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ELOIZE LEMOS DAVID LUIZ é Mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de
Uberlândia (UFU).
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1 - Introdução. apenas a companheira
passiva do homem, que por
Este artigo tem como
sua vez no cânone tinha
proposta analisar a comédia
sempre razão e agia sem
de costumes escrita por
qualquer tipo de censura.
Molière O doente
imaginário (1673), a qual Quanto ao autor da obra,
procurou fortalecer o Molière, este faz uma
prestígio da cultura popular representação teatral de
em detrimento às modo a mostrar fatos, os
produções teatrais, que quais eram abafados em
contemplavam apenas ao consonância com as regras
gosto da burguesia, sociais, como: o casamento
desmontando assim com a por interesses e por um viés
tradição literária das épocas mais contundente mostra a
anteriores e buscando uma incoerência da medicina
estética nova dentro de um padrão praticada por médicos mercenários e
eurocêntrico. somente preocupada com o lucro da
profissão. Molière dá ênfase ao gênero
Por outro lado, a mesma peça teatral cômico, porém o faz sob grande censura
destacou o papel da criada, Nieta, que do público aristocrata e mais ainda usa a
como bufona criou um relacionamento zombaria para ridicularizar e ao mesmo
muito próximo com toda a família, tempo escancarar a prática
representantes da aristocracia francesa. irresponsável, de quem tinha
Ela sagazmente aproveita da liberdade e conhecimento catedrático para ajudar os
afeição de todos os membros da casa pacientes.
para mostrar o abuso dos médicos, os
quais tratavam incorretamente seu Em seguida é necessário estabelecer a
patrão hipocondríaco, por conseguinte posição de Nieta, quem representa o
ajuda a desfazer o casamento da filha feminino, que foi bastante incomum
mais velha arranjado por ele, o qual para aquele tempo, assumir a condução
planejava negociá-la, apenas para ter dos conflitos. Porém, ela fora tão
um médico dentro da família. destemida quanto a um homem e por ser
mulher discute, ama, finge, mas acima
A criada não aceitava as trapaças dos de tudo com sutileza conseguiu ser
médicos e se incomodava muito com a vitoriosa nos seus planos. Mesmo com
conduta da esposa apaixonada por toda intolerância do patrão, ela aguenta
Argan. Porém, nunca deixava os insultos em prol do bem daquele lar,
transparecer suas antipatias e o qual na verdade se sustenta graças a
comportava-se como uma boba da corte, sua presença. Desta forma, a criada foi
pois dependendo com quem estava um exemplo capaz de desmontar toda a
Nieta tinha um comportamento concepção tradicional.
diferente, para levar adiante seus planos
de desmascarar os falsos companheiros, A comédia de costumes é uma forma
que estavam interessados na fortuna do teatral, a qual foi opositora do enredo
seu patrão. Na literatura comparada esta trágico, enquanto aquele mostrava o
identidade forte e versátil da criada homem ruim por provocar a desordem,
contrasta com os valores da sociedade este revelava o homem bom, vítima das
patriarcal, onde o gênero feminino não atrocidades mundanas. A tragédia, a
tinha voz ativa na realidade, sendo partir da mimese toma os assuntos
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dolorosos e os apresenta por via do pelas doenças, que são apenas
poético, tornando este gênero, imaginárias, bem como usa vários
reconhecidamente como arte dramática. artifícios para livrar a filha mais velha
Na citação a seguir, a tragédia, de um casamento que lhe traria muito
revelando a aceitação do gênero, por desgosto. Neste caminho, a serviçal
considerá-la uma realidade artificial, doméstica desconstrói com muita
porque não apresenta o sofrimento bruto sutileza a hegemonia do homem, que
e por isso provoca deleite ao ser por sua vez no cânone tinha sempre
humano. razão e agia sem qualquer tipo de
censura, revelando que as mudanças
A tragédia é a imitação de naquele contexto de falsidade e abusos
realidades dolorosas, porquanto sua do padrão social, pautado em condutas
matéria prima é o mito, em sua
forma bruta. Acontece, todavia que
sempre mesquinhas e desumanas, traria
essa mesma tragédia nos autoconfiança ao dono da casa e
proporciona deleite, prazer, sossego ao coração apaixonado da filha
entusiasmo. (BRANDÃO, 2007. p. mais velha. Ainda, evidenciando o
13) comportamento das personagens
femininas, Molière criou uma relação
O respeitado filósofo foi um admirador entre mãe e filha, consecutivamente
da arte trágica, porque é a imitação de Nieta e Angelique, em que a criada
uma ação séria e completa através da desempenha a figura bíblica de Eva, a
linguagem condimentada, a qual graças qual representa o espírito maternal e por
ao terror e a piedade há a purificação outro lado endossa a submissão
das emoções, tornando-a uma estética feminina ao homem da casa. No
da pureza artística. Entretanto, a Entanto, Beline, a segunda esposa de
comédia iniciou com a paródia da Argan é ruim e interesseira, por isso
mitologia, por isso foi considerada assemelha-se a Lilith, por sua
artificial. “Ao atingir sua verdadeira característica negativa.
maioridade literária, a comédia
refugiou-se na sátira dos costumes e das 2 – O método comparativo na obra de
condições sociais”. (BRANDÃO 2007. Molière.
p. 93). Então, a nova forma de fazer A literatura comparada tem como objeto
comédia é voltada para a vida privada, de estudo as mudanças ocorridas no
explorando uma linguagem cotidiana e percurso variável das gerações e
simples, logo esta forma de sátira dos fronteiras linguísticas, tecendo entre as
costumes foi bastante criticada, já que a produções escritas nacionais ou
economia da criação poética fez deste internacionais uma história literária
gênero menos ilustre, por representar a mais geral. No caso do texto teatral O
desordem numa sociedade elegante, ou doente imaginário produzido no século
seja, o comediante reduz a arte teatral a XVII com atributos de uma comédia de
uma mera criação de tipos sociais. costumes, onde Molière zombava da
Na comédia de costumes, O doente classe dos médicos em ascensão,
imaginário, que faz parte deste cenário revelando a atitude incoerente de
moderno, Molière criou Nieta, o tipo profissionais promíscuos e ao mesmo
bufona, que se insere num conflito, o tempo o desajuste de um hipocondríaco,
qual não pertence ao seu mundo, mas na situação ingênua de comprar sua
em nome da afeição que ela tem pela saúde sem enxergar as atrocidades
família, quer o patrão livre da obsessão daqueles charlatões.
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A peça teatral contrariou muitas pessoas reproduzindo os modelos greco-
da aristocracia, no entanto ela tinha o romanos. Na sua própria obra é
intuito de divertir e ao mesmo tempo comentado no “posfácio”, que o autor
alertar um público mais popular, por apresentou um grande contato com os
isso o autor foi criticado e até antigos romanos.
considerado um sonegador da tradição
Talvez Molière seja o único a
literária, provocando um grande repúdio escapar, em parte, a regra. O
de suas obras pela sociedade parisiense. intelectual da época só escreve a
Porém, sua forma de expor e dramatizar partir dos modelos Greco-romanos.
foram irreverentes para seu tempo e Dentre os mais célebres temos
hoje se pode ver com exatidão sua Racine, que com suas tragédias era
contribuição valorosa para a trajetória comparado a Eurípedes, Sófocles e
literária. Ésquilo. Boileau, autor de textos
satíricos e de uma Art Poétique,
[...] por trás do livro você perceberá escritos a partir do modelo
o homem que o escreveu, e em horaciano. La Fontaine, o fabulista,
torno do homem, seu meio e seu que imitava Pedro e Esopo. A lista
tempo, e, por trás dele, a tradição é comprida (MOLIÈRE, 2008. p.
literária na qual vem inserir seu 187).
livro; não foram, por certo, todos
estes elementos que fizeram seu Desta forma, apreende-se que o
gênio, mais determinado na forma dramaturgo não é exclusivamente
literária por meio da qual se excêntrico, mas que apesar de divergir
expressou. (TIEGHEM, 1994. da tradição dramática, o mesmo foi
p.89). brilhante ao incrementar antigos autores
De acordo com esta citação, a qual e assim produziu uma obra tão
enfatiza o método comparatista, pode-se instigante para seu tempo. No entanto,
refletir que apesar da intolerância da se a produção de Molière rompeu ou
sociedade aristocrática com Molière, continuou a linha literária, não importa.
percebe-se que ele criou seu estilo O que é valioso para os pesquisadores é
cênico. Como lembra o escritor presenciar uma fonte rica para recontar
brasileiro, José de Alencar, há um o passado e o caráter inovador deste
grande entusiasmo em suas declarações, autor. Já que o grande diferencial de
quanto à escola dramática de Molière, uma peça literária é refletir o tempo
por ser a mais perfeita, quanto tê-lo exato de sua escrita.
feito a pintura dos costumes e a
No entanto, a comédia não foi
moralidade da crítica, revelando para
introduzida por Molière na França.
sua geração e futuros leitores, “quadros
Desde o século XVI, esse gênero já
históricos nos quais se viam
acontecia com algumas apresentações
perfeitamente desenhados os caracteres
na corte, como em outros lugares
de uma época.” (ARANTES e
públicos. A “Commedia dell’Arte”, a
MACHADO, 2005. p.83). Assim, o
qual era oficialmente de tradição
ilustre escritor fluminense julgava a
italiana, por isso tinham pesadas
produção dramática do autor francês
rejeições do público aristocrático local.
genial e digna de ser reproduzida no
Por conseguinte, a própria constituição
Brasil.
da encenação era monótona, quanto ao
Porém, como a leitura é produto da improviso, às personagens tipificadas e
tradição, o próprio Molière também uso de máscaras. Então, o próprio Carlo
bebeu de outras fontes mais antigas, Goldoni (1750) referendou este termo
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por achar entediante sempre ver contestar as atrocidades dentro da
Arlequim, nos palcos franceses e o sociedade francesa.
auditório até já saber o que sairia de sua
Então, Molière foi irreverente e também
boca. A citação abaixo é uma reflexão
deu asas a sua subjetividade, sendo
sobre as peças, em que os italianos
extremamente crítico e irônico, com o
reproduziram naquele tempo:
consentimento do rei, o qual
Comediantes acostumados a demonstrava apreciação por sua
improvisar são incapazes de audácia. E, burlando a concepção de
interpretar uma peça escrita, de arte da Idade Média, até então privilégio
dedicar-se ao estudo de textos, da concepção erudita, no século XVII
papeis e situações que não
constata-se através desta peça cômica, a
conheçam. Em consequência dessas
limitações no século XVIII “as
diversidade no gênero dramático
Commedias dell’Arte” jamais clássico e a flexibilidade da linguagem.
receberam o aplauso. (PORTICH 3 - O gênero feminino interagindo na
2008. p. 16). construção teatral de Molière
A condução da Na peça teatral: O doente
representação dramática imaginário, Molière
sem um aparato intelectual apropria de um modelo de
levou a Commedia comédia, a qual critica
Dell’arte ao fracasso. O sarcasticamente a
próprio rei Luís XIV sociedade médica francesa.
passou a negar a Porém, quando o autor
intermediação dos italianos escolheu a criada, Nieta,
na corte francesa. “A para contestar o patrão
Commedia dell’Arte agia hipocondríaco, de certa
pela parte acrobática do forma abriu um precedente
espetáculo, tanto mais que para a contestação do
uma peça só em diálogos público mais abastado,
italianos, sem jogo cênico porque contrariou o
intenso, nem seria cânone, que privilegiava o
compreendida por um masculino, o qual era o
público todo francês” (RÓNAI 1981. p. protagonista da literatura tradicional.
13). Enfim, a tendência ao anti- Quanto à atuação do gênero feminino, a
italianismo encerrou a reprodução criada é mais versátil quando se
daquele tipo de comédia, executando a relaciona com todos moradores e
expulsão da companhia Italiana, os frequentadores da casa, aceitando ser
quais “interpretavam a graça humilhada para concluir seu plano de
ultramontana como excesso ou falta de mostrar a real intenção dos médicos da
medida” (PORTICH 2008. p.72). família e ainda sendo doce com a filha
Devido aos abusos satíricos, o monarca mais velha do patrão, com a qual
despertou para um dramaturgo próximo mantém um relacionamento materno.
a ele, filho de um tapeceiro de sua Entretanto é falsa e dissimulada para
confiança. Foi assim, que o grande tratar a esposa do patrão, com o objetivo
gênio cômico, Molière, teve seu espaço de desmascará-la e mostrar que a
e patrocínio do Rei Sol, o qual megera continuava na casa movida pelo
aproveitava o talento do autor para interesse de ficar com a fortuna do
marido.
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Assim, o feminino dentro da obra Molière projetou a criada como suporte
interage na ideologia patriarcal, ou seja, de toda família, todavia o chefe da
foi uma obra escrita para representação família era o responsável pela
cênica, na intenção de aproveitar da manutenção da casa e por isso era
liberdade e amizade de Nieta com todos respeitado e tolerado, principalmente
daquela casa, para dar relevância aos por Nieta.
atos próprios da mulher: tolerância e
espírito maternal. Em resumo, a Neste caminho, a coadjuvante tem sua
caracterização feminina que faz parte da representação forte e marcante na obra,
escritura de Molière serve para mas não ultrapassa o limite de sua
desconstruir o discurso masculino posição de criada. Ela é uma mulher,
quanto o papel tradicional da mulher de que pode ser comparada aos grandes
ser sempre relegada ao segundo plano. personagens masculinos por sua
“[...] estabelecer um discurso cujo status sagacidade. Aliás, mesmo com tantas
não seria mais definido pela falicidade barreiras, seja por sua condição pobre
do pensamento masculino”. ou de ser mulher, insistindo provar a
(SHOWALTER 1994. p. 37). Então, no incoerência dos médicos da casa, a
desvio do cânone tem-se a construção própria personagem planejou vestir-se
desta personagem, a qual vai crescendo de médico. No entanto, ela cumpre seu
durante o enredo teatral e aos poucos a intento com a aparência de homem, já
linguagem reservada ao domínio que naquela época não havia
carnavalesco, vai através de artimanhas representantes femininos na medicina
bem conduzidas por Nieta, no caminho francesa.
de absolver o patrão da tirania dos Cena 8 – Nieta, vestida de Médico
médicos. [...] Senhor receba com prazer essa
minha visita e eu vos ofereça meus
No entanto, a finalidade da personagem pequenos serviços para todas as
Nieta não é de superar o patrão, mas sangrias e purgações de que precisa
ajudá-lo. Tanto que, Molière, apesar de (MOLIÈRE 2008. p.133).
dar muita mobilidade para a criada não
a retirou de seu lugar de origem. A Nesta fala de Nieta, percebe-se que ela
enunciação abaixo esclarece sobre a articulou passar-se por médico, mas
escrita nos moldes patriarcais. mesmo sendo ela autora da ideia seria
incoerente aparecer como mulher, então
Mas devemos também compreender a personagem tem que se disfarçar de
que não pode haver escrita ou homem, simplesmente porque a
crítica totalmente fora da estrutura autoridade de um médico do século
dominante; nenhuma publicação é XVII não seria confiável se fosse com
totalmente independente das aparência feminina.
pressões econômicas e políticas da
sociedade dominada pelos homens 4 - Reatualização com as figuras
(SHOWALTER 1994. p.50). bíblicas de Eva e Lilith
A relação comparatista histórica da peça No desenvolver da trama, o protagonista
do século XVII com a tem como parceiras Nieta e Beline.
contemporaneidade explora a zombaria Ambas as personagens dialogam com
com a participação de uma personagem Argan, aquela para alertá-lo, tanto
feminina, mas apesar de sua quanto aos reais desejos da filha
originalidade a obra teatral não retira a primogênita, quanto às atrocidades dos
mulher de sua posição inferiorizada. médicos que o rodeiam. Já, a esposa o
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trata com carinho e sempre se mostra a Lilith (Mal). Mediante esta releitura
companheira, como uma mãe, porém dos tipos femininos a escritura ganha
em suas costas trama para se livrar de um tom ambíguo, revelando dois
Angelique, forçando-a se casar. caracteres opostos provavelmente
Também arranja um advogado apreendidos no inconsciente do autor da
encomendado para tratar do testamento peça.
em vida, do marido, para garantir seu
Assim, por duplo jogo: na matéria
conforto futuro.
da língua e na história social, o
Traçando o contraponto do bem e do texto se instala no real que o
mal, resgatando as figuras dos textos engendra: ele faz parte do vasto
bíblicos: Eva e Lilith, respectivamente processo do movimento material e
histórico e não se limita – enquanto
baseado no comportamento das
significado a seu autodescrever ou a
personagens Nieta e Beline, pode-se se abismar numa fantasmática
aproximar ao espírito materno e doçura subjetivista. (KRISTEVA 1974.
da primeira, em desaprovação da p.11).
segunda, Beline, que no lugar de mãe,
intenciona livrar-se de sua enteada sem A pretensão do autor em criar seu
querer saber do real desejo da moça e discurso, imprimindo sua genialidade,
ainda mais persuadir o marido para que transparecendo dentro do texto outros
ela seja sua única herdeira. textos, os quais nesta peça teatral
retomam as duas personagens
A atualização das figuras bíblicas na femininas, as quais podem ser
obra de Molière se faz com traços comparadas as duas figuras presentes
peculiares, ou seja, duas personagens nas escrituras sagradas, possuindo
femininas, as quais são inseridas num origens e atitudes contraditórias. Nieta
contexto doméstico, aonde o resgata simbolicamente Eva, que
protagonista vive com toda sua riqueza “representa, antes do pecado e junto de
material, porém desprovido de Adão, a incorruptibilidade, após o
conhecimento de mundo. pecado, ela é a tentação dele” (JESUS,
2010. p.8), neste caminho a criada, que
A criada tem intenção de alertá-lo e
ao mesmo tempo tem o caráter justo e
ajudá-lo a perceber seus verdadeiros
servil, também é sempre questionadora.
amigos, enquanto Beline tem interesse
Inclusive, ela é a personagem que tem a
apenas pela sua fortuna, nem a filha
função de cuidar da filha mais velha,
dele e muito menos a sua saúde mental
mantendo um elo de afetividade
é cuidada por ela. Aliás, a esposa sob a
maternal no tratamento com a moça
máscara de satã deseja realmente, que
indefesa e dependente.
ele morra e a enteada se case, para ela
triunfar naquela casa com toda a fortuna Na cena abaixo, Angelique, a filha mais
dele. velha procura Nieta para falar-lhe sobre
Em linhas gerais, Molière produziu o seus sentimentos por Cleante, como se a
eixo de sua peça teatral baseado na criada fosse sua mãe e ainda uma fiel
figura masculina de Argan, sendo o confidente:
chefe de família apesar de ser inseguro Angelique: Olha para mim um
e fraco. Contudo, as duas personagens pouco.
que têm mais influência na sua rotina,
Nieta e Beline são respectivamente duas Nieta: Ora, bolas! Estou olhando
(...)
forças antagônicas, isto é a Eva (bem) e
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Angelique: Pois se você sabe, por dela, por acreditar friamente na morte
que não é você mesma a primeira breve dele.
pessoa a conversar sobre ele, e não
me poupa o incômodo de te falar Beline: Meu deus! Não é necessário
assim? se atormentar com isso, se você vier
a nos faltar, meu filho, eu não quero
Nieta: Você não me dá um tempo e mais ficar no mundo.
põe certos empenhos nesse assunto Argan: Mamãe!
que é difícil prevenir.
Beline: Sim, amorzinho, se eu for
Angelique: Reconheço que não me tão infeliz de te perder...
canso de falar dele, e que meu Argan: Minha esposa querida!
coração se aproveita calorosamente
de cada momento para se abrir com Beline: A vida não será mais nada
você. Mas me diga, Nieta[...] você para mim. (MOLIÈRE, 2008. p 53).
condena os sentimentos que tenho Na cena apresentada acima a esposa tem
por ele?
uma relação tão dedicada ao marido,
Nieta: Tenho lá meus cuidados. que o mesmo a chama de mamãe,
(MOLIÈRE, 2008. p. 33). enquanto ela finge ser a esposa muito
apaixonada. Entretanto, Nieta percebe
A moça procura a criada com a intenção toda a farsa e planeja desmascarar
de pedir sua opinião a respeito de seus Beline. Então, a criada espertamente faz
sentimentos. Assim, percebe-se no Argan fingir estar morto e provoca a
diálogo um relacionamento de mãe com falsa progenitora com a notícia esperada
filha, no qual revela a insegurança da sobre a morte dele. Por conseguinte, a
moça. Enquanto, Nieta revela-se demoníaca mulher retira sua máscara e
protetora e amiga, com uma postura revela sua alegria em se ver livre do
maternal. No entanto, ela permanece doente.
como a criada, mas sua presença na casa Nieta: Seu marido morreu!
em referência a filha é comparada a
Eva, por ter o espírito do bem e ser Beline: Meu marido morreu?
acolhedora Nieta: Infelizmente, sim, O pobre
defunto faleceu
Por outro lado, Beline seria a força do
Beline: Tem certeza?
mal, que na tradição histórico-religiosa
conhecida como “Lilith, a qual Nieta: Tenho. Ninguém sabe ainda
apresenta um aspecto dual, grande mãe deste acidente e eu estou sozinha.
terrível e anima sedutora” (JESUS Ele estava em meus braços, olhe, aí
2010. p. 10). Assim, como segunda está ele estendido na cadeira
esposa, a madrasta deveria cuidar e Beline: O céu seja louvado! Vejo-
velar pelo bem-estar da casa, pois a me livre de um fardo. Nieta não
mesma substituiria o papel da mãe, seja boba de se afligir com essa
todavia ela despreza os desejos da moça morte!
e ainda finge estar preocupada com a Nieta: Madame, eu pensei que era
condição da casa mediante a falta futura para chorar.
de seu devotado marido. Exemplo claro Beline: Vá, vá, não vale a pena. O
consta no diálogo seguinte, entre Argan que você perdeu? De que servia a
e Beline, o qual acontece na frente do estada dele sobre a terra? Um
tabelião trazido pela esposa. Eles tratam incômodo para todo mundo,
do testamento, o qual seria a garantia inconveniente, repugnante,
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colocando sem cessar uma lavagem valores antigos e dicotômicos,
ou um remédio na barriga, imundo, envolvendo Argan por dois caminhos: o
tossindo, escarrando o tempo todo, certo e o errado. Assim a peça teatral
sem espírito, tedioso, mal- sugere uma reflexão a partir de
humorado, cansando, sem parar as
elementos sagrados aproveitados da
pessoas e ralhando dia e noite com
as criadas e criados. (MOLIÈRE,
cultura religiosa e reatualizando as
2008. p. 145). figuras em duas personagens
antagônicas.
Então, nesta passagem o espírito
5 – Molière, incrementando o teatro
satânico da esposa revela sua verdadeira
francês moderno.
vontade, que era a de se livrar do
marido e não ter que aguentar as O estudo presente ocupa-se de comparar
atitudes doentias daquele homem, o a forma dramática do teatro tradicional
qual era sua tábua de salvação, mas ao e o erudito, balizando a intenção de
mesmo tempo um peso na sua vida. Por Molière ao produzir a peça teatral O
isso, Beline ao ver se livre do doente doente imaginário, estabelecendo um
não tem necessidade de fingir e declara novo caminho da dramaturgia, que é a
para Nieta sua satisfação em ficar livre comédia de costumes. E, na visão
daquele peso na sua vida. contemporânea o autor merece todas as
glórias por investir numa forma cômica,
O autor relata as duas personagens, revelando problemas que perturbavam
Nieta e Beline como as figuras originais sua concepção de justiça.
das mulheres caracterizadas na bíblia
sagrada. Estas reminiscências são No entanto, o grande público teve uma
incorporadas numa nova cultura e grande aceitação para com as
dentro de uma sociedade francesa, como encenações de Molière, as quais
tipos comuns pertencentes a uma representavam a forma pouco
comédia de costumes do século XVII. recomendada de alguns membros da
No entanto, este patrimônio interior é alta aristocracia francesa. Assim, a peça
revelado por Molière na sutileza e teatral insinuava de forma engraçada
amabilidade da criada, que apesar de alguns tipos, nos quais a plateia
audaciosa quer o bem da família. assimilava, ao reconhecer
Porém, Beline, a segunda esposa comportamentos de determinada pessoa.
aproveita da doença imaginária do Por isso, estas apresentações grotescas,
marido e finge ser uma companheira mas imitações das figuras reais eram
dedicada, mas é uma Lilith “... possui abominadas aos olhos dos nobres,
origens diversas e contraditórias, mas mesmo sendo atuações miméticas. Elas
sempre mantém seu aspecto negativo, mexiam com as atitudes pouco
destruidor e demoníaco” (JESUS, 2010. recomendadas da alta sociedade, logo
p.10), ou seja, atrás da aparência deveria permanecer escondidas. Na
matriarcal tem o espírito destruidor, o citação abaixo, ficam bem claras as
qual privilegia apenas seu bem estar e bases do cômico elaborado por Molière.
quer o mal daquela casa e até a morte Pelo que tinha de atual e de copiado
do marido. ao vivo a comédia logrou êxito
enorme. Logo o público procurava
Nestas dualidades bem definidas de identificar as caricaturas com os
Nieta e Beline está a recomposição de seus modelos entre os
Molière, reinventando duas frequentadores dos salões mais em
personagens, as quais são marcadas por voga. Naturalmente os modelos
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apontados não se sentiam nada Os tormentos não terminaram com
lisonjeados e, embora Molière a morte. Molière dedicara toda a
julgasse oportuno esclarecer na sua vida ao teatro. Acontece que era
edição impressa zombar não das muito comum na sociedade
verdadeiras preciosas, apenas de parisiense daquela época, negar a
suas imitadoras, essa ressalva não atores o direito a um enterro em
as deve ter apaziguado. Além dos solo santo... Molière foi inumado
atores e dos diretores das no cemitério Saint-Joseph, no setor
companhias rivais, daí em diante destinado aos loucos, suicidas e
eles também seriam inimigos do crianças mortas sem batismo. Era a
dramaturgo, à espera de uma vingança dos beatos. Molière foi
ocasião para vingar-se (RÓNAI, enterrado a um palmo do chão
1981. p.16). (MOLIÈRE, 2008. p. 179).
Na citação acima, ficou claro o Revela-se claramente nesta citação, que
desagrado dos nobres, para com as a sociedade nobre de Paris, condenava e
peças cômicas de Molière. No entanto, achava imorais as atuações de Molière e
as pessoas distantes dos núcleos mesmo depois de morto, o autor
superiores tinham curiosidade para recebeu o desprezo daqueles que
assistirem e se deleitarem com as repudiavam sua criação. Isto porque, o
encenações de alguns comportamentos teatro trágico era o grande preferido do
abusivos dos nobres, até então público mais abastado. Segundo,
resguardados pelas barreiras “Aristóteles que, ao dividir a forma
econômicas e culturais. dramática nos gêneros clássicos,
Então, as figuras imperfeitas não tragédia e comédia, propõe que a
deveriam ser expostas, todavia o criador tragédia retrate os homens melhores do
e o sujeito das peças tão reveladoras não que a são e a comédia, “piores do que
se acomodavam com as críticas. “Para são” (ASSUMPÇÃO, 2010. p.5). Desta
compor esse museu vivo e permanente, forma intui-se que a comédia era vista
Jean Poquelin, filho de um tapeceiro da com desprezo e intolerância pelo
corte, tinha de possuir dois talentos: o público da alta sociedade.
de retratar em palavras e o de retratar No entanto, apesar da elite parisiense ter
em gestos. Foi autor e ator” repúdio pela obra de Molière, este
(FIGUEIREDO, 1980. p.14). Porém, o incrementou sua proposta de revelar na
fato de ser autor e ator agravava mais a arte as incoerências das regras sociais,
intolerância, ao gênio das comédias, as quais permitiam silenciosamente o
Molière, que no século XVII, a alta casamento por interesses e o
aristocracia sentia-se muito incomodada charlatanismo da classe médica, que
por seus deslizes estarem à davam status às famílias, conservando o
mostra,causando o deleite do grande status daqueles que podiam negociar
público, o qual no fundo tinha chance seus interesses, em nome de suas
de conhecer algumas atrocidades nas vaidades pessoais.
regras da boa conduta social. [...] aqueles que buscavam o “teatro
Inclusive no próprio livro é esclarecido popular” acreditavam que tudo que
após a sua morte, quando a sociedade fosse “para o povo” era
francesa aristocrática, quis mostrar sua automaticamente vital, em
indignação, fazendo do seu enterro um contraposição a algo que não tinha
vitalidade “teatro de elite”. Ao
último gesto de vingança e desprezo por
mesmo tempo, os da “elite”,
sua conduta criadora desprezível. achavam que tinham o privilégio de
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participar de uma seriíssima texto e suas implicações sociais e
aventura intelectual, que se políticas, será uma expressão direta das
contrapunha totalmente ao tensões subjacentes.” (BROOK, 2011.
bombástico e débil “teatro p. 25), revelando assim a própria visão
comercial”. Já os que trabalhavam de Molière, que usa a peça teatral para
nos “grandes textos clássicos”
retratar sua insatisfação com as regras
estavam convencidos de que a “alta
cultura” injeta nas veias da sociais vigentes e o texto ficcional
sociedade uma qualidade muito permite este desabafo, marcando sua
superior à adrenalina chula da obra com a sua íntima discordância
comédia vulgar (BROOK, 2011. sobre a hegemonia. Daí permite-se
p.11). análise da obra no tempo presente.
“Contudo, no teatro a personagem não
Na citação acima, revela-se a reflexão só constitui a ficção, mas “funda”
de uma sociedade que não tolera a onticamente, o próprio espetáculo
inovação de Molière e de certa forma, (através do ator)... No teatro, o homem
concentra-se na concepção que a é o centro do Universo.” (CANDIDO,
tradição teatral é algo inabalável e que 2007. pags. 31-32). Assim, o ator é o
somente a tragédia tradicional tem um instrumento que pode projetar as
conteúdo rico e superior. Por isso, contestações do seu criador, encenando
Molière foi tão incompreendido na uma obra que combine com sua
época, mas com razão, já que a picardia percepção da realidade e denuncie sua
feria os costumes mais arraigados. Mas repudia aos segmentos dominantes, os
por outro lado, a arte é sempre quais são tolerados pela sociedade
inovadora e justamente é esta a razão de convencional. Por conseguinte, na
ter este movimento, que apesar de escrita de Molière percebe-se que o seu
parecer não tolerado para a época é desajuste com a alta sociedade
saudável para seu reconhecimento. parisiense é bastante significativa e
O objetivo da arte é dar a sensação nesta antipatia depreende-se uma obra,
do objeto como visão e não como que subsidiada pelo o Rei Louis XIV é
reconhecimento; o procedimento da direcionada para um público mais
arte é o procedimento da popular. Ela transgride a realidade e
singularização dos objetos e o mostra através das personagens uma
procedimento que consiste em oportunidade de instaurar no palco
obscurecer a forma, aumentar a algumas mudanças às normas rígidas
dificuldade e a duração da
daquele tempo.
percepção. O ato de percepção em
arte é um fim em si mesmo e deve Não são mais as palavras que
ser prolongado; a arte é um meio de constituem as personagens e seus
experimentar o devir do objeto, o ambientes... Contudo o mundo
que já é “passado” não importa para mediado no palco pelos atores e
a arte. (CHKLOVSKI, 1978. p.45). cenários é de objectualidades
A intuição de Molière estava certa, puramente intencionais... A ficção
ou mimesis reveste-se de tal força
porque a imobilidade da arte não está que se substitui ou superpõe à
relacionada com o seu objetivo, já que o realidade (CANDIDO, 2007. p. 29).
artista tem que ser autêntico, para dar
prosseguimento à arte, fazendo-a de E necessário ser muito astuto para
forma inovadora e realmente dar mais inovar dentro de uma tradição já
abrangência a sua finalidade criadora. concebida por toda a sociedade
“A “peça” como um todo, incluindo o francesa, porém o teatro tem uma
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finalidade universal e desta forma a sua tem características avessas aos
real conjuntura de ficção, personagem, aristocratas.
mundo real e seu autor pode até serem Ele não quer pessoas tristes a sua
contestados, mas apenas o tempo e a volta e é visto frequentemente
crítica imparcial poderão analisar a hilário... Ele ri de bom grado
riqueza de uma inovação tão assistindo as comédias de Molière,
contundente daquela época. que vão ao encontro de sua política:
zombando das extravagâncias e das
O verdadeiro entendimento ou a pretensões dos nobres e dos
aceitação de uma obra teatral vem com burgueses, o comediógrafo presta
o tempo, o qual pode experimentar o serviço ao rei, mesmo que isso faça
todo desenvolvido na ficção dramática e rilhar as dentaduras aristocráticas
ter sua contemplação aquém de uma (BRURKE, 2000. p.11).
sociedade presa às convenções e aos Ao contrário dos autores tradicionais
preconceitos sobre qualquer mudança. Molière vai à contramão da
Isto vale dizer que a obra O doente universalidade histórica, para usar o
imaginário veicula a criação de Molière gênero cômico do tipo carnavalesco não
e sua compreensão não implica sua para representar banalidades, mas em
genialidade, mas toda sua abrangência, pleno século XVII, o autor usa a forma
que apesar de ser diferente foi feita para de riso grotesco a serviço da causa
um público menos intelectualizado, o social questionada por ele. Aqui não se
qual na risada compactua seus próprios pode afirmar se inconsciente ou por sua
anseios de mudança. “O teatro é sempre vontade própria, todavia seu estilo de
a busca de uma significação, bem como fazer teatro distanciou bastante do
um modo de torná-la significativa para cânone aceito até então. “O escritor
os outros. Este é o mistério” (BROOK, pode ser ignorante ou ingênuo em
2011. p.64). Assim toda a complicação relação à tradição histórica que o/a
do autor com seu tempo esvaem-se num mantém, ou que ele/a transforma,
estudo prático, que valoriza o grande inventa, desloca” (DERRIDA, 1989. p.
feito de uma comédia popular, que 13). É óbvio que o teatro de Molière foi
representou as prerrogativas de uma polêmico para o público mais
classe dominada, ainda ignorada tradicional e esta repulsa ao estilo do
naquela época. teatrólogo foi pesada, no entanto para a
6 – A personagem “Nieta”, modernidade ele fora muito esperto,
dialogando através do riso e da ironia principalmente por escolher uma pessoa
do povo, Nieta, para questionar e
O teatrólogo Molière além de sua interferir nas atitudes doentias de seu
perspicácia em usar a comédia para patrão.
denunciar algumas aberrações ditadas e
preservadas pela sociedade, ainda Numa época de ceticismo e fé
escolheu para a peça: O doente definhante, época marcada pela
consciência difusa de perda e
imaginário do século XVII a criada
desordem, a intencional subversão
Nieta, para contrariar toda a sociedade da tradição heroica pode indicar
burguesa, considerando a forma ingênua uma iniciativa de recuperar ou
de viver a sua vida, contrapondo a reinventar significação..., assim
seriedade da tradição literária. Somando como uma tentativa de ajustar-se
a esta personagem, que é a válvula responsavelmente a novos
propulsora da peça, se junta o interesse contextos (BROMBERT, 2001.
de agradar ao Rei Louis XIV, o qual p.20).
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Seguindo a perspectiva de que, Nieta, Ambas as personagens são iguais neste
foi uma anti-heroína, provocante e diálogo, quanto à prática linguística, ou
perturbadora da ordem, a qual era tida seja, ele, como patrão usa neste texto
como inabalável e através da linguagem teatral com a criada Nieta um
muito distensa, “que constrói uma vocabulário de baixo nível, mas a
coreografia repetitiva através do mesmo relação patrão e empregada não se
vocabulário” (FERNANDES, 2001. p. desfaz. “As “personagens de costumes”
74). E no jogo de trocas dialógicas, o são, portanto apresentadas por meio de
patrão e a criada têm a mesma postura, traços distintivos, fortemente escolhidos
fazendo uso de uma variedade e marcados, (...)” (CANDIDO, 2007. p.
linguística bem popular. 62). Por esta definição, as personagens
Quando se juntam tradições da peça teatral em estudo são
diferentes de início há barreiras... engraçadas, mas o humor não está numa
No instante, em que as barreiras relação afetiva, ao contrário são duas
desaparecem, (...) expressando por personagens diferentes quanto ao nível
um momento uma verdade social, mas o que as une e mantém este
compartilhada inclusive pelo elo na representação cênica é a ironia,
público: é para este momento que de acordo com J.A. Richards; “... A
se direciona todo teatro (BROOK, produção dos impulsos opostos dos
2011. p. 80). complementares, ou seja, realiza um
A linguagem do carnaval tem esta “peso equilibrado”. Auto-ironia contra
proposta de libertar todos os entraves um possível ataque (irônico) do
linguísticos e usar a forma simples do exterior” (MUECKE, 1995. p. 45). O
povo, sendo a ironia como a figura, que relacionamento patrão-empregada é
provoca o riso. Logo, a performance das irreverente, já que o protagonista usa
personagens Nieta e Argan, carregam a este artifício por ser superior e ela. Por
marca da oralidade proletária: sua vez, ela é irônica para se defender e
rebater os maus-tratos, mostrando-se a
Argan: Ah! Cadela! Ah! Carniça!...
(...)
favor das atitudes do patrão apenas para
confundi-lo. Como fica claro nestes
Argan, furioso: Traidora... diálogos entre Argan, o patrão e Nieta, a
Nieta: Ah! criada:
Argan: Tem uma hora que... Nieta: Que quer dizer com essa
“boa aparência”? A aparência dele
Nieta: Ah! está horrível e quem te falou que
Argan: Você me deixou... ele estava melhor é um
impertinente!
Nieta: Ah!
Argan: Ela tem razão.
Argan: Cala essa boca sua sem-
vergonha, estou te insultando. Nieta: Ele anda, dorme, come e
bebe como todo mundo; mas isso
Nieta: Ah, claro, eu deixo, depois
não o impede de estar muito doente
do que eu me fiz.
(...)
Argan: Você me fez ficar rouco,
Nieta: Senhor, isso só servirá para
carniça!
te importunar. O senhor não precisa
Nieta: E o senhor, o senhor me fez entrar em exaltações agora no
rachar a cabeça; estamos quites, estado em que se encontra e te
pau-a-pau, se o senhor quiser abalar o cérebro (MOLIÈRE, 2008.
(MOLIÈRE, 2008. p. 31). p. 75).
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No diálogo acima, verifica-se que há A personagem, Nieta é realmente
ironia presente na colocação de Nieta, relevante para a comédia, porque é
quando mesmo avaliando a doença do manipulada como instrumento de
patrão, como imaginária. Naquela contestação e de ruptura dos moldes
ocasião ela concordou com o estado anteriores, para instaurar a comédia de
deplorável de seu superior costumes, que era para aquele tempo
ironicamente, apenas porque lhe era um choque no cânone literário. Já as
conveniente. Aliás, a afirmação da produções trágicas veiculavam o papel
criada significa negação: “É um jogo do herói, vítima do amor ou da sua
dialogal tipicamente francês... A fixação condição física. Inclusive, a criada na
de caracteres da comédia molieresca é condição de mãe e a madrasta, com seu
um verso e reverso tão permanente [...]” espírito destruidor, convive ao lado de
(FIGUEIREDO, 1980. p.55). Por Argan, o protagonista. E, resgatando
conseguinte, Nieta retrata a tônica suas similaridades com os tipos bíblicos
cômica de Molière, de forma primordiais, Eva e Lilith representam
significativa, pois ela representa que às duas figuras ambíguas, que se opõem
vezes a aceitação enunciada em seu em alguns aspectos, mas caminham
diálogo assegura que é inteligente o paralelamente em outros.
suficiente, para manter o contato com Também a ironia, bastante presente na
seu patrão, ou seja, é a forma de argumentação semântica em O doente
conduzir pela ilusão até chegar o imaginário revela que o gênio Molière
momento de poder ser verdadeira. tinha a capacidade de concordar, para
ser interpretada como negação e ao
Considerações finais contrário, suas personagens negavam
com o intuito de afirmar. É neste jogo
Ao final destas análises pudemos perceptível nas entrelinhas, que torna a
perceber que o dramaturgo, Molière, o peça interessante, porque a revelação da
qual se especializou na comédia de verdade fica ao encargo do leitor, o qual
costumes, escolhendo Nieta, a qual é tem muita importância para
representante ao mesmo tempo do complementar as nuances reveladoras
gênero feminino e fruto autêntico da de seus personagens, reproduzindo as
classe dominada, distancia-se mazelas do século XVII. A irreverência
radicalmente do cânone literário. No de Molière é de grande importância para
entanto, ela é brilhante quanto a toda os estudiosos de literatura
sua trajetória dentro da peça por contemporâneos e mais que sua atitude
desconstruir a hegemonia masculina, ser de rejeitar a tradição, é sua contribuição
sagaz e elaborar um plano, para trazer à para refletir questões mascaradas, as
tona a dignidade do patrão. Por isso, o quais vieram à tona com a peça teatral,
autor foi bastante arrojado para o seu que ao mesmo tempo criticou o
tempo e mostrou através da forma hipocondrismo e o casamento por
popular, isto é, pela comédia, a qual interesses. Assim, O doente imaginário
abalava e desestabilizava alguns é uma obra de arte para ser revisitada,
padrões de comportamentos. Contudo a por revelar a crítica avassaladora do
criada o fez com tranquilidade, de dramaturgo direcionada à sociedade e à
forma debochada e significativa, para os classe médica do período renascentista.
leitores contemporâneos perceberem as
incoerências sociais, as quais o autor
discordava daquela época.
62
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63