iniciação dos rapazes seria um novo nasci-
mento que, desta feita, os homens conduzem. O roubo dos instrumentos pela mãe do
herói e pelas outras mulheres pode ser compreendido como uma recuperação do filho
aos homens. A proibição sobre as flautas marcariam, então, a tensão entre homens e
mulheres30.

Assim poderíamos esquematizar, no mundo amazônico, este complexo mítico-ritual,


a apresentar uma forte recorrência de uma cultura a outra:

MULHERES HOMENS
cauim música
menstruação{XE aerofones
"Menstruação" \r predominância políti-
"Menstruação"} ca{XE "Política" \r "Po-
capacidade de ter filhos lítica6"}

Entre os wayãpi, o cauim, enquanto produção feminina a que se dá valor maior, e a


música, enquanto produção masculina a qual se dá valor maior, se situam sobre um
mesmo plano na cerimônia; música e cauim se correspondem na mesma unidade,
dentro do mesmo enunciado ritual: por exemplo, numa dada estrofe da dança dos pei-
xes, as mulheres dão de beber aos músicos-dançarinos-peixes, e depois, numa outra
estrofe, serão os homens a servir a platéia (Beaudet 1992a): é uma oposição sincrôni-
ca que difere da oposição que Viveiros de Castro (1986: 343) identifica entre os
araweté{XE "Araweté"}, e que é, por sua vez, mais diacrônica (há a festa e o que vem
depois), entre o esperma natural masculino e o cauim, enquanto esperma artificial fe-
minino31.
Estas oposições simbólicas reativam uma definição dos gêneros. Os mitos e os ritos
barasana{XE "Barasana"} dizem bem: os instrumentos secretos não são mais que
emblemas da virilidade, eles fabricam a virilidade, lhe dão as prerrogativas (se os ho-
mens não vão procurar as flautas nas água pela manhã, viram mulheres). Seja nas

97
SOPROS DA AMAZÔNIA

narrações, ou durante as danças circunstanciais (sem fim ritual explícito, o que é o


mais freqüente entre os wayãpi), ou ainda nos ritos de passagem, a música (esta opo-
sição simbólica) diz e rediz os gêneros, definindo de maneira conceitual esta distinção
de gênero e a modelando concretamente, a atualizando. Depois da flauta solo, en-
quanto portadora da passagem do celibato à paternidade entre os wayãpi, eis agora os
aerofones enquanto signo e fabricação da virilidade, da diferença sexual, da diferença
etária32.
Gourlay (1975) propõe, na Oceania, um estudo ricamente documentado sobre o pa-
pel dos instrumentos secretos nas relações entre homens e mulheres. Ele demonstra,
com muita sofisticação, que a ameaça de morte{XE "Morte, mortos"} conexa à vista
dos aerofones secretos (flautas e zunidores) não é posta em prática jamais, mas que
faz parte dum discurso, duma dramatização coletiva dos ritos de passagem nos quais
as mulheres, que conhecem a realidade dos instrumentos{XE "Instrumentos musicais
secretos" \r "Instrumentos"}, têm participação ativa. Outrossim, Menget (1984) subli-
nha que, no Alto Xingu{XE "Xingu"}, “a expressão musical do interdito é um verda-
deiro diálogo entre os sexos; o instrumento mais sacro dos homens faz eco (entre os
trumaí{XE "Trumaí"}) ao canto da festa das mulheres”. Para os wayãpi vimos que, nos
cantos, ao lado da distinção que os instrumentos operam, a união e a diferenciação
dos homens e das mulheres são simultâneas.
Em associação com uma complementaridade econômica explícita entre os homens e
as mulheres, tal interdito é, entre os wayãpi, efetivo porém leve: não comporta qual-
quer drama. Menget mostra também como, entre as diferentes etnias que constituem
o universo xinguano, esta definição dos gêneros assume formas mais ou menos dra-
máticas. Mas não se pode ocultar a violência à qual, duma ou doutra maneira, se cos-
tuma associar tal interdito. Uma violência inegável preside a definição original dos gê-
neros, e hoje subentende suas reais definições reiterativas. No pensamento amazôni-
co, essa violência é correlata à apresentação do caos enquanto realidade pretérita, en-
cenação presente e possibilidade futura; é assim, em todo caso, que se pode interpre-
tar as exceções a tal interdito.
Entre os wayãpi, antes de tudo, esta história da velha Sa’i Piye confirma este status
de exceção; numa narrativa de 1978, diz ela respeito a tulemiti{XE "Tulemiti (pequena
suíte)"} (“a pequena dança”):

12
Posso dizer a vocês que se conta que a velha Pase e as outras dançaram essa tule. Era
minha avó, vejam, que contava assim, minha finada avó: “tinha a velha Solo; tinha to-
das as velhas, que dançaram”, assim dizia minha avó. A velha Patu, a velha So’o...
quem mais, ainda? A avó de Yaki’i, como é que já se chamava? Velha So’o! “Todas, to-
das, todas elas dançaram essa tule. Era o que dizia minha finada avó.
Elas tinham então ido para a coivara, para uma seção de trabalho coletivo, dizia minha
avó, uma seção de trabalho coletivo de brocagem. “E quando elas voltaram, minhas
tias tinham cada qual uma clarineta tule debaixo do braço”, assim dizia minha avó. As-
sim que chegaram, as velhas quiseram dançar, e lá foram então os seus maridos, a vir
tomar seus braços. Lá faziam elas assim, aquelas velhas! “Elas conheciam as tule bem
mesmo, as tuas ancestrais!” Foi assim que minha avó me falou, há muito tempo. Hoje
não vemos mais as velhas a fazer assim; e faz muito tempo que assim se decidiu (F.
Grenand 1982).

Estas anciãs excepcionais bem existiram, e é possível datar tal extravagância (em
torno de 1885, segundo P. Grenand). Trata-se então dum fato histórico, mas que bem
parece ser uma espécie de inversão ritual33 de improviso, espontânea, e cuja narrativa

98
ATOS MUSICAIS

assume a forma de mito. O fim do século XIX foi um período de terrível enfraqueci-
mento demográfico, que criou um risco de desorganização social. Os wayãpi de hoje
não contam nem o mito de apropriação das flautas pelas mulheres, nem o das yamu-
rikumã; estariam esses mitos em vias do esquecimento, sendo necessário reconstitui-
los, colocá-los em cena, neste período de ameaças? Estas mulheres que sopravam as
tule, que queriam elas dizer a seus maridos e suas netas? Que motivação concreta lhes
levou a retornar das roças “cada qual com uma clarineta debaixo do braço”, e a in-
ventar esta miniatura cheia de humor, que reúne num só enunciado todas as lingua-
gens do complexo simbólico: música, proibição, rito e mito34?
Além desta pequena estória wayãpi, tomei conhecimento de cinco exceções a essa
proibição nas terras baixas: entre os botocudo{XE "Botocudo"} (Ihering 1911, citado
por Camêu 1977: 45), entre os shipaya{XE "Shipaya"} do Médio Xingu (Nimuendaju
1948), entre os rikbaktsa{XE "Rikbaktsa"} do Alto Juruena (Hahn, comunicação pes-
soal 1982), entre os arara{XE "Arara"} (Estival 1994: 351), e entre os aché{XE
"Aché"} do Paraguai, onde as mulheres tocam as flautas, salvo quando menstruam (P.
Clastres 1972: 187, 227); aí serão as velhas a tocar em seu lugar (P. Clastres, regis-
tros inéditos, musée de l´Homme BM 68.32)35. Por fim, nos Andes, entre os jalq’a e os
tarabuco{XE "Tarabuco"} da região de Sucre, as mulheres não tocam nenhuma flauta,
“do contrário seu leite secaria” (Martínez, comunicação pessoal 1993), mas as mulhe-
res jalq’a{XE "Jalq'a" \r "Jalqa"} tocam as clarinetas erqe, e tal apenas no período do
‘Carnaval’:

A música do Carnaval tem relação direta com Sajira, divindade que comporta valores
tais como a criatividade, a força genésica, o caos, pertencentes ao ‘mundo de baixo’, o
ukhu pacha... e, no momento culminante deste período ritual, tudo é posto em cena
para criar uma música da desordem... Assim, tal texto musical exprime uma das signi-
ficações principais da divindade Sajira, a relativa ao caos (Martínez 1992b: 6, 11–12).

Estas poucas referências permitem supor que as exceções à proibição do toque dos
aerofones para as mulheres devem ser bem numerosas, podendo tomar formas variá-
veis, mas a confirmar a polarização entre os aerofones e a parturição. Esta associação
entre mulher e aerofone{XE "Aerofone" \r "Aerofone3"} aparece como um dos princi-
pais significantes do caos{XE "Caos (mítico, ritual)" \r "Caos"}{XE "Caos (mítico, ritu-
al)"}, estabelecendo assim uma superposição entre ordem musical, ordem sexual e
ordem cósmica. A velha Sai’ Piye assim contava a origem da dança tãpẽtule{XE
"Tãp?tule (suíte do gavião-tesoura)"}, em 1978:

Mas tu sabes, dizem que são as mulheres que ensinam os homens a viver, e eu, da
minha parte, bem que o digo a ti. Vais ver como a dança do gavião-tesoura recebeu o
seu nome.
Contam que, numa aldeia temporariamente deserta, os rapinantes fizeram uma jovem
púbere dançar. A mãe dela e todos os demais haviam saído, deixando-a só. Eles não
estavam tão alto no céu, os gaviões. Pousaram na aldeia vazia, junto da menina, os
gaviões. Olha o que disseram.
“Queremos ensinar a ti direitinho como se dança”, disseram os rapinantes à menina.
Eles iam levá-la, quando a família dela chegou e os espantou para longe de si. Num
outro dia, a família tornou a partir. Os rapinantes desceram de novo. Dessa vez, fize-
ram a menina dançar mesmo. Os gaviões fizeram uma menininha púbere dançar na al-
deia deserta. É o que dizem. É por isso que nunca abandonamos as crianças, afinal...
as jovens púberes, todas, numa aldeia{XE "Aldeia" \r "Aldeia16"} deserta. Dizem que

99
SOPROS DA AMAZÔNIA

tudo que é tipo de animal virá fazer amor com elas. Eis aí o que disse a minha avó, e
agora conto de novo a ti.
Foi daquela vez que, como se diz... que os rapinantes disseram a essa menina, disse-
ram assim: “É assim que a dança termina; nós vamos te mostrar.”
E a menina repetia aos homens: “Assim se termina a dança a contento: eles me o
mostraram bem.”
É porque eles devem se dispersar antes do fim que a dança não é longa, meu filho. En-
fim, dizem que normalmente ela é longa.
Em seguida, os irmãos da menina mataram a todos; os fizeram calar; foi aí que eles se
separaram dela.
Depois disso ela se tornou a única a conhecer a dança deles. Não havia ninguém além
dela, e foi ela quem ensinou direitinho aos homens.
Eu me pergunto se o meu tio não a conhece; agora eu quero falar do meu tio Kolokolo.
Mas esse meu tio está sempre doente, ora!
Enfim, foi assim que, tempos atrás, nós pudemos dar um nome à dança do gavião-
tesoura. É isso o que posso dizer.
Existe outros animais que nos ensinaram as danças tule, uns após outros.
É isso que se conta e que eu, por minha vez, te contei (F. Grenand 1982).

Assim, na origem dos repertórios das tule dos wayãpi, encontramos meninas re-
centemente menstruadas, condição que, em toda a Amazônia, se considera perigosa
para a própria jovem púbere, mas também para toda a comunidade (cf. por exemplo
P. Clastres 1972: 176–187). Confirmando por inteiro a conexão aerofones / menstrua-
ção / caos, este mito nos traz um elemento suplementar: são repertórios que perten-
cem aos animais do rio36, que as mulheres wayãpi transmitiram aos homens. Este ar-
cabouço simbólico é fortemente marcado na Amazônia central, bem como no planalto
guianense: entre os asurini do Xingu, antigos vizinhos dos wayãpi, conforme se há de
lembrar, o mito conta que a serpente aquática{XE "Sucuri"} mostrou os turê aos hu-
manos, e depois levou as mulheres à água para fazer amor com elas. Hoje, os turê são
sempre “os instrumentos da Serpente, ao passo que o seu uso permanece a cargo dos
homens” (Müller 1990: 100–119)37; para os asurini{XE "Asurini" \r "Asurini"}, a pala-
vra turê também designa tanto as clarinetas, quanto um conjunto ritual que, “além de
atualizar o mito, define o contato dos humanos com os seres sobrenaturais” (ibid.). Por
fim, em diversos momentos do ritual, “os participantes da dança vão se banhar no rio,
levando as clarinetas, estas também mergulhadas na água” (ibid.). Por outro lado,
com temas semelhantes ao mito de origem das tule wayana{XE "Wayana"} (Coudreau
1893: 175) e a outros mitos guianeses (Lévi-Strauss 1967: 339), as estórias wayãpi
hão de haver uma conexão também com esse mundo das Guianas, onde, por oposição
ao inculto, a cultura provém, junto com as mulheres, da água terrestre (P. Rivière
1969: 263–265). “São as mulheres que ensinam os homens a viver”, mas o que a
formulação dos riscos{XE "Risco"} relativos à música também nos diz é que essa cul-
tura é reversível, não é um dado definitivo.
Aqui se trata bem de definir uma civilização, de nomear; a narradora o repete:
“como demos nós um nome à dança do gavião-tesoura”. Mas esta auto-definição se
constrói sobre uma diferenciação bem forte: o extermínio destes pássaros. Processo
identitário comparável aos dos wayãpi meridionais, tal como o descreve Gallois:

A eliminação dos inimigos vencidos na guerra{XE "Guerra"} acarreta a apropriação de


seus atributos identitários (cantos, objetos, motivos de pintura, etc.), o que significa
uma erradicação definitiva — eles devêm apãwer: “aqueles que foram nossos inimi-

100
ATOS MUSICAIS

gos”. A mesma coisa se produz com os animais sedutores, cuja descendência a princí-
pio doméstica será por fim projetada a uma posição de alteridade máxima. [...] Os ri-
tuais têm assim a função de manter à distância os espaços que se reserva aos mor-
tos{XE "Morte, mortos"}, inimigos e animais, ao mesmo tempo em que delimitam um
lugar para a humanidade (1988: 148, 163).

Não me parece haver a categoria ‘humano, humanidade’ entre os wayãpi, mas bem
que estes mitos e estas danças são atos de nominação, de nominação pela diferença.
Uma menina púbere{XE "Menstruação" \r "Menstruação2"} de há pouco é o que há
de mais bonito, o que há de maior valor numa aldeia. Isso representa um atrativo li-
teralmente irresistível para a sucuri{XE "Sucuri"}, os peixes, o gavião-tesoura. Estes
Outros não podem se furtar a vir, a querer tomar esta mulher nova por esposa. E em
troca, dão eles algo de equivalente: uma dança para conjunto de clarinetas. Mas é
uma aliança muito distante, onde a cada vez são os homens a tomar a iniciativa, e os
homens que cumprem o papel do malvado: eles repreendem a sua filha e perseguem
os Outros, recusam a aliança mas conservam a dádiva, a música. É uma forma de rou-
bo, e os animais do rio têm duas razões para ficar com raiva: a recusa da aliança e a
recompensa suspensa. Tocar as tule é também recordar estes mitos, é dizer de novo
assim: “Recusamos a aliança com estes seres aquáticos, os repelimos para longe, para
a esfera do demasiado distante”. E este é um tema recorrente nos cantos e nos mitos
wayãpi: são os homens que romperam com os animais. Hoje, os homens conhecem a
floresta, o rio e seus habitantes; eles caçam, pescam, chamam os animais, respondem
aos seus gritos, cantam e tocam o seu repertório, mas permanecem sozinhos. De novo
a saudade!

História e política

Assim, a música, sempre a propor uma definição de si e do outro, não facilita as


aproximações cosmológicas: ela mantém à distância, projeta na maior lonjura os
mortos{XE "Morte, mortos"} antigos e recentes, bem como as superpotências terres-
tres, ou ainda sublinha ela as rupturas pretéritas ou virtuais com os seres{XE "Ani-
mais" \r "Animais2"}{XE "Animais" \t "vide também caça"} prediletos do ambiente
natural38. Que dizer das relações exteriores mais tangíveis — contemporâneas ou his-
tóricas? Que faz a música no jogo político intra- ou inter-comunitário?

Trocas e representações históricas

Pode-se falar de fisionomia musical wayãpi? O conjunto das músicas wayãpi se


constitui duma imagem eqüipolente ao parentesco ou aos mitos, uma imagem que se
apresenta aos outros, uma identidade sonora inclusa num conjunto de relações entre
aldeias ou entre etnias? Ora, enquanto acredito ser a diplomacia uma dimensão fun-
damental do ato musical entre os wayãpi, o isolamento relativo das aldeias{XE "Al-
deia" \r "Aldeia17"} do Oiapoque não permite uma troca musical verdadeiramente
viva. Não se pode dizer, tal como no Xingu{XE "Xingu"}, ou talvez no Uaupés{XE
"Uaupés"}, que a música e o ritual são “línguas francas interétnicas” (Menezes Bastos
1978: 186). Ao leste das Guianas, a demografia indígena e as distâncias entre as co-
munidades não permitiram, desde o fim do século XIX até o fim dos anos 1980, que se
desenvolvesse uma arena para o intercâmbio musical. As festas de tule nas reservas

101
SOPROS DA AMAZÔNIA

do Uaçá (Estado do Amapá) são talvez um embrião atual de reencontros musicais in-
terétnicos no leste das Guianas (cf. Ricardo 1983). Esta descontinuidade consecutiva à
colonização foi primeiro geográfica, se tornando depois política e cultural, e freando a
comunicação musical direta. Se ainda nos falta uma análise precisa das táticas com-
pensatórias a estas rupturas, na maioria das vezes forçadas, na comunicação entre os
grupos, tendo eu a crer que houve muito poucas possibilidades de substituição; na
maioria dos casos, a ocupação ou as doenças coloniais acarretaram o isolamento (iso-
lamento talvez proposital — cf. P. Grenand 1982), uma disjunção física pura e simples.
Todavia, temos numerosos traços desse antigo intercâmbio musical. Os wayãpi di-
1 zem que a sua flauta transversa kulipawa vem dos wayana; quando tocam na flauta de
pã uma melodia que inclui um intervalo peculiar (de cerca de 250 cents), dizem que tal
melodia é wayana; uma de suas suítes para clarinetas se chama “as tule dos wayana”;
cantam eles com grande prazer, e risos{XE "Rir"} profusos, alguns verdadeiros ‘suces-
sos’ wayana: kanawa, maypuli...39; tulekalanã{XE "Tulekalanã (suíte kalanã)"} é uma
suíte que se diz proveniente dos kalanã{XE "Kalanã"} — etnia hoje extinta — e se a
6 conhece como pertencente ao repertório dos wayãpi do sul; a grande trompa
ama’ipoko se associa explicitamente às relações de amizade individual e formal{XE
7 "Amizade formal"} entre os homens wayãpi e os emerilhom; uma curiosa flauta
wayãpi com duas fendas (cf. FIGURA 17) recebe o nome de “flauta dos tiriyó (tiliyoye-
mi’a); a mesma palavra — waytakala — se a encontra entre os wayãpi, emerilhom,
wayana e tiriyó, se aplicando a diferentes elementos da música para clarinetas40.

FIGURA 17 A “flauta tiriyó” com duas fendas.

Assim, estes vestígios de intercâmbio delineiam, no século XIX, uma continuidade


geográfica correspondente à faixa das Altas Guianas: os wayãpi, a ocupar a extremi-
dade oriental dessa faixa, praticaram intercâmbios diversos com os aparaí{XE "Apa-
raí"}41, os emerilhom{XE "Emerilhom" \r "Emerilhom2"}, os wayana{XE "Wayana" \r
"Wayana3"}; estes últimos mantinham relações também com os tiriyó{XE "Tiriyó" \r
"Tiriyó"}, eles mesmos bem próximos dos wai-wai, etc.. O conjunto dos dados prove-
nientes dos comentários atuais dos músicos, dos relatos de viagem e da literatura et-
nográfica, sugere que a grande distinção entre música individual e coletiva, ou melhor,
a articulação entre organizações sócio-musicais binárias (individual / coletivo) e de
termos múltiplos (solos / tule / grandes cantos, entre os wayãpi) formou um sistema
de transformação regional que, naquelas etnias da Alta Guiana, incluía outrossim as
características da dança, o timbre, a maneira de beber{XE "Cauim, beber"}, a orna-
mentação corporal.
Por sua prática, sua terminologia e seu discurso, os músicos wayãpi designam ve-
tores de troca tão diferentes como instrumentos, características vocais, componentes
do repertório, um estilo vocal. Mas qual é a realidade dessas trocas? Retomemos o
exemplo da flauta tiriyó: não houve contato comprovado entre os tiriyó e os wayãpi42,

102
ATOS MUSICAIS

e os tiriyó de hoje parecem recusar a paternidade dessa flauta, a qual lhes atribui os
wayãpi43. Aliás, essa flauta se associa ao repertório que se toca solo, o que vale dizer
que seu empréstimo, sua circulação enquanto objeto, releva mais as relações individu-
ais que as trocas entre grupos; se não é inconcebível que homens tiriyó tenham viaja-
do isoladamente até a zona wayãpi, é mais verossímil que a transmissão se tenha rea-
lizado por intermédio dos mascates wayana{XE "Wayana"}, conforme o afirma P. Gre-
nand (1982: 199).
O que me parece mais importante é que o objeto tenha permanecido como ‘flauta
tiriyó{XE "Tiriyó" \r "Tiriyó2"}’, ou seja, que os wayãpi tenham a necessidade de en-
carar, de nomear, aqui através desta geografia musical, uma etnia com a qual jamais
tiverem contato. Está claro que eles valorizam a distância em suas relações individuais,
mas uma recordação dolorosa me sugere uma outra interpretação: em 1977, uma me-
nininha se afogou; enquanto procuravam seu corpo, o povo da aldeia atribuía o seu
desaparecimento a um rapto da sucuri{XE "Sucuri"}, que queria fazer dela sua espo-
sa; quando se reencontrou seu corpo, após a vazante, aqueles de sua aldeia que eram
meio xamãs acusaram os tiriyó de serem os responsáveis por esta morte{XE "Morte,
mortos"}. Para os wayãpi, os tiriyó{XE "Tiriyó" \r "Tiriyó3"} estão fora de sua percep-
ção física, concreta, mas existem: os wayãpi ouviram falar deles e podem situá-los ge-
ograficamente. No mapa da alteridade, ocupam eles o lugar dos inimigos, cuja distân-
cia não permite contatos, afora a via xamanística{XE "Xamã, xamanismo" \r "Xa-
mã6"}44. A flauta seria, então, um dos elementos que permitem reportar à sua reali-
dade.
Este conjunto de designações musicais, de referências — verbais, na sua maioria —
e esta prática musical aparecem então como testemunhos de antigos intercâmbios e,
sobretudo, como uma representação atual: uma interpretação da sua própria história,
bem como uma representação sonora da alteridade45. É impressionante então que es-
tes discursos coloquem em primeiro plano as relações entre os wayana, em detrimento
dos intercâmbios com os emerilhom{XE "Emerilhom"} (porquanto um pouco mais pró-
ximos geograficamente, e incomparavelmente mais próximos lingüisticamente), em
detrimento também das relações com os aparaí{XE "Aparaí"}, raramente nomeados,
malgrado o conhecimento de linhagens de verdadeira origem aparaí.
Numa de suas narrativas dos contatos com os wayana, à época em que morava no
rio Kouc, o cacique Pina diz que a dança tule que ele organizou fora oferecida aos
wayana em visita, ao mesmo título que as redes e os arcos em troca de tecidos, facas
e contas. Entretanto, esta forma de troca não nos pode enganar: não há especialização
real, não há profissionalismo na música; não se retribui aos músicos de forma alguma,
a não ser com algumas cabaças de cauim{XE "Cauim, beber"} a mais; o seu serviço
se inscreve no esquema amplo e variado de dádivas e contra-dádivas. Neste exemplo,
é a execução musical, a seção de tule em si mesma que é considerada como termo de
troca, mas é difícil saber de que maneira concreta os repertórios inteiros se deslocam
de um grupo a outro. Das doze suítes por clarinetas dos wayãpi do norte, quatro são
tidas como provenientes de etnias vizinhas; duas danças — tuleãkã{XE "Tuleãkã (dan-
ça da cabeça)"} e panalitule{XE "Panalitule (suíte dos wayana)"} — vêm dos waya-
na{XE "Wayana" \r "Wayana4"}, uma outra — yãwĩtule{XE "Yãwitule (suíte da tarta-
ruga)"} — vem dos piriu{XE "Piriu"}, etnia hoje desaparecida e, por fim, uma outra
teria sido ‘roubada’ dos kalanã, etnia igualmente extinta. Conta Yawalu, de Trois-
Sauts: “Uma noite, nossos antepassados entraram na aldeia dos kalanã{XE "Kalanã" \r
"Kalanã"} e dançaram com eles; como estes estavam bêbados, não viram nada. As-
sim, aprendemos a sua dança” (P. Grenand 1982). Os wayãpi parecem ter uma con-
cepção etnocêntrica e centrípeta dos repertórios musicais. Enquanto a música dos ou-

103

10
SOPROS DA AMAZÔNIA

tros é criticada a priori, as pessoas, os repertórios estrangeiros podem ser incorpora-


dos na produção musical local sob a condição de se adaptar, de se moldar. Conforme
vimos no capítulo II, esta transformação é acústica, em princípio e explicitamente, mas
é possível supor que ela diga respeito também a outros aspectos musicais. Nesta rela-
ção entre si mesmo e o outro, as tule estão, mais uma vez, numa posição intermediá-
ria: por exemplo, panalitule{XE "Panalitule (suíte dos wayana)"} (“a suíte dos waya-
na”) compreende cerca de quarenta peças distintas, cujos títulos às vezes estão em
língua wayãpi, às vezes em língua wayana{XE "Wayana" \r "Wayana5"}, ou ainda
misturam uma e outra língua.
Os estudos de etno-história{XE "História (das tule)" \r "História"} estão de acordo
quanto ao fato de que “o processo de fissão [das comunidades aldeãs] figura como a
dinâmica principal da evolução histórica wayãpi” (Gallois 1988: 28). Quais seriam os
repertórios? Em que se transformavam os repertórios, aquando das cisões? É lícito su-
por que cada unidade — cada suíte tule, por exemplo — permanecia ligada a um grupo
de parentesco; em todo caso, não há indícios de transformação discreta da música
(por blocos, por subtrações), mas temos numerosas provas de remodelação contínua
do repertório a partir da periferia da totalidade: a música solo.

Fazer música, fazer política

No campo da política observa-se, na principal aldeia do alto Oiapoque (a aldeia Zi-


dock), atitudes e modos de ação distintos nas duas grandes facções antagonistas; a
facção Y escolheu as representações musicais coletivas (suítes orquestrais, grandes
danças) como afirmação pública do seu dinamismo político e de suas opções de alian-
ça: claramente, ela costuma mais organizar tules e grandes danças, e integra aberta-
mente a façcão K, imigrante recente na comunidade. A facção A opta por uma atitude
reacionária, no senso próprio do termo: colocando-se em suas posições um tanto
aristocráticas, é raro que tome parte nos conjuntos de tule e nas cerimônias musicais,
as criticando a cada vez, ao invés, de maneira mais ou menos direta.

FIGURA 18 Esquema da disposição das facções na aldeia Zidock.

(T representa a facção central.)

Mas as mudanças na freqüência e intensidade da execução de certos repertórios,


conforme pude observar ao longo de quinze anos, e que em princípio interpretei como
fenômenos da moda, do deslocamento aleatório do interesse, se me afiguraram como
orientações políticas; não apenas como expressões de certas escolhas, mas como

104
ATOS MUSICAIS

componentes operantes duma ampla estratégia: por volta de 1980, as aldeias do Alto
Oiapoque realizaram duas vezes mais seções de tule que de grandes danças; por volta
de 1990, a proporção se invertera. É claro que o interesse que o etnomusicólogo ma-
nifesta pelos conjuntos de clarinetas pode, em parte, influenciar esta proporção, po-
rém, sobretudo, esta freqüência elevada de noitadas de tule correspondia a um nível
elevado de atividade interfaccional. Esse jogo de oposições internas na aldeia, que an-
tigamente provocava a sua ‘cissiparidade’, hoje se associa à política regional e nacional
(as eleições francesas), bem como às condições da sedentarização (escolas, dispensá-
rios, orçamentos comunitários, etc.). Estes diversos fatores políticos (grupos faccio-
nais, eleições, sedentarização) conduziram a uma forte crise política entre os wayãpi
do Oiapoque, crise que, após atingir o seu paroxismo, com as mortes sucessivas de
dois prefeitos wayãpi em Camopi em 1988 e 1992, se resolveu no Alto Oiapoque por
meio duma sobrevalorização da comunidade aldeã: em 1993, as oposições faccionais
haviam desaparecido do cenário político como que por mágica, os principais represen-
tantes desta facções agiam em conjunto para escolher o futuro cacique, no mais tran-
qüilo consenso, e confiavam naturalmente a esse futuro cacique a tarefa de liderar as
grandes danças. Esta designação dum futuro cacique é, sem dúvida, uma operação de
alto risco; luta na corda bamba, pois onde estará o prestígio do vencedor, cacique
duma aldeia vazia, com a partida do seu rival, da metade dos seus habitantes? Esse
risco de divisão hoje é contrabalançado pelos parâmetros da sedentarização (escola,
enfermaria), mas também por uma instância mais antiga: a do partido pelego, o parti-
do da chefia honorária, que se dispõe a si próprio a manter a unidade. Esquematica-
mente, há ali então duas facções, A e Y, que se opõem abertamente, e uma terceira,
T, central, e que mantém a unidade. O cacique atual e aquele que se espera vir suce-
dê-lo pertencem, todos os dois, a essa facção central46.
O herdeiro da chefia é o genro do atual cacique, mas bem maior conhecedor do
grande repertório dos ciclos cantados do que seus rivais eventuais, o que lhe dá uma
vantagem provavelmente decisiva. Porém, também aí, este mestre de dança joga com
muita sutileza: primeiro de tudo, ainda que ele já chegue a participar dum conjunto de
tule, jamais ele o conduzirá, pois tal contribuiria para o colocar como chefe de facção.
Mas sobretudo, tanto pelo seu estilo de cantar quanto nos seus comentários, ele sem-
pre diz: “Foi meu pai quem me ensinou”. Dizer assim seria afastar-se de seu avô ma-
terno, apesar deste ser um antigo cacique e grande músico, mas cuja referência o in-
cluiria em uma das facções. Invocar o seu pai com respeito a seu saber musical signifi-
ca, por um lado, fazer referência à transmissão idealmente patrilinear dos grandes
cantos e da chefia{XE "Política:cacique, chefia" \r "Cacique3"}, mas seria também se
colocar numa posição central, para além do jogo faccional.
Em outras palavras, as diferentes músicas wayãpi criam, uma mais a identidade
comunitária, outra o faccionalismo, a terceira a individuação; e isto em lugares e mo-
mentos distintos, de acordo com características formais distintas, de acordo com ações
performáticas distintas — distintas e distintivas.
Com respeito aos rituais wayana, que não constituiriam nada de global, P. Rivière
escreve: “Ainda que na Guiana os ritos de passagem possam, de uma sociedade a ou-
tra, serem elaborados em diversos graus, em parte alguma se os implica na reprodu-
ção das formações sociais” (1984: 96). Acredito, ao contrário, que nesta região, a
construção e a reprodução das relações sociais não se encontram unicamente nas es-
truturas sociais, mas também e justamente nas práticas musicais e rituais. Porém, se
trataria então da reprodução das próprias categorias, mais que dos conteúdos nomea-
dos das formações sociais: as diversas músicas wayãpi contribuem para a reprodução
das categorias ‘família nuclear’, ‘grupo de parentesco’, ‘comunidade aldeã’ etc., ao

105
SOPROS DA AMAZÔNIA

passo que seus verdadeiros conteúdos (tal família, tal aldeia) mudam sem parar, gra-
ças ao jogo musical, entre outras coisas. As aldeias, por exemplo, na realidade podem
se cindir, ou inchar, se deslocar ou se solidificar, mas a afirmação da fixidez das gran-
des danças, o seu aspecto arquetípico, corresponde e contribui para a idealização da
comunidade aldeã como conceito sociológico.
Importa aqui não haver uma imagem estrita, rígida, das relações entre repertórios,
características musicais e esferas sociais. Cada dança é particular; tanto quanto cada
suíte orquestral, é um texto se que pode dizer de diversas maneiras. O que é fixo num
grande canto são as letras e o tema{XE "Tema musical"} musical do canto, bem como
a sucessão de estrofes; o que é variável, são certos elementos da execução: quantida-
de de cauim{XE "Cauim, beber"}, intensidade da ornamentação{XE "Parafernália"},
ordem dos dançarinos na cadeia, entrada em cena, dinâmica{XE "Dinâmica musical"}
do conjunto, etc. Esta latitude no emprego dos diferentes signos da execução permite
determinar o peso cerimonial de cada grande dança, e de lhe atribuir assim uma signi-
ficação política precisa: avanço duma facção no cenário central, coesão aldeã, aliança
com uma aldeia{XE "Aldeia" \r "Aldeia18"} vizinha... Deste ponto-de-vista, a latitude
duma tule é a um tempo só diferente e maior que a duma grande dança. Conforme
vimos no capítulo III, as liberdades de execução musical das tule podem afetar, além
das condições de execução, o próprio texto musical (graus, estrutura, ordem das pe-
ças...). As tule apresentam um caráter cambiante, efêmero{XE "Efêmero"} mesmo, o
seu uso na cena pública é mais da ordem da tática faccional{XE "Política:facções" \r
"facções4"} que da estratégia comunitária.
Para retomar uma terminologia célebre, e sobre a qual se nos ofereceu refinamen-
tos recentes (Lévi-Strauss 1993), poder-se-ia falar em músicas frias e músicas quen-
tes; mais precisamente, no que se refere a representações históricas e políticas, have-
ria, entre um mesmo povo, um eixo a traspassar desde uma esfera sócio-musical fria
(aqui, os grandes cantos) até uma esfera sócio-musical quente (aqui, o solo).
Ainda que a pesquisa e a análise etnomusicológicas revelem a presença duma his-
tória do repertório das grandes danças (empréstimos, adaptações à migração...), mal-
grado também esta relativa flexibilidade na sua execução, essas danças são apresen-
tadas e pensadas pelos wayãpi como um conjunto imutável, como uma forma fixa. As
tule, em compensação, a despeito do jogo de alternância{XE "Alternância"} que define
o conjunto destas suítes, o conjunto do repertório tule, como uma forma autônoma, as
tule se revelam à escuta, no seu jogo reiterativo, como uma forma não fixa, uma for-
ma que é a expressão não duma condição, mas dum processo, d.um movimento sensí-
vel no nível da geração. Distinções sócio-musicais, graus de liberdade de execução e
manipulações políticas{XE "Política" \r "Política7"} mostram como o conjunto das mú-
sicas wayãpi formam também um jogo de temporalidades, onde os graus de fixidez e
transformabilidade exprimem e determinam os ciclos da vida e da história{XE "História
(das tule)"}.

Transformações contemporâneas

É necessário recordar aqui as quedas demográficas brutais que afetaram a popula-


ção wayãpi sucessivamente, no princípio do século XIX e no princípio do século XX. As
perdas de vidas humanas, a tristeza que invadia as aldeias e o luto que os vivos se
impunham silenciaram a música. Podemos imaginar que, à época em que os wayãpi
eram um povo forte, o luto cultural que se seguia à morte dum homem era mais curto,
ou obedecia a mecanismos rituais. Hoje, em se considerando o tamanho diminuto

106
ATOS MUSICAIS

desta sociedade, o destino duma dança se associa muito mais ao destino dos indivídu-
os, e o desaparecimento duma personalidade musical pode afetar tanto o próprio re-
pertório quanto a sua execução. Todavia, também aqui importa relativizar qualquer
noção de perda cultural. Consideremos as pessoas de antanho: nos anos sessenta, um
pouco antes da recuperação demográfica, dos cento e cinqüenta habitantes da única
aldeia Zidock, conseguimos contar ao menos cinco homens adultos que eram grandes
conhecedores das grandes danças, quer dizer, um homem a cada sete seria capaz de
assumir a responsabilidade de encenar uma cerimônia dançada. Em relação às catás-
trofes demográficas pretéritas, uma tal proporção é, em si mesma, um sinal da vitali-
dade deste povo. Por outro lado, em todas essas aldeias, reencontramos muito mais
pessoas que conhecem os repertórios que pessoas que de fato fazem música; é evi-
dente que há sempre mais competência que prática musical.
No repertório das tule, o enfraquecimento pretérito da sociedade se manifesta por
perdas aparentes — de doze suítes nomeadas, duas não se as tocou mais, após a
morte de seus responsáveis —, e sobretudo pelas simplificações: os instrumentos são
menos decorados, as dificuldades musicais de certas peças são obviadas — simplifica-
ção de contornos melódicos, abandono de fórmulas introdutórias. Essas transforma-
ções formais não devem ser interpretadas em termos evolutivos de regressão, por
exemplo, mas como escolhas adaptativas para a sobrevivência dum sistema musical
dentro de condições particularmente duras para a vida cultural. Em termo de estilo,
isto se traduz pela simplicidade e pelo vigor das interpretações. Esta robustez delibe-
rada me afigurou como uma característica estilística freqüente nas músicas amazôni-
cas atuais.
É certo que, no mundo sonoro dos wayãpi, as músicas estrangeiras são particular-
mente presentes: no Oiapoque, trata-se sobretudo de sucessos antilhanos que se di-
fundiram pela aldeia{XE "Aldeia"} através dos toca-discos dos anos setenta, e dos
toca-fitas, depois dos anos oitenta. Qual é o lugar destas canções crioulas na estrutura
sócio-musical que apresentamos?
Aquando da minha primeira estadia em 1977, anotava no meu caderno de campo
que os jovens pareciam “se drogar” (sic) com a música antilhana. De fato, os rapazes
e moças jovens assobiavam as canções da moda, alguns escutavam estes sucessos
nos seus toca-discos quando deitavam nas redes, outros, por fim, dançavam essas
músicas. O instrumento sonoro — aqui a eletrola, em senso geral — se chama ye-
mi’a{XE "Yemi’a (aerofone):(eletrola)"}{XE "Yemi’a (aerofone):(eletrola)" \t "vide
também aerofone"}, que é, em princípio, um termo genérico para os aerofones; ele
costuma durar alguns meses47 e tem um proprietário individual (excetuando-se um
aparelho de som que um candidato às eleições locais oferecera); é o único instrumento
que produz dinâmica{XE "Dinâmica musical"} (variações de intensidade), e possui o
nível sonoro global mais elevado; a música que produz se baseia num sistema escalar
definido, fixo e singular, bem como num gradiente de timbres{XE "Timbre"} mais
vasto. Uma pessoa sozinha pode fazê-lo tocar. Ele é concebido como um objeto es-
trangeiro, e seu fim maior é a reprodução de música estrangeira. O repertório particu-
lar que ele difunde (biguine, mazurca, cadence, zouk, reggae...) não é importante,
conquanto tenha a ver com o fenômeno da moda, que se renova depressa: em torno
de 1975, por exemplo, se escutava “Celimène”, de David Martial; em 1977, eram as
canções “Allez couyonn Papa, allez couyonn Maman”, dos Aiglons, e “Rosita”, dos
Grammacks; em 1982, Ophélia; em 1987, Expérience 7 e Zouck Machine; em 1993,
“Get Up, Stand Up”, de Peter Tosh48. Essa música de tipo regional (antilhana ou brasi-
leira) apresenta as vantagens de serem explicitamente alegres, de poder ser uma mú-
sica coletiva sem risco{XE "Risco"} sobrenatural e, enfim, de significar o sincretismo.

107
SOPROS DA AMAZÔNIA

São sobretudo os adolescentes — os homens solteiros jovens — que acionam os


aparelhos fonográficos, e o fazem em dois contextos: quando estão sozinhos nas suas
casas{XE "Casa"}, ou ao fim da reunião de bebedeira. No primeiro caso, estas músi-
cas claramente substituem os solos de flauta; com freqüência ouvi os rapazes coloca-
rem para tocar as suas vitrolas à noite, em alto volume, para se comunicar com as su-
as amantes, sobretudo se o acesso a ela é difícil (se ela já é casada, ou se o próprio
rapaz já é noivo e seus pais o fazem entender que ele deve abandonar a sua amante
para se dedicar à sua mulher). Trata-se, em todo caso, dum marcador daquela idade:
a partir dos vinte e cinco anos, os homens de desinteressam por essas músicas, mes-
mo se ainda as escutam, e mesmo se às vezes dançam ao seu ritmo. Por volta de
1981, com a aparição dos primeiros toca-fitas, os seus gostos se voltaram para as mú-
sicas wayana.
Durante as reuniões de bebedeira{XE "Cauim, beber" \r "Cauimbeber7"}, essas
músicas crioulas substituem parcialmente o repertório e a produção das tule. Em 1979,
numa reunião na aldeia Pina, situada a vinte minutos a montante da aldeia principal do
Alto Oiapoque, escutou-se primeiro uma hora de toca-discos, e depois quatro horas de
tule. Porém, neste contexto, os atores são diferentes (são mais jovens); nestes pe-
quenos bailes organizados espontaneamente pelos jovens, então, as práticas de sedu-
ção passam adiante da integração ao grupo e da afirmação política{XE "Política"}.
Esta nova prática musical tem por princípio característico ser totalmente distinta da
música wayãpi. Estes dois conjuntos musicais podem se realizar pelas mesmas pesso-
as e nos mesmos lugares, mas é raro que o sejam ao mesmo tempo, e não há mistura
musical: não se cria nenhuma música nova a partir das duas culturas. Se trata então
de uma estanquidade musical muito forte, a qual é sobremaneira difusa na Amazônia
(Beaudet 1982). É claro que essa estanquidade com respeito às músicas não ameríndi-
as49 pode se a explicar pela associação freqüente, na história da maior parte dos povos
amazônicos, entre sobrevivência física e relativo isolamento geográfico. Uma outra
causa, provavelmente mais importante, sustenta-se da diferença entre os sistemas
musicais ameríndios e europeus ou afro-americanos. Mas essas explicações mecani-
cistas não ocorrem ser suficientes. Com efeito, por um lado existe, nas terras baixas,
exceções a essa estanquidade generalizada: por exemplo, os cânticos dos sateré-
mawé{XE "Sateré-Mawé"} da Amazônia central, as diversas formas de violinos pre-
sentes em todo o contorno sul da bacia amazônica, dos guarani{XE "Guarani"} do Rio
de Janeiro até os shuar{XE "Shuar"} no Equador, os tambores caribe{XE "Caribe"} e
aruaque{XE "Aruaque"} das costas guianesas, ou ainda as músicas originais dos gua-
rani, dos moxeño{XE "Moxeño"} e dos chiquitano{XE "Chiquitano"}50. Por outro lado,
os Andes apresentam numerosas formas de verdadeiras sínteses musicais, e isto a
partir de sistemas musicais pré-colombianos e coloniais, estes formalmente bem dis-
tantes também51. É forçoso que consideremos essa estanquidade musical como uma
escolha. Infelizmente, é ainda muito cedo para se oferecer uma interpretação geral vá-
lida.
O sistema músico-social que descrevemos opera sobre uma ambigüidade que não
nos parece original na Amazônia: é, a um tempo só, um contínuo — de esferas de en-
dogamia, de integração e de distância sociais — e uma oposição binária abstrata —
endogamia / exogamia, nós / outros, individual / coletivo. Essa ambigüidade permite o
movimento duma pessoa ou dum grupo humano de uma categoria à outra, sobre o
contínuo ou através da oposição geral. E é esta possibilidade de reposicionamento que
permite e realiza em definitivo a integração social. A estanquidade das músicas não
ameríndias pode então ser compreendida como uma prova da necessidade dessa am-
bigüidade: a impossibilidade ou a recusa duma forma musical sincrética viria do fato

108
ATOS MUSICAIS

de crioulos, franceses, brasileiros — individualmente ou enquanto identidade global —,


estarem numa alteridade tal que não podem se mover sobre o eixo da continuidade,
que não podem passar a fronteira nós / outros.
Ocorre sempre que há no Alto Oiapoque, neste fim de século, duas práticas musi-
cais e coreográficas claramente distintas. Não há um processo de síntese musical in-
tercultural, para retomar os termos de Kartomi (1981). De modo mais global, não há
mais criação musical; vimos que esta estava, com efeito, sobretudo a cargo da música
individual. Ou a música individual é a primeira a sentir os efeitos das músicas de fora.
De maneira geral, pode-se dizer que, entre os wayãpi, os emerilhom{XE "Emeri-
lhom"}, os wayana{XE "Wayana"}, os galibi{XE "Galibi"} e os palikur{XE "Palikur"},
as músicas individuais tendem a desaparecer, o que não é o caso das músicas coleti-
vas, que são, elas mesmas, objeto dum investimento social e ritual.
Além destes componentes sociais, nota-se o que se poderia chamar duma ‘coloniza-
ção cognitiva’, operada por esta música regional, com seu ritmo em compasso estrito e
sua ‘harmonia ocidental’. Os adolescentes wayãpi de hoje têm dificuldade em assimilar
certos grandes cantos que requerem um ajuste sutil entre letra e tema{XE "Tema mu-
sical"} rítmico-melódico. Jacky, um dos maiores músicos atuais no Oiapoque, observa
com tristeza: “Eles não conseguem cantar bem a dança dos grandes peixes; mas co-
nhecem as canções crioulas.” É certo que trata-se duma faixa etária que, a cada gera-
ção, tem mais vontade de não se isolar, e reagir a uma imagem do índio emplumado,
objeto de curiosidade52.
Assim, estes gêneros crioulos continuam a ser, já depois de vinte anos, uma música
dos jovens. O que vale dizer que, a cada geração, cada leva de rapazes (as moças
cumprem um papel menos ativo, menos visível, frente a este fenômeno) que chega à
adolescência procura, por um instante, se apropriar destas linguagens estrangeiras,
procura territorializá-las. Por alguns anos esses rapazes tentam dar, uns após os ou-
tros, uma significação pessoal e local a um corte de cabelo, um sucesso de música
zouk ou uma roupa inspirada no espírito pós-reggae, por exemplo.

109
FOTO{TC "Aldeia Zidock, 1977 (J.-M. B.)." \f f}
CONCLUSÃO — Yapolayta kõ’ẽ (“Dançaremos até o amanhecer”)

A NOITE está bem escura agora, e isto configura um bom momento para os músicos,
sentados nos seus bancos, tocarem a tule da sucuri. A festa aconteceu por todo o dia:
Jacky dançou; ele conduziu yawalunã{XE "Yawalunã (dança da jaguatirica e da mar-
ta)"}, “a dança da jaguatirica e da marta”. “Quero que meu filho veja essa dança”,
dissera ele, e todo mundo estava muito interessado, pois não se a realizava no Oiapo-
que há pelo menos vinte anos. Ao fim da tarde, no meio da sétima ou oitava estrofe,
começou a chover. Forte. E a chuva não parava mais. O que fazer? Não se pode deixar
a dança tal como está, inacabada, e é preciso cantá-la até o fim, antes que a noite
chegue! Então os dançarinos se reposicionaram nos seus lugares e, atrás de Jacky,
dançaram as últimas estrofes inteiras sob a chuva fria, torrencial. Uma demonstração
imprevista de virilidade. Os gritos que pontuavam as estrofes eram mais potentes que
o normal. Depois, todos foram tomar banho no rio, juntos na água, rindo de excitação
na ventania. Por fim, Kawataka distribuiu panos bem vermelhos a cada um dos dança-
rinos, para que eles pudessem trocar de roupa. À noite, a chuva parou. “A yawalunã é
uma bela dança, mas é um pouco curta”; então, sem demora, Yemiwa, Mopea, Way,
começaram a fabricar clarinetas para que a festa não se terminasse: ainda há muito
kasili para beber! Agora, então, há bem uma dúzia soprando as tule: Wilapile, Yemiwa,
Ilipe, Gaëtan, Salala, Yawalu... Talvez seja a quinta ou a sexta peça que eles ensaiam
e se levantam para dançar. Há muitos jovens nessa orquestra, eles não conhecem
muito bem o repertório, se apertando um pouco porque as meninas vêm se esgueirar
pelos seus braços. Explodem então grandes exclamações: Yapolayta kõ’ẽ! “Vamos
dançar até de manhã”! Excitação, desafio o qual ninguém leva a sério, emoção que
transborda, triunfo da festa: é a dança que trará a aurora1.
Para os wayãpi, a música, qualquer que seja ela, é natural. Ela não é feita, é pensa-
da como preexistente. São os textos estrangeiros que a colocam em cena. Dançar
wayãpi é dançar no lugar dos peixes, no lugar dos pássaros, no lugar da palmeira Eu-
terpe, no lugar da sucuri, no lugar dos wayana... e hoje, também no lugar dos guiane-
ses. Porém, lembremo-nos que se trata, segundo a fórmula de Viveiros de Castro,
duma concepção sociomórfica do cosmos (cf. capítulo IV) ou, para retomar as palavras
de Roland Barthes (1954), este pensamento não naturaliza a moral, ele moraliza a
natureza. Tal é particularmente sensível nos grandes cantos, os quais constituem o re-
pertório mais importante, e que são a um só tempo uma descrição objetiva da nature-
za e um discurso moral.
A música solo é da novidade, do cotidiano, da individualidade, da relação entre dois
indivíduos, da sedução e dos sentimentos pessoais (luto, por exemplo), é do movi-
mento, enfim: a labilidade dos repertórios é conexa às viagens dos homens jovens2.
Ao invés, um grande canto é um ato de estratégia política, um considerável dispên-
dio de energia (se dança ao longo de seis a oito horas de suíte, com interrupções bem
curtas e uma intensidade coreográfica crescente); é uma troca de bebida e música en-
tre as mulheres e os homens, troca que empresta a sua forma à uma grande embria-
guez; é também uma moral, e a exposição duma ciência natural. Porém, sobretudo,
um grande canto é tudo isto ao mesmo tempo, ou seja, é um ato religioso, um conhe-
cimento sensível do mundo em associação com uma reprodução de valores. Toma-se

111
SOPROS DA AMAZÔNIA

então esta religião, se a forma concretamente pela embriaguez, embriaguez a que, por
sua vez, a macro-estrutura da dança dá forma.
Nos cantos de guerra, os valores são hoje fixos e sem campo de aplicação: é pura
nostalgia.
A tule pertence à tática política, é a apreciação e integração sociais, é escutar a so-
ciedade a se movimentar e fazê-la mudar. É também, através das conotações xama-
nísticas, uma referência ao topos da instabilidade e contradição dentro da visão do
homem e do universo. Tocar as tule é, enfim, se dar prazer, graças à música, graças a
uma embriaguez que, à diferença da dos grandes cantos, é pouca perto do volume de
bebida, e pouco sob o controle da etiqueta, graças também às seduções públicas que
se aceita nesta circunstância.
Uma tule se organiza musicalmente em torno duma parte orquestral preponderante
dentro do tema, a qual se dá o nome de mite (“o meio”). Esta parte central, à qual as
demais partes se agregam aquando dos tutti, bem como a alternância entre solos e
tutti, fazem desta forma musical uma expressão sensível do intermediário, da contra-
dição, da mistura e da passagem. Aqueles que começam a tocar a tule se integram à
parte central, e a primeira coisa a se aprender é a estar bem junto. Essa parte central
figura como uma metonímia do tutti, da totalidade: no centro, tudo se dá. Esse tudo é
acusticamente heterogêneo porém sincrônico, é uma miniatura de panfonia, “que se
assemelha a todos os sons”3.
Para ser completa, a descrição da música wayãpi enquanto sistema sociocultural
deveria levar em conta outras linguagens sensíveis, em particular as diversas formas
de expressão vocal e as ornamentações corporais. Mas estas determinações entre con-
figurações musicais e configurações sociais apresentam aqui uma redundância acentu-
ada; essa redundância não é nem um dado universal, nem um encadeamento mecâni-
co causal, mas sim uma forma, entre outras, de afirmação de identidade. Essa redun-
dância nos permite, em todo caso, apreender mais facilmente os valores mais perenes
que a música coloca em jogo: reafirmação de categorias sociais, prestígio político, de-
finição das relações entre homens e mulheres, definição das relações cosmogônicas. A
esses valores subjaz uma estrutura semântica que se agencia segundo duas forças, as
quais se poderia chamar de cooperação e competição, para retomar os termos de Flo-
restan Fernandes (1989: 297–299). Este autor conclui, com efeito, o seu célebre estu-
do da organização social dos tupinambá{XE "Tupinambá"} a sublinhar a “natureza
competitiva-cooperativa” desta sociedade. Ele opõe o caráter competitivo das esferas
religiosas ao caráter cooperativo de outros setores, em particular o das atividades eco-
nômicas. Na música wayãpi, e nas tule em particular, essas duas forças estão, ao con-
trário, simultaneamente presentes, sendo necessárias à própria atividade musical, e
toda atividade musical significa a sua conjunção, redizendo, confirmando a natureza
competitiva-cooperativa desta sociedade tupi{XE "Tupi"}.
Uma noitada de tule é também um movimento de prazer. Vimos que em toda a mú-
sica wayãpi, tal como na bebida, como num colar de contas, o prazer está na quanti-
dade. E no mundo guianês-amazônico, a repetição, que fundamenta a maioria das lin-
guagens sensíveis, lhe dá forma e erotismo. O tema musical duma peça de tule se re-
pete ad libitum, ou seja, até a sensação de saciedade sonora: é um conjunto transbor-
dante de si mesmo que cessa de soprar, e se aclama com um grande grito, saudando
assim esta expressão culminante, saborosa, duma superabundância.
Depois de Clastres e Sahlins, estudos precisos de economia demonstraram a im-
portância das atividades que não de subsistência. A música, a ornamentação corporal,
a dança fazem parte dessas atividades que não são indispensáveis à sobrevivência, e
para as quais, além disso, dispomos sobretudo de expressões negativas: “não subsis-

112
CONCLUSÃO

tência”, por exemplo. É claro que elas se integram na organização e nas representa-
ções da pessoa e da sociedade, e elas participam de sua definição e sua reprodução,
mas não condicionam elas a sobrevivência física, à qual podem ser sacrificadas, como
durante a queda demográfica dos wayãpi no século XIX. A abundância que a quantida-
de e a repetição conotam exprime diretamente o que não é útil. Através da cadeia de
conotações (repetição – quantidade – abundância – supérfluo), as ornamentações cor-
porais, a música, a dança, o cauim, são a expressão e a experiência do conceito de
bem-estar. Supérfluos necessários, aduções ontológicas, são os ornamentos, a de-
monstração duma vida ornamentada.
É certo que esta relação entre útil e supérfluo é em tudo e sempre variável, e para
os wayãpi, tal como para todos os povos ameríndios, a colonização européia a trans-
formou num abismo de mortos. É certo que as expressões musicais guardam numero-
sas correspondências e significações sociais, políticas, históricas, religiosas... e essas
correspondências e significações variam dum grupo regional ao outro. Mas os wayãpi
do Oiapoque, neste fim do século XX, nesta época de resgate cuja princípio podemos
datar, paradoxalmente, da morte dos grandíssimos músicos Yakanali e Pawe, em torno
de 1970, os wayãpi exprimem, em seus atos musicais, este prazer e esta razão de vi-
ver reencontradas.
Um cipó bem comum nas margens dos rios, por causa da forma e da cor de suas
flores, se chama moyuakãta (“a coroa de plumas da sucuri”), ao passo que um inseto
se chama moyuyemi’a (“a flauta da sucuri”). No pensamento wayãpi, humanos e ani-
mais têm em comum este gosto pelo ornamento, pela pintura dos corpos ou pelos
adereços musicais — e talvez seja esta necessidade de consonância, esta precisão de
se embelezar, de se realçar, que dá coesão ao mundo onde se imergem os wayãpi.

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VILLAS BOAS, Orlando & Claudio VILLAS BOAS
1974 Xingu: os Índios, seus Mitos (Rio de Janeiro, Zahar Editores).
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo
1986 Araweté: os Deuses Canibais (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor).
1992 Sociedades Indígenas e Natureza na Amazônia, Tempo e Presença, 261, 25–
26.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo & Carlos Fausto
1993 La puissance et l’acte: la parenté dans les basses terres d’Amérique du Sud,
L’Homme, 126–128, 141–170.
WAGLEY, Charles
1977 Welcome of Tears: the Tapirapé Indians of Central Brazil (New York, Oxford
University Press).
ZEMP, Hugo
1971 Musique dan (Paris, Mouton).

121
ÍNDICE

Chumpina, 36
A Clãs, 89–90
Composição musical, 9, 11, 27, 83, 87, 89,
Aché, 104 94
Achuar, 78
Aerofone, 23, 26–28, 36, 38, 63, 100–104 D
Alalawayu (nome de uma suíte tule), 64, 69
Aldeia, 9, 11–13, 16, 19–20, 22–23, 24, 28, Dinâmica musical, 29–30, 59–60, 81–82,
33, 39, 56, 85, 86, 88, 89, 91, 94, 97–98, 94, 111, 112
99, 101, 104, 106, 109–11, 112
Alternância, 36, 38, 54–55, 60, 61, 62, 66, E
67, 68, 71, 76, 79, 80, 82–84, 86, 93,
111 Efêmero, 10, 36, 41, 111
Amizade formal, 88, 107 Elewu (“suíte para flautas de pã”), 22
Andamento, 58, 79, 82, 83 Emerilhom, 17, 31, 35, 81, 88, 107, 108,
Animais, 58, 90, 94–97, 100, 104–6. vide 114
também caça Enẽtule (“suíte do besouro”), 9, 10–11, 37,
Aparaí, 35–36, 39, 41, 107, 108 39, 68. vide também tuleko
Arara, 37, 63, 104 Espessura acústica, 29–30, 45, 65, 68, 75,
Araweté, 24, 25, 56, 102 84, 85
Aruã, 35
Aruaque, 27, 113
F
Assinatura temática. vide tema musical
Asurini, 24, 31, 37, 41, 63, 78, 105
Auwẽ-xavante, 25 Facções. vide política
Ayã (“espíritos”). vide xamã, xamanismo
G
B
Galibi, 43, 81, 90, 114
Barasana, 101–2 Guarani, 113
Bororo, 27 Guerra, 9, 12, 15, 23–24, 28, 30, 81, 86–
Botocudo, 104 87, 89, 93, 100, 105

C H

Caça, 19, 20, 55, 95, 96 Heterofonia, 29, 36, 77, 90


Cacique, chefia. vide política História (das tule), 38, 71, 81, 106–9, 111
Caos (mítico, ritual), 103–4 Homofonia, 36, 88
Caribe, 27, 87, 96, 113
Casa, 12, 20, 22, 94, 101, 113 I
(-l-)ena, 20, 24, 31
Cauim, beber, 7, 9–11, 12, 19–21, 23, 42– Instrumentos musicais secretos, 27, 41, 43,
43, 57, 79, 91–92, 95, 97, 100, 107, 108, 63, 101–3
111, 113, 147
kasili, 10, 20–21 J
Cestaria, 19, 43, 79–80
Chacobo, 96 Jalq'a, 25, 36, 104
Chiquitano, 113

122
EXCERTOS MUSICAIS

Jê, 27 facções, 11, 20, 22–23, 25, 85, 88, 91,


Jívaro, 27, 90 92, 93, 98, 99, 109–11

K R

Kaikusiana, 40 Repetição, 54, 58–59, 65–67, 71, 79–82,


Kalanã, 37, 40, 107, 108 84, 85, 96
Kamalakutule (“suíte dos wayãpi do sul”), Residência, 20, 90
40. vide também tulekalanã Rikbaktsa, 104
Kamayurá, 25, 26, 63, 84, 101, 147 Rir, 10, 19, 31, 58, 86, 107
Kasili (cauim). vide cauim, beber Risco, 97–100, 105, 112
Kayapó, 88 Ritmo, 26, 54, 55, 58, 60, 78–79

L S

-lena (-l-ena, casa). vide casa Salish, 100


Llamero, 36 Sateré-Mawé, 113
Shipaya, 104
M Shuar, 113
Silêncio, 55, 78, 90–91, 100
Maia, 27 Sopro, 7, 24, 26–27, 44, 54, 80, 86, 92,
Malaka (“chocalho”). vide xamã, xamanismo 101
Mapuche, 100 Sucuri, 93, 97–98, 99–100, 105, 106, 108
Maracá. vide xamã, xamanismo Suyá, 25, 30
Menstruação, 101–2, 104–6
Modelo musical, 71–72 T
Molay (“dançar”). vide polay
Morte, mortos, 23, 24, 39, 100, 103, 106, Tãpẽtule (“suíte do gavião-tesoura”), 40,
108 104. vide também tulepuku
Moxeño, 113 Tapirapé, 20
Moyutule (“suíte da sucuri”), 37, 38, 39, 41, Tarabuco, 36, 104
45, 49, 51, 55, 57, 58, 60, 64, 66, 67, Tema musical, 29, 59, 58–59, 60, 61–69,
68, 71, 72–74, 78, 83, 94–95, 97, 100 77–78, 79–82, 83, 84, 86, 93, 111, 114
assinatura temática (definição), 68
P Ten (onomatopéia das partes graves das
tule), 71
Pailãtule (“suíte do periquito pailã”), 40 Timbre, 10, 29, 33, 41, 45–54, 59–60, 62,
Palheta, 34, 35–36, 40, 43–45, 54 71, 75–76, 77, 81, 93, 94, 112
Palikur, 35, 37, 56, 63, 81, 84, 101, 114 Tiriyó, 107–8
Panalitule (“suíte dos wayana”), 39, 64, 73, Trumaí, 103
100, 108, 109 Tucano, 57, 94, 95, 96
Panare, 63 Tukano, 27
Pano, 96 Tuleãkã (“dança da cabeça”), 38, 39, 44,
Parafernália, 91, 92, 111 60, 64, 70–71, 81, 83, 108
Parakanã, 37 Tulekalanã (“suíte kalanã”), 40, 62, 64, 73,
Pilatule (“suíte dos peixes”), 39, 62, 64, 69– 107
70, 83 Tuleko (“suíte do besouro”), 39, 64, 68–69.
Pilau (“dança dos grandes peixes”), 9, 31, vide também enẽtule
58 Tulemiti (“pequena suíte”), 40, 64, 103
Piriu, 97, 108 Tulepuku (“grande suíte”), 38, 40. vide
Polay (“dançar”), 55, 97 também tãpẽtule
Política, 7, 12, 13, 20, 22–23, 86, 88, 90, Tupi, 16–17, 20, 24, 26, 27, 36, 37, 55, 63,
92, 98–99, 102, 109–11, 113 118
cacique, chefia, 11, 12, 20, 23, 39, 59, Tupi-Guarani, 24, 100
86, 110, 147 Tupinambá, 37, 118

123
SOPROS DA AMAZÔNIA

Txicão, 96

Uaupés, 101, 106


Uníssono, 24, 54, 55, 86, 87, 89

Variação, 29, 59–60, 66–67, 72, 81–82


Ver, 43, 44–45, 59, 101

Wakuénai, 25
Warao, 35
Wasewa (nome duma suíte tule), 40
Wayana, 35, 37, 39, 54, 56, 81, 105, 107,
108, 109, 114
Wayana-aparaí, 90

Xamã, xamanismo, 11, 24, 27, 43, 59, 93,


94–95, 108
ayã, 24, 27, 59, 101
malaka, 24, 31
maracá, 24, 26–27, 43, 59
Xavante. vide Auwẽ-xavante
Xingu, 15, 35, 37, 38, 56, 101, 103, 106

Yagua, 25, 96
Yanomami, 27, 147
Yaoke (“dança das lamentações”), 31, 95
Yawalunã (“dança da jaguatirica e da
marta”), 117
Yãwĩtule (“suíte da tartaruga”), 40, 97, 108
Ye’kuana, 56
Yemi’a (aerofone), 26
(eletrola), 112. vide também aerofone
Yenga (“cantar”), 97

124
EXCERTOS MUSICAIS

Os sete primeiros excertos têm o fim de ilustrar o tópico das relações entre música e
natureza. Toma-se o tucano, pássaro comum em todas as florestas amazônicas, como
modelo para composições que se baseiam em diferentes formas musicais. Enquanto é
clara a semelhança entre as peças que aqui se apresenta e o canto do pássaro, importa
não esquecer que o tema destas música pode, igualmente, levar em conta o seu com-
portamento (curva do vôo, saltitar, estalar do bico, inclinação da cabeça...). É costume
se aprisionar o tucano; ainda que ele chegue a morder com seu bico, é apreciado, nas
aldeias da Amazônia, por seu caráter alegre e prazenteiro.

Faixas
1 Tukã, “o tucano”. 2’50.
Periferia da aldeia Zidock, setembro de 1977.
Solo da flauta transversa nasal kulipawa, na interpretação de Miso.

2 Canto do pássaro na floresta. 1’38.


Na grande floresta primária, às margens do rio Sinnamary, por volta das 10 horas da
manhã, abril de 1978.
O conjunto sonoro é calmo: poucos insetos e relativamente poucas espécies distintas
de pássaros. O tucano começa a cantar 38 segundos após o princípio desta faixa.
Antes de tudo, ouve-se numerosas vezes diversos pássaros paipayo (Lipaugus voci-
ferans). Com efeito, o canto enérgico deste pequeno cotingídeo cinzento é onipre-
sente nas florestas amazônicas, das quais poderia ser ele um dos emblemas. A dis-
persão desses pássaros na floresta cria um relevo, uma perspectiva sonora.

3 Chamado. 0’25.
Jacky Pawe imita (wa’ã) o canto do pássaro tucano, tal como o faria na floresta, para
tentar impedir que ele fuja.

4 Peça tukã, da suíte moyutule (fragmento). 1’15.


À noite, aldeia Zidock, abril de 1979.
Músicos: Wilapile (dois ta’i), Tatu (yakãngapiya), Kwataka, Jacky, Anuya, Kanavi
(mite) e Mopea (mãmã).

5 Peça tukã, da suíte moyutule (versão cantada). 0’50.


Aldeia Zidock, maio de 1978.
Mopea e Wilapile interpretam o duplo cantado desta peça, aqui no contexto dum re-
gistro etnográfico.

6 Tukã, “o tucano”. 1’08.


Aldeia Zidock, março de 1979.
Solo de flauta com fenda tiliyoyemi’a, na interpretação de Moype.

7 Tukã, “o tucano” (fragmento). 2’47.


Aldeia Zidock, março de 1979.
Solo de flauta com fenda tiliyoyemi’a, na interpretação de Kuyuli.

125
SOPROS DA AMAZÔNIA

8 Peça anilayu, da suíte enẽtule. (versão cantada). 0’40.


É Jacky Pawe quem apresenta aqui o duplo cantado desta peça. O título, cuja tradu-
ção é incerta — “morcego gigante (?)” —, parece remeter ao mito dos ogros que
roubavam as crianças para comê-las.

9 Peça anilayu, da suíte enẽtule. 2’58.


À noite, aldeia Zidock, abril de 1977.
Como se pode ouvir, este final de bebedeira é bem animado. O cauim, o prepararam
e serviram Akusiway, Teai e Naway. Os intérpretes desta peça são Wilapile, Yawalu,
Ilipe, Moype e Kãkãytõlĩ.

10 Peça palulu, da suíte panalitule (versão cantada). 0’59.


À noite, aldeia Zidock, abril de 1977.
Aquando da mesma noitada que a da música precedente; tarde, após a sessão de
tule, quando a embriaguez de alguns já era evidente, Jacky, Yawalu e Ilipe cantaram
diversas peças para se divertir. Palulu é um termo wayana que significa “suco de ba-
nana”.

11 Peça palulu, da suíte panalitule. 4’34.


À noite, aldeia Zidock, julho de 1981.
A versão instrumental desta peça foi executada numa atmosfera bem diferente: tra-
tava-se, mais uma vez, dum final de reunião de bebedeira, mas desta feita bem cal-
ma: quase todo mundo fora se deitar, cai um pouco de chuva. Nesta peça, as partes
musicais parecem se fundir umas nas outras com precaução. Músicos: Mopea (mã-
mã), Tatu, Yemiwa, Miso, Kwanu (mite) e Jacky (yakãngapiya); é Wilapile quem,
mais uma vez, conduz o conjunto a tocar a parte ta’i.

12 História da “pequena tule”. 1’24.


Aldeia Zidock, abril de 1978.
Sa’i Piye conta a seu filho a história de suas ‘avós’ que, excepcionalmente, tocaram
essa “pequena tule” (tulemiti) no século passado (cf. tradução deste excerto no ca-
pítulo IV, p. 1). Esta gravação se realizou no contexto pouco animado dum registro
etnográfico.

13 Peça pailaiwite da suíte tulemiti (fragmento). 1’33.


Crepúsculo, aldeia Zidock, abril de 1979.
O título desta peça significa “âmago de muirapinima”. A tradução literal seria: “ár-
vore [Brosimum guianense] morta, cujo âmago fica duro” (cf. F. Grenand 1989).
Esta gravação se realizou durante uma reunião de bebedeira, na qual Tutuwe e De-
de, as respectivas filha e mulher do cacique Antoine Tamali, prepararam o cauim. Si-
siwa, Yapalaka e Pilolo, os músicos que conduzem esta interpretação, são da aldeia
Roger, que se situa mais a montante do Oiapoque; os demais músicos são da aldeia
Zidock e pertencem a diversos grupos de parentesco: trata-se de Moype, Kanavi,
Kwataka, Miso, Amamã, Suwi, Anuya e Nami. Percebe-se aqui a tendência da parte
central de simplificar o tema e impor um estilo ‘robusto’. No plano de fundo sonoro, a
ambiência típica dum kasili, feito de intercâmbios múltiplos donde emergem as vozes
dos jovens; há também os risos de Kanavi e de Nami, que encerram essa peça.

14 Canto das carpas walaku (fragmento). 2’08.


Aldeia Zidock, maio de 1977.
Miso é o líder dos dançarinos. Canta ele aqui a quarta estrofe:
Oyeloikepo, oike walakuse.
“Elas entram, elas entram, [debaixo da casa do cauim], as carpas.”
Os dançarinos-cantores estão imóveis aqui, a segurar as cabaças de caium que as
mulheres enchem. Ainda que se trate duma ‘grande dança’, aqui o coro canta em
baixo volume.

126
EXCERTOS MUSICAIS

15 Dança walaku, seqüência instrumental. 2’18.


O dançarino da frente toca a clarinete kõõkõõ, de diversas palhetas; ao soprar uma
simples tercina de colcheias, dá ele o sinal do grito / pontuação enfática para os de-
mais músicos, que tocam as flautas com conduto de ar. Ouve-se bem a presença, ao
fim da fila, de meninotes a rir e dançar.

16 Wila, “o canto dos pássaros”. 2’18.


Aldeia Pina, maio de 1977.
Moma’e poko ko wila omopũ iwa?
Tawatomiti yĩ ko wila omopũ iwa.
“Que é então que faz os pássaros fugirem?
É o pequeno rapinante que faz os pássaros fugirem.”
Trata-se duma performance sem dança. Nesta estrofe, Maipuli, mais sua mãe Kaya,
conduzem o pessoal da aldeia Pina. Em respeito à anciã, os homens coordenam suas
vozes com a dela; todo mundo canta, então, em relativa homofonia.

17 Três diálogos assobiados. 1’13.


Manhã, periferia da aldeia Zidock, agosto de 1977.
Os wayãpi fazem uso bem freqüente de conversas e chamados assobiados; é possí-
vel ouvi-los em circunstâncias e lugares diversos, tanto à noite quanto de dia, na al-
deia bem como na floresta ou no rio. Pode-se considerar como exemplar a gravação
na faixa 8, como pano de fundo na ambiência da reunião de bebedeira. Nesta grava-
ção aqui, Alasuka e Napi’ã propõem uma demonstração, fazendo seguir, ao diálogo
assobiado, a sua tradução em wayãpi. Esta última não é passível de superposição
exata ao assobio, sobretudo por vir ela entrecortada de fórmulas assertivas (“...eu te
disse”). Aqui, dou apenas a transcrição e a tradução das partes assobiadas.

1. A.: Tãmũ Kala! — Tãmũ Kala! [apelido de Napi’ã]


N.: Õ. — Sim.
A.: Ele’otaponũ? — Vais?
N.: Õ’õ, ya’e yawi! — Sim, vamos nós, então!
A.: Õ. — Sim.
N.: Ya’e! Ya’etuwe yaata! — Vamos! Vamos embora.

2. A.: Awiyepa ipo? — Será que terminaste?


N.: Õ’õ. — Sim, sim!
A.: Õ. — É.
N.: Ya’etuwe! Ya’etuwe! — Vamos! Vamos!
A.: Õ. — É.
N.: Ya’e! Ya’e! — Vamos! Vamos!
A.: Õ. — É.

127
SOPROS DA AMAZÔNIA

3. A.: Tãmũ Kala! — Tãmũ Kala!


N.: Õ. — Sim.
A.: Eyo la’i! Eyo la’i! — Venha cá um instante! [Venha, te peço!]
N.: Õ. — Sim.
A.: Eyo palakasi tele’u! — Venha beber cauim!
N.: Õ. — Sim.
A.: Elenu? — Compreendes?
N.: Õ. — Sim.
A.: Eyo la’i to! — Venha então, por favor!
N.: Õ. — Sim.

18 Yelusi, “a juriti”. 2’46.


Manhã, periferia da aldeia Zidock, abril de 1997.
Solo de flauta com fendas yemi’akwamã, na interpretação de Jacky Pawe. Ao fim da
peça, se distingue ao longe o canto da juriti-verdadeira (Leptoptila rufaxilla), que
parece responder à melodia da flauta.

19 Tapi’i oso oke upa, “ele dorme como a anta”. 2’23.


Manhã, floresta secundária, junho de 1978.
Solo de flauta com conduto de ar yemi’apitekwa, na interpretação de Ilipe. O músico
precisa que o título significa: “ele faz amor como uma anta” (com efeito, este animal
grande e gordo é um ‘símbolo sexual’ em toda a região amazônica).

N.B. As faixas 4 e 19 já foram publicadas (disco Wayãpi-Guiana, Beaudet 1980).

128
ÍNDICE DE MAPAS E FIGURAS

1. Mapas

I. As migrações wayãpi (segundo Gallois 1986). 14


II. Leste das Guianas. Os wayãpi e seus vizinhos ameríndios. 15
III. Distribuição da clarineta curta nas terras baixas. 31
IV. Distribuição das turê. 32

2. Figuras

1. Evolução demográfica de 1824 a 1988: total da etnia wayãpi. 16


2. Esferas musicais, esferas sociais. 23
3. Três espessuras acústicas. 27
4. Correspondências entre configurações musicais e diversos aspectos atinentes aos
instrumentos musicais. 28
5. Esquema da clarineta tule: tubo e palheta. 38
6. Sonograma do princípio duma peça de tule. Escala: 80–8.000 Hz. 43
7. Sonograma dum fragmento da peça tukã de moyutule. Escala: 40–4.000 Hz. 44
8. Sonograma dum fragmento da peça tukã de moyutule. Escala: 40–4.000 Hz. 46
9. Representação dos movimentos conforme a notação Laban. 51
10. Percurso da cadeia dos dançarinos. 52
11. O conjunto tule no desenho dum músico wayãpi. 59
12. Estrutura das peças da suíte moyutule. 63
13. Escalas utilizadas na execução de diferentes suítes. 68
14. Terminologia wayãpi concernente à associação timbre – altura. 70
15. Contorno melódico típico das tule. 72
16. As áreas de variação dentro duma mesma suíte. 76
17. A “flauta tiriyó” com duas fendas. 100
18. Esquema da disposição das facções na aldeia Zidock. 102

129
ÍNDICE DE EXEMPLOS MUSICAIS

1. Fórmula rítmica de duas suítes tule. 54


2. Estrutura da peça matuitui da suíte moyutule. 61
3. Peça walimã da suíte moyutule. 62
4. Assinatura temática da suíte moyutule. 63
5. Peça kwata da suíte tuleko. 63
6. Assinatura temática da suíte tuleko. 64
7. Assinatura temática da suíte alalawayu. 64
8. Peça tasia da suíte pilatule. 64
9. Assinatura temática da suíte pilatule. 65
10. Peça tamanuwa da suíte tuleãkã. 65
11. Assinatura temática da suíte tuleãkã. 65
12. Motivo comum das variantes cantadas da suíte tuleko. 66
13. Peça mãkwãsili da suíte tuleko. 66
14. Motivo comum das variantes cantadas da suíte moyutule. 67
15. Peça uluwila da suíte moyutule. 67
16. Tessitura de duas suítes. 68
17. Fragmento da peça tukã da suíte moyutule. 73
18. Fórmula conclusiva das peças das tule. 75

130
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Gravação na casa de Napi’ã, aldeia Zidock (Jean-Michel Beaudet). 11


Uma seção de tule: Miso, Yemiwa, Wilapile, aldeia Pina (J.-M. B.). 17
Jacky a pescar, Alto Oiapoque (J.-M. B.). 17
A casa de Miso, aldeia Zidock (J.-M. B.). 17
Napi’ã toca a flauta com conduto de ar yemi’apitekwa, aldeia Zidock (J.-M. B.). 20
Uma grande dança: uma seqüência cantada de pilau, a dança dos grandes peixes, aldeia Zidock
(Jean-Michel Miso). 21
Wilasilili, a dança do pássaro tangará, aldeia Roger (J.-M. B). 25
Detalhe de uma peneira. Motivo yelusi, a juriti (J.-M. B). 74
Uma seção de tule na aldeia Pina (J.-M. B). 80
Um emerilhom em visita toca a trompa ama’ipoko, aldeia Yawakokõnga (Étienne Bois). 82
Indolência, sedução. Nami se pinta, aldeia Zidock (J.-M. B). 85
Um movimento duma dança dos peixes, aldeia Zidock (Michel Lucas). 85
Moscas! Aldeia Zidock (J.-M. B.). 93
Aldeia Zidock, 1977 (J.-M. B.). 108

131
SUMÁRIO

PREÂMBULO 3
CONVENÇÕES ORTOGRÁFICAS 5
INTRODUÇÃO 6
Uma noitada musical 6
O intercâmbio etnográfico, um interesse amistoso 10
PRIMEIRO CAPÍTULO — Da sedução à guerra: os wayãpi e suas músicas 13
‘Nós, os wayãpi’ 13
Configurações sociais, configurações musicais 18
Os instrumentos musicais 24
CAPÍTULO II — As clarinetas e o seu som, o toque e a dança 30
As clarinetas amazônicas 30
As tule wayãpi 35
Características organológicas 37
Acústica 41
Técnica de toque 49
A dança 50
CAPÍTULO III — O agenciamento musical das tule, uma alternância 56
A organização orquestral 56
A organização do texto musical 60
Repetição e variação 74
O princípio formal das tule: a alternância 77
CAPÍTULO IV — Atos musicais 79
Os repertórios 81
Os modos de execução: transições da pessoa 84
Música e natureza: um jogo perigoso 87
As mulheres, as tule e os mitos 94
História e política 99
Transformações contemporâneas 104
CONCLUSÃO — Yapolayta kõ’ẽ (“Dançaremos até o amanhecer”) 109
BIBLIOGRAFIA 112
ÍNDICE 120
EXCERTOS MUSICAIS 123
ÍNDICE DE MAPAS E FIGURAS 127
ÍNDICE DE EXEMPLOS MUSICAIS 128
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES 129
SUMÁRIO 130

132
EXCERTOS MUSICAIS

1 Tukã, “o tucano”. 2’50


2 Canto do pássaro na floresta. 1’38
3 Chamado. 0’25
4 Peça tukã, da suíte moyutule. 1’15
5 Peça tukã, da suíte moyutule (versão cantada). 0’50
6 Tukã, “o tucano”. 1’08
7 Tukã, “o tucano”. 2’47
8 Peça anilayu, da suíte enẽtule. (versão canta- 0’40
9 da).
Peça anilayu, da suíte enẽtule. 2’58
10 Peça palulu, da suíte panalitule (versão canta- 0’59
11 da).
Peça palulu, da suíte panalitule. 4’34
12 História da “pequena tule”. 1’24
13 Peça pailaiwite da suíte tulemiti. 1’33
14 Canto das carpas walaku. 2’08
15 Dança walaku, seqüência instrumental. 2’18
16 Wila, “o canto dos pássaros”. 2’18
17 Três diálogos assobiados. 1’13
18 Yelusi, “a juriti”. 2’46
19 Tapi’i oso oke upa, “ele dorme como a anta”. 2’23

duração total: 37’22

133
NOTAS

Introdução

1
Veremos, no capítulo II, que os wayãpi também possuem clarinetas com diversas palhetas.
2
Pãtĩpãtĩ: Pyrophorus pellucens Germar (Elaterídeos).
3
Enẽ: Coleóptero sp. (Copríneos).
4
Encontraremos outra versão desse mito em F. Grenand 1982. Essa segunda versão difere por-
quanto precisa que o homem teve de ir à floresta diversas vezes, para assimilar a música do be-
souro e a transformar em música humana.
5
Paul Suitman, músico de Camopi, precisa que o besouro estava preso na teia duma aranha, o
que implica a participação de três invertebrados na origem desta composição; ajunta ele que o
encontro com o homem se deu durante o dia; também que, à diferença dos povos do Alto Oia-
poque, os do Médio Oiapoque não dançam esta tule à noite.
6
Sabemos das discussões que se pode levantar acerca de espetáculos tais onde músicos não
profissionais, cuja seleção se deve às circunstâncias de sua aldeia, se apresentam diante de um
público com interesses diversos. Supor que esses músicos wayãpi tinham plena consciência de
todas as conotações dos olhares e das escutas a que foram expostos neste festival seria uma
distorção, mas seria um exagero igual acreditar que eles ignoravam a complexidade e os riscos
de tal viagem.
7
Antoine Tamali é o atual cacique{XE "Política:cacique, chefia"} dessa aldeia; Zidock, cujo
nome é uma corruptela do português Isidoro, sucedera ao chefe Pierre Yanakali.
8
Para retomar uma graciosa expressão que Bruce Albert empregou em 1987, ao voltar aos ya-
nomami{XE "Yanomami"}.
9
Os informantes ameríndios às vezes desciam até Caiena para trabalhar com os diversos inte-
grantes da equipe da Orstom; foi possível então completar as pesquisas de maneira mais siste-
mática.
10
As conceituações musicais dos wayãpi também manifestam uma riqueza evidentemente me-
nor que as dos kamayurá{XE "Kamayurá"} do Alto Xingu, tal como as descreveu Menezes Bas-
tos (1978).
11
Se alguns homens às vezes aceitavam cantar um pouco à distância da aldeia, fora de contex-
to, quando queria eu completar os meus registros, tal jamais chegou a ocorrer com as orques-
tras tule, e não me foi jamais possível efetuar análises em campo com aparelhos (em playback,
por exemplo); com efeito, não se toca a música das tule a não ser nas reuniões de bebedei-
ra{XE "Cauim, beber"}. Assim, foi na condição de participante de alguns destes concertos que
pude sentir as sutilezas na técnica, estrutura ou no estilo de toque.
12
Em 1990, para os wayãpi do norte e do sul — ou seja, num total de 800 pessoas — era possí-
vel listar mais de 80 publicações científicas, de autoria duma dezena de pesquisadores diferentes
(etnólogos, etnolinguistas e etnomusicólogos), indo desde o curto artigo manuscrito até teses de
400 páginas, compreendendo relatórios administrativos, estudos etnológicos, médicos, etc. Com
esta proporção de uma publicação científica para cada dez habitantes, não podemos deixar de
cumprimentar os wayãpi pela boa produção, enquanto objetos de estudo! E ainda estamos longe
do fim...

134
13
Este mundo se lhes apresenta como particularmente vário (nele estão policiais, intelectuais,
burocratas, políticos...). Alguns sábios wayãpi gostam de manipular esta variedade, outros, ao
contrário, requerem uma coerência explícita entre estes diversos setores do total dos ‘aliados’,
quando estes estabelecem uma relação com a comunidade.

Primeiro Capítulo

1
Para uma análise do etnônimo, cf. P. Grenand 1982: 50–59.
2
O que sugere que a mitologia meridional poderia haver sofrido uma influência da religião cris-
tã; todavia, Gallois (1988), no seu importante trabalho acerca destas representações, não pare-
ce vislumbrá-lo.
3
Recuperação demográfica que se deve principalmente a uma política sanitária muito boa que
se concebeu, há algumas décadas, na Guiana Francesa; este balanço positivo da saúde pública
deve bastante aos doutores Etienne Bois, Frank Joly e Pascal Chaud, que conformam uma ver-
dadeira linhagem de medicina sanitária no interior da Guiana.
4
Outra comparação: entre os galibi{XE "Galibi"} da costa das Guianas, o luto é ocasião dum ci-
clo de cerimônias que reúne regularmente centenas de pessoas para festas de grandes propor-
ções, mantendo assim, através destes rituais, a essência de sua cultura musical.
5
Com respeito a esta questão, cf. Gallois 1983: 98–137 e 1988: 2–12; Grenand & Grenand
1985: 25–26; Navet 1990.
6
Wasey: Euterpe oleracea Mart. [Port.: açaí.]
7
Apika (“o banco”): de fabricação masculina, constitui bem de troca. Aquando das reuniões de
bebedeira, cada qual, seja homem ou mulher, traz o seu. Costuma ocorrer de não haver bancos
suficientes para todo mundo, então alguns se sentam juntos sobre uma tábua ou um tronco de
árvore; mas apenas os jovens o fazem; os adultos, homens ou mulheres, possuem o seu próprio
banco; do contrário, em se tratando dum forasteiro na aldeia, o anfitrião deve lhe oferecer um.
A metáfora é clara: a posse dum lugar na vida social (cf. também as definições de -lena{XE
"Casa:(-l-)ena"} em F. Grenand 1989). Uma peça da suíte tulekalanã se intitula apika.
8
À diferença dos wayãpi do sul; todavia, esta correlação entre residência{XE "Residência"} e
peso político também lá se encontra presente (Gallois 1986: 62–64).
9
Gallois preferiu chamar de ‘facções{XE "Política:facções"}’ aos agrupamentos políticos maiores
(1986).
10
Segundo as pessoas da aldeia Zidock, “os da aldeia Pina sabiam tocar bem as elewu{XE
"Elewu (\"suíte para flautas de pã\")"} porque eram mais próximos aos wayana{XE "Waya-
na"}”. Este reconhecimento do empréstimo é, conforme veremos na última parte deste trabalho,
uma maneira de associar o repertório a esse segundo nível da integração social. Todavia, as
pessoas de Camopi são famosas por bem conhecerem também esta suíte para orquestra de
flautas de pã, e as relacionam, por sua vez, à guerra e à antropofagia ritual (Paul Suitman, en-
trevista televisiva, “Histoires naturelles” [Histórias naturais], TF 1, 1990).
11
Cf. a interessante observação de Fuks (1988: 152) que, quando propunha questões sobre
música, recebia respostas sobre o cauim; cf. também o pequeno estudo que publiquei sobre as
relações entre música, álcool, estruturação do ritual e definição de gêneros (Beaudet 1992).
12
Um tipo de maracá{XE "Xamã, xamanismo:maracá"}, tido como mais potente, tem o nome
de malali.
13
Sobre a medicina e o xamanismo{XE "Xamã, xamanismo"} wayãpi, cf. Gallois 1984 e 1988;
Grenand, Jacquemin & Moretti 1987.
14
/Ye{XE "Yemi’a (aerofone)"}/ é um morfema de transferência de classe. /Mi’a/ é uma raiz
comum a numerosas línguas tupi{XE "Tupi"}; cf. por exemplo ñũmia-totõ, trompa kamayu-
rá{XE "Kamayurá"} (Menezes Bastos 1978: 116), mimbï, flauta dos guaraio{XE "Guaraio"} da
Bolívia (Mendizabal 1986: 35, 43), temimbi, flauta doce com cinco orifícios de toque dos avá-

135
SOPROS DA AMAZÔNIA

guarani da Bolívia (Acebey 1992: 87), e sobretudo a memby, dos guarani{XE "Guarani" \r
"Guarani"} da Argentina e do Paraguai.
15
Thevet (1981: 75) fala de “tamborins”; Vaz de Caminha também, apud Camêu. Mas tratar-se-
iam de membranofones? Contrariamente, os tímpanos com membrana de borracha dos pare-
ci{XE "Pareci"} e dos chacobo{XE "Chacobo"}, por exemplo, são de segura origem pré-
colombiana.
16
Apenas a flauta de pã poderá configurar exceção a tal correspondência, porquanto a mesma
palavra (elewu) designa a flauta de pã de três ou quatro tubos que se toca individualmente, a
série disjunta de tubos fechados que se toca em alternância nas orquestras, e uma flauta de pã
de dois tubos que se toca nalguns dos grandes ciclos dançados; mas trata-se, na verdade, de
três instrumentos distintos.
17
A palavra (-l-)etãnlãnge, significando “família estendida”, “habitantes da aldeia”, “agregado
botânico ou zoológico” (F. Grenand 1989: 177), é uma das raras denominações precisas das
configurações sócio-espaciais; deriva ela da palavra (-l-)etã, a casa enquanto construção, em
contraste com (-l-)ena{XE "Casa:(-l-)ena"}, casa habitada. Cf. também, para os wayãpi do sul,
a palavra tawan, que significa “os habitantes da aldeia” (Gallois 1988: 128).
18
Ao contrário dos também tupi{XE "Tupi"} kamayurá{XE "Kamayurá"}, entre os quais Mene-
zes Bastos (1978) se empenhou em depreender classificações completas.
19
Após a migração do século XVIII.

Capítulo II

1
Outrossim, quando escutaram a orquestra de clarinetas takwara dos yawalapiti{XE "Yawalapi-
ti"} (cf. disco Brésil: musique du haut Xingu [Brasil: música do Alto Xingu], Menget & Schiano
1977), os wayãpi manifestaram uma ligeira repulsa, em feitio de troça, tendo por objeto apenas
o timbre{XE "Timbre"} dessas clarinetas.
2
O termo chaco nem sempre parece ser justo, pois este tipo de clarineta é amplamente pre-
sente nos Andes, coisa que Izikowitz ignorava.
3
Com três exceções apenas, ao que se sabe: a clarineta curta dos bororo{XE "Bororo"}, no
centro do planalto brasileiro, assim como entre os wai-wai{XE "Wai-wai"} e os emerilhom{XE
"Emerilhom"}, da Guiana.
4
As turas, clarinetas dos guajiro{XE "Guajiro"}, dos ayoman{XE "Ayoman"} e dos gayon{XE
"Gayon"}, possuem três orifícios de toque, não sendo verossímil, desta forma, que sejam pré-
colombianas.
5
Para esta garimpagem, me servi em parte do livro de Helza Camêu (1977), que começa com
uma resenha bastante completa e fidedigna das referências escritas à música ameríndia após o
descobrimento.
6
Em Portugal, o termo gaita pode designar tanto as cornamusas (gaitas-de-foles) quanto as
flautas de pã (cf. Veiga de Oliveira 1982: 315–338).
7
Certos povos, como os palikur{XE "Palikur"}, podem desenvolver os dois tipos de formação.
8
A única referência a hoqueto vocal diz respeito a uma seqüência bem curta dum canto ka-
mayurá{XE "Kamayurá"} (Menezes Bastos 1989: 283), porém, conforme confirma a transcrição
(idem: 102), se trata na verdade duma alternância, dum cânone a duas vozes.
9
É certo que a rapidez da expansão depende do tipo de instrumento: um órgão se ‘desloca’ mais
lentamente que um alaúde, assim como uma flauta pode se difundir num novo território tão rá-
pido quanto o cavalo; mas quando há equilíbrio nas relações de troca, a transmissão da forma
musical será muito mais lenta.
10
Mas não posso afirmar com certeza que esta lista dá conta do total dos grupos wayãpi.
11
Tapi’ilaãnga: Pionites melanocephala L.
12
Tãpẽ: Elanoides forficatus L.

136
13
Yãwĩ: Geochelene denticulata L.
14
As clarinetas dos palikur{XE "Palikur"} do rio Urukawa, no Brasil, e do Baixo Oiapoque, são
todas feitas com bambus de espécies diferentes, mais grossos, que podem durar muitas sema-
nas.
15
Kwamã: Guadua macrostachya Rupr.
16
Ilipala: Bambusa vulgaris Schrader.
17
Tawo: Guadua sp.
18
Ama’i: Cecropia obtusa Trecul.
19
Takalie’e e takwalipiyũ: Lasiacis ligulata Hitch e Chase; se as usa muito para palhetas. Takwa-
lisĩ: Ichnanthus breviscobs Doell; se a utiliza pouco para palhetas. Takwaliwili: Odyra latifolia L.;
se a utiliza para palhetas.
20
Conforme a terminologia de Leipp (1976); Bouasse, por sua vez, chama esta cavidade de “pé”
ou “porta-vento” (1929: 42).
21
Segundo a terminologia de Bouasse, esse primeiro nó do bambu, ou rodela, se chamaria “nú-
cleo”.
22
Os transitórios são micro-fenômenos que ocorrem no princípio e no fim do som. Aqui, eles
têm durações de 15 a 60 milissegundos. Portanto é raro que o ouvido os analise consciente-
mente; não obstante, têm eles um papel importante na nossa percepção musical.
23
Um elemento fonológico confirma esta valorização da clareza do ataque: a presença da oclusi-
va dental na onomatopéia ten{XE "Ten (onomatopéia das partes graves das tule)"}, nas partes
graves da suíte; essa onomatopéia é usada em todas as versões cantadas das suítes.
24
Schaeffner já propunha a associação do estudo da polifonia com o da “fórmula orquestral”
(1968: 342–343).
25
Por outro lado, para situar estas breves comparações, especifiquemos que os galibi{XE "Gali-
bi"} e os palikur{XE "Palikur"}, do litoral das Guianas, ou ainda os auwẽ-xavante{XE "Auw?-
xavante"}, do Mato Grosso, dançam conforme passos totalmente diferentes (auwẽ é uma forma
moderna de akwẽ, autodenominação dos xavante).
26
Aqui, o redobramento parcial (opalawiliwilikupa) reforça a significação da palavra.
27
As taquaras de flecha (Gynerium sagitattum Beauv.) são plantas semi-selvagens; elas reque-
rem uma longa preparação antes de se fazerem flechas: são cuidadosamente secas, endireitam
no fogo, às vezes se as moqueia, depois se as guarda em cima dos esteios do telhado. É um
bem de troca.
28
Guilcher emprega esta expressão com referência às danças camponesas francesas (1971: 25).

Capítulo III

1
‘Hoqueto’ é um termo que designa, em princípio, um artifício de composição da Idade Média
ocidental; a linha melódica se divide e reparte ali em duas ou três vozes, cada uma das quais
executam diversas notas (cf. Reaney 1959: 501; Apel 1979: 389). No caso das tule, esta orga-
nização orquestral é uma forma obrigatória, cada parte não podendo executar mais que um grau
apenas.
2
Este mito figura na tradução de Villas Boas & Villas Boas{XE "Kamayurá"} (1974: 101–106).
3
O mito barasana{XE "Barasana"} do Uaupés{XE "Uaupés"} (Hugh-Jones 1979) diz, de ma-
neira semelhante, que as flautas secretas são, a um tempo só, o osso do herói e uma fabricação
dos homens a partir da palmeira Iriartea.
4
Todavia, a notação que aqui se usa retém a convenção da escrita ocidental, que apresenta os
sons mais agudos nas linhas superiores e os sons graves nas linhas inferiores.
5
Coleção da fonoteca do departamento de etnomusicologia do musée de l´Homme: BM 80.15.1
a 12. Podemos caracterizar esses registros a partir da figura 13, que traz o título da suíte, a data
da execução e a escala que se utilizou então.

137
SOPROS DA AMAZÔNIA

6
490 cents numa versão de tuleãkã{XE "Tuleãkã (dança da cabeça)"}, 1.365 cents numa ver-
são de moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"}.
7
Cf. em Beaudet 1983, outrossim, uma análise mais precisa desta questão.
8
Nas flautas de osso e nas flautas transversas, o comprimento total é totalmente dependente do
material que se utiliza. Nas flautas retas de bambu, onde o gradiente de escolha é maior, o
comprimento total não parece ser fruto da medição, mas da avaliação. O espaçamento entre os
orifícios de toque é constante, se o marcando com um ‘graveto–medidor’ efêmero cuja escala
jamais vi, ainda que tal exista.
9
Encontramos uma distinção semelhante, por exemplo, entre os Lobi de Burquina Faso, entre a
afinação minuciosa dos xilofones e a grande latitude de afinação da harpa de forquilha (Jourdain,
comunicação pessoal 1993).
10
Pierre Salivas (1995) tentou propor uma tipologia das diversas heterofonias em toda música
shuar{XE "Shuar"} (Equador).
11
Este tipo de organização melódica, tal como as dos grandes cantos wayãpi, remetem à noção
de centro tonal, tal qual Avery (1977) a define a propósito dos cantos nambikwara{XE "Nam-
bikwara"}; cf. também Menezes Bastos (1989: 258), a respeito dos cantos kamayurá{XE "Ka-
mayurá"}.
12
Já se destacou este fato com respeito à música achuar{XE "Achuar"} (Leduc 1991).
13
Sob este aspecto, a dinâmica das orquestras dos palikur{XE "Palikur"} é bem diferente: o seu
andamento se mantém com bastante rigor; não se aceita nem acelerações nem retardamentos
e, quando tentei tomar parte numa orquestra deles, logo criticaram a minha maneira de tocar,
“atrasada demais, wayãpi demais” para o gosto deles.
14
É certo que esta comparação entre música e cestaria aqui diz mais respeito à analogia, mas as
fortes correlações entre música e outras formas estéticas constituem um tema importante na et-
nomusicologia contemporânea (cf. por exemplo Martínez 1990).
15
Pode-se comparar, por exemplo, os motivos B das peças matuitui e walimã da “suíte da sucu-
ri{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"}”.
16
É significativo, além disso, que um viajante do século XVIII tenha sido capaz de comparar
este tipo de música a uma chacona (Barrère 1743: 199).
17
Um comentário de Duke Ellington autoriza, acredito, esta utilização, fora do jazz, da noção de
suingue como uma característica da performance, e da performance em grupo: “Nenhum texto
musical deixa de ter suingue. Você não pode escrever o suingue porque o suingue é aquilo que o
auditório irradia, e não existe suingue enquanto a nota não ressoar. O suingue é um fluido e,
ainda que uma orquestra tenha tocado uma trecho quatorze vezes, pode ser que ela não tenha
suingue até a décima quinta vez” (citado por André Francis em Jazz. Le Seuil. 1963).

Capítulo IV

1
Cf. Beaudet 1983.
2
Aqui, se reconhecerá relações entre sociedade e formas musicais comparáveis às que Seeger
coloca em evidência entre os suyá{XE "Suyá"} (1979).
3
Apenas uma suíte de clarinetas é também passível de toque na flauta solo, propiciando assim
uma ponte — raramente posta em prática — entre dois ‘níveis musicais’.
4
Ensinar (um repertório); moe’e, “fazer dizer”.
5
Cf. “Awasi”, no disco Txai, Milton Nascimento 1990 (CBS Brasil 177.238), e “O canto do ja-
guar”, no disco Wayãpi-Guyane [Wayãpi-Guiana], Beaudet 1980.
6
Cf. o disco Brésil central: chants et danses des Indiens Kaiapo [Brasil central: cantos e danças
dos índios kayapó], Fuerst / Love / Roseels / Verswijver 1989.

138
7
Por exemplo, os próprios músicos ocidentais podem se reunir entre amigos, na casa de um
deles, pelo prazer de tocar música de câmara, e no entretanto tocar a mesma música no âmbito
dum concerto, de smoking e recebendo aplausos.
8
Alasuka, notável de Trois-Sauts a quem apresentei esta interpretação, a recusou.
9
Para os wayãpi do sul, se trata da flauta de osso (Gallois 1988: 75).
10
Aceitação da paternidade tal que é outro eixo desta história, onde, numa das versões dos
wayãpi, o filho ‘bom’ ajuda seu irmão ‘mau’, e sobretudo o defende perante o pai deles, divinda-
de exigente e intolerante.
11
O tabaco e a casca de tawali se destinam à confecção de grandes charutos que se oferecerá a
alguns favoritos do momento. O tabaco, enquanto linguagem sutil da socialidade, precede aqui o
tabaco através do qual o xamã se comunica com os espíritos. Hoje em dia, o consumo de cigar-
ros industriais é cada vez maior.
12
Mais precisamente, trata-se do líber da árvore yami’i (Couratari guyanensis Aubl., Lecythida-
cea). Os aparaí{XE "Aparaí"} e os wayana{XE "Wayana"} dançam com as mesmas máscaras.
Por outro lado, os wayãpi consagram um grande canto a essa árvore e a essas máscaras.
13
Cf. Beaudet 1992a, bem como, para os Andes, Martínez 1992a.
14
À diferença dos bororo{XE "Bororo"} (Crocker 1977), se trata duma metáfora que bem pouco
se a define verbalmente. Os homens não dizem “quando dançamos, somos pássaros ou peixes”,
estando claro, em compensação, que o fato de se portar as máscaras ou, mais simplesmente, de
conduzir a dança confere um status distintivo com respeito às mulheres.
15
Não obstante, talvez se reconheça um lugar definido à parafernália{XE "Parafernália"} dos
músicos de tule: na peça aykawale (“cinto”, na língua wayana) da suíte moyutule{XE "Moyutule
(suíte da sucuri)"}, o dançarino da frente retira, um após o outro, os cintos e cocares dos dan-
çarinos, devendo cada qual, a seguir, ir procurar o seu adereço. Na suíte yãwĩtule{XE "Yãwitule
(suíte da tartaruga)"}, no Médio Oiapoque, os músicos têm de dançar toda a noite com o mes-
mo par; pela manhã, o mestre da dança vai tomar banho com o seu par, depois é a vez de
quem toca a parte mãmã, com seu par; após o banho, o mestre da dança apanha os cocares de
penas de todos os dançarinos e os enfia na prensa onde se espreme a mandioca; à tarde, sopra
ele todas as clarinetas e pede aos demais, assim, que retomem a dança.
16
Alguns dos cantos, sobretudos os de pássaros, se dança preferivelmente à noite.
17
Este uso de modelos animais{XE "Animais"} não é generalizável à totalidade dos povos da
Amazônia: “Apesar dos suyá{XE "Suyá"} aprenderem música no reino da natureza, aquilo que
eles cantam (e portanto o que canta o reino da natureza) não mantém com os sons de ani-
mais... nenhuma relação sônica que seja passível duma gravação em fita” (Seeger 1987: 62).
18
Para um inventário completo das peças que compõem as suítes enẽtule{XE "En?tule (\"suíte
do besouro\")"}, moyutule{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"}, tuleãkã{XE "Tuleãkã (dança da
cabeça)"}, pilatule{XE "Pilatule (suíte ds peixes)"}, panalitule{XE "Panalitule (suíte dos waya-
na)"}, tulekalanã{XE "Tulekalanã (suíte kalanã)"} e tulemiti{XE "Tulemiti (pequena suíte)"}, cf.
Beaudet 1983.
19
Crônica da Estação Seca, filme realizado por Yves Billon, Patrick Menget e Jean-François Schi-
ano em 1977; Erikson, comunicação pessoal 1993.
20
Ao lado das ‘humanidades’ ocidentais, que colocam compulsivamente em epígrafe a superiori-
dade do Homem (cf. por exemplo, para a etnomusicologia, Merriam 1964: 7, 22, 27; Leiris
1980: 7), as sociedades não urbanas, dizem, costumam atribuir criatividade e cultura musicais
aos não humanos (cf. por exemplo Zemp 1971; Mâche 1983).
21
As cobras, tartarugas, jacarés, lagartos e iguanas, assim como alguns peixes, diz-se que não
tocam nem cantam; em compensação, parece que dizem que os filhotes de animais{XE "Ani-
mais"} cantam (yenga) — mas talvez se trate aí de filhotes de animais cativos. Por outro lado,
os ayã (“espíritos”: superpotências, seres extraordinários) podem ser ouvidos pelos caçadores
na floresta; com maior freqüência, neste caso, eles ‘tocam’, mas podem também ‘dizer’. Nas

139
SOPROS DA AMAZÔNIA

narrativas míticas, os ayã{XE "Xamã, xamanismo:ayã" \r "ayã2"} falam, cantam e dançam. As-
sim, ainda que costumem mais ser inimigos dos homens, são destes muito próximos.
22
Etnia{XE "Piriu"} do Médio Oiapoque, hoje extinta.
23
Ao se banhar, não respeitara a couvade{XE "Couvade"} [restrição masculina pós-parto], o
que abre as portas para o anormal, o contato com os outros mundos, e situa a origem{XE
"Composição musical"} deste repertório instrumental num contexto de parto.
24
Na primeira peça desta suíte{XE "Moyutule (suíte da sucuri)"}, walimã, se traz o sumo da
planta yamalatay (Zingiber zerumbet L.), cuja raiz “se torce como a sucuri{XE "Sucuri"}”. Os
dançarinos giram em torno da cabaça que contém o sumo diluído em água. Um deles embebe ali
uma pena de rabo de arara e, a girar em torno dos demais dançarinos, lhes pincela as panturri-
lhas. Depois os dançarinos, com as penas e a cabaça, dançam até as casas, pincelando os es-
pectadores e os objetos (os bancos, os pilares da casa...). Por fim, dançam de novo em volta da
cabaça e das penas.
25
O arquétipo é a versão inicial que os músicos afirmam estar na origem do canto; trata-se
aqui, ao mesmo tempo, daquele verso que eles explicitamente retêm.
26
Termo genérico para um grande número de Mimosóideas do gênero Inga, cujos frutos, muito
apreciados, se os pode consumir em grande quantidade.
27
Wilãsĩ: Egretta alba L.
28
Diz-se que a elewu{XE "Elewu (\"suíte para flautas de pã\")"} (“suíte para flauta de pã”) a
podem escutar os mortos{XE "Morte, mortos"}, que podem, outrossim, causar doenças nas
pessoas da aldeia, quando se a toca mal. Eis aí uma relação com os mortos amplamente difusa
na Amazônia, e que os wayãpi definem para os mortos recentes: são outros, são perigosos. Tal
confirma que, para os wayãpi do norte, a maior parte do seu repertório mudou, muda e se es-
cuta num nível terrestre, horizontal.
29
Cf. para o Alto Xingu{XE "Xingu"}: Villas Boas 1974; Menezes Bastos 1978; Menget 1984;
Basso 1985; Monod-Becquelin 1987.
30
Reichel-Dolmatoff (1989), em sua interpretação deste complexo do Yurupari, insiste sobre as
correspondências entre uma moral exogâmica e a representação desana{XE "Desana"} da fe-
cundação das palmeiras.
31
Cf. também a descrição dos rituais txicão{XE "Txicão"} por Menget (1984).
32
Trata-se duma dimensão da música que é bastante difusa e notória (cf. por exemplo Calame-
Griaule 1965; Brandily 1987; Herndon & Ziegler 1990). Talvez a música aja de maneira redun-
dante junto às definições mais sociais dos gêneros, tal como entre os suaílis do Quênia, onde as
danças dos homens insistem na competição e na bravura, ao passo que as das moças falam de
fidelidade e prazer sexual (Campbell & Eastman 1984). Às vezes, a música inverte e reequilibra
as posições sociais dos homens e das mulheres, tal como entre os temiar da Malásia, onde, em
comparação com os homens, as mulheres são estáticas na vida, mas móveis e iniciadoras en-
quanto são mulheres-espíritos na cerimônia: “...assim, as formas musicais temiar, tais como se
as executa, não são simples expressões ou reflexos duma estrutura social igualitária, mas são
um construção ativa através das inversões e dos cruzamentos que reificam as distinções” (Ro-
seman 1984: 434).
Notar-se-á, por outro lado, que dentro deste complexo simbólico gigantesco, os instrumentos
que se associam aos ritos de passagem não são ‘percussões’, tal como na célebre generalização
de Needham (1967). Interpretação tal que permanece bastante em voga entre certos antropólo-
gos, a despeito das refutações definitivas de Blacking (1968) e Rouget (245–253). Para este tipo
de análise, ‘som descontínuo’ me parece uma categoria mais frutífera que ‘percussões’.
33
Inversão ritual que é sistemática entre os araweté{XE "Araweté"}, e que Viveiros de Castro
qualifica de “simulacro de substituição das danças masculinas” (1986: 330).
34
Outro exemplo que interpreto como tentativa de fabricação concreta dum mito, do qual têm
necessidade os wayãpi: na realidade hodierna, ocorre dos homens se perderem na floresta, mas
curiosamente se dá então em grupos, e não ganham conhecimento algum, mas uma experiência

140
censurável do limite; como no mitos das yamurikumã, que eles não possuem, trata-se dum des-
controle viril coletivo.
35
Reencontramos esta possibilidade de tocar a flauta após a menopausa entre os shuswap{XE
"Shuswap"} da Colúmbia Britânica (Reuther, comunicação pessoal 1993).
36
Os peixes, a sucuri{XE "Sucuri"} e, aqui, o gavião-tesoura, que é um pássaro de beira de rio
e que, por outro lado, é central na mitologia e no xamanismo caribe{XE "Caribe"} desta região
(Butt Colson 1977).
37
Müller fala de “flautas”, porém trata-se de clarinetas.
38
Esta interpretação converge com a de Gallois, relativamente aos wayãpi meridionais (1988:
163).
39
Depois dos anos oitenta, escutam também reproduções em fitas cassete. Repertório explici-
tamente estrangeiro, se trata ainda duma música coletiva cuja performance não comporta o ris-
co{XE "Risco"}.
40
Enquanto certos músicos wayãpi atribuem uma origem aparaí{XE "Aparaí"} a certas peças da
sua suíte de nome tuleãkã{XE "Tuleãkã (dança da cabeça)"}, outros dizem que esta provém dos
wayana{XE "Wayana"}, e que estes a chamam de waytakala; Monpera, chefe emerilhom{XE
"Emerilhom"} de Camopi, afirma que essas duas suítes são diferentes; por fim, waytakala é o
nome duma clarineta entre os tiriyó{XE "Tiriyó"} (Frikel 1973: 200; Beaudet 1983: 220–223).
41
Encontrar-se-á uma descrição das tule dos aparaí{XE "Aparaí"} em Deuber 1926.
42
À exceção talvez de subgrupos — como os aramitxó{XE "Aramitxó"} — formadores do con-
junto atual conhecido sob o nome genérico de tiriyó (P. Rivière 1969: 11–29; P. Grenand 1982).
Aliás, a ortografia “tiriyó{XE "Tiriyó" \r "Tiriyó4"}” me parece preferível a “trio”, uma vez que, a
meu ver, esta palavra deve se aproximar de kalina tiliwiyu (“os verdadeiros galibi”), autodeno-
minação de um dos grupos galibi{XE "Galibi"}.
43
H. Rivière, comunicação pessoal 1993; cf. também H. Rivière 1994.
44
Cf. Gallois 1988: 127, para os wayãpi meridionais.
45
Seeger (1991) também propôs uma análise da música suyá{XE "Suyá"} como produtora de
representações históricas.
46
Em 1987, no Festival de Avinhão, ou seja, num ato bastante diplomático, a ordem dos dança-
rinos configurava a seguinte ‘fotografia’ política (da esquerda para a direita, em ordem de pre-
sença): T – Z – Y – A – Y... (estas letras designam aqui um partido representado por um de seus
membros; Z é um partido central).
47
As baratas adoram os estojos de plástico dos fios elétricos, assim como as membranas dos
alto-falantes.
48
Sem embargo, respondamos aos insistentes clichês sobre a universalidade da música ociden-
tal, universalidade que sempre se associa ao gênio europeu: um disco de Mozart, oferta do et-
nomusicólogo, foi ouvido oficialmente em minha presença como grande música ‘francesa’... por
cinco minutos, depois do que se retirou o toca-discos, com a desculpa: “Não gostamos muito,
isso nos entedia.” O gênero francês, sob a forma dum disco de Nicole Croisille, oferta dum políti-
co de direita, não teve maior sucesso, a despeito dos esforços esporádicos dum chefe de facção,
que fazia parecer gostar. Vê-se que não só a diferença de sistema musical está em questão;
bem que existe uma seleção: ao escolher, os jovens escolherão a música predominante no am-
biente: é uma escolha pelo não isolamento. Nota-se, por outro lado, que os jovens destas aldei-
as levaram mais de quinze anos para aceitar o reggae.
Neste fim de século XX, a primeira música (cronologicamente) a se ouvir na maior parte das al-
deias amazônicas é a música de gênero local, e todos os etnólogos um pouco sensíveis retornam
de ‘seu campo’ com uma necessidade de tais sucessos açucarados, cuja existência dantes igno-
ravam.
49
As relações entre as músicas dos Andes e das terras baixas são ainda muito mal conhecidas.
Dum ponto-de-vista estritamente formal, observa-se, no piemonte boliviano, casos de integra-
ção da música andina num grupo amazônico, tal como ocorre entre os chimane{XE "Chimane"}

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SOPROS DA AMAZÔNIA

(cf. os exemplos sonoros em Riester 1978), mas também casos de estanquidade entre músicas
‘autóctones’ e músicas regionais mestiças, tanto do Oriente quanto dos Andes, entre os grupos
tacana{XE "Tacana"} — tacana, ese eja{XE "Ese eja"} (Beaudet 1992b).
50
Cf. Becerra Casanovas 1977; Parejas Moreno e Suárez Salas 1992: 113–119; Ruiz 1984.
51
Cf. d’Harcourt 1925: 131–230; Turino 1991; Martínez 1994.
52
Para muitos — gente do turismo, políticos eleitos, administradores, grande público — a Guiana
Francesa é, com a base espacial européia, “a mais avançada da mais avançada das tecnologias”
(Caetano Veloso, “Um índio” no disco Bicho, Phillips do Brasil, 63.49.327 1977) ao lado da pré-
história dos índios da mata virgem.

Conclusão

1
A dança e o canto, como produtores da alternância diurna, são uma ‘prática cosmológica’ que
muitas vezes se observou no mundo tupi{XE "Tupi"} (cf. entre outros H. Clastres 1975; Beaudet
1983; Ruiz 1984), mas que também ocorre alhures, por exemplo entre os pume{XE "Pume"} da
Venezuela (Ayats, comunicação pessoal 1992).
2
Crevaux (1883), em diversas ocasiões ao longo de suas viagens, observa que um acompa-
nhante wayana{XE "Wayana"} faz soar a flauta quase continuamente, mesmo ao andar.
3
“Pámphōnon mélos” (Vernant 1985: 56).

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