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Francisco Contente Domingues

6.1.2. A Guerra em Marrocos

A expansão portuguesa no Norte de África teve desde o início um cunho


marcadamente político e militar. A própria empresa de Ceuta radica no essencial no desejo
de afirmação de uma dinastia jovem, tanto no plano interno como no externo, e a dimensão
dos recursos reunidos revela bem a importância de que se revestia. D. João I e os seus
conselheiros gizaram a expedição com um cuidado digno de registo, ao longo de vários
anos, em que a par da concentração e preparação dos homens e dos meios de transporte
(arrolando e fretando os mais de 200 navios necessários onde os havia disponíveis, tanto no
país como no exterior) se arquitectou uma manobra de diversão no plano diplomático, com
o envio do embaixador Fernão Fogaça ao Duque de Holanda, oficialmente portador de um
repto com o pretexto das dificuldades criadas aos comerciantes portugueses,
encapotadamente pedindo ajuda na mistificação que se organizava: o Duque concordou em
assumir o desafio fictício para que a preparação da armada pudesse prosseguir sem levantar
suspeitas quanto ao seu verdadeiro destino.
O objectivo em vista só foi revelado à hoste embarcada já a caminho de Ceuta, e o
ataque foi um rotundo sucesso por ter beneficiado de vários factores favoráveis: a surpresa,
em primeiro lugar, que encontrou os habitantes da cidade totalmente desprevenidos perante
uma ofensiva de tal envergadura; o local onde desembarcaram as tropas que lançaram o
ataque por terra, na parte norte da península, entre a cidade e o monte de Almina (uma das
duas "colunas de Hércules" que juntamente com o rochedo de Gibraltar representavam
miticamente o fim do mundo conhecido na Antiguidade), onde a defesa era mais fraca
justamente devido à imprevisibilidade de um ataque que não viesse da parte continental; e,
factor não menos importante, a forte moralização do contingente português, que num
ímpeto se lançou na batalha. A cronologia dos acontecimentos dá bem conta da celeridade
com que tudo se passou: a armada largara de Lisboa no dia 25 de Julho de 1415, e menos
de um mês depois, a 21 de Agosto, tomava a cidade.
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Estava aberta a porta de entrada para a conquista de Marrocos, mas provavelmente


essa ideia não existia sequer em esboço, à época. Um facto que revela a não existência de
um plano pré-arquitectado para prosseguir a ocupação militar da região é o de D. João I não
ter sequer designado o responsável pela manutenção de Ceuta depois da sua conquista,
tanto quanto se sabe, indício ainda de que a sua própria manutenção podia nem sequer ser
ponto assente por completo desde o início1. E por muito grande que fosse o interesse do
monarca em reforçar essa via de expansão que então se abria, o certo é que até ao fim do
seu reinado não se lançou mais nenhuma empresa de grande vulto.
O sucesso de Ceuta e a motivação da sua conquista não definiram padrões
imutáveis. Do ponto de vista militar, a expansão portuguesa em Marrocos conheceu de
tudo, das maiores vitórias às mais estrondosas derrotas, das empresas vencidas pela
surpresa e pela audácia às campanhas de sítio e às batalhas envolvendo contingentes de
milhares de homens. Quanto às motivações, elas também variaram com o tempo, os
espaços e as circunstâncias: o interesse político e estratégico do início viu ser-lhe acrescido
o interesse económico de exploração dos amplos recursos magrebinos (das reservas
piscícolas aos produtos manufacturados e da agro-pecuária), bem como a procura de artigos
de troca com a África subsaariana, tão logo os Portugueses iniciaram as trocas comerciais
estabilizadas em torno de pontos de apoio fixo, como as feitorias de Arguim (pelos meados
de Quatrocentos) e São Jorge da Mina (1481-2).
Mantiveram-se outros acicates de uma forma mais ou menos constante. A conquista
do Magrebe era por muitos entendida como serviço de Deus, competindo ao bom cristão
guerrear o infiel, prolongando o espírito da Reconquista e dando aos homens de armas
pretexto e espaço para o exercício dos seus valimentos, embora as circunstâncias tivessem
suscitado vozes discordantes. Marrocos foi uma verdadeira escola de guerra, quer já no
século XV, quer depois durante a centúria de Quinhentos: jovens fidalgos da mais variada
estirpe lá iniciaram amiúde as suas carreiras militares, que a muitos levaria mais tarde à
Índia e até ao Brasil (apenas dois exemplos sobejamente conhecidos: D. João de Castro,

1V. António Dias Farinha, Portugal e Marrocos no Século XV, 3 vols., Dissertação de Doutoramento,
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1990, e Os Portugueses em Marrocos, [Lisboa,] Instituto
Camões, 1999.
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futuro governador e vice-rei da Índia, e o poeta Luís de Camões), aparecendo o espaço


norte-africano como um primeiro e fácil ensejo de exercitar o domínio das armas pela sua
proximidade, treinando-os no contacto directo com o infiel e no combate em condições
muito diversas das habituais, até do ponto de vista climatérico.
Os preparativos de 1415 foram encabeçados pelo próprio monarca, assistido pelo
príncipe herdeiro e pelos infantes D. Pedro e D. Henrique. De todos, foi sem dúvida este
último o mais empenhado na empresa marroquina, interesse de que deu provas bastantes
durante toda a vida. O primeiro grande acto público em que D. Henrique participou foi a
conquista de Ceuta; o último foi a de Alcácer Ceguer, ao lado do sobrinho, D. Afonso V. E
o infante crismado "O Navegador" pela sua responsabilidade na organização das viagens de
descobrimento marítimo embarcou quatro vezes durante toda a sua vida, sempre e apenas
em direcção ao Norte de África: as duas primeiras para a conquista de Ceuta e na armada
preparada para socorrer a praça sujeita a assédio poucos anos volvidos; para Tânger, mais
tarde, e finalmente para Alcácer Ceguer.
É D. Henrique um dos responsáveis maiores pelo passo seguinte, o ataque a Tânger,
gorado em parte pela sua condução dos acontecimentos. O infante desembarcou em Ceuta
com o grosso das tropas e marchou para aquela cidade por percurso curto em linha regra
mas muito difícil, que obrigou a um largo desvio e custou por isso tempo precioso a
vencer, enquanto D. Fernando seguia pelo mar com a armada. À chegada já todos estavam
avisados das intenções portuguesas, o que permitiu reunir um exército de socorro: os
sitiantes passaram depressa à condição de sitiados, entre a praça que queriam conquistar e
as tropas que a vieram socorrer. Conhece-se o desfecho: a rendição tornou-se inevitável e
como penhor da garantia dada pela permissão de saída dos Portugueses (a entrega da cidade
de Ceuta), ficou prisioneiro o infante D. Fernando, que morreria uns anos depois no
cativeiro. Má condução militar ou opção imposta por objectivos não tão visíveis, como
sugere Dias Farinha, para quem o acto aparentemente incompreensível de prescindir da
armada para o desembarque das tropas em ponto mais próximo e favorável, resultava afinal
de um escopo mais alargado: "mais do que a própria conquista de Tânger, de Alcácer
Ceguer ou Arzila, os portugueses pretendiam ocupar o território norte de Marrocos,
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submeter os seus habitantes, estabelecer laços vassálicos e conseguir parceiros


