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Luciana Marino do Nascimento

ENTRE PARIS E LISBOA:


a modernidade de Cesário Verde
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Luciana Marino do Nascimento

ENTRE PARIS E LISBOA:


a modernidade de Cesário Verde

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação do Instituto de Estudos da Linguagem
da Universidade Estadual de Campinas, como
parte dos requisitos para obtenção do grau de
Doutor em Teoria e História Literárias.

Orientadora: Profa. Dra. Vilma Sant’Anna Arêas

Campinas – SP
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP
Maio/2003
3

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca IEL - UNICAMP

N17s Nascimento, Luciana Marino do


Entre Paris e Lisboa: a modernidade de Cesário Verde /
Luciana Marino do Nascimento. - - Campinas, SP: [s.n.], 2003.

Orientadora: Vilma Sant'Anna Arêas


Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Estudos da Linguagem.

1. Literatura portuguesa - Sec.XIX. 2. Poesia portuguesa -


Sec.XIX. 3. Verde, Cesário, 1855-1886 – Critica e interpretação.
4. Modernidade. I. Arêas, Vilma Sant'Anna. II. Universidade
Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem.
III. Título.
4

Tese apresentada para obtenção do grau de Doutor em Teoria e História Literárias e


submetida à banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

______________________________________
Profa. Dra. Vilma Sant’Anna Arêas
Orientadora

_____________________________________
Profa. Dra. Laura Beatriz Fonseca de Almeida
(UNESP/Araraquara)

_____________________________________
Prof. Dr. Lauro Belchior Mendes
(FALE/UFMG)

_____________________________________
Prof. Dr. Haquira Osakabe
(IEL/UNICAMP)

_____________________________________
Prof. Dr. Alexandre Soares Carneiro
(IEL/UNICAMP)

____________________________________
Profa. Dra. Maria Betânia Amoroso
(IEL/UNICAMP) - Suplente

_____________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Ornellas Berriel
(IEL/UNICAMP) – Suplente

____________________________________
Prof. Dr. Márcio Seligmann-Silva
Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Teoria e História Literárias –
Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP
5

A minha orientadora,
Profa. Dra. Vilma Sant’Anna Arêas,
que me ensinou a viver com arte,
o que redobrou minha admiração
por sua trajetória.
6

Dedico este trabalho a Aline Cristina e


a Cleber Fernando, companheiros de
muitas lutas, de sonhos e de literatura.
Aos meus pais, pois sem eles não
seria possível minha existência.
7

AGRADECIMENTOS

Muitos incentivos recebi durante a realização deste trabalho. Agradeço, portanto,


primeiramente a Deus, fonte da vida;
- ao CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) pela
concessão de uma Bolsa de estudos, sem a qual não teria sido possível a
realização deste trabalho;
- aos Professores do Curso de Doutorado, que me auxiliaram com muitas reflexões
iluminadoras: Prof. Dr. Carlos Eduardo Ornellas Berriel e Prof. Dr. Paulo Elias
Allane Franchetti;
- à Profa. Ilma de Castro Barros e Salgado, pela amizade e pelo empréstimo de
valiosa bibliografia;
- ao Prof. Dr. Lauro Belchior Mendes, pela interlocução fértil;
- ao Prof. Dr. Sérgio Roberto Costa, pela leitura deste texto;
- à Profa. Dra. Laura Beatriz Fonseca de Almeida, pelo incentivo desde meu Curso
de Graduação;
- ao Prof. Dr. Alexandre Soares Carneiro, pela leitura atenta e precisa,
imprescindível ao desenvolvimento deste trabalho;
- à Profa. Dra. Maria Antonieta Pereira, pela leitura da versão final deste trabalho;
- à Profa. Conceição Claret, pela acolhida em Campinas;
- aos colegas do Curso, pela convivência e pela troca de experiências.
8

RESUMO

Esta tese estuda a obra do poeta português Cesário Verde, especialmente em

seu diálogo com a obra de Charles Baudelaire, no que se refere aos temas da

modernidade: a cidade, os trabalhadores, as transformações sociais e o erotismo

difuso projetado na mulher elegante, na mulher feia e marginalizada ou mesmo em

elementos da natureza associados ao corpo feminino.

ABSTRACT

This thesis studies the work of the portuguese writer Cesário Verde, with

special focus on his dialog with Charles Baudelaire’s poetry, concerning modernity

themes such as: the city, the workers, the social transformation and the diffuse

eroticism projected on the elegant woman, on the ugly and marginal woman or even on

the nature elements associated with the female body.


9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................... 11

CAPÍTULO I – Cesário Verde na encruzilhada do Século XIX ....................... 21


1.1. Cesário Verde em “As farpas”: vinculação a Baudelaire ......................... 21
1.2. Algumas considerações sobre a crítica do século XX ................................. 28

CAPÍTULO II – Rotas da Modernidade .............................................................. 37


2.1. Tempos modernos ....................................................................................... 37
2.2. Baudelaire: poeta e crítico ........................................................................... 40
2.3. Cesário Verde baudelairiano ....................................................................... 65
2.3.1. A escrita da cidade ................................................................................... 65
2.3.2. O erotismo dos perfis femininos ............................................................... 91

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 125

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 127

ANEXOS ............................................................................................................. 135


11

INTRODUÇÃO

O século XIX configurou-se no imaginário social como um período de


grandes transformações econômicas, advindas de um progresso material que se
apoiava nas conquistas da ciência, com reflexos no campo artístico-literário. Esse
século inaugurou os “tempos modernos”, revelando os avanços conquistados pela
técnica e pela ciência, mas também apresentando seus desdobramentos. Para tanto,
foi decisiva a entrada de novos personagens, até hoje, no cenário da literatura e das
artes em geral: os trabalhadores, a cidade e sua pobreza e as mulheres destituídas
de elegância. Interessa-nos, aqui, estudar a obra de Cesário Verde, mapeando a
modernidade de sua poesia nos perfis femininos, no seu diálogo com o poeta francês
Charles Baudelaire e na presença da cidade em transformação, como matéria de sua
poesia lírica.
O título deste trabalho, “Entre Paris e Lisboa: a modernidade de Cesário
Verde”, revela a idéia que o norteia: a presença da capital francesa como pólo
irradiador do progresso e do cosmopolitismo; como palco das grandes revoluções
histórico-sociais, literárias e culturais e ícone da modernidade do século XIX, cujos
ecos puderam ser ouvidos em outros países e culturas, inclusive em Portugal. Entre
Paris e Lisboa, Cesário Verde, baudelairianamente, põe-se a recortar a cidade em
níveis diferentes e planos sobrepostos, observando o processo de transformação do
espaço urbano, que se dá sob o signo do estranhamento de uma tradição cultural
que localizava o país numa posição de centro.
Celebrada como conquista da técnica e da modernidade, a cidade européia
do século XIX destaca-se como palco de lutas e como fonte de idéias, de inovação,
de paixão, de fascínio e de medo. Pela pena de grandes escritores, tais como Poe,
Baudelaire, Victor Hugo, Sue, Dickens e Cesário Verde, o espaço urbano vai sendo
esquadrinhado e reconstruído como tema e cenário de contradições. E, ao serem
apreendidas pelo discurso literário, as cidades adquirem uma mitologia própria:
12

O que constitui o principal atrativo de uma cidade é o que poderemos chamar


[de] seu mito. Paris, Londres, Roma, Lisboa, Madrid e tantas outras urbes do
velho mundo possuem todas uma mitologia e é a literatura que as cria. São os
romances, os poemas, a história numa sedimentação profunda de impressões
e reminiscências que formam (...) a superestrutura mitológica das cidades.1

É nos temas da modernidade baudelairiana que se assenta nossa leitura da


obra de Cesário Verde. O poeta português absorveu as reflexões de Charles
Baudelaire, revelando a capacidade de recriar poeticamente a realidade, que é
exposta sob o signo da dissonância, por meio de quadros grotescos. A miséria, o lixo
e a decadência surgem como o avesso de uma sociedade que exibe um projeto de
modernização, ao mesmo tempo em que exclui as grandes camadas que
materialmente a constrói. Cesário alinhou-se também a Baudelaire no tratamento do
erotismo difuso na cidade ligado à mulher “fatal”, o que permite leituras sobrepostas:
o feminino desperta o sensualismo, atrai pela beleza e é ironizado como algo
superficial, luxuoso e obediente à moda.
Podemos, portanto, observar em Cesário a presença de Baudelaire: ambos
tematizaram problemas comuns, em cenários de ritmos históricos diferentes, embora
marcados por uma urbanização acelerada; ambos foram atraídos pela cidade e
revelaram um profundo sentimento moderno de tédio e fascinação, trazendo para a
poesia o operário, o povo e os mendicantes.
Na obra de Cesário, a modernidade realizou-se, julgamos de forma notável,
com inovação temática e ruptura com a tradição, mas o autor não foi compreendido
na Península, projetando-se para o futuro seu diálogo mais amplo com essa cultura.
Ele se constituiu como uma das vozes dissonantes na sociedade portuguesa, já que
opunha uma poesia reflexiva e inteligente à do nacionalismo tradicional de exaltação
à terra. A sua poética não exclui a análise do estado de decadência em que seu país
vivia, sublinhando a precária condição do homem português. Na obra de Cesário
Verde, muitas vezes, os poemas apresentam um ritmo próximo da narrativa como
um espaço de reflexão e apontando a transição para a modernidade.2

1
BROCA, 1993. p. 55.
2
SILVEIRA, 1992. p. 125.
13

Membro de uma família próspera, Cesário Verde (1855-1886) dedicou toda a


sua curta vida ao comércio de ferragens e à administração da atividade agrícola da
quinta de sua família, tendo se tornado um grande exportador de frutas. Chegou a
freqüentar o Curso de Letras, no qual conheceu Silva Pinto, que veio a se tornar seu
grande amigo e editor. Entre números e cálculos, ele produzia sua poesia, estreando
literariamente no Diário de Notícias, em novembro de 1873, com a publicação dos
poemas “A Forca”, “Num Tripúdio de corte rigoroso” e “Ó Áridas Messalinas”.
O ponto alto de sua obra, sem dúvida, é o poema “O Sentimento dum
Ocidental”, saga urbana de poeta-andarilho, que ele publicou por ocasião das
comemorações do tricentenário de morte de Camões, em 10 de junho de 1880, na
Folha “Portugal a Camões”, editada pelo Jornal de Viagens. Esse poema representa,
para nós, o texto central da poesia verdiana, podendo ser considerado como uma
expressão do projeto estético-literário do poeta. Em “O Sentimento dum Ocidental”,
entra em cena um sujeito herdeiro da tradição da cultura ocidental, que perfaz um
caminho reflexivo, através de um “eu” solitário que está a buscar a sua identidade
poética. Vilma Arêas, em seu artigo “Duas leituras de Camões: Cesário Verde e
Fiama Hasse Pais Brandão”,3 afirma que em Camões o que era um feito heróico de
um povo cumprindo uma grande missão ordenada por Deus – as grandes viagens
marítimas –, nos versos de Cesário Verde torna-se um solitário passeio de um
homem que evoca modelos literários da tradição, como as crônicas e a epopéia –
marcos desse passado de esplendor. Esse sujeito busca uma forma literária que
represente o Portugal de seu tempo, onde presente e passado se encontram e se
cristalizam em monumentos literários, que resistem aos séculos, tal qual a epopéia
“salva a nado”.
Pelos grandes estudiosos da obra de Cesário, como Joel Serrão, Helder
Macedo e Silvio Castro sabe-se que, no mais das vezes, o poeta obteve duras
críticas da chamada “Geração de 70” e uma grande indiferença do público e da
Imprensa. Sobre essa indiferença, Cesário lamenta em uma carta a Antonio Macedo
Papança, o Conde de Monsaraz:

3
ARÊAS, 1982. p. 134.
14

Uma poesia minha, recente, publicada numa folha bem impressa, limpa,
comemorativa de Camões, não obteve um olhar, um sorriso, um desdém, uma
observação. Ninguém escreveu, ninguém falou, nem um noticiário, nem uma
conversa comigo; ninguém disse bem; ninguém disse mal!... Literariamente
parece que Cesário Verde não existe.4

Essa queixa do poeta refere-se à publicação do poema “O Sentimento dum


Ocidental” que vindo a lume por ocasião das comemorações do tricentenário da
morte de Camões, curiosamente, hoje é considerado o ponto alto da obra cesariana.
Vilma Arêas comenta a dissonância do pensamento de Cesário Verde, em relação
ao caráter esfuziante das comemorações camonianas: “Em vez de fazer parte das
comissões oficiais que buscaram em vão os fabulosos ossos de Camões, Cesário
tentou entender a realidade nacional. É compreensível que não o aceitassem...”.5
A indiferença da imprensa em relação à obra de Cesário Verde é colocada
por ele mesmo em seu poema “Contrariedades”.6 Neste, o poeta mostra sintonia com
as coordenadas ideológicas de seu tempo, inclusive, ao “pintar o real”, demonstra
estar em consonância com o pensamento do filósofo Taine, que afirmava ser função
da obra de arte “representar com exatidão o estado geral do espírito e dos costumes
do tempo a que pertence”:7

Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta


no fundo da gaveta. O que produz um estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine,


Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
Vale um desdém solene.8

4
VERDE, apud. SILVEIRA, 1986. p. 17.
5
ARÊAS, 1986. p. 2.
6
Ressalte-se que o poema “Contrariedades” apresenta um intenso diálogo com “Uma vítima”, poema de Barros de
Seixas (1853-1881), autor do livro Cantos Modernos (Lisboa, 1879). Nesse poema, o autor tematiza o drama de uma
costureira tuberculosa que, conforme é anunciado no título, é uma vítima da sociedade injusta.
7
TAINE, 1913. Apud BRAYNER, 1979. p. 148.
8
VERDE, 1992. p. 56.
15

No século XIX, a imprensa adquiriu novas funções. De simples divulgadora


de fatos econômicos e políticos, tornou-se um espaço de cultura, de recepção de
novas idéias e de debates sociais e políticos, inclusive com uma seção dedicada ao
entretenimento, o folhetim, que publicava obras escritas em capítulos, de fácil leitura
e grande aceitação. Este tipo de publicação tornou-se alvo das críticas de Cesário
Verde, no poema “Contrariedades”:

Com raras exceções, merece-me o epigrama


Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,


Mas sim, por deferência, a amigos ou artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,


Se forem publicar tais coisas, tais autores,
Arte? Não lhes convém, visto que seus leitores
Deliram por Zaccone.9

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,


Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;


Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos
Os meus alexandrinos...10

Walter Benjamin ressalta que “por meio do folhetim a beletrística logrou um


mercado nos jornais. O folhetim ajudava o jornal a ter uma aparência nova a cada dia”,
mas, ao mesmo tempo, se inseria o recurso do reclame, que era uma notícia paga com
aparente independência, podendo promover ou desmoralizar uma obra.11 Contra tais

9
A presença de Zaccone no poema, segundo João Pinto de Figueiredo, explica-se pelo fato de Cesário Verde
conhecer sua obra através da Loja de Carrilho Videira, o editor do Zaccone, romancista popular e autor de obras
como A Prisão Número 7 e Os Grilhetas. FIGUEIREDO, 1981. p. 93.
10
VERDE, 1992. p. 56-57.
11
BENJAMIN, 1991. p. 58.
16

procedimentos e manobras, Cesário Verde se contrapunha, como bem demonstra nos


versos do poema “Contrariedades”. Nesses, o eu poético assume uma posição crítica
não só frente às injustiças da sociedade como também frente à mercantilização da obra
que se nutre da adulação e do poder econômico, punindo a independência intelectual.
O protesto de Cesário em relação à imprensa, no poema citado, é atravessado
pela denúncia das condições de vida de uma engomadeira, com a qual o poeta se
solidariza, mostrando a presença da injustiça em diversos níveis da sociedade, onde
imperam os interesses de alguns, em detrimento de muitos. Vale ressaltar que tanto
na lírica verdiana como na lírica baudelairiana, os trabalhadores foram bastante
tematizados. As mulheres trabalhadoras, de classe social baixa, converteram-se em
musas, na poesia dos poetas português e francês, conforme veremos mais adiante
em um capítulo específico. Um exemplo dessa temática pode ser visto a seguir, em
alguns fragmentos do poema “Contrariedades”, no qual Cesário Verde expõe a vida
da engomadeira e as dificuldades do poeta em publicar, com uma alta carga de
ironia e de pessimismo:

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora


Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas d’ar; morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!


Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

(...)
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Ouço-a a cantarolar uma canção plangente
Duma operereta nova!

(...)
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minha obras...
17

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?


A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!12

O trabalho poético aparece, não só nesse mas também em outros poemas,


associado à situação de trabalho e aos modos de produção. Há, nesses versos, a
consciência do dilema do poeta em produzir e, ao mesmo tempo, transformar sua
arte em mercadoria – o que não desejava –, tornando-se dependente de um público
consumidor.
Se Cesário Verde criticou duramente as manobras na imprensa e as condições
de vida dos trabalhadores, ele também recebeu duras críticas advindas dos componentes
da “Geração de 70”,13 seus contemporâneos. As críticas do grupo de 70 afirmaram
que Cesário era um imitador dos franceses. O membro deste grupo que mais disparou
reprimendas contra Cesário foi Ramalho Ortigão, em suas famosas As Farpas.
O poeta foi ainda criticado sob a forma de algumas “Gazetilhas” publicadas
em jornais, como o Diário Ilustrado, de 18 de maio de 1874:

O Sr. Cesário Verde,


Que usa barrete encarnado,
Escreve em estilo negro,
Num papel amarelado.

Que vê tudo cor-de-rosa


Nos horizontes futuros,
E que os frutos da república
Ontem inda esverdeados
Estão já hoje maduros.14

Como se pode observar, a “Gazetilha” atacava o poeta fazendo alusão ao


brilho dos abismos negros tematizados por Baudelaire, o que é criticado por
Ramalho Ortigão em seu artigo sobre Cesário no periódico As Farpas.

12
VERDE, 1992. p. 57-58.
13
A chamada “Geração de 70” congregou, entre 1971 e 1887, um grupo de intelectuais formados em Coimbra, que
se reuniram em torno das famosas “Conferências do Casino Lisbonense”. Tais discussões tinham por objetivo
colocar Portugal em sintonia com a Europa moderna, seguindo os preceitos filosófico-científicos de pensadores,
como Taine, Proudhon, Darwin, Spencer, Hegel e outros, com o intuito de promover uma renovação na cultura, na
sociedade, atacando três instituições principais: a monarquia, o clero e a burguesia.
14
Apud MACEDO, 1975. p. 49.
18

A visão de Cesário afastou-o do prestígio e das manobras da imprensa, mas


podemos perceber uma coerência intelectual em toda a sua obra, o que se manifesta
em sua opção por transformar em matéria de poesia o estado das classes
trabalhadoras, as situações degenerescentes da classe burguesa, os avessos da
cidade e o erotismo de humilhação presente nos perfis femininos.
Cesário publicou toda a sua obra de forma avulsa, em jornais. A não-
publicação de um seu volume sequer em vida representa uma dificuldade para
sabermos como foi a reação do público leitor da época. No ano seguinte à morte de
Cesário, em 1887, Silva Pinto organizou uma edição de 200 exemplares. Ao organizar
O Livro de Cesário Verde, Silva Pinto tornou-se o primeiro estudioso dessa obra,
dividindo-a em duas partes: “Crise romanesca” e “Naturais”. Apresentando o primeiro
parecer sobre a obra, ao compreendê-la e dividi-la entre uma tendência romântica e
outra realista, Silva Pinto talvez não representasse a visão de Cesário, mas sua
opinião aceita por muitos críticos adiante.15 Em 1901, veio a lume a segunda edição
de O Livro de Cesário Verde, a qual podemos considerar como a estréia do poeta no
circuito literário, numa edição comercial. Posteriormente, seguiram-se a terceira, em
1911; a quarta, em 1919; a quinta, em 1926 e a sexta, em 1945.
Joel Serrão16 apresentou uma contribuição de grande relevância para o
estudo da obra verdiana, ao organizar a Obra Completa de Cesário Verde, em 1964,
(com várias reedições nos anos de 1969, 1976, 1983, 1988 e 1992), não mais
seguindo a linha divisória de Silva Pinto, em duas seções (crise romanesca e
naturais), mas colocando os poemas numa ordem temático-cronológica, juntando
cartas do poeta e uma fonte bibliográfica.
Sem dúvida, a obra de Cesário Verde abre-nos muitos caminhos de leitura,
do plano pessoal à sua fidelidade a seu universo referencial, a segunda metade do
século XIX. Sua oposição ao status quo, sua ruptura com a tradição e sua filiação a
Baudelaire inscrevem-se de modo vivo em sua poesia. Portanto, para uma
compreensão dessa obra, não podemos descartar os críticos que pensaram a

15
SALGADO JÚNIOR, 1946. p. 391.
16
SERRÃO, 1964. p. 20.
19

literatura em sua vinculação com referências históricas e literárias, como os leitores


deste trabalho cedo perceberão.
Este trabalho encontra-se dividido em dois capítulos. O primeiro faz um
levantamento da crítica que aproximou Cesário Verde de Baudelaire – de As Farpas
de Ramalho Ortigão à crítica portuguesa do século XX, onde buscamos colocar o poeta
como um intelectual sintonizado com as mudanças sócio-culturais de sua época,
principalmente no que diz respeito à influência francesa na cultura portuguesa.
Procuramos igualmente entender as razões da incompreensão de Ortigão em
relação ao poeta.
No segundo capítulo, buscamos trilhar os caminhos da modernidade de
Baudelaire que, como poeta e crítico, exerceu clara influência em Cesário. Os temas
baudelairianos são recriados poeticamente pelo poeta português, por meio de
quadros de tonalidade realista, aproximando-se do grotesco, com grande ousadia e
agudeza. Nesse sentido, Cesário Verde foi capaz de colocar na poesia portuguesa a
crua realidade cotidiana, libertando-a do nacionalismo romântico de exaltação à
terra, do amor convencional pela mulher, do exagerado sofrimento individual. Todos
esses elementos demonstram que, em Verde, há uma opção por tematizar o estado
em que vive seu país, sublinhando a condição do homem português, desapegando-
se do passado e voltando seu olhar para o tempo presente, para a cidade, onde a
iluminação a gás, por exemplo, apaga as estrelas.
Para concluir, tentamos mostrar como Cesário Verde, ao inovar a poesia de
língua portuguesa, também absorveu as conquistas da modernidade, fazendo uso da
técnica da sobreposição, na qual fatos, cenas e emoções são descritos de maneira
simultânea. O poeta aproximou-se, desse modo, do processo de corte e montagem ,
presente na poesia de vanguarda do século XX. Em conseqüência, ele instaurou um
marco de mudança importante na poesia portuguesa, inclusive ao tematizar problemas
tão atuais, até hoje vividos nas grandes cidades. Esse lirismo calcado na poetização da
realidade transforma-o num poeta da rua, capaz de produzir uma espécie de poesia-
reportagem. A leitura de seus poemas desvela múltiplas experiências e diferentes
posturas assumidas por um eu lírico capaz de apresentar a realidade sob diversos
ângulos, revelando Cesário como um poeta da multiplicidade.
20
21

CAPÍTULO I

CESÁRIO VERDE
NA ENCRUZILHADA DO SÉCULO XIX

1.1. Cesário Verde em “As Farpas”: a vinculação a Baudelaire

No capítulo de As Farpas – “A musa moderna – conselho a um jovem poeta”,


Ramalho Ortigão1 inaugurou uma vertente da crítica literária que uniu Cesário Verde
a Baudelaire. Para o crítico português, a moda literária do poeta francês em terras
lusitanas trouxe efeitos maléficos para a poesia local, pois contribuiu para a
circulação de uma “falsa poesia”, construída à base da imitação francesa:

Quanto à poesia:
Um facto curioso – A rápida e extraordinária vulgarização que acharam
nos poetas portugueses os processos literários e os ideais artísticos de
Charles Baudelaire!
Averigua-se que o realismo baudelaireano está fazendo mais numerosas
e mais lamentáveis vítimas do que o velho romantismo de Byron, de Lamartine
e de Musset.2

A título de ilustração e complementação, vale ressaltar que Baudelaire, como


um “poderoso pólo irradiador da modernidade literária do século XIX”,3 tornou-se
presente na produção literária de muitos países e nas duas margens do Atlântico:
Portugal e Brasil. Antonio Candido, em um ensaio notável, analisa a presença de
Baudelaire na lírica de poetas brasileiros no decênio de 1890 que, embora fizessem
uma leitura limitada do poeta francês, contribuíram para modificar os rumos e a
fisionomia da produção poética do período. A obra As flores do mal influenciou os
poetas pré-parnasianos brasileiros, que retiraram da lição baudelairiana o apuro
formal da métrica, a utilização de imagens inusitadas e a atitude de contestação, com

1
José Duarte Ramalho Ortigão (1836-1915) foi um intelectual participante da Questão Coimbrã, juntamente com
Eça de Queirós. Em 1871 (mesmo ano das Conferências do Casino Lisbonense), Ortigão iniciou a publicação do
periódico As Farpas, que ficou a cargo de Eça de Queirós, sendo que somente no período de 1872 a 1882, Ramalho
Ortigão assumiu a redação do mesmo. Ortigão Ingressou no Grupo da “Geração de 70” e viveu do jornalismo e de
alguns empregos públicos. De suas viagens à Holanda e à Inglaterra, escreveu dois livros que transitam entre o
jornalismo e o diário íntimo: A Holanda (1885) e John Bull e a sua ilha (1887).
2
ORTIGÃO, s. d. p. 271.
3
SABINO, 2001. p. 580.
22

a rejeição do passado e a adoção de novos ideais, considerados modernos, como a


poesia da rua, a mulher degradada etc – temática inovadora na poesia de fins do
século XIX. Entretanto, a rua e a cortesã eram poetizadas de dentro do escritório dos
escritores que, de fato, não foram às ruas, como o fez Baudelaire, para captar
material e trazê-lo para a poesia. No entanto, conforme atesta Candido, os pré-
parnasianos não adotaram o prosaísmo e a coloquialidade, marcas do poeta francês:

[Esses poetas] refugaram ou não sentiram bem a coragem do prosaísmo e


dos torneios coloquiais. Também não se interessaram pelos espaços externos
da vida contemporânea, inclusive o senso penetrante da rua e da multidão;
ficaram quase sempre dentro de casa e mais especialmente do quarto de
dormir. Apesar disso, assimilaram algo da modernidade de Baudelaire na
medida em que se inspiraram nele para afirmar o tempo presente e seus
problemas, contra o refúgio no ego e na história...4

Como poeta da febre, da sensualidade, da sexualidade acentuada, do


cotidiano da cidade moderna e de seu reverso, com toda a sua pobreza e o seu luxo,
Baudelaire, sem dúvida, conforme afirmou Friedrich,5 inaugurou a nova estética da
poesia moderna francesa, em contraposição aos valores da sociedade burguesa e a
seus padrões de beleza, equilíbrio, claridade, higiene, entre outros. Isso confere ao
poeta uma dimensão maldita, por demonstrar em seus versos o reverso da medalha
da modernidade, que exibiu a técnica e o avanço científico, dos quais nem todos
puderam desfrutar. Essa crítica de Baudelaire à modernidade é vista por Ramalho
Ortigão como indícios de perversão e como distorções presentes na escrita pois,
para o crítico esses temas eram considerados apoéticos:

Baudelaire, imitador do estilo humorístico americano de Edgar Poe, é um


mundano, um dândi, um corrupto. Tem os defeitos e as virtudes inerentes à
sua violenta personalidade. Conhece todas as elegâncias, todos os vícios,
todos os desejos, todos os apetites, todas as perversões nervosas, todas as
úlceras, todas as febres, todas as podridões modernas. Sabe o segredo do
chic, os preceitos da moda, os efeitos da prostituição e do alcoolismo, e os
últimos requintes da sensualidade e da devassidão.6

4
CANDIDO, 1987. p. 38.
5
FRIEDRICH, 1978. p. 45.
6
ORTIGÃO, s. d. p. 271.
23

O crítico português prossegue suas observações, comentando as musas


presentes na cena poética do autor francês e que, desviadas do padrão, configuram
prostitutas, mulheres doentes, mulheres delinqüentes e mulheres maquiadas:

A sua musa foi criada irritantemente com túbaras e com vinhos de


champagne, entre o lupanar, o tripot e o water close do boulevard. Pinta os
cabelos, os beiços, as faces e põe sinais. Dá ao cabelo o aspecto de uma
meada de linho cor de manteiga, ao rosto a imagem da superfície de uma taça
de leite em que caíssem duas moscas, à boca a semelhança de uma cicatriz.
Tem tosse, meias de seda e um coupé de quando em quando.7

Como vemos, Ortigão critica as musas baudelairianas por representarem a


dissolução da musa antiga e ideal, o que, segundo ele, traz uma “influência maléfica”
para os poetas portugueses, pois disseminam imagens negativas da mulher no
espaço urbano, exibindo suas várias máscaras. Mas, a nosso ver, essas musas se
assemelham às características do próprio poeta moderno, cuja marca constitutiva é a
despersonalização,8 assim como a maquiagem no rosto feminino dissimula seus
traços constitutivos e individuais.
A presença dos sinais no rosto e no corpo, apontados por Ortigão, nas
mulheres representadas por Baudelaire, pode ser explicada, de acordo com Sennet,
como marcas de determinados tipos de mulheres. Segundo esse autor, os sinais em
cada parte do corpo das mulheres do século XIX as situava como assassinas,
ousadas ou sedutoras: “[os sinais] no canto dos olhos significavam paixão; no centro
do queixo, jovialidade; no nariz, atrevimento. Uma assassina deveria usar pintas
sobre os seios.”9 Todas essas características mostram como se desenvolveu, no
século XIX, uma nova sensibilidade, que promoveu o corpo a uma espécie de mapa
ou artefato, para exposição no grande palco da rua.10 Não é difícil perceber, pela
exposição acima, os equívocos da leitura de Ortigão, em relação à obra do poeta
francês, ao contrário do entendimento demonstrado por Cesário.

7
ORTIGÃO, s. d. p. 271.
8
GOMES, 1989. p. 20.
9
SENNET, 2001. p. 95.
10
SENNET, 2001. p. 95.
24

Quando sublinha a importância e a inovação de Baudelaire, Ramalho Ortigão


não foge à retórica naturalista da época e a seus efeitos de superfície:

Baudelaire tem no entanto o grande mérito de haver criado a língua da


decadência literária do Segundo Império, de ter fixado na linguagem as
fosforescências do charco, as cintilações do estilo negro. Há estados morais e
estados patológicos na vida do homem moderno, os quais antes de Edgar Poe
nos Estados Unidos, de Henrique Heine na Alemanha, e de Charles
Baudelaire em França, estavam inéditos na literatura destes três países. Heine
e Poe fizeram a língua da tísica, da dispepsia, da nevrose e do delirium
tremens. Baudelaire criou o idioma sifilítico do crevetismo.11

A importância de Baudelaire, segundo ele, limitava-se à literatura francesa.


Por isso, Ortigão não reconhece, nem compreende a presença de seus temas na
escrita de Cesário Verde, classificando-a como distorção, decadência literária e
criticando a cena cotidiana descrita por Cesário, lançando sobre esta um olhar irônico:

O poeta chama-se o sr. Cesário Verde, o qual achou interessante comunicar-


nos, por meio do referido Diário de Notícias, um dos casos verdadeiramente
mais extraordinários que podem assinalar a vida de um homem, a saber: ir um
sujeito pela Rua do Alecrim e passar uma carruagem com uma senhora dentro.12

A constatação de Ortigão refere-se ao poema “Esplêndida”,13 no qual uma


dama passa em um landau forrado de cetim, lançando um olhar de desprezo sobre
seu admirador que, por sua vez, deseja o lugar de seus truões. Para o crítico, isso
era sinal de perversão, de deturpação e de falsidade dentro da poesia moderna
portuguesa, pois não correspondia à realidade e tampouco ao cenário lisboeta:

(...) O poeta abusa um pouco dos adornos com que veste a sua dama, já
envolvendo-a em sedas multicores, o que é de mau gosto inadmissível, já
fazendo-a portadora dos esplendores de Versalhes...

11
ORTIGÃO, s. d. p. 272.
12
ORTIGÃO, s. d. p. 272-273.
13
Ei-la! Como vai bela! Os esplendores (...) E eu vou acompanhando-a, corcovado,
Do lúbrico Versalhes do Rei-Sol No trottoir, como um doido, em convulsões,
Aumenta-os como retoques sedutores. Febril, de colarinho amarrotado,
É como o refulgir dum arrebol Desejando o lugar de seus truões,
Em sedas multicores. Sinistro e mal trajado.
Deita-se com langor no azul celeste E daria, contente e voluntário,
Do seu landau forrrado de cetim; A minha independência e o meu porvir,
E os seus negros corcéis que a espuma veste, Para ser, eu poeta solitário,
Sobem a trote a rua do Alecrim, Para ser, ó princesa, sem sorrir,
Velozes como a peste. Teu pobre trintanário. (...)
25

(...) Depois tem um landau forrado de cetim “azul celeste”, coisa que ninguém
nunca teve e que a ninguém se permite (...). De sorte que destes versos salva-
se unicamente uma coisa verdadeira e sensata, que é a Rua do Alecrim.14

Temos de convir que esse comentário tem muito de uma visão sarcástica.
Para o crítico, as idéias estariam deslocadas pois o boulevard e a moda encontravam-
se descentrados, deslocados de seu lugar de origem – a Paris de Baudelaire. Na sua
transposição “inadequada”, a avenida (o boulevard) era a Rua do Alecrim e o atelier
de costura era o da Travessa de Santa Justa, o que falseava versos e contexto.
Mas não é isso o que acontece. Cesário Verde sintoniza a poesia portuguesa
com a modernidade européia e rompe com a tradição, não por somente absorver a
Paris de Baudelaire, (o boulevard, a dama fria e distante), mas por usar esses
elementos como lente rearticuladora do perfil português e de uma nova convenção
poética, o que é visível em todos os versos.
A crítica de Ortigão é irônica face ao colorido da dama e ao “landau azul-
celeste”, onde ela estava. Na visão do crítico, esses são elementos inverossímeis;
porém, a nosso ver, dentro da poesia de Cesário, tais aspectos exercem as funções
de demarcar a classe social de quem os usava e, ao mesmo tempo, pelo
deslocamento e pela ausência, situar Lisboa em outro lugar. Inteligente construção
pelo avesso, como vemos.
Quanto ao lugar do poeta, Ortigão não leva em consideração o aspecto
irônico que permeia a cena urbana de um amante desprezado, que se curva diante
de uma mulher e realiza uma encenação. Trata-se de um fingimento, no qual o “eu”
utiliza uma máscara assentada na figura do homem desprezado, mero personagem,
fato que marca a “despersonalização do poeta” como uma característica da lírica
moderna,15 lugar da expressão de várias vozes, que substituem a voz única e
direcionada do poeta clássico.
Para Ortigão, entretanto, um poeta deveria apresentar uma “postura moral
correta” e não se colocar na posição de amante humilhado, acometido de febres e

14
ORTIGÃO, s. d. p. 273.
15
GOMES, 1989. p. 20.
26

convulsões diante da “dama fatal”. Tal atitude o transforma em “poeta perigoso”,16


pois estaria, assim, sem o domínio de seus próprios instintos, cultivando a
decadência baudelairiana:

Nesta parte um conselho: Quando um poeta é de natureza tal que ao passar


por senhoras de carruagem se vê obrigado, pelo seu temperamento, pela sua
veia poética ou pelos seus princípios políticos, a corcovar, a endoidecer, a ter
convulsões e febre e a amarrotar os colarinhos, esse poeta é perigoso na rua
do Alecrim, e deverá ir, “sinistro e mal trajado”, desejar o lugar dos truões e
amarrotar a roupa branca para a circunvalação.17

Como se pode ver, Ortigão recoloca em cena o “poeta perigoso”, aquele que
não é aceito na República de Platão, pois não produz uma escrita útil e consagradora
dos valores institucionalizados da pátria, além de permitir a si mesmo extravazar
sentimentos armazenados no inconsciente, sem centrar-se na ideologia de toda a
comunidade.18
Na visão de Ortigão, a presença de Baudelaire em Cesário Verde estava
associada ao niilismo, à desordem sexual, ao charco e à lama, o que representou um
tempero forte demais para a crítica portuguesa da época:

Eis aqui está, finalmente, a que uma fingida perversão leva um homem, talvez
digno e brioso: a afirmar de si mesmo, como a fina flor predilecta do ideal, que
quer ser lacaio!
Fazemos à dignidade deste poeta a justiça de acreditar que quebraria a sua
bengala nas costas de quem lhe atribuísse, em prosa, as maneiras, a toilette,
os pensamentos e os instintos de que ele se gloria em verso.
Tal é a deplorável influência do crevetismo na poesia moderna representada
na obra de um dos seus cultores, o Sr. Cesário Verde, ao qual sinceramente
desejamos que estas modestas observações contribuam para que continue a
ilustrar o seu nome tornando-se cada vez menos verde e mais Cesário!19

Evidentemente, Ortigão não compreendeu a poesia de Baudelaire, o que não


foi privilégio seu. Até hoje essa poética gera recepções dissonantes. Modernamente,
uma das linhas críticas20 considera que o poeta francês colocou em prática o projeto

16
ORTIGÃO, s. d. p. 274.
17
ORTIGÃO, s. d. p. 274.
18
SANT’ANNA. 1979. p. 68-69.
19
ORTIGÃO, s. d. p. 274-275.
20
OEHLER, 1997. p. 14.
27

literário de uma “estética anti-burguesa”, expressando sua insatisfação por pertencer


à burguesia, fazendo uma opção por tematizar os oprimidos e, ao mesmo tempo,
manifestando sua posição contrária à arte de mercado.
A incompreensão ramalhiana parece-nos contraditória, pois Ortigão foi um
crítico de intensa atividade jornalística e intelectual. Visitou as grandes exposições de
Paris, esteve sintonizado com as idéias científicas do século XIX e teve seu projeto
literário estreitamente identificado com uma reflexão sobre a pátria portuguesa e
seus males. Buscou sintonizar Portugal com o restante da Europa, ao participar das
discussões da “Questão Coimbrã”, partilhando das idéias da Geração de 70, ao
tentar ligar Portugal com o mundo”.21 Inclusive, torna-se importante ressaltar que o
Projeto da Geração de 70 focalizou Paris como um parâmetro de civilização moderna
a ser apropriado, para que as terras lusitanas pudessem transpor o atraso
provinciano em relação aos demais países europeus desenvolvidos.22 Contudo,
Ortigão não admitiu a mudança de parâmetro da poesia de Cesário Verde e a
visibilidade que ela permitiu aos figurantes (trabalhadores, prostitutas, varinas,
calafates etc.), que os novos tempos fizeram circular na cidade. Para o crítico, isso
era sinônimo de decadência, o que evidentemente não constituía obstáculo para o
polimento e o valor dos versos de Cesário.
A leitura por nós empreendida, sobre a crítica a Cesário Verde em As
Farpas, de Ramalho Ortigão, longe de visar à totalidade, apenas pretendeu auscultar
uma voz contemporânea do poeta, buscando ressaltar a importância do primeiro
intelectual que mostrou a presença de Charles Baudelaire na obra do poeta
português. Ela representa o primeiro passo para se estabelecer um diálogo entre o
poeta português e o francês, feito pela crítica posterior, no século XX.

21
Programa das Conferências Democráticas. Apud MACHADO, 1998. p. 114.
22
MACHADO, 1998. p. 21-22.
28

1.2. Algumas considerações sobre a crítica do século XX acerca da obra de


Cesário Verde

De As Farpas, de fins do século XIX, até a década de 20 do século seguinte,


Cesário Verde ficou praticamente esquecido pelos estudos críticos, embora, em
1902, conforme nos informa Fátima Rodrigues,23 Mendes dos Remédios tenha
indexado o poeta em seu livro História da Literatura Portuguesa – desde as origens a
actualidade. Ao longo de seis edições, Remédios produziu poucas alterações em seu
cânone. Destacamos que, na edição de 1902, ele apenas cita Cesário, em pouco mais
de dez linhas. Já na 4ª edição, de 1914, o autor introduz alterações significativas,
não só no número de linhas como na qualidade das informações dedicadas à poesia
verdiana, ressaltando que “cem páginas do livro valem muitos volumes e
representam uma obra genial”.
João de Barros, nas primeiras décadas do século XX, destacou o importante
papel da poesia de Cesário Verde no panorama das letras portuguesas, ao afirmar
que ele utilizou a descrição minuciosa para melhor observar o real. Essa descrição,
para Barros representava uma nova forma de poetizar a realidade:

[Cesário Verde] para cantar as coisas humildes e quotidianas e, ao mesmo


tempo, para dizer o seu desejo sequioso de abranger e viver toda a vida,
empregou imagens novas e poderosas, bizarras mesmo na sua fragância e
uma língua forte, expressiva, alheia a todo verbalismo inútil, não árida, mas
sóbria, não fria, mas de exatidão quase matemática.24

Nos anos 20, o poeta já ocupava espaço no meio universitário, pois José
25
Régio, em 1925, defendeu uma tese de licenciatura, intitulada “As correntes e as
individualidades na moderna poesia portuguesa”, na qual reconhece a modernidade
da poética de Cesário, inclusive afirmando ser ele “o nosso mais representativo
poeta realista”, pois

23
RODRIGUES, 1998. p. 100-101.
24
BARROS, 1944. p. 113.
25
RODRIGUES, 1998.p. 100.
29

(...) procura revelar [a beleza dos espaços e das coisas] descrevendo-nos


pedaços de paisagem, debuxando perfis e tipos, desenrolando pequenos
quadros banais e vivos. Geralmente falhada ou falseada, nas ampliações de
Junqueiro e Gomes Leal, foi em Cesário que esta poesia achou uma comoção
pudica e sóbria, uma sensibilidade funda e senhora de si, uma bela
imaginação de observador...26

Régio observou, na obra de Cesário, uma poesia do cotidiano como indício


da modernidade do poeta, que criava quadros descritos e delineados a partir de uma
ótica própria.
João Gaspar Simões, em seu texto “Introdução a Cesário Verde” (1931),
ressaltou como características mais importantes nessa poesia, como a habilidade de
registrar e analisar a realidade e, ao mesmo tempo, de transfigurá-la, já que Verde
exerceu um lirismo baseado na “poesia do concreto, do vulgar ou do quotidiano”,27
importantes traços que unem o poeta português a Baudelaire.
A década de 40 foi de grande importância para a propagação da obra de
Cesário. Além da publicação da obra do poeta Fernando Pessoa, que havia eleito
Cesário como mestre, surgiram estudos sistemáticos de Óscar Lopes, Jorge de
Sena, Jacinto do Prado Coelho, Joel Serrão, David Mourão-Ferreira e João Pinto de
Figueiredo, entre outros. Esses estudos abriram, a partir dos anos 70, uma senda
para as análises críticas de Helder Macedo, Reckert, Cabral Martins e Alfredo
Margarido, entre outros.
Tais críticos produziram estudos notáveis e apresentaram, a nosso ver, um
melhor entendimento da obra verdiana, pois centraram suas leituras na produção do
poeta, sem cultivar as tradicionais preocupações biográficas ou mesmo as divisões
da obra verdiana em fases. Esses estudos efetuaram múltiplos recortes que vieram a
estabelecer o diálogo de Cesário com o realismo, com a poesia de caráter social e
também com o poeta francês Charles Baudelaire, tópico que nos interessa mais de
perto. Alguns dos principais estudos sobre o tema são os de David Mourão-Ferreira e
de Jacinto do Prado Coelho.

26
RÉGIO, 1941. p. 46-47.
27
SIMÕES, 1971. p. 91.
30

David Mourão-Ferreira destacou que há, em Cesário, os estímulos sensoriais


da poesia baudelairiana: o poeta é um “pintor sem quadros.” O crítico também
comenta que no poema “Cadências Tristes”, Verde lançou mão do lirismo tradicional
e romântico, utilizando um tipo de verso inédito na poesia portuguesa da época:

Aventamos que tal composição fosse, à data, pouco freqüente, se não inédita,
na poesia portuguesa; e mais sugerimos: que o modelo o tivesse Cesário ido
buscar a Baudelaire. De fato, em ‘Les Fleurs du mal’, cinco poemas
apresentam esse desenho estrófico: Le Balcon, Reversibilité, Moesta et
Errabunda, Lesbos e L’irreparable. (este último com uma variante que consiste
na substituição, no 2º e no 4º versos, dos alexandrinos por octossílabos).28

Essa aproximação de Cesário a Baudelaire também foi observada por


Jacinto do Prado Coelho, ao destacar alguns aspectos que estabeleceram um
diálogo de Verde com o poeta francês, como a presença da mulher fria e distante, a
figura do flâneur e seu deambular, a aridez da cidade moderna, a presença dos
pobres, dos trabalhadores e de suas mazelas. Todos esses elementos estabelecem,
sem dúvida, uma ponte entre Cesário e o poeta francês.29
Jorge de Sena30 também observou que o poeta viveu a lição baudelairiana,
mas não chegou a aprofundar-se nesse assunto, considerando o “erotismo de
humilhação” em Cesário um aspecto perturbador e ponderando que o poeta exagerava
na encenação de uma condição social abaixo da sua. A nosso ver, Sena leu a poesia
de Cesário pelo viés biográfico ou buscou em seus poemas aspectos confessionais,
o que estava longe da intenção do autor de “O Sentimento dum Ocidental.”
João Pinto de Figueiredo nota a presença de ecos baudelairianos na poesia
de Cesário, ao aproximá-la dos temas da cidade/modernidade/erotismo. Segundo
ele, Verde “baseara a sua poesia numa reminiscência literária, procurando depois
inseri-la num quadro nacional”,31 ou seja, o poeta trouxe para o cenário lisboeta a
atmosfera dos tableaux parisiens, presente no crepúsculo das ruas, na bebida, no

28
MOURÃO-FERREIRA, 1966. p. 68.
29
COELHO, 1961. p. 191. O autor cita alguns poemas de Cesário que estabelecem um claro diálogo com os versos
baudelairianos, como “Num Bairro Moderno” (“La Gèante”); “O Sentimento dum Ocidental” (“Le Crepuscule du soir”)
e “Cabelos”(“La Chevelure”).
30
SENA, 1981. p. 161.
31
FIGUEIREDO, 1986. p. 69.
31

perfume, imagens reveladoras da forte sensualidade e do erotismo baudelairianos.


Entretanto, ao estreitar os laços entre a vida e a obra do poeta, Figueiredo analisa
seus versos também a partir de uma ótica biográfica.
Gèrard et Pierrete Chandelar32 pergunta-se se haveria, verdadeiramente, um
“erotismo de humilhação” em Cesário, argumentando que a presença das figuras
femininas são meras referências literárias a Baudelaire, cujas personagens não teriam a
repressão sexual portuguesa, pois exalam sensualidade. Mas Chandelar informa que
não encontra uma verdadeira ressonância baudelairiana em O Livro de Cesário
Verde, citando como exemplo o tipo de métrica utilizada por cada poeta: Cesário
utiliza o verso alexandrino e Baudelaire alterna o alexandrino com o heptassílabo. Ao
analisar os poemas “Esplêndida” e “Humilhações”, o crítico define a humilhação neles
presente, como um recurso para mostrar que a depreciação social representa a
separação das classes rica e pobre, o que reduz, sem dúvida, a leitura da obra verdiana
a um viés social, sem considerar o erotismo como elemento de sua modernidade e
de sua criação.
Margarida Vieira Mendes,33 ao organizar uma antologia de poemas de
Cesário Verde, afirma que foi a partir do escrito de Ortigão que se traçou o diálogo
entre Verde e Baudelaire. Entretanto, em sua visão, o poeta português não se
vincula estreitamente a Baudelaire, pois ele “é também um poeta do campo, do
prosaico, sem amplidão oratória, anti-romântico, sem as preocupações metafísicas e
os abismos de Baudelaire, além de não ter quaisquer marcas de satanismo.”
Fazemos algumas ressalvas a essa leitura, ao admitirmos que Cesário se revelou,
em alguns momentos, um poeta de temática romântica. Citamos, por exemplo,
“Cadências Tristes”,34 dedicado ao poeta romântico João de Deus. David Mourão-
Ferreira afirma que a referência a João de Deus, no poema de Cesário, é algo

32
CHANDLER, 1990. p. 7-8.
33
MENDES, 1987. p. 22-23.
34
E fico descansada, à noite, quando cismo, O enleio, a simpatia e toda a comoção,
Que tentam proscrever a sensibilidade, Tu mostras no sorriso ascético e perfeito
E querem denegrir o cândido lirismo, E tens o edificante e doce amor cristão
Porque o teu rosto exprime uma serenidade, Num trono de bondade, a iluminar-te o peito,
Que vem tranqüilizar-me, à noite quando cismo! Que é toda melodia e toda a comoção.
(VERDE, 1992. p. 190-191)
32

relevante, pois, o poeta demonstra um lirismo tradicional, sob uma forma estrófica
tomada de Baudelaire:

Colocada no início da sua breve carreira poética, (...) [o poema representa] a


apologia do nosso lirismo tradicional [mas] apresenta-se, todavia, sob o
aspecto estrófico, em moldes muito pouco tradicionais e que, até na sua
própria obra nunca mais voltarão a aparecer: são quintilhas formadas por
alexandrinos, com rima cruzada, e em que o quinto verso é a repetição quase
textual do primeiro.35

No poema “cadências Tristes”, Cesário Verde, sem dúvida, conjuga tradição


e inovação, ao exaltar valores românticos, fazendo ecoar muitas vozes em seu texto
desde a dicção feminina da cantiga medieval ao tópico da mulher frágil. Tudo isso
expresso através de uma distribuição estrófica muito próxima do poema “Le
Balcon”,36 de Baudelaire, o que nos leva a concordar com a afirmativa de T. S. Eliot,
que nos diz que toda atividade artística lança mão dos mais variados materiais da
cultura, selecionando-os e remodelando-os, criando, assim, uma obra singular que
não possui uma existência autônoma, estando esta inserida num contexto:

(...) Nenhum artista tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a
apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os
poetas mortos; não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo para contraste e
comparação entre os mortos. Entendo isto como um princípio de estética, não
apenas histórico, mas no sentido crítico.37

Para além da forma baudelairiana, acreditamos que o poeta apresentou


também marcas do satanismo do poeta francês. Esse satanismo na poesia verdiana
foi definido por Jacinto do Prado Coelho como episódico. Contudo, afirmamos que há
uma presença significativa do satanismo em Cesário, acompanhando a experiência

35
MOURÃO-FERREIRA, 1966. p. 98.
36
La nuit s’épaississait ainsi qu’une cloison,
Et mês yeux dans le noir devainent tes brunelles,
Et je buvais ton souffle, ô douceur! Ô poison!
Et tes pieds s’endormaient dans mês mains fraternelles
La nuit s’épaississait ainsi qu’une cloison.
Je sais l’art d’évouquer les minutes heureuses,
Et revis mon passé blotti dans te genoux.
Car à quoi bom chercher tes beautés langoureuses,
Ailleurs qu’en ton cher corps et qu’en ton coeur si doux?
Je sais l’art d’evouquer les minutes heureuses! (BAUDELAIRE, 1991. p. 85)
37
ELIOT, 1989. p. 39.
33

da cidade em transformação, com suas desigualdades e seus horrores. Além disso,


o satanismo baudelairiano deve ser examinado com cuidado, pois como informa
Walter Benjamin, o poeta francês, apesar de dar vazão a seus impulsos satânicos, era
também um “admirador dos jesuítas”.38 Sua atitude satânica revela um
inconformismo frente à sociedade perversa e sua própria descrença diante do
mundo: por isso, satã se insere na sua poesia como um grito de guerra, como uma
forma de protesto e como uma vertente da cultura do romantismo.
Antonio José Saraiva vê em Cesário uma lição baudelairiana39 dentro de
alguns limites, pois, Verde não teria recorrido aos “paraísos artificiais” e à fuga.
Contudo podemos perceber um desejo de fuga, em seu emparedamento na cidade,
ou mesmo nos versos em que evoca Londres, Paris, Berlim, o mundo, como também
na sua posição literária de estar num “café devasso” a tomar goles de absinto, o que
sinaliza a fuga para o paraíso artificial que a bebida sugere.
Saraiva & Lopes afirmam que o “erotismo de humilhação” em Cesário Verde
não constitui um modo de expressão da moda literária de sua época, mas reflete
uma inferioridade social:

(...) Cesário teve de vencer o misto hiperbólico de ódio-adoração à mulher


aristocratizada e distante, estigma de um sentimento de inferioridade social
que tanto se detecta em poetas como Guilherme Azevedo e Gomes Leal, nas
suas imitações baudelairianas.40

Para os autores, nos poemas “Esplêndida” e “Deslumbramentos”, Cesário


exprimiu o conflito do poeta na sociedade capitalista, frente à burguesia. Mas
acreditamos que, na verdade, há uma carga de ironia e crítica aos representantes do
poder, encenadas nas mulheres frias, ricas e soberbas, que figuram nos poemas
citados. Além disso, essas mulheres são figuras perfeitas para a projeção de desejos
eróticos, com suas rendas e bricabraques.

38
BENJAMIN, 1991. p. 55-56.
39
SARAIVA, 1997. p. 137.
40
SARAIVA e LOPES, 1996. p. 926.
34

Reckert41 e Cabral Martins42 reconheceram o diálogo com Baudelaire, na


poesia de Cesário, destacando nela a multiplicidade do erotismo que se propaga da
cidade para o campo, deslocando-se, também, para os elementos da natureza. Os
críticos concordam entre si, ao afirmarem que os vegetais presentes no poema “Num
Bairro moderno” são comparados ao corpo de uma vendedora de verduras, a partir
de uma profusão de cores e sabores, numa atitude erótica, que utiliza as sinetesias
típicas da poesia de Baudelaire, não representando, portanto, uma simples alusão
aos quadros do pintor maneirista Arcimboldo, mas revelando também que o erotismo
verdiano desloca-se para as mulheres desprovidas de beleza, como as trabalhadoras
braçais, as mulheres doentes etc., que também freqüentam os versos do autor.
Alfredo Margarido,43 outro importante crítico português, mostra a presença do
tema do erotismo na poesia de Cesário Verde. O autor ressalta, brilhantemente, que
a presença das formas eróticas femininas estrangeiras, na poesia de Cesário Verde,
pode ser explicada por dois motivos: a influência baudelairiana e a arraigada moral
católica das mulheres lusas que, mergulhadas no pudor da sociedade portuguesa,
não provocavam no poeta desejos eróticos.
Mas foi, sem dúvida, Helder Macedo44 quem produziu o mais notável estudo
sobre Cesário Verde. Ao analisar de forma completa a obra do escritor, o crítico não só
centra sua análise no contexto social e nas idéias científicas vigentes, na época da
produção verdiana, como também estuda a presença do erotismo em sua poesia.
Macedo destaca a alta proporção que o erotismo ocupa na poesia verdiana, sendo ele
citadino ou campestre (que se desloca para os elementos da natureza) ou expresso
através de um desejo que se exacerba nas ruas, através do olhar que focaliza a
mulher como objeto de desejo, o que caracteriza um novo modo de se estar em público.
O autor observa ainda que há, nos poemas em que Cesário tematiza a dama fatal, um
flâneur baudelairiano que fixa as formas eróticas nos mais diversos tipos femininos.

41
RECKERT, 1987. p. 30.
42
MARTINS, 1988. p. 33-34 e 79.
43
MARGARIDO, 1988. p. 135-148.
44
MACEDO, 1975. p. 96.
35

Hélder Macedo afirma, ainda, que o poeta se reveste de múltiplas figuras,


tais como o flâneur, o voyeur, o humilhado, entre tantas outras, demonstrando, a
partir da criação de variadas personagens, um descentramento do sujeito lírico que
circula nas partes mais obscuras da cidade. Não seria também absurdo levantarmos
a afirmação de Ernst Fischer, que em seu livro “A necessidade da arte” admite a
notável capacidade de Baudelaire de criar uma beleza a partir do horrível, o que se
coaduna com o projeto poético de Cesário. De acordo com o autor, Baudelaire, em
contraposição ao perverso mundo do capital, erige uma arte capaz de revelar uma
beleza extraída da luminescência do charco, da lama e de figuras grotescas.45
Sílvio Castro, outro importante estudioso da obra de Cesário Verde, aponta
uma importante característica para a compreensão de seu fazer poético: a junção de
diversos elementos. Assim, a escrita de Cesário tende para a multiplicidade,
congregando a fusão de elementos visual e musical. Essas características fizeram
com que o autor ultrapassasse as classificações e tornaram-no um poeta
multifacetado e tão atual.46
As múltiplas leituras empreendidas pela crítica do século XX alteraram o
ordenamento da obra verdiana, o que se coaduna com o próprio projeto de Cesário:

(...) Como um poeta dos poetas, desarrumando as idéias feitas e as estantes


criticamente organizadas de cada sucessiva geração. É, por isso, um mestre
que não consente imitação nem fácil manuseamento crítico, um mestre
verdadeiro para verdadeiros poetas.47

Guardadas as proporções entre Baudelaire e Cesário Verde, Lisboa e Paris,


mas admitindo que Verde absorveu os temas baudelairianos, a despeito das “farpas
ramalhianas”, que o classificaram como um “imitador pervertido”, é preciso reconhecer
que o poeta trilhou os caminhos abertos por Charles Baudelaire, inaugurando uma
nova poética e alcançando algumas conquistas do artista moderno: a consciência do
texto como espaço de reinvenção da linguagem e dos temas, como produto para o
mercado consumidor e como espaço para a crítica à modernidade. Cesário Verde

45
FISCHER, 1987. p. 82-89.
46
CASTRO, 1990. p. 40.
47
MACEDO, 1988. p. 9.
36

escreveu em língua portuguesa, o que dificultava sua divulgação no restante da


Europa, teve uma curta vida e produziu uma obra avulsa, aparentemente pequena, mas
de grande riqueza estética, o que nos faz reconhecer que Cesário rompe com uma
tradição que privilegiou o elemento onírico e a fuga superficial, tornando-se um poeta de
tamanha importância para a literatura de língua portuguesa, assim como o foi
Baudelaire para a literatura francesa. A poética verdiana voltou-se para o mundo
baixo, para a realidade sensível,48 para as mazelas sociais e para a prosaica cena
urbana, onde desfilam as “damas fatais”, personagens que encerram a imagem
milenar da mulher, como uma criatura esfíngica e enigmática, o que será tratado em
uma seção específica – “Erotismo dos Perfis Femininos” – no capítulo seguinte.

48
GOMES, 1989. p. 141.
37

CAPÍTULO II

ROTAS DA MODERNIDADE

Digo
Lisboa
Quando atravesso – vinda do sul – o rio
E a cidade a que chego abre-se como se
do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
em seu corpo amontoado de colinas –
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
(...)
E em seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
Digo para ver.
(Sofia de Mello Breyner Andresen.
Poema inaugural do livro Navegações.)

2.1. Tempos Modernos

Ao usar a expressão modernidade, remeto-me ao abrangente movimento das


idéias políticas, sociais e estéticas que compreendem um longo período, a partir do
Renascimento, e que atingiram seu ápice no século XVIII, com o Iluminismo, a
Revolução Francesa e a Revolução Industrial, cujas idéias se prolongaram pelos
séculos XIX e XX:

(...) Com a Revolução Francesa e suas reverberações, ganha vida, de


maneira abrupta e dramática, um grande e moderno público. Esse público
partilha o sentimento de viver uma era que desencadeia explosivas
convulsões em todos os níveis da vida pessoal, social e política.1

1
BERMAN, 1996. p. 16.
38

De matriz iluminista, o projeto de modernidade da segunda metade do século


XIX implicou grandes transformações em todas as dimensões da vida humana,
desde os aspectos materiais, dos bens de consumo até os bens culturais, impondo a
necessidade de rapidez e pontualidade, oferecendo a magia da luz elétrica e
permitindo o surgimento de uma nova classe – a operária – com um modo de vida
determinado pela indústria.2 Apesar de todas essas transformações, esse período foi
pontuado por contradições: de um lado, a hegemonia do poderio burguês, de outro, a
exibição do espetáculo da miséria e dos flagelos sociais.
Ressalte-se que o “estar na ordem do dia” não se deu apenas nos campos
histórico e social, mas também nos âmbitos artístico e literário, pois escritores e artistas
captaram as mudanças decorrentes do capitalismo acelerado e da modernidade:

Entre os artistas, uns vão revelar a penetração recíproca do abstrato e do


concreto, da anti-natureza e da natureza. Vão tentar compreender no sensível,
os signos e os sinais descontínuos. Substituem deliberadamente a
continuidade percebida pelo descontínuo construído, dando lugar à liberdade
puramente criadora (...) para superar o real alienado...3

Vale ressaltar que a modernidade na literatura e nas artes alimentou-se da


ruptura como palavra de ordem e também absorveu as idéias de mudança, de
progresso e de racionalismo científico, expressando, em alguns casos, uma crítica às
contradições contidas no próprio projeto.
Marshall Berman4 informa que o primeiro intelectual a refletir sobre a
modernidade foi Rousseau, tendo utilizado a expressão “moderniste”, no sentido em que
seu uso se tornou corrente nos séculos XIX e XX. Rousseau chamou a atenção de seus
contemporâneos para o abismo para o qual a sociedade moderna estava caminhando.
O primeiro escritor a utilizar a palavra “modernidade” foi Baudelaire, que trouxe
o conceito para a vida social e artística, demonstrando outra consciência do novo:

Baudelaire traz uma novidade à consciência do novo. Para ele, o “moderno” é


expressamente o efêmero, o fugaz; ele encara o efêmero, a moda e o
mundano como inverso do eterno na dualidade humana (...) [com ele] o termo
moda mudou de sentido, [passando a designar] o imprevisível e o encanto

2
LEFÈBVRE, 1969. p. 211.
3
LEFÈBVRE, 1969. p. 212.
4
BERMAN, 1996. p. 17.
39

imprevisto inventados por artistas espontâneos, não profissionais (os dândis).


Ele designa a flor do cotidiano, a novidade pela novidade nas suas manifestações
mais passageiras, logo, as mais profundas, segundo Baudelaire.5

Atento às transformações de sua época, Baudelaire vivenciou o


desenvolvimento das estradas-de-ferro, da indústria francesa e da cidade de Paris com
seus bulevares. O bulevar, inovação surgida com o planejamento urbano do século XIX
foi uma criação decisiva para a modernização da cidade, sendo o cenário da vida
moderna por excelência, porque permitia a aproximação e a convivência dos contrastes:
o rico frente ao pobre; o feio, ao bonito; a juventude, à velhice, a opulência, à miséria.
Acima de tudo, permitia o confronto das classes, com o luxo das vitrines, as grandes
peças de teatro e a afluência à cidade de tipos humanos marginalizados.
Nessa paisagem marcada por mudanças profundas na sociedade, muitos
escritores, tais como Baudelaire, vão tematizar a realidade que os cercava,
substituindo o sonho de amor individual por um sonho coletivo de igualdade social.6
A literatura passou a tematizar o homem com suas implicações sociais, políticas,
econômicas e psicológicas, a partir de elementos que até então nunca tinham sido
temas literários, como a beleza do feio, a miséria, os anseios humanos de libertação
social, a consciência de que o progresso não é desfrutado pelas grandes camadas
populares. Surgem daí novos personagens e novos temas na literatura: bêbados,
prostitutas, operários, mendigos, assassinos, boêmios, trabalhadores braçais, elementos
diabólicos, seduções desenfreadas, liberação dos prazeres, acaso, cotidiano, “dobras”
da cidade moderna e hipocrisia burguesa. Todos esses elementos abriram espaço
para uma literatura panorâmica, na qual a cidade se converte em um grande teatro e
seus indivíduos em atores. São esses aspectos que estão presentes na inovação
que Baudelaire e Cesário Verde conferem a suas obras.
Todos esses temas e personagens trouxeram outra feição para a arte e para
a literatura, instaurando um novo modo de percepção de uma época na qual os
artistas se contrapuseram à burguesia que ainda insistia em temas e heroísmo

5
LEFÈBVRE, 1969. p. 200-201.
6
LEFÈBVRE, 1969. p. 277.
40

clássicos,7 afirmando sua soberania, empreendendo uma crítica social antiburguesa,8


demostrando quão atrativo é o tema da vida nova coletiva. Tal fato, segundo
Lefèbvre, foi sentido pelos intelectuais, que misturaram “um lirismo antigo (Hugo),
com o mito da grande cidade (Paris) e a descoberta, não vivida ainda
conscientemente na França, do agrupamento dos homens nas cidades grandes”.9
A estética de Baudelaire reage, portanto, à massificação proposta pela
Revolução Industrial e ao artificialismo da vida moderna, empreendendo um profundo
estudo crítico da arte em tempos modernos, o que pode ser observado não só em
sua obra poética, mas também em sua obra crítica.10

2.2. Baudelaire poeta e crítico

O período da produção baudelairiana coincide, cronologicamente, com a


decadência do movimento romântico na França e o poeta, muitas vezes, foi visto
como um adepto da estética simbolista. Para além da periodização, Baudelaire
possui um importante papel artístico, ao fomentar a autonomia da arte e a soberania
do artista. Wellek nos chama a atenção para a dissonância de Baudelaire, em
relação ao movimento simbolista:

(...) Cronologicamente ele antecede o movimento em muitos anos (...). Assim, pode
ser considerado apenas um “precursor”, termo que dificilmente se ajusta a um
homem dotado de tal poder crítico e tão original sensibilidade que fazem dele
um dos maiores críticos do século. Sua principal realização crítica foi na arte,
mas ele era, embora não um teórico sistemático, um importante esteta geral e
um crítico literário distinto. Todavia, nem a estética nem a crítica de Baudelaire
atingem o mesmo grau de originalidade e sensibilidade que fez dele o magnus
parens da poesia moderna.11

Em seus textos de crítica, Baudelaire apresenta os parâmetros constitutivos da


arte moderna, como em “O pintor da vida moderna”, “O salão de 1846” e “Do
heroísmo da vida moderna”, entre outros. Noutros textos, o poeta chegou a analisar

7
OEHLER, 1997. p. 31.
8
OEHLER, 1997. p. 17.
9
LEFÈBVRE, 1969. p. 87.
10
COMPAGNON, 1996. p. 23-24.
11
WELLEK, 1972. p. 414.
41

detalhadamente as obras de Gustave Flaubert, Victor Hugo e Teóphile Gautier.


Entretanto, Teixeira Coelho chama a atenção para a questão de as idéias de
Baudelaire terem sido mais lidas em textos de seus críticos, do que nas páginas de
seus próprios escritos:

As visões de Baudelaire sobre a Modernidade, porém, acabam mais


conhecidas através dos textos de seus exegetas menos ou mais famosos do
que pela leitura das palavras do próprio autor de As Flores do Mal e Le Spleen
de Paris (...). As figuras da modernidade traçadas por Baudelaire são mais
simples e menos extensas e, simultaneamente, mais coloridas, matizadas e
densas do que as versões delas divulgadas por seus comentaristas.12

No ensaio “O pintor da vida moderna”, Baudelaire expressa seu conceito de


modernidade, exprimindo o que há de efêmero e circunstancial na arte de qualquer
época. A urbe é vista pelo poeta como algo mais que uma ruptura com o passado.
Utilizando a moda como um dos elementos do cotidiano moderno, Baudelaire chama
a atenção para seu caráter transitório, ressaltando que o artista tem a função de “unir
o eterno ao transitório”.13 Dessa forma, ele demonstra que, assim como a moda, a
arte da modernidade também possui a faculdade de renovar-se, transformando-se
em algo contínuo e eterno: “A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente,
é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável.”14
Elegendo o ilustrador Constantin Guys como um exemplo do artista moderno,
Baudelaire constrói a figura do flâneur como aquele que está na multidão e na vida
cosmopolita. Esses aspectos são muito caros à leitura que Benjamin faz de
Baudelaire: “[é] com o flâneur que a intelectualidade parte para o mercado para se
vender”.15 Guys é o artista que não mais carrega as telas para a rua, visando à
reprodução do real, mas que se utiliza de uma arte mnemônica, percorrendo o
espaço urbano e recortando-o, fragmentariamente, com seu olhar aguçado. E só à
noite, numa esgrima de idéias e imagens, passa para a tela o que recolheu e
reservou na memória, com uma qualidade nova no olhar:

12
COELHO, 1988. p. 13.
13
BAUDELAIRE, 1995. p. 859.
14
BAUDELAIRE, 1995. p. 859.
15
BENJAMIN, 1991. p. 39.
42

(...) Admira a eterna beleza e a espantosa vida nas capitais (...) Contempla as
paisagens da cidade grande, paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou
fustigadas pelos sopros do sol. Admira as belas carruagens, os garbosos
cavalos, a limpeza reluzente dos lacaios, a destreza dos criados, o andar das
mulheres ondulosas, as belas crianças, felizes por viverem e estarem bem
vestidas, resumindo, a vida universal.
Mas a noite chegou. É a hora estranha e ambígua em que se fecham
as cortinas do céu e se iluminam as cidades. (...) C. G. será o último a partir
de qualquer lugar onde possa resplandecer a luz, ressoar a poesia, fervilhar a
vida, vibrar a música. (...) Agora, à hora em que os outros estão dormindo, ele
está curvado sobre sua mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo
olhar que há pouco dirigia às coisas, lutando com seu lápis, sua pena, seu
pincel, lançando a água do copo até o teto, limpando a pena na camisa,
apressando (...) como se temesse que as imagens lhe escapassem, belicoso,
mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo. E as coisas renascem no papel,
naturais e, mais do que naturais, belas; mais do que belas, singulares (...).
Todos os materiais atravancados na memória classificam-se, ordenam-se,
harmonizam-se (...) que é o resultado de uma percepção aguda, mágica...16

Guys representa para Baudelaire, em seus temas, a cidade, os veículos, as


mulheres, as cortesãs, a multidão, o dândi, a sociedade, os movimentos históricos:
um artista que se torna um repórter da vida cotidiana. Tudo isso é mostrado a partir
das técnicas de pintura que acompanham o próprio ritmo da sociedade moderna: a
improvisação, o esboço, a aquarela, a água-forte, traduzindo uma arte calcada no
fragmentário, no inacabado, desfazendo o academicismo da pintura, bem como
expressando a idéia de uma autonomia do artista:

C.G. tem um mérito profundo que lhe é peculiar; desempenhou voluntariamente


uma função que outros artistas desdenharam e que cabia sobretudo a um
homem do mundo preencher. Ele buscou por toda parte a beleza passageira e
fugaz da vida presente, o caráter daquilo que o leitor nos permitiu chamar de
Modernidade. Freqüentemente estranho, violento e excessivo, mas sempre
poético, ele soube concentrar em seus desenhos o sabor amargo ou capitoso
do vinho da vida.17

Já em seu artigo “O Salão de 1846”, ironicamente, dedicado “Aos Burgueses”,


Baudelaire contrapõe a riqueza da burguesia e a cultura da intelectualidade. Tal
oposição é legitimada pelo consumo de uma poesia que perdeu sua “aura”, seu
encantamento, fato que representa o próprio dilema do artista na modernidade:

16
BAUDELAIRE, 1995. p. 858-859.
17
BAUDELAIRE, 1995. p. 881.
43

A arte é um bem infinitamente precioso, uma bebida que refresca e reconforta, que
reconduz o estômago e o espírito ao equilíbrio natural do ideal.
Vós percebeis sua utilidade, ó burgueses – legisladores ou comerciantes –,
quando a sétima ou a oitava hora que soa, indigna vossa cabeça fatigada para
as brasas da lareira e as orelhas da poltrona. Um desejo mais ardente, uma
imaginação mais ativa, vos descansariam então do trabalho quotidiano.18

Baudelaire discute, ainda, a “inutilidade” e a utilidade da poesia em uma


sociedade que privilegia o processo produtivo e retira o sentimento e a fruição da
arte, ao medir a produção pelo tempo de duração do trabalho de maneira rigorosa e
maquinal.19 Mas, o poeta inverte tal relação ao fazer do texto um espaço de
produtividade e de crítica à sociedade. Em geral, todos os textos do poeta produzem
a “demonização do burguês”, como o “inimigo da arte”, mas ao mesmo tempo ele é o
patrocinador desta:

Burgueses, vós – rei, legislador ou negociante – instituístes coleções, museus,


galerias. Algumas daquelas que há dezesseis anos só estavam abertas para
os monopolizadores, alargaram suas portas para a multidão.
Vós vos associastes, formastes companhias e fizestes empréstimos para
realizar a idéia do futuro com todas as suas diversas formas, forma política,
industrial e artística.20

Essa desilusão do artista com a burguesia faz com que este cobre as
promessas não cumpridas e se volte contra a classe que o patrocina, discussão esta
que passou a ser uma constante na arte e na literatura de artistas que demonstraram
um comprometimento social e revolucionário.21
Outro aspecto discutido por Baudelaire, em “O salão de 1846”, é o estudo
crítico sobre a obra de Delacroix, a qual o poeta classifica como “verdadeiro sinal de
uma revolução”, pois o artista pinta figuras desoladas, mulheres doentes e feias, mas
cheias de uma beleza interior melancólica. Essa melancolia representa para Baudelaire
uma qualidade retratada pelo “verdadeiro pintor do século XIX”, justamente por
expressar os temas que tanto o fascinaram, conforme ele mesmo atesta:

18
BAUDELAIRE, 1995. p. 671.
19
CURY, 1986. p. 136.
20
BAUDELAIRE, 1995. p. 672.
21
OEHLER, 1997. p. 17.
44

qualidade moderna e tão nova que Delacroix é a última expressão do


progresso da arte. Herdeiro da grande tradição, ou seja, da amplidão, da
nobreza e da pompa na composição, e digno sucessor dos velhos mestres,
possui a mais que eles a maestria da dor, a paixão, o gesto!22

No artigo “Do heroísmo da vida moderna”, o poeta exprime a mudança dos


padrões da vida na modernidade, que foram captados tanto pela literatura, quanto
pela arte em geral, tornando-se também temas da poesia baudelairiana. Nesse texto,
ele manifesta a clara consciência de uma época de ruptura, na qual a cidade se
oferece a muitas leituras e como

espetáculo da vida elegante e dos milhares de existências flutuantes que


circulam nos subterrâneos de uma grande cidade – criminosos e prostitutas (...)
nos provam que basta abrirmos os olhos para conhecermos nosso heroísmo.23

Dessa forma, o poeta conclama todos a perceberem que cada época tem
seus temas e sua beleza próprios e que, para se viver a modernidade, é preciso ter
uma constituição heróica.
No artigo “A Exposição Universal de 1855”, Baudelaire expressa idéias
importantes que regeram a modernidade: o progresso material, a crítica e o deslocamento
da vitalidade. Isso pode ser observado nos próprios subtítulos do artigo: “Método de
crítica”, “Da idéia moderna de Progresso”, “Aplicação às Belas-Artes”, “Deslocamento da
vitalidade”. O poeta constata que a modernidade foi um processo doloroso e dissonante
dentro de sua arte, pois ao mesmo tempo em que ele encampou a vida moderna em
sua obra, a partir dos novos parâmetros de uma arte moderna, também se sentiu
angustiado ao fazer a crítica à modernidade, pois ele estava inserido no sistema
moderno e consciente do caráter trágico dessa mesma modernidade. Sobre isso,
Antoine Compagnon comenta em seu livro “Os Cinco Paradoxos da Modernidade”:

Baudelaire não foi daqueles que acreditaram no progresso: ele foi condenado
à modernidade. O paradoxo mais íntimo da modernidade é o fato de que a
paixão do presente, à qual ela se identifica, deva também ser compreendida
como calvário.24

22
BAUDELAIRE, 1995. p. 690.
23
BAUDELAIRE, 1995. p. 730.
24
COMPAGNON, 1996. p. 30.
45

A idéia de progresso, aos olhos de Baudelaire, tem seu lado decadente, em


razão de uma perversa modernização ocorrida no mundo. Segundo o poeta, o
progresso seria uma “lanterna moderna [que] projeta trevas sobre todos os objetos
do conhecimento”,25 o que demonstra que ele percebe o progresso e a modernidade
sob um prisma crítico:

Pergunte a qualquer bom francês, que lê diariamente o seu jornal no seu café,
o que entende por progresso, e ele responderá que é o vapor, a eletricidade e
a iluminação a gás, milagres desconhecidos dos romanos, e que essas
descobertas evidenciam plenamente a nossa superioridade em relação aos
antigos (...). [Entretanto] esses cérebros infelizes se cobriram de trevas e neles
estranhamente se confundiram as coisas da ordem material e da espiritual. O
pobre homem está de tal forma americanizado por seus filósofos zoocratas e
industriais que perdeu a noção das diferenças que caracterizam os fenômenos
do mundo físico e do mundo moral, do natural e do sobrenatural.26

Por apresentar uma visão crítica sobre os avessos do progresso, verificamos


que Charles Baudelaire deu preferência aos artistas que não foram seduzidos pelo
“canto da sereia” da modernidade, mas antes fizeram dela, através de um olhar
crítico, uma forma de conquista de sua liberdade e autonomia criativa, como
Constantin Guys ou Delacroix.
Ao descrever suas teorias acerca do fazer artístico nos “tempos modernos” e
atento às transformações de sua época, Baudelaire trouxe a crítica de seus ensaios
para o espaço de sua obra poética – As flores do mal. De acordo com Compagnon,
foi com Baudelaire que as funções poética e crítica se entrelaçaram, formando a
consciência que o artista deve ter de sua arte.27
As flores do mal reúne poemas compostos desde o ano de 1841, mas só
vem a lume em 1857. Dividida em blocos temáticos, discute os valores indicados em
seus títulos: “Spleen e ideal”, “Quadros parisienses”, “O vinho”, “Flores do mal”,
“Revolta”, “A morte”. De um modo geral, os poemas trazem uma carga de sensualidade
e de erotismo, tendo como pano de fundo a Paris do século XIX, onde desfilam
“monstros, aleijões, fantasmas, súcubos, demônios, que contracenam com cortesãs

25
BAUDELAIRE, 1995. p. 675.
26
BAUDELAIRE, 1995. p. 775.
27
COMPAGNON, 1996. p. 30
46

destituídas de ternura ou grandeza amorosa”,28 enfim, um submundo de onde


emerge a beleza extraída do mal.29 Essa carga de sensualidade exacerbada faz
parte, segundo Mario Praz,30 de uma sensibilidade erótica, que se formou no século
XIX e estava associada a uma atmosfera de horror, como fonte de fruição e beleza.
Ao abrir As flores do mal com o poema “Ao leitor”, Baudelaire estabelece um
pacto com seu leitor virtual. O poema já foi interpretado à luz de especulações
biográficas, mas nos alinhamos à leitura de João Alexandre Barbosa, que afirma ser
este “leitor hipócrita” um elemento indispensável dentro do poema, pois expressa a
interdependência entre poeta e leitor: “a etimologia da palavra ‘hipocrisia’ aponta
para uma perspectiva ambígua de quem desconfia, criticamente, da hierarquia dos
valores incorporados pelo poema”.31
Esse leitor é, portanto, convidado, apesar do aparente desprezo, ao prazer
de um texto que desvela um universo de horror, desmascarando as “dobras” de uma
sociedade que quer se impor como moderna, a partir da técnica e do
desenvolvimento industrial.32
As transformações da Paris do século XIX tornaram-na um grande centro
financeiro e comercial, modificando definitivamente a fisionomia da cidade, a partir
das famosas reformas urbanas empreendidas pelo então Prefeito – o Barão de
Haussmann. A reforma urbana tinha por objetivo facilitar a circulação e garantir a
valorização dos monumentos, colocando-os no eixo em perspectiva, com a finalidade
de proporcionar visibilidade e de manter o controle dos cidadãos, em caso de alguma
insurreição. Segundo Leonardo Benévolo, o “urbanismo haussmanniano” teve como
tarefas básicas a construção de uma rede de abastecimento de águas e esgotos, de
edifícios, de ruas largas e arborizadas, fazendo desaparecer a fisionomia da velha
Paris de ruas estreitas e mal articuladas,33 com a abertura de grandes boulevares,
que escondendo a realidade das zonas periféricas, tornaram-na “uma cidade

28
FRIEDRICH, 1978. p. 44.
29
GOMES, 1989. p. 13.
30
PRAZ, 1996. p. 19 e 45.
31
BARBOSA, 1986. p. 22.
32
GOMES, 1989. p. 17.
47

estranha para os próprios parisienses [que] não se sentem mais em casa nela.
Começa-se a tomar consciência do caráter desumano da grande metrópole”.34
Ressalte-se que as reformas de Paris tiveram início em 1854 e Baudelaire
publicou As Flores do mal, em 1857, reunindo poemas escritos desde 1841. Podemos
perceber que há nos versos baudelairianos, um entrecruzamento da Paris antiga e a
das reformas, pois nos poemas encenam-se ambas as cidades e pode-se ver no
emblemático poema “Le Cygne”, o impacto das reformas haussmaniannas na vida
urbana.
A reforma urbana parisiense representou também a demolição da memória e
da cultura locais. A literatura retratou essa nova feição, pois, nela, a cidade tornou-se
“lugar de memória”, registro de criação, tanto pelo que ela conservou, tanto pelo que
ela destruiu. Baudelaire sentiu o impacto dos novos contornos das ruas, como se
sofresse uma desilusão amorosa, conforme nos mostra no poema “Le Cygne”:

Andromaque, je pense à vous! Ce petit fleuve,


Pauvre et triste miroir où jadis resplendit
L’immense majesté de vos douleurs de veuve,
Ce simoïs menteur qui par vos pleurs grandit,

A fécondé soudain ma mémoire fertile,


Comme je traversais le nouveau Carroussel
La vieux Paris n’est plus (la forme d’une ville
Change plus vite, hélas! que le coeur d’un mortel);35

No poema, Baudelaire lamenta a destruição da velha Paris, mostra a


inclusão do artista no projeto de modernidade e na nova sociedade e o dilema vivido
por ele, entre a sedução e a desilusão urbanas. Baudelaire também sinaliza os
embates entre o antigo e o novo, típicos da modernidade, na qual a cidade torna-se o
espaço do destruir/construir, sendo recuperada nos versos em que se inscreve
também a tradição:

(...) A leitura que Baudelaire realiza do tópico está permanentemente referida


aos dois espaços essenciais de que o seu poema busca dar conta: o da

33
Sobre o urbanismo de Haussmann, cf. BENÉVOLO, 1976. p. 85-147.
34
BENJAMIN, 1991. p. 41-42.
35
BAUDELAIRE, 1991. p. 130.
48

tradição literária, por onde é possível vincular Andrômaca e Cisne, e o da sua


experiência concreta da cidade.36

A mutação no espaço urbano faz com que o literato tente recuperar pela
memória a velha cidade, que se transforma em cidade-subterrânea, abafada por um
novo desenho urbano monumental, mas que é reescrita, a partir de reminiscências
de tempos e lugares que não mais existem. Alude-se, assim, à “ruína” da história,
sob uma forma alegórica:
Je ne vois qu’en esprit tout ce camp de baraques
Ces tas de chapiteaux ébauchés et de fûts,
Les herbes, les gros blocs verdis par l’eau des flaques,
Et, brillant aux carreaux, le bric-à brac confus.

Là s’estalait jadis une ménagerie;


Là je vis, un matin, à l’heure où sous les cieux
Froids et clairs le Travail s’éveille, où la voirie
Pousse un sombre ouragan dans l’air silencieux,
(...)
Paris change! mais rien dans ma mélancolie
N’a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs,
Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie,
Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs.

Aussi devant ce Louvre une image m’opprime:


Je pense à mon grand cygne, avec ses gestes fous,
Comme les exilés, ridicule et sublime,
Et rongé d’un désir sans trêve! et puis à vous,

Andromaque, des bras d’un grand époux tombée


Vil bétail, sous la main du superpe Pyrrhus,
Auprès d’un tombeau vide en extase courbée;
Veuve d’Hector, hélas! et femme d’Hélénus!

Je pense à la négresse, amaigrie et phtisique,


Piétinant dans la boue, et cherchant, l’oeil hagard,
Les cocotiers absents de la superbe Afrique
Derrière la muraille immense du brouillard;

A quiconque a perdu ce qui ne se retrouve


Jamais, jamais! à ceux qui s’abreuvent de pleurs
Et tettent la Douleur comme une bonne louve!
Aux maigres orphelins séchant comme des fleurs!37

36
BARBOSA, 1986. p. 56.
49

Nunca será demais ressaltar o estudo de Walter Benjamin sobre a


modernidade de Baudelaire sublinhando que, embora a teoria da arte moderna não
seja o ponto forte do poeta, nesse poema, ele compreende alegoricamente a
modernidade penetrada pela antigüidade, ambas rodeadas pelas marcas da
transitoriedade. O que foi findou-se e o futuro não promete esperança. A
negatividade contida no poema – e Walter Benjamin frisa isso quando cita Verhaeren
– é o que assegura a perenidade dos versos, sua “justeza” também histórica.38
Ao evocar Andrômaca e o cisne, Baudelaire lê o novo através do antigo e
também em sua dedicatória a Hugo, manifesta, segundo Benjamin uma nova
antigüidade,39 tendo como cenário a cidade de Paris em movimento, que floresce
como uma nova Tróia, pelo seu cotidiano de destruição e substituição.40
O sentimento de spleen da figura do flâneur, o poeta-andarilho que percorre
as ruas da cidade, procurando reconhecer-se nesse espaço, está presente no poema
”Paysage”. Nesse poema, o “flâneur” descreve quadros da cidade sob o impacto do
desenvolvimento industrial, onde os sonhos são encobertos pela fumaça da fábrica:

Je veux, pour composer chastement mês églogues,


Coucher auprès du ciel, comme les astrologues,
Et, voisin des clochers, écouter en rêvant
Leurs hymnes solennels emportés par le vent.
Les deux mains au menton, du haut de ma mansarde,
Je verrai l’atelier qui chante et qui bavarde;
Les trujaux, les clochers, ces mâts de la cité,
Et les grands ciels qui font rêver d’éternité.41

A cidade descortina-se em paisagem modificada pelo rápido processo de


desenvolvimento econômico, e seus habitantes se tornam atores, deixando de se
mostrarem com uma personalidade única.42

37
BAUDELAIRE, 1991. p. 130-131.
38
BENJAMIN, 1991. p. 106. Vale ressaltar que o livro de Verhaeren inverte a negatividade de Baudelaire, assim
como toda a poesia sobre a grande cidade depois de Baudelaire.
39
Id. Ibidem.
40
Id. Ibidem.
41
BAUDELAIRE, 1991. p. 127.
42
BENJAMIN, 1991. p. 119.
50

O desenvolvimento industrial da segunda metade do século XIX fez com que


os objetos passassem a ser produzidos em série, perdendo a aura de objeto único.
Do mesmo modo, o poeta perde sua “auréola”, que cai na lama, no ritmo da vida
moderna, ao atravessar o bulevar, demonstrando que o artista moderno está atuando
no espaço urbano, e que sua “assimilação (...) à sociedade (...) efetivou-se no
bulevar”.43 Esse tema é discutido no famoso poema em prosa “A perda da auréola”:

(...) Ainda há pouco, quando atravessava a toda pressa o bulevar, saltitando na


lama, através desse caos movediço onde morte surge a galope de todos os lados
a um só tempo, a minha auréola, num movimento precipitado, escorregou-me da
cabeça e caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei
menos desagradável perder as minhas insígnias do que ter os ossos rebentados.
De resto, disse com os meus botões, há males que vêm para bem. Agora posso
passear incógnito, praticar ações vis, e entregar-me à crápula, como os simples
mortais.44

A modernidade, portanto, impôs ao poeta a perda de sua aura de artista único,


fazendo com que ele ficasse despido de seu glamour, não mais habitando o “Castelo
de Axel”,45 mas indo para as ruas em busca de matéria-prima para sua poesia.
A flânerie de Baudelaire é extraída não só do tempo presente, mas também
da obra de Poe, cujos escritos foram traduzidos pelo poeta, responsável por sua
divulgação na Europa. Encontramos as fontes do flâneur no conto “O homem na
multidão”. Esse homem é o sujeito que não se deixa ler e que apaga suas pegadas na
urbe, o que confere à flânerie o tom detetivesco do conto policial de Poe.46 Baudelaire
vê a si mesmo em Poe: “Eu vi, com espanto e arrebatamento, não somente objetos
sonhados por mim, mas frases pensadas por mim, e escritas por ele, vinte anos antes”.47
O espaço urbano modificado deixou de estar em conformidade com quem o
habita, devido à perda de elos comuns que antes uniam as pessoas a uma tradição
cultural, convertendo a urbe em lugar de afluência das multidões. Benjamin ressalta
que a multidão foi um “tema que se impôs com maior autoridade aos literatos do

43
BENJAMIN, 1991. p. 59.
44
BAUDELAIRE, 1995. p. 333.
45
Cf. WILSON, 1993. p. 182-183.
46
BENJAMIN, 1991. p. 72.
47
BAUDELAIRE. Apud. PRAZ, 1996. p. 142.
51

século XIX,”48 tendo sido recorrentemente captado como um espetáculo urbano.


Nesse período, a multidão compõe um fenômeno inusitado que, pelo seu caráter de
incontrolabilidade, comporta, contraditoriamente, a produtividade e a violência, o
fascínio e o medo: “O prazer de estar na multidão é uma expressão misteriosa de
gozo que se encontra na multiplicação em número”.49
Segundo Foucault, a multidão é a “massa compacta, local de múltiplas
trocas, [onde] individualidades se fundem”50 compondo o espaço público com os
operários, o povo e a burguesia. A cidade configura-se, a partir de então, como local
de exibição e fluxo ininterrupto de pessoas, convertendo a rua em vitrine para a
exposição de quem a atravessa. Esse é o tema do poema “A une passante”:

La vue assourdissante autour de moi hurlait.


Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d’une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.


Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair ... puis la nuit! – Fugitive beauté


Dont le regard m’a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l’eternité?

Ailleurs, bien loin d ici! trop tard! jamais peut-être!


Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!51

O olhar da passante, que se mostra na multidão, cruza com o do flâneur num


instante fugaz, é assimilado como uma imagem e guardado na memória deste. A
multidão, no poema, propicia a paixão e o olhar desdobra-se em um jogo erótico,
conforma atesta Walter Benjamin:

O soneto “A une passante” não apresenta a massa como asilo do criminoso,


mas como refúgio do amor que foge ao Poeta. Pode-se dizer que trata da

48
BENJAMIN, 1991. p. 114.
49
BAUDELAIRE, 1995. p. 503.
50
FOUCAULT, 1997. p. 177.
51
BAUDELAIRE, 1991. p. 137.
52

função da massa não da existência do cidadão, mas na do erótico. À primeira


vista, essa função parece negativa; mas ela não o é. A aparição que o fascina
– longe de, em meio à multidão, furtar-se ao erótico – primeiro lhe é
oferendada por intermédio dessa multidão. O fascínio do citadino é um amor
não tanto à primeira vista, mas à última vista.52

São essas figuras momentâneas e anônimas que Baudelaire toma como


personagens de sua lírica; é, pois, nas ruas, que o poeta vai buscar seus heróis,
conforme afirma Benjamin: “Baudelaire moldou a sua imagem de artista segundo a
imagem de herói. (...) O herói é o verdadeiro sujeito da modernité. Isso significa que,
para viver a modernidade, é preciso uma constituição heróica”.53 Mas como o lugar
do herói na modernidade encontra-se vazio, Baudelaire tenta preenchê-lo com os
personagens citadinos, especialmente aqueles de grande pobreza material, como o
operário, o mendigo, o trapeiro. No Poema “Les sept vieillards”, Baudelaire detém-se
em detalhes do cotidiano da cidade:
Fourmillante cité, cité pleine de rêves,
Où le spectre en plein jour raccroche le passant!
Les mystères partout coulent comme des sèves
Dans les canaux étroits du colosse puissant.
(...)
Un brouillard sale et jaune inondait tout l’espace,
Je suivais, roidissant mes nerfs commes un héros
Et discutant avec mon âme déjà lasse,
Le faubourg secoué par les lourds tombereaux.

Tout à coup, un vieillard dont les guerrilles jaunes


Imitaient la couleur de ce ciel pluvieux,
Et dont l’aspect aurait fait pleuvoir les aumônes,
Sans la méchanceté qui luisait dans ses yeux!54

A miséria desse personagem anônimo alinha-se à miséria material do poeta,


que é considerado como um sujeito improdutivo, pois não está inserido na linha de
produção industrial ou no mundo do trabalho comercial e vive a recolher material
para sua lírica nas ruas. O poeta, tal qual o catador de trapos, recolhe os fragmentos

52
BENJAMIN, 1991. p. 74.
53
BENJAMIN, 1991. p. 92 e 98.
54
BAUDELAIRE, 1991. p. 132.
53

que a cidade dispensou. Benjamin ressalta que a figura do trapeiro coincide com o
apogeu da indústria têxtil:

Os catadores de trapo apareceram em maior número nas cidades depois que,


através de novos processos industriais, passou-se a dar um certo valor ao lixo.
Eles trabalhavam para intermediários e representavam uma espécie de
indústria caseira sediada na rua. A figura do trapeiro fascinou sua época.
(...) Os poetas encontram pela rua o lixo da sociedade e, a partir dele, fazem a
sua heróica crítica exatamente contra ele. (...) Ele é marcado pelos traços do
catador de trapos, que tanto preocupava Baudelaire.55

E enquanto o lixo interessa tanto ao poeta quanto ao trapeiro, os burgueses


estão a descansar em seu sono. No poema “Le vin des chiffoniers”, Baudelaire nos
mostra os avessos da cidade moderna, seus lugares distantes e o povo esquecido
pelos projetos de modernização, cujo único consolo é o vinho. O vinho permite, aos
desamparados, sonhos futuros de vingança:

Souvent, à la clarté rouge d’un réverbère


Dont le vent bat la flamme et tourmente le verre,
Au coeur d’un vieux faubourg, labyrinthe fangeux
Où l’humanité grouille en ferments orageux.

On voit un chiffonnier qui vient, hochant la tête,


Buttant, et se cognant aux murs comme un poète,
Et, sans prendre souci des mouchards, ses sujets,
Epanche tout son coeur en glorieux projets.56

Citando Marx, Benjamin observa que à época da publicação do poema de


Baudelaire, houve um aumento no imposto sobre o vinho que obrigava os trapeiros e
operários a irem a arrabaldes distantes para encontrar a bebida mais barata e livre
do imposto, pois o “vinho permite a esses deserdados, sonhos de vingança futura e
de uma futura dominação.”57 Henry Lefèbvre destaca que as imagens do trabalhador,
tematizadas pela literatura de um Victor Hugo ou de um Eugène Sue, embora
distintas, figuram mitificadas, através de uma atitude de piedade ou mesmo de cenas

55
BENJAMIN, 1991. p. 51 e 103.
56
BAUDELAIRE, 1991. p. 152.
57
BENJAMIN, 1991. p. 50-51.
54

de lazer. Mas, na obra de Baudelaire, as imagens do trabalhador são desenhadas


criticamente, através de seu depauperamento:58

Il prête des serments, dicte des lois sublimes,


Terrasse les méchants, relève les victimes,
Et sous le firmament comme un dais suspendu
S’enivre des splendeurs de sa propre vertu
(...)
Pour noyer la rancoeur et bercer l ‘indolence
De tous ces vieux maudits qui meurent en silence,
Dieu, touché de remords, avait fait le sommeil;
L’Homme ajouta le Vin, fils sacré du soleil!59

Compondo o espaço urbano na lírica de Baudelaire, figuram ainda mulheres


desviadas, cortesãs, mulheres malditas, cujas imagens conformam-se à morte e ao
abismo. Ressalte-se que a carga de sensualidade e de amor carnal ocupa lugar
significativo nos poemas baudelairianos pois, para o poeta, a exteriorização dos
desejos eróticos não se concentra na mulher elegante e bonita, mas na mulher da
rua, invertendo o ideal das musas de formas perfeitas. As mulheres inclusive aparecem,
em alguns de seus poemas, destituídas de instintos maternais e de funções
procriadoras, como aquela que praticará o amor como um ato livre e gratuito:

Tu mettrais l’univers entier dans ta ruelle,


Femme impure! L’ennui rend ton âme cruelle.
Pour exercer tes dents à ce jeu singulier,
Il te faut chaque jour un coeur au râtelier.
Tes yeux, illuminés ainsi que des boutiques
Et des ifs flamboyants dans les fêtes publiques,
Usent insolemment d’un pouvoir emprunté,
Sans connaître jamais la loi de leur beauté.60

Baudelaire afirmou, por meio da sua palavra criadora, um submundo que


colocou de ponta-cabeça os ideais burgueses, no qual o abismo satânico, o erotismo
à flor da pele, os vencidos e os excluídos se sobressaem como crítica à sociedade
burguesa e também como conhecimento mais profundo do outro.61 Vale ressaltar

58
LEFÉBVRE, 1969. p. 382-383.
59
BAUDELAIRE, 1991. p. 152.
60
BAUDELAIRE, 1991. p. 77.
61
BATAILLE, 1989. p. 43-44.
55

que o satanismo foi uma transgressão das convenções sociais, ou seja, uma
inversão das noções de pecado, com a adoração a satã acompanhada pela
expressão de uma sexualidade sem pudores,62 o que representou uma opção para
eliminar a idéia de culpa cristã,63 tão presente no imaginário ocidental, como também
foi uma saída para exprimir o erotismo, o submundo e as contradições advindas do
progresso capitalista. Assim, no texto “Projéteis, sugestões”, Baudelaire afirma que
satã não está na figura sobrenatural projetada pelo cristianismo, mas no perverso
desenvolvimento da sociedade capitalista:

Entregar-se a Satã, o que é que isso significa?


Haverá algo de mais absurdo do que acreditar no Progresso quando o gênero
humano, como o podemos comprovar diariamente, continua semelhante e
igual a si mesmo – isto é, ainda no estado selvagem? O que são os perigos da
selva ou os das pradarias comparados com os choques e os atritos da
civilização dos nossos dias.64

A imagem de satã, de acordo com Lefèbvre, variou de acordo com cada época,
cada povo, cada cultura, desde a sua mais tradicional construção (a figura vermelha
e de chifres), até nas suas metamorfoses, que se exibem na mulher encantadora, na
cidade babélica, no jogador, no vampiro etc. Vale ressaltar que o vampiro de
Baudelaire não é a figura tida como sobrenatural nos contos de Hoffmann. Esta
figura, na visão do poeta é indício do cômico circunscrito em imagens macabras, o
que aparece com clareza em seu ensaio “Da Essência do Riso”.65
No poema “Le Vampire”, Baudelaire circunscreve a mulher na figura de
sanguessuga, revestindo-a com características demoníacas. Como bem atesta Mario
Praz, “na segunda metade do século XIX o vampiro volta a ser uma mulher (...); mas
na primeira parte do século, o amante fatal e cruel é, em regra, um homem”,66 o que
altera as tradicionais posições de mulher submissa e sexo forte, como é bem colocado no
Poema “Le vampire”, no qual Baudelaire associa a mulher ao pólo do mal e do vício,
invertendo os signos amorosos:

62
BRANCO, 1985. p. 82.
63
MARCUSE, 1981. p. 70.
64
BAUDELAIRE, 1995. p. 514.
65
BAUDELAIRE, 1995. p. 745-746.
56

Toi qui, comme un coup de couteau,


Dans mon coeur plaintif es entrée;
Toi qui, forte comme un troupeau
De démons, vins, folle et parée,

De mon esprit humilié


Faire ton lit et ton domaine;
– Infâme à qui je suis lié
Comme le forçat à la chaîne,

Comme au jeu le joueur têtu,


Comme aux vermines la charogne,
Comme à la bouteille l’ivrogne,
– Maudite, maudite sois-tu.67

Em Baudelaire, satã é também o anjo em conflito, através do qual o poeta


está a buscar Deus e também o infinito da criação artística, como se pode ver em
fragmentos do Poema “La destruction”:

Sans cesse à mes côtés s’agite le démon;


Il nage autour de moi comme un air impalpable,
Je l’avale et le sens qui brûle mon poumon
Et l’emplit d’un désir éternel et coupable.

Parfois il prend, sachant mon grand amour de l’Art,


La forme de la plus séduisante des femmes,
Et, sous de spécieux prétextes de cafard,
Accoutume ma lèvre à des philtres infâmes.

Il me conduit ainsi, loin du regard de Dieu,


Haletant et brisé de fatigue, au milieu
Des plaines de l’Ennui, profondes et déserts.68

De acordo com Lúcia Castello Branco, se o Cristianismo reprimiu a


sexualidade, é no satanismo que os autores vão buscar uma forma de expressão
sexual, anulando as idéias de pecado e culpa,69 buscando o infinito da criação e a
realização de todas as potencialidades carnais, através da escrita.

66
PRAZ, 1996. p. 90.
67
BAUDELAIRE, 1991. p. 82.
68
BAUDELAIRE, 1991. p. 159.
69
BRANCO, 1985. p. 22.
57

Circunscrita sob os signos da transgressão ou da liberação dos impulsos de


busca do infinito, a imagem de satã também se reveste da figura da serpente, como
no poema “Le serpent qui danse”, onde se encena a musa estéril, situada no espaço
marítimo, que desperta desejos físicos, mas apresenta impasses para que esