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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO

SECRETARIA DE ESTADO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA


PRÓ- REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LINGUÍSTICA

A CONSTITUIÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL: UMA ANÁLISE


DISCURSIVA SOBRE A INSTITUIÇÃO DE UM POVO “CIVILIZADO”.

Veronica Silva de Albuquerque1


Erisvania Gomes da Silva 2

Pensar a língua brasileira, ou o português no Brasil, requer ir muito além de se


propor uma breve cronologia e contextualização histórica dos fatos que levaram a sua
colonização, ou de uma concepção imaginária de homogeneidade linguística em um
país plural como o nosso.
A partir destas reflexões tomaremos como material de análise o texto
“Denominação do Idioma Nacional do Brasil”, que se deu pelo artigo 35º do ato das
Disposições Transitórias apenso à constituição dos Estados Unidos do Brasil,
promulgada em 18 de Setembro de 1946. Nesse texto, encontra-se o parecer que decidiu
que o nome da língua Nacional do Brasil que é a “Língua Portuguesa”, silenciando
assim, cultura, língua e ideologia do povo que já vivia na terra brasílica. A linha teórica
que norteará essa pesquisa é a de Análise de Discurso na perspectiva de Michel
Pêcheux, Eni P. Orlandi e colaboradores. É a partir desse viés, que propomos
compreender e analisar as práticas linguísticas que contribuíram para a constituição da
língua portuguesa enquanto idioma oficial do Brasil e enquanto imaginário de unidade e
de civilidade promulgada justamente pelo referido documento.
Antes de adentrarmos propriamente na análise do documento, é necessário que
descrevamos o período histórico no qual essa língua se inscreve. Nessa perspectiva,
buscaremos elementos linguísticos e históricos que perpassam dizeres outros que
contribuem para se pensar como ocorreu o processo de constituição da Língua Nacional

1
Mestre em Linguistica- UNEMAT
2
Mestre em Linguistica- UNEMAT
Brasileira. Para isso, nos propomos a situar os fatos que contribuíram para a formação
da identidade da nação brasileira por meio de sua língua.

1- A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DA LÍNGUA NACIONAL:


HOMOGENEIDADE X PLURALIDADE

Ao historiografar as ideias linguísticas no Brasil, Guimarães (2005), estabelece a


existência de quatro períodos distintos para a formação linguística brasileira e esses se
marcam desde a colonização (1522) a sua independência (1940) de Portugal.

Com o início efetivo da colonização portuguesa em 1532, a língua


portuguesa começa a ser transportada para o Brasil. Aqui ela entra em
relação, num novo espaço-tempo, com povos que falavam outras
línguas, as línguas indígenas, e acaba por tornar-se, nessa nova
geografia, a língua oficial e nacional do Brasil. Podemos estabelecer
para esta história quatro períodos distintos, se consideramos como
elemento definidor o modo de relação da língua portuguesa com as
demais línguas praticadas no Brasil. GUIMARÃES (2005).

Este primeiro período é caracterizado pelos primeiros contatos entre os


colonizadores provenientes de Portugal e o povo até então colonizado, ou seja, os índios
nativos uma miscigenação tanto da cultura, da língua e da religião.
A língua falada até então era a língua geral, já a língua portuguesa era falada por
uma minoria, elite, que estava em contato com esta língua por meio dos estudos nas
instituições de ensino e escrita, e ainda através de documentos oficiais que eram
mandados a Portugal. Nessa perspectiva, é por meio dessas condições que se dá nesse
primeiro período a língua do Estado no território recém-descoberto.
Nesse primeiro momento ressaltamos ainda que, ao aportar em território
brasileiro o colonizador português se defrontou com uma variedade de línguas faladas
tanto dos índios quanto imigrantes espanhóis e africanos.
Conforme Mariani:
O caso da língua portuguesa frente às línguas indígenas é o da
imposição da língua do conquistador, língua que, por ser de domínio
da nação portuguesa, supõe, ainda que imaginariamente, uma mesma
base linguística que permitisse um “entendimento” entre o Rei e seus
súditos, como diria Pero Vaz de Caminha em sua Carta. (p.96)

Mariani (2004) destaca que havia uma busca incessante de homogeneização


linguística, ainda que esse processo fosse imaginário. Processo esse que visava unir a
diversidade linguística até então predominante e também a relação entre Estado e Igreja,
com fins de tornar o índio vassalo e submisso.
No segundo período alguns fatos nos chamam a atenção e merecem destaque,
entre esses está a catequização dos índios, ou seja, a imposição em todos os seus
aspectos, e a dominação de uma língua sobre a outra. O objetivo principal da
catequização era o de tornar o índio submisso primeiramente a Deus, através da religião
Católica, e posteriormente ao Estado por meio da Língua Portuguesa. O argumento do
colonizador português para tal ato se pautava na busca da facilitação da comunicação, já
que havia na terra brasílica recém-descoberta a personificação da torre de babel narrada
na bíblia sagrada. É por essa razão, que a catequização dos índios se dá nesse segundo
momento pela língua geral, é pela língua geral que há a doutrinação do pensamento e do
corpo do sujeito índio, pensamento doutrinado pela religião e corpo para o trabalho
servil que levaria também ao domínio da terra.
Ainda nesse segundo momento encontramos a companhia de Jesus. Os membros
da companhia de Jesus, mais conhecidos como jesuítas tem um papel fundamental na
catequização indígena, já que a mesma entra como principal mediadora na conquista do
novo território. Porém, os objetivos da companhia se inverteram durante o processo de
catequização, essa inversão se deu pelo próprio meio de ensino da língua, já que o
ensino da nova doutrina ao povo “bárbaro” se deu pela língua brasílica (que não era
nem a língua europeia tampouco o latim), aumentando assim seu poder sobre os índios e
sobre o território nacional. Tal fato contribuiu para que se estabelecesse um embate
entre os membros da doutrinação e os administradores portugueses fazendo com que
esse embate posteriormente levasse a expulsão dos jesuítas na colônia brasílica.
Sendo assim, com a expulsão dos jesuítas criava-se um imaginário de unidade
linguística e “liberdade” aos índios.

Concluindo sua explanação, o governador sugere que o Rei tire “dos


Regulares todas as fazendas que possuem, todas as Aldeias que
administram”, e que também “mande recolher os Religiosos aos seus
conventos”, bem como dê “liberdade aos índios”. (MARIANI, p.146)

Ainda no segundo período temos a criação do diretório dos índios, que se pode
dizer que é o ato máximo para que a haja a expulsão dos jesuítas. Além disso, após a
criação do Diretório dos índios em 1755 e o Decreto de Marquês de Pombal muda-se o
foco de apenas tornar os índios assujeitados a fé, mas, também ao Estado que promulga
que: “Ao Rei ainda convém converter os índios, mas também interessa civilizá-los e
para tanto, o aprendizado do português é imprescindível” (MARIANI, p.146).
Com a aplicação deste Diretório durante 40 anos em todo o território brasileiro
produziu-se um efeito de sentido em que a língua foi vista como transparente,
homogênea. Segundo Mariani:
Impôs-se uma língua, e com ela toda uma ideologia e toda uma
memória, o que significa, porém que essa língua imposta não tenha
sido afetada por sua travessia do Atlantico e pelos sentidos de Novo
Mundo. (MARIANI, p. 153)

Ao adentramos no terceiro momento nos encontramos no momento crucial para


essa análise, vamos os fatos: o terceiro momento é marcado pela chegada da família real
portuguesa no Brasil, a língua portuguesa é oficializada como língua nacional do Brasil.
É criada por D. João VI, a imprensa e a Biblioteca Nacional, que se manifestou e
manifesta na vida cultural e intelectual até os dias atuais. Tais mudanças contribuíram
para a mudança das línguas faladas neste período no Rio de Janeiro, que era a capital do
Reino de Portugal, ou seja, era a sede do governo.
Já no quarto momento, após a independência do Brasil em 1833 houve a
proposta que os diplomas dos médicos fossem redigidos em “linguagem brasileira” e o
ensino da leitura e escrita deveria ser feito utilizando a gramática da língua nacional.
Nesse sentido, importava desta maneira não tornar-se independente apenas em termos
econômicos ou políticos, mas, também por meio da língua que era falada pelos
habitantes do Brasil, ou seja, um processo de constituição da identidade e da nação
frente ao mercado internacional, além de fronteiras.
Houve ainda a fundação da academia brasileira de Letras (1900), a criação de
faculdades e outra característica que podemos mencionar é instauração da Nomenclatura
Gramatical (NGB) pelo Estado no ano de 1959. Cabia a NGB apresentar as regras e
normas do que poderia ou não constatar nas gramáticas e quais gramáticas de fato
representavam essa língua brasileira, por isso, tanto autoria como conteúdos eram
analisados para se observar se os autores brasileiros não eram apenas meros
reprodutores de fontes portuguesas, ou seja, era necessária uma gramática que abordasse
as especificidades e singularidades de uma língua com léxico diferente da falada em
Portugal, e também as políticas públicas através dos Programas de Ensino, ou Exames
Preparatórios.
Segundo Dias (1996):
Mas a expressão língua brasileira adquiria sentidos relativamente a um
espaço no qual a nacionalidade cruzava com a cidadania. Tendo em
vista que a expressão língua brasileira tem como correlato semântico
“língua falada pelos brasileiros” colocava-se a questão do estatuto da
nacionalidade a partir do estatuto do homem que constitui a nação.

Sendo assim, este momento é também marcado pelos debates conflituosos em


âmbito político acerca da denominação da língua que é falada no Brasil e, sobretudo a
resistência em se chamar a língua de “Brasileira” ou de “Portuguesa” em função da
colonização linguística e imaginário da língua falada não se diferenciar da falada em
Portugal. Segundo Orlandi (2005):

Com a independência do Brasil, eclodiu um movimento, promovido


por gramáticos, de organização de um conhecimento sobre a nossa
língua que já mostrava essas modificações. Mas o mais importante
naquele momento não era tanto destacar descritivamente essas
diferenças, e sim reivindicar o reconhecimento à nossa escrita, à nossa
literatura, ao conhecimento produzido por brasileiros, nossos
gramáticos, sobre a língua no Brasil, à nossa língua nacional, sinal de
nossa soberania.

Por isto, até os dias atuais estas questões permeiam tanto os estudos dos
linguistas quanto inquietam a política em si, sobre quais os sentidos que esta
denominação adquiriu naquele época em que foi promulgado o documento que iremos
analisar e atualmente os efeitos de sentido que produzem na sociedade atual.

2- DA “BARBÁRIE” Á CIVILIZAÇÃO

O tema deste trabalho se insere no quadro teórico-metodológico da Análise de


Discurso de linha francesa doravante AD, fundada nos trabalhos de Michel Pêcheux. A
análise de discurso surge, propondo compreender como se dá o processo de significação
no mundo, significações estas que irrompem através de inquietação movidas por
sujeitos interpelados pela ideologia, historicidade, exterioridade e o simbólico, que
contribuem para a constituição das várias maneiras de se significar.
O próprio objeto da AD intervém na concepção do processo de significação. O
objeto da Análise de Discurso é o próprio discurso, e esse é conceituado por Orlandi
(2009, p. 20), como “efeitos de sentidos entre locutores”. Tal concepção do que venha
ser discurso nos remete a ideia de movimento constante, sendo assim, pode-se dizer que
a Análise de Discurso trabalha a linguagem em funcionamento no mundo, com homens
falando em um jogo constante de constituição e de sentidos múltiplos que estão à
deriva, e não como uma forma estanque e abstrata.
Além disso, a teoria utilizada nos permite compreender que as práticas
discursivas sofrem com constantes intervenções, que ocorrem por meio de embates
entre as formas materiais e abstratas em um jogo de domínio, comandadas por relações
de poder. Sendo assim, é por meio dos embates discursivos e das formas de domínios
que ocorre o processo de legitimação e significação dos dizeres.
Nessa perspectiva, o corpus de análise nesse artigo traz a “Denominação do
Idioma Nacional do Brasil”3, que se deu pelo artigo 35º do ato das Disposições
Transitórias apenso à constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 18 de
Setembro de 1946. É através desse documento que ocorre o processo de constituição da
denominação do idioma nacional, em uma aparente busca também da identidade da
nação brasileira. O documento aqui citado foi elaborado por uma determinada comissão
composta por membros de diversos setores da sociedade. De acordo Guimarães (2012,
p.96):

“O governo nomeará comissão de professores, escritores e


jornalistas, que opine sobre a denominação do idioma nacional.”
(Grifos nossos).

A citação trazida por Guimarães (2012) marca que o documento da denominação


do idioma nacional em um primeiro momento é tratado apenas como uma pesquisa de
opinião que opine sobre a denominação do idioma nacional. Entretanto, esse
documento posteriormente é o que possibilita que a denominação da língua nacional
seja definitivamente o da língua portuguesa. Outro fator que nos chama a atenção
refere-se ao O governo nomeará comissão, nesse viés, o governo é compreendido como
aparelho ideológico que representa o Estado, e esse detém o poder de normatizar e
regular a sociedade brasileira. Nessa perspectiva, se instaura um embate entre a eficácia
da colonização feita por Portugal e a constituição linguística do povo brasileiro que já
vivia no país, é nesse embate entre a língua do colonizador e do colonizado que ocorre o
processo de assujeitamento, que possibilita que haja efeitos de sentidos que contribuam
para a denominação da língua nacional enquanto ideia de civilidade.
Guimarães (2012) traz ainda outro elemento que possibilita uma nova reflexão e
análise, esta se refere a quais pessoas poderiam participar da comissão que levaria a

3
Ver documento na íntegra em anexo.
denominação do idioma nacional. Segundo Guimarães (2012), a comissão seria
composta por professores, escritores e jornalistas. Além dos membros citados
anteriormente pelo autor, posteriormente, analisaremos no primeiro recorte outros
nomes e funções dos sujeitos que participaram dessa comissão para a elaboração desse
documento da denominação do idioma nacional. Ressaltamos que os recortes analisados
constituem uma memória de arquivo que marca as outras vozes dentro dos dizeres dos
sujeitos que contribuíram para a elaboração desse documento. O sujeito aqui descrito é
o sujeito da AD, esse é compreendido como interpelado pela ideologia.
Nesse sentido, a Análise de Discurso concebe um sujeito interpelado a todo
instante pelo jogo da significação. Assim, durante o percurso pela busca da significação
acabamos sendo atravessados ideologicamente por uma relação com a exterioridade. E é
por meio dessas relações entre exterioridade, língua, sujeito e história que ocorre à
constituição dos falantes e dos dizeres. Sendo assim, os efeitos de sentidos produzidos
são marcados pelo discurso ‘sobre’4 e esses significam na constituição dos dizeres e em
sua reformulação por meio da memória discursiva que os permeia.
Ao concebermos a denominação do idioma nacional na perspectiva da
interpretação trazemos concomitantemente à tona a história. Entretanto, pensamo-la
como fonte de relação de poder e de sentido. Apreendê-la significa, assim, deslocar-se
para espaços de conflitos e de tensões que se abrem, propiciando os jogos das
interpretações. Sobre o enlace entre história e discurso Pêcheux (1997, p.75) afirma:

A materialidade específica do discurso é o confronto entre o histórico


e o linguístico, que cria um espaço teórico entre esses pontos. Todo o
enunciado é suscetível de tornar-se outro diferente de si mesmo,
desloca-se discursivamente de seu sentido para derivar para um outro.
É preciso lembrar que a história a que nos reportamos nesse artigo, não é aquela
cronológica e evolutiva. Orlandi (2009, p.79), “o historicizar discursivo não traz como
foco principal a cronologia dos fatos”, pois não nos interessa enquanto analistas as
datas, mas os modos como os sentidos foram criados e passaram a circular e significar
nos discursos dos sujeitos. Sendo assim, são os efeitos de sentidos sobre a constituição
do idioma nacional através do documento de sua origem que nos interessa, além de,
como esse documento significa na constituição da identidade desse povo a partir dessa
4
A AD não constitui metodologia ou técnica de pesquisa, mas uma disciplina de interpretação constituída
na intersecção de epistemologias distintas, pertencentes a áreas da linguística, deslocando-se a noção de
fala para discurso; do materialismo histórico, do qual emergiu a teoria da ideologia; e da psicanálise, de
onde veio a noção de inconsciente, abordada pela AD como o descentramento do sujeito. (Discurso Sobre
de ORLANDI, 2009)
denominação, já que se cria um imaginário de povo civilizado a partir da legitimação da
língua portuguesa como sendo a língua oficial do Brasil.
Após essas breves reflexões teóricas, iniciaremos a análise do corpus. Passemos,
então, ao primeiro recorte:

Da Academia de Letras
Embaixador José Carlos de Macedo Soares
Dr. Cláudio de Sousa
Dr. Afonso de Taunay
Professor Pedro Calmon
Dr. Levi Carneiro

Da Academia de Filologia
Professor Sousa da Silveira
Pe. Augusto Magne
Professor Clóvis Monteiro
Professor Júlio Nogueira
Gal. Fortes de Oliveira, Inspetor Geral do Ensino Militar.
Professor Inácio Manuel Azevedo do Amaral, Reitor da
Universidade do Brasil.
Pe. Leonel Franca, Reitor da Universidade Católica.
Dr. Herbert Moses, Presidente da Associação Brasileira de Imprensa.

Deputados Federais
Dr. Gustavo Capanema, Ex-Ministro da Educação
Dr. Gilberto Freire
(Grifos nossos)

Ao analisar os nomes dos membros que formularam o documento da


denominação do idioma nacional, constata-se que há outros dizeres que circundam o
documento e esses produzem efeitos de sentidos múltiplos. Como se pode observar,
além de professores, jornalistas e escritores, há ainda padres, políticos, militares e
reitores de universidades. Sendo assim, a constituição de tal documento ocorre em
determinadas formações imaginárias e condições de produção. Segundo Orlandi (2009),
as condições de produção devem ser consideradas, pois compreendem os sujeitos, as
situações e a memória. Os sujeitos nada mais são do que reprodutores desses discursos
afetados sempre pela exterioridade na sua relação com os sentidos.
As formações imaginárias surgem nessa análise como sendo um dos principais
recursos a serem utilizados para se pensar as relações discursivas entre o colonizador
(Portugueses) e o colonizado (Brasileiro/ Índios/Africanos), já que “não são os sujeitos
físicos e nem os seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão inscritos na
sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso,
mas suas imagens que resultam de projeções”. ORLANDI (2009, p. 53).
É através dessas projeções que se torna possível a passagem das situações ditas
como empíricas, sejam essas de lugares e dos sujeitos, para as posições do sujeito no
discurso. Concorrem assim, para uma distinção entre posição e lugar. Nesse viés, as
formações discursivas que permeiam os discursos sobre a denominação do idioma
nacional estão imbricados em uma dada formação ideológica, ou seja, se dá a partir de
uma posição em uma conjuntura sócio-histórica, e é por meio dessa união entre
ideologia e historicidade que se determina o que pode e o que não pode ser dito na
prática discursiva.
Nesse sentido, as vozes outras encontradas no documento indicam que há uma
dada formação imaginária que cria projeções de qual seria o papel específicos desses
membros padres, reitores, militares, escritores, professores e jornalistas na sociedade
que contribuiriam para a elaboração do documento. Pode-se dizer ainda, que há uma
memória discursiva que se dá entre o interdiscurso, aquilo que foi dito antes em outro
lugar, e o intradiscurso, formulação de novos dizeres. O processo de ressignificação do
dizer trazido pela memória discursiva é tomado pelas formações imaginárias e posições
sujeitos desses membros que compõem essa comissão. Vale ressaltar que as vozes aqui,
estão unidas nesse primeiro momento buscando a criação da denominação do idioma
nacional, o termo nacional reafirma a busca da identidade da nação por meio da língua.
Através da análise compreende-se que a nação que se busca, analisando os
membros da comissão, será uma nação temente a Deus, já que tem padres como
membros, regida pelo Estado, esta representada por militares e deputados na comissão,
e preservará a educação, pois tem como maior número membros professores, jornalistas,
reitores de universidades. Sendo assim, a denominação de uma língua contribuirá para
que a identidade nos moldes europeus se constitua no país brasílico, essa constituição
ocorre sobre os pilares da educação, lei e igreja, pilares esses semelhantes aos criados na
Europa. Além desses elementos da cultura europeia, é necessário para que se tenha uma
fiel imitação do povo civilizado, que a língua desse povo também seja trazida para a
terra colonizada.
Prosseguindo em nosso percurso analítico, apresentaremos um conjunto de
recortes que apontam para uma relação entre colonizador e colonizado, porém, o
discurso de análise traz apenas os dizeres dos membros da comissão e esses seguem o
pensamento de Portugal. O recorte de análise a seguir tem por título “Breve retrospecto
histórico”, como o próprio nome diz a comissão faz um breve relato sobre o percurso da
colonização do Brasil por Portugal.
Nesse primeiro momento chama-nos atenção os seguintes dizeres [...]
Descoberto o Brasil pelos portugueses em 1500, tomada posse da terra em nome do Rei
de Portugal, e iniciada anos depois a colonização, a língua portuguesa foi trazida pra
cá, e pouco a pouco se foi propagando[..]. Ao analisar esse recorte compreende-se que
há um apagamento significativo do processo de colonização, pois silenciasse as várias
maneiras e métodos que foram utilizados para a propagação da língua portuguesa.
Sendo assim, omite-se a catequização jesuítica, a imposição do ensino a língua
portuguesa por Pombal por meio do Diretório dos índios, e a captura e escravidão dos
índios para que aprendessem a língua do colonizador. Ressalto ainda esses dizeres “...a
língua portuguesa foi trazida pra cá, e pouco a pouco se foi propagando”, parece-nos
que a língua é comparável a um objeto qualquer que foi encaixotado e trazido para o
Brasil, mais uma vez, a cultura linguística brasileira é silenciada, como se os povos que
aqui viviam não tivessem língua e, por isso, era necessário que se trouxesse outra, ou
pior, como se as línguas indígenas aqui existentes fossem inferiores a língua portuguesa
e por esse motivo deveria ser substituída por uma de maior prestigio e civilizada.
A questão da imposição da Língua Portuguesa também é tratada por Mariani
(2004, p. 117), quando a autora retoma ao diretório dos índios criado por Pombal:
LPL- Diretório dos Índios- Édito que é necessário observar nas aldeias
dos índios do Pará e do Maranhão, conforme outras ordens de sua
Majestade.
“(...) 6. Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as
nações, que conquistaram novos Domínios, introduzir logo nos Povos
conquistados seu próprio idioma, por ser indisputável (sic), que esse é
um dos meios mais eficazes para desterrar dos Povos rústicos a
barbaridade dos seus antigos costumes; e ter mostrado a
experiência, que ao mesmo passo, que se introduz neles o uso da
Língua do príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o
afeto, a veneração, e a obediência ao mesmo príncipe (...).” (p. 117)
(Grifos nossos)

A imposição da língua irrompe como um meio de se tirar dos “Povos rústicos a


barbaridade dos seus antigos costumes”. Aparece nesse momento o efeito de sentidos
de que ao não saber falar a língua portuguesa, automaticamente os indígenas foram
colocados em um grupo de bárbaros sem cultura, língua ou aspecto humano, já que o
pensamento enquanto povo bárbaro nos remete ao imaginário de que os mesmos
pertencem a classes dos animais. A noção de civilidade é outra marca encontrada nesse
trecho do diretório, pois se introduz neles o uso da Língua do príncipe, sendo assim, o
imaginário instaurado é o de que só povos civilizados tem príncipe como sendo os
detentores do poder, como se a monarquia fosse à origem da civilidade em todas suas
instâncias. A língua portuguesa então é tratada como origem da civilidade e como meio
que possibilita do afeto, a veneração, e a obediência ao mesmo príncipe, o que
contribui para que haja novamente o período de vassalagem que existiu na Europa e
agora se institui esse mesmo processo na terra brasílica no qual o índio torna-se o
vassalo.
O mesmo imaginário de civilidade também aparece no documento da
denominação do idioma nacional. O recorte a seguir mostra que [...]“Não tardou,
porém, que se verificasse um princípio linguístico que se tem reconhecido como
verdadeiro: postas em contacto duas línguas, uma instrumento de um civilização muito
superior à civilização a que a outra serve, esta cede o seu terreno à primeira. Assim, o
português, expressão de uma civilização mais adiantada, triunfou sobre o tupi.”[...] O
imaginário da civilidade da nação portuguesa aparece reforçando o estereótipo de que o
povo que aqui vivia não era civilizado, pois sua língua não era compreendida pelos
portugueses que tomavam possa da terra. Silenciasse novamente a imposição
linguística, verdadeiro motivo do triunfo da língua portuguesa sobre o tupi, assim, a
noção de civilidade é deturpada nesses dizeres, já que é a imposição se dá por meio da
repressão, que garante que uma língua seja oprimida pela outra.
Nesse sentido, a língua portuguesa surge na “Denominação do Idioma Nacional
do Brasil”, por meio da memória como sendo uma língua vernácula, pura, homogênea e
advinda de um país com tradição e cultura milenar, noção essa que liga a imagem da
Europa como lugar de povo civilizado. O pensamento de língua homogênea contribui
para uma memória que se instaurou até os dias atuais, criando um imaginário de que ao
falar a língua portuguesa só falamos uma língua, e essa é linear e com sentido
determinado. Instaura-se então a concepção língua fluida e imaginária 5, a qual Orlandi
trabalha.
A língua portuguesa é então língua de imposição e de administração da colônia.
Portugal buscava através das grandes navegações desbravar o mundo e colonizar outras
terras para espalhar sua língua, cultura e identidade, aumentando seus domínios e
levando a “verdadeira” fé a povos sem cultura ainda não “descobertos”.

5
Ver ORLANDI, Eni P. A língua brasileira. Ciência e Cultura.
Outro recorte que merece destaque encontra-se no documento da denominação
de língua nacional nas “Considerações linguísticas”[...] Os estudos linguísticos sérios e
imparciais, aplicados ao Brasil, fazem-nos concluir que a nossa língua nacional é a
língua portuguesa, com pronúncia nossa, algumas leves divergências sintáticas em
relação ao idioma atual de além-mar, e o vocabulário enriquecido por elementos
indígenas e africanos e pelas criações e adoções realizadas em nosso meio.[...] É nas
considerações linguísticas que a comissão decide ressaltar que o que se fala no Brasil é
a língua portuguesa, para fazer tal afirmação eles se lançam na analise da estrutura da
língua falada e escrita, e argumentam que a língua em questão é a portuguesa, por isso,
é essa denominação que cabe a ela. O termo imparcialidade chama-nos a atenção no
discurso analisado, pois nos parece que a visão tratada no documento é feito de maneira
unilateral, como se houvesse a negação novamente da cultura aqui existente.
Orlandi (2005) afirma que diferentemente do que diz o documento de nomeação
do idioma nacional falamos sim uma língua brasileira e não portuguesa.

Quando os portugueses aportaram por aqui, eles depararam não


apenas com seres diferentes, mas também com uma variedade de
línguas faladas pelos índios e com um mundo muito diferente do seu.
Esses portugueses precisaram nomear coisas que não conheciam, que
não estavam na memória linguística deles. Precisamos lembrar que,
naquele momento, nomear era também administrar. Ou seja, o que não
era nomeado poderia fugir ao controle. Assim, os primeiros
colonizadores perceberam que não poderiam manter a língua
portuguesa como ela era, pois precisavam se fazer entender. Havia,
enfim, um mundo novo a ser descoberto, a ser conquistado, a ser
nomeado. Aí já ocorrem as primeiras transformações da língua. A
materialidade do mundo começa a interferir na materialidade da
língua e vice-versa.

De acordo com a autora a colonização de Portugal se deu de forma distinta da


colonização do Brasil. A historicidade é outra, assim como as condições de produção os
são. Desde sua descoberta é notório que a língua que aqui chegou sofreu transformações
e passou a incorporar elementos das línguas indígenas, africanas, de imigrantes e de
fronteira, transformando assim sua materialidade. É através desse embate com a
materialidade do novo mundo e de sua história, que ocorre processo que culminou com
a composição de uma língua rica e com suas singularidades e são essas singularidades
que a diferencia da língua portuguesa trazida por Portugal.
Ao dizer em sua conclusão que [...]“À vista do que fica exposto, a Comissão
reconhece e proclama esta verdade: o idioma nacional do Brasil é a Língua
Portuguesa”.[...] Como essa afirmação a comissão vai de encontro às ideias do
colonizador e legitima a língua como sendo portuguesa. Cabe dizer que a “verdade” ai
abordada é trazida na formação ideológica de um determinado grupo de pessoas, sendo
assim, só podemos observar e analisar os prós já que os contras são silenciados. E ainda
que haja esse silenciamento no discurso analisado, o mesmo significa e constitui
sentidos, sujeitos e língua.
Como último recorte de análise trago os seguintes dizeres [...] “Essa
denominação, além de corresponder à verdade dos fatos, tem a vantagem de lembrar,
em duas palavras – Língua Portuguesa-, a história da nossa origem e a base
fundamental de nossa formação de povo civilizado”.[...] Mais uma vez aparece a noção
de se reafirmar que a verdade é que a língua praticada no Brasil é a Língua Portuguesa.
Portugal surge como o colonizador e é só a partir da sua colonização que a terra
brasílica recebe com a língua a cultura de um povo civilizado, assim, a colonização
portuguesa produz um efeito de sentido como se fosse a gênesis da terra descoberta.
Silencia-se tudo o que se tinha antes e só a partir do descobrimento que o índio, povo
bárbaro, ganha título de gente e é só depois de sua doutrinação e conhecimento da
língua portuguesa que ele se torna civilizado.
As análises apontaram que a concepção de língua portuguesa no documento que
estabelece a “Denominação do Idioma Nacional”, concebe a mesma como sendo a
língua pura, transparente, homogênea e única, língua essa que traz uma memória
discursiva imbricada a imagem da nação portuguesa como fiel representante da Europa
e a ideia de civilização como sua marca. Ou seja, os membros da comissão retomam os
dizeres já proferidos em outros períodos e em outras condições de produção, e esses
significam novamente nos dizeres posteriores. Além disso, é necessário ressaltar que a
noção de civilidade aqui abordada se inscreve em uma formação discursiva diferente
para portugueses e brasileiros. Orlandi (2009, p.35) diz que “as formações discursivas
não são iguais. Palavras iguais podem significar diferentemente porque se inscrevem em
formações discursivas diferentes. Elas se dão em condições de produção diferentes e
podem ser referidos a diferentes formações discursivas”.
Nesse sentido, se pode dizer que há uma busca por uma língua inatingível 6 se
pensarmos em linearidade linguística, e civilidade enquanto homogeneização de um
povo, cultura e crenças. Para a Análise de Discurso a língua não é linear, e muito menos
transparente, ela é sujeita a falhas e a equívocos, e são as margens do dizer que
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Ver GADET, F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível: o discurso na história da linguística.
contribuem para que os sentidos sempre possam vir a ser outro. É a incompletude da
linguagem que permite que sujeitos e sentidos derivem, escorreguem, deslizem para
outros sentidos e posições.

Considerações

O presente artigo teve por objetivo compreender como o documento da


“Denominação do Idioma Nacional” contribuiu para que a língua portuguesa se
constituísse como lugar de civilidade que significasse nação, identidade e sujeitos.
A noção de civilização abordada é categoricamente instaurada por meio de uma
memória discursiva e formações imaginárias, que se constituem mutuamente durante o
processo de enunciação no documento analisado. A língua portuguesa surge como lugar
da pureza linguística e como meio de dominação, controle e administração.
É através da língua portuguesa, essa com tradição e renome, que se busca criar a
identidade da nação brasileira. Mas afinal, quem era o Brasil no cenário mundial antes
da denominação do português como língua nacional?
A resposta que emergirá se pensada pelos olhos dos povos “civilizados” será a
de que o Brasil era um país recém-descoberto, desconhecido por muitos e sem nenhuma
tradição no cenário mundial. Sendo assim, é a tradição de descobertas e domínios de um
povo, no nosso caso o colonizador português, que dá a noção de civilidade e não a sua
própria constituição.
Nesse sentido, Portugal como colonizador volta os olhos para a colônia brasílica
e a vê como um lugar de faltas e por esse motivo seria muito mais fácil transformar a
colônia brasileira nos moldes europeus, e para isso era necessário que a sua língua fosse
importada também, transportando assim seu estereótipo de cultura civilizada e de
importância para a terra de “ninguém”. A conclusão a que chegamos durante análises e
leituras outras com aporte da teoria é que os efeitos de sentidos encontrados foram
outros. As derivas foram constantes nos caminhos que percorremos, e esses nos
levaram a refletir sobra a colonização linguística em um viés de desconstrução do
imaginário de colonização. Pode-se se dizer que o que encontramos na colonização
linguística vigente é um processo de descolonização, na qual Portugal silencia a
identidade, religião e língua do povo que aqui vivia.
REFERÊNCIAS

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Nacionalismo Linguístico no Brasil. Campinas, Pontes. 1996.

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Brasileira. In: Eduardo Guimarães e Eni P. Orlandi (Orgs.). Língua e Cidadania:
oportuguês no Brasil. Campinas, SP: P
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Orlandi (Orgs.). Língua e Cidadania: oportuguês no Brasil. Campinas, SP: Pontes, 1996.
¬¬______.Enunciação e política de línguas no Brasil .In Revista LETRA-Espaços de
Circulação da Linguagem nº 27. Disponível em
http://w3.ufsm.br/revistaletras/letras27.html
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MARIANI, Bethânia. Colonização linguística. Campinas, Pontes. 2004.

MARIANI, Bethânia. Academias do século XVIII – Um certo Discurso sobre a


História. In: Eduardo Guimarães e Eni P. Orlandi (Orgs.). Língua e Cidadania:
oportuguês no Brasil. Campinas, SP: Pontes, 1996.

ORLANDI, Eni P. A língua brasileira. Ciência e Cultura. Vol. 57, nº 2. São Paulo,
abril/junho, 2005.

ORLANDI, Eni P. Sobre o intangível, o ausente e o evidente. In: GADET, F.;


PÊCHEUX, M.; GADET, F. A língua inatingível: o discurso na história da lingüística.
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ORLANDI, Eni. GUIMARÃES, Eduardo. “Apresentação" e Formação de um


Espaço de Produção Linguística: A Gramática no Brasil, História das Ideias
Linguísticas: Construção do Saber Metalinguístico e Constituição da Língua Nacional.
Campinas/Cáceres: Pontes/Unemat, 2001.

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