comerciais"2.
O fracasso pesou; Tânger seria depois um alvo privilegiado, na mira de remir a
humilhação do desastre.
Com D. Afonso V dá-se um novo impulso de conquista, e em 1458 o alvo é Alcácer
Ceguer; o monarca usa os meios reunidos para responder ao apelo do Papa consequente à
tomada de Constantinopla pelos Turcos em 1453, que provoca grande comoção na
cristandade mas nenhum entusiasmo visível em juntar esforço no sentido de ir contra o
Turco, no que todavia se interessou D. Afonso V. A empresa de 1458 alarga o controlo
português no Norte de África e, indirectamente embora, acode àquele apelo. Ceuta e
Alcácer em si, porém, não valem de muito, e a mira continua apontada para Tânger. O rei
dirige algumas acções nesse sentido ao longo da década de 1460, mas só em 1471 se
organiza outra grande expedição, com 477 navios e 30000 homens, segundo o capítulo
CLXII da crónica de D. Afonso V de Rui de Pina (números seguramente exagerados),
cronista este que revelou a intenção de atacar Tânger, abandonada em favor de Arzila por
aquela praça ser tida por bem defendida e difícil de conquistar. Mas a opção bem poderia
ter sido Larache, próxima e com melhores condições de ancoragem, não fora o desejo de
conquistar a praça mais próxima de Tânger3, que efectivamente foi abandonada logo de
seguida pelos seus habitantes, face à notícia da queda de Arzila e da não aceitação da
rendição dos seus defensores por parte dos Portugueses.
A conquista militar beneficiou de uma conjuntura interna favorável: Mulei Xeque, o
senhor de Arzila, andava em guerra com o reino de Fez, onde no ano seguinte estabeleceria
a dinastia oatácida, e veio de pronto celebrar pazes com os Portugueses e reconhecer o
status quo; na verdade o seu interesse maior estava a sul, não nas fortalezas costeiras cuja
soberania reconheceu - Ceuta, Alcácer, Arzila e Tânger passaram a dominar uma área de
influência portuguesa e a estabelecer um ponto de viglância e controlo do estratégico
estreito de Gibraltar. Por outro lado o monarca português tomava posição na disputa com

2 Idem, Portugal e Marrocos no Século XV, I, 145.


3 Idem, Os Portugueses em Marrocos, p. 25.
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Castela pelo Norte de África, vendo reconhecido o direito à conquista de Fez nos acordos
de Alcáçovas (1479), depois confirmado em Tordesilhas (1494).
Por altura do convénio de Alcáçovas já o príncipe herdeiro tinha uma palavra a
dizer na condução dos negócios ultramarinos; e se normalmente se atende às iniciativas do
seu reinado tendentes à preparação da busca do caminho marítimo para a Índia, não é
menos certo que D. João II denotou preocupação pelo continuar do esforço de expansão no
Norte de África. O aspecto mais visível dessa continuidade foi precisamente o articulado do
segundo tratado de Tordesilhas, onde entre outras matérias tratou de ver reconfirmado o
direito português à conquista do reino de Fez, para o que tinha dado entretanto um passo
indiciário dessa intenção, mandando construir a fortaleza da Graciosa em 1489, a uns 15
kms de Larache: "Essa escolha denuncia o plano de ataque a Alcácer Quibir e, mais tarde, à
própria cidade de Fez", no dizer de Dias Farinha, já que se o rei procurasse um ancoradouro
marítimo teria melhores opções4. A oposição encontrada de imediato levou a uma retirada
que se completou sem consequências de maior, mas no seguimento da qual D. João II
escreveu ao Papa (cujo apoio tinha entretanto pedido e obtido) reafirmando o seu propósito
e justificando o desaire.
É todavia com D. Manuel que se assiste ao mais sério assalto ao Norte de África;
uma vez mais, estamos perante um reinado que parece dominado pelo sonho da Índia e do
comércio das ricas especiarias: e assim é de facto normalmente visto pela historiografia.
Mas não houve outro momento em que as conquistas no Magrebe concitassem tanta
atenção e esforço.
No dealbar do século XVI os Portugueses controlavam portanto um conjunto de
praças a Norte, que conferem o domínio do território adjacente e do estreito de Gibraltar:
são elas, de leste para oeste, Ceuta, Alcácer Ceguer e Tânger, praticamente contíguas, e
Arzila, um pouco mais distante. Mas num curto espaço de tempo a sua área de influência
alarga-se consideravelmente: em 1505 Diogo Lopes de Sequeira constrói o castelo de Santa
Cruz do Cabo de Guer (Agadir), bem mais a sul, que em 1513 é vendido à coroa
portuguesa; em 1506 Diogo de Azambuja, notabilizado pelo comando da expedição que

4 Idem, ibidem, p. 28.


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iniciou a fortaleza de São Jorge da Mina, em 1481, constrói o Castelo Real em Mogador, o
qual vem a ser abandonado em 1510 "em circunstâncias mal conhecidas"5; em 1508 o
mesmo Diogo de Azambuja apropria-se de Safim, e em 1513 é a vez de Azamor,
conquistada por D. Jaime, duque de Bragança.
Os propósitos de D. Manuel são evidentes, inscritos que estivessem ou não numa
lógica imperialista de largo escopo: o ataque ao infiel em geral e ao reino de Fez em
particular desenha-se pelo enredamento da capital numa teia de fortalezas espalhadas pela
orla marítima, que além disso pretendem controlar a navegação corsária e garantir o acesso
a zonas de grande interesse económico para os Portugueses, como é o caso d a região de
Safim. Os aspectos diplomáticos também não foram descurados: o tratado assinado com
Castela em Sintra, no ano de 1509, o que é que são áreas de influência e expansão de cada
uam das partes.
Uma rede de fortalezas ao Norte e outra a Sul rodeiam à distância a capital do reino
de Fez, como se disse, mas pelo meio abria-se um largo espaço vazio. É justamente aí, na
foz do rio Cebu, que passa ao quase ao lado da cidade e representaria o ponto mais próximo
em poder dos Portugueses, que se pretende em 1515 erigir uma fortaleza, mas a expedição
redunda num tremendo fracasso: os Mouros atacam na maré baixa, quando os navios ao
largo não podem socorrer a posição em terra, e morrem quatro ou cinco milhares de
Portugueses. É a maior derrota depois do fracasso de 1437, e antes de 1578, mas, mais do
que isso, representa um ponto de viragem, sustendo-se a partir de então o impulso
conquistador que vinha animando o monarca português.
A derrota de 1515 em Mamora teve sem dúvida um forte impacto, mas só por si não
explica tudo: o reforço dos grandes blocos políticos e militares, a nível mundial, e a
situação interna de Marrocos tiveram por igual um papel decisivo no arrefecimento dos
projectos de conquista, como defende Maria Augusta Lima Cruz6.
D. João III conduziu a política marroquina em termos que se podem definir com
uma palavra: retracção. O recrudescimento da pirataria e da navegação corsária (também

5Idem, ibidem, p. 29.


6Cruz,Maria Augusta Lima, "Os Portugueses em Marrocos nos Séculos XV e XVI", in História dos
Descobrimentos e Expansão Portuguesa, Lisboa, Universidade Aberta, 1990, p. 90.
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dos cristãos, ilustrado pelo crescente interesse dos Franceses por Marrocos), a incapacidade
das fortalezas cumprirem cabalmente os objectivos estratégicos que levavam à sua posse, o
custo de manutenção com as respectivas guarnições, enfim, um projecto de conquista cada
vez mais longínquo, convidavam à reflexão sobre o destino a dar às conquistas
marroquinas. A reacção dos xarifes vindos do sul (líderes políticos, militares e religiosos
oriundos da família do Profeta) sujeitou Marrocos a uma pressão ideológica violenta contra
o infiel - neste caso o Português -, que o reino de Fez combateria com lassidão7. Em 1524
os xarifes conquistam Marraquexe e a pressão interna contra as praças portuguesas não
cessa de aumentar: era a jihad, a guerra santa.
Datam dessa década as primeiras consultas de D. João III a notáveis do reino,
consubtanciadas numa questão singela: que fazer com as praças do Magrebe? Não nos é
possível acompanhar aqui o que se passou, que exigiria análise profunda e cuidada. Mas
diga-se que o monarca pareceu ter desde o início uma perspectiva muito realista da questão,
o que se pode avaliar pelo simples facto de ter posto em causa a possibilidade do abandono
de praças, contra um sentimento ideológico que ao tempo teria de ser forçosamente
adverso. Por isso se defrontou com um conjunto de pareceres contrário ao que parece ter
sido a sua ideia: não estava apenas em causa o que se afigurava ser um abrandamento ou
voltar de costas à luta contra o inimigo da fé, mas a própria concepção de Império que
subjazia à questão de fundo. Postos perante a perspectiva de uma "cura de emagrecimento",
vozes houve que pugnaram pela sua aplicação às paragens longínquas do Oriente,
mantendo-se Marrocos.
Os acontecimentos impuseram uma lógica diferente: utilizando a artilharia de que já
dispunha, e colocando-a num pico sobranceiro à fortaleza de Santa Cruz do Cabo de Guer,
o xarife Mawlay Muhammad Shaykh obtém em 1541 a rendição da praça, construída em
termos que evidenciam a não previsão do emprego daquela arma contra a guarnição. As
hesitações acabam e o rei português ordena o abandono de Safim e Azamor. Em 1549 o
mesmo xarife põe fim à dinastia oatácida em Fez e os Portugueses saem de Arzila e Alcácer

7V. António Dias Farinha, "Os Xarifes de Marrocos (Notas sobre a expansão portuguesa no Norte de
África)", in Estudos de História de Portugal, volume II - sécs. XVI-XX, homenagem a a. h. de oliveira
marques, Lisboa, Estampa, 1983, pp. 57-68.
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Ceguer, ficando reduzidos aos pontos estratégicos de Ceuta e Tânger, e a Mazagão mais a
sul, fortaleza agora isolada mas que dispunha de um porto que permitia o apoio fácil por via
marítima.
Mazagão é cercada em 1562, mas resiste; observa-se uma reacção notável no reino
perante a situação, que demonsta que o projecto marroquino envolvia muito mais que
grupos sociais localizados. Em finais de 1562 as Cortes chegam a propor medidas
excessivas, como o fim dos Estudos de Coimbra e afectação das suas rendas à empresa
magrebina8.
A atitude de D. Sebastião corporiza assim muito mais que o aventureirismo
entusiasta de um jovem desligado da realidade, como tão insistentemente tem sido dito,
desta ou de outra forma (e continua a ser, de alguma maneira): reflecte um sentir que
extravasa as próprias circunstâncias da educação que indubitavelmente lhe forjou o gosto
pelos feitos militares e a noção de serviço associada à luta contra o maometano. O monarca
corporiza a ideia sempre presente em vários sectores de opinião de que o abandono de
praças em Marrocos não fora a melhor solução, e a conjuntura internacional parecia
favorável depois do entusiasmo gerado pela vitória dos cristãos na grande batalha de
Lepanto, em 1571. Além de tudo o mais, havia um problema de imagem e reputação a
defender. O projecto de voltar à África do Norte teria sempre opositores, mas gozava por
igual de apoios diversificados; e tudo leva a crer que foi um dado adquirido desde sempre
na mente do monarca, em que se inscreve a estada em Ceuta e Tânger, em 1574,
prolongada por alguns meses. Definitivamente, D. Sebastião escolhia o Norte de África
como seu teatro de operações privilegiado
A grande jornada de 1578 foi preparada longa e cuidadosamente. O recrutamento de
soldados e a compra de material (nomeadamente artilharia e munições), que o reino não
podia fornecer nas quantidades e tempo desejados, foi feita no estrangeiro, sobretudo na
Flandres, onde se adquiriram 12 peças de campanha, 4000 arcabuzes, 25 mil quintais de
pólvora, 2000 pelouros de artilharia, a ainda mosquetes, mechas e vitualhas várias9. O
contingente expedicionário foi organizado em 4 terços a 2000 homens cada, um terço de

8 Idem, Os Portugueses em Marrocos, p. 72.


9 J. M. Queirós Veloso, D. Sebastião 1554-1578, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1935, p. 272.
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aventureiros, fidalgos que não podiam custear as despesas da jornada, muitos com
experiência militar anterior, e ainda corpos de espanhóis, italianos e flamengos, recrutados
nos seus países e organizados em função desse critério. Um corpo de cavalaria com 1500 a
1800 homens (os números divergem consoante as fontes informativas) e trinta e seis peças
de artilharia completavam o grosso da coluna. O número total de combatentes não é
conhecido com toda a segurança, devendo ter andado por 17 ou 18 mil homens, segundo a
maioria dos cálculos.
Aos Portugueses juntavam-se os locais. Na verdade a empresa beneficiava de um
pedido de auxílio que D. Sebastião atendeu prontamente: Mawlay Muhammad al-
Mutawakkil, desapossado do trono marroquino em 1574 pelo tio Mawlay 'Abd al-Malik,
dirige-se sem sucesso a Espanha pedindo apoio para a sua causa; tendo-lhe sido negada
essa pretensão endereça-a a Portugal, o que sem dúvida deu ao monarca um excelente
pretexto formal para a jornada. Um contingente marroquino esperou pois pela hoste para se
lhe juntar, com a expectativa de ver engrossada as suas fileiras com mais partidários de
Mawlay Muhammad a juntarem-se à causa no local.
O que se passou depois é passível de ser interpretado de duas maneiras. A
impreparação de D. Sebastião para um comando desta natureza e o seu excessivo desejo de
protagonismo, não autorizando a outrém quaisquer iniciativas, foram as razões principais
do desastre, no entender de Queirós Veloso. Ou então o Desejado olhava mais longe, como
afirma Dias Farinha, e as opções tomadas reflectem o objectivo mais lato de controlar a
Berberia, ao invés do escopo limitado que geralmente se admite10.
A armada de transporte desembarcou o contingente em Arzila (cujo alcaide se
mantinha fiel ao soberano deposto), que deveria seguir por terra até Larache e aí
reencontrar-se com os navios de apoio, mas a jornada não se completou pelas dificuldades
encontradas no caminho e deficiente abastecimento. O exército voltou portanto a Arzila,
onde chegou já depois de a armada ter largado para Larache e tornou por isso a pôr-se em
marcha. O que se passa depois é relatado de maneira diversa, mas não houve o propósito de
evitar as forças marroquinas e marchar direito àquela cidade, presa provavelmente fácil.

10 António Dias Farinha, Os Portugueses em Marrocos, pp. 79-80.


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Os exércitos defrontaram-se no dia 4 de Agosto, perto de Alcácer Quibir. A


impreparação de parte dos soldados portugueses para este tipo de batalha campal, a
ineficácia da artilharia - ao contrário da inimiga, apesar de contar com menor número de
peças -, a deficiente condução da acção , enfim, a desproporção de forças, de 1 para 3 ou 4,
tudo contribuíu para o desastre em que morreram os três reis presentes: o vencedor Mawlay
'Abd al-Malik de doença, ao que parece, o pretendente Mawlay Muhammad al-Mutawakkil,
afogado, e D. Sebastião, no fragor da luta.
A batalha de Alcácer Quibir teve grandes consequências sobre todos os pontos de
vista11: em relação a Portugal importa mencionar o desgaste financeiro para a preparação da
empresa, depois agravado pelo pagamento dos resgates dos cativos de qualidade, além das
óbvias consequências políticas que se conhecem bem; e foi o fim dos projectos
expansionistas no Magrebe.
Ceuta recusou o reconhecimento de D. João IV em 1640, e Tânger foi entregue à
Inglaterra aquando do casamento de D. Catarina com Carlos II, sendo ocupada em 1661 por
uma esquadra inglesa. Ficou Mazagão, finalmente abandonada em 1769 perante a
impossibilidade de resistir ao cerco posto à praça. Era apenas um resquício de um passado
que não tinha futuro, para mais dispendioso, mormente numa altura em que o erário régio
se defrontava com notórias dificuldades financeiras devidas à súbita queda do rendimento
do ouro do Brasil que se tinha declarado havia apenas dois anos.

11Idem (estudo crítico, introdução e notas), Crónica de Almançor Sultão de Marrocos (1578-1603), Lisboa,
Instituto de Investigação Científica Tropical, 1997, pp. lxxxi e ss.
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Bibliografia citada

Cruz, Maria Augusta Lima, "Os Portugueses em Marrocos nos Séculos XV e XVI",
in História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa, Lisboa, Universidade Aberta,
1990, pp. 53-123.
Farinha, António Dias (estudo crítico, introdução e notas), Crónica de Almançor
Sultão de Marrocos (1578-1603), Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical,
1997.
Farinha, António Dias, Os Portugueses em Marrocos, [Lisboa,] Instituto Camões,
1999.
Farinha, António Dias, Portugal e Marrocos no Século XV, 3 vols., Dissertação de
Doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1990.
Farinha, António Dias, "Os Xarifes de Marrocos (Notas sobre a expansão
portuguesa no Norte de África)", in Estudos de História de Portugal, volume II - sécs. XVI-
XX, homenagem a a. h. de oliveira marques, Lisboa, Estampa, 1983, pp. 57-68.
Veloso, J. M. Queirós, D. Sebastião 1554-1578, Lisboa, Empresa Nacional de
Publicidade, 1935.

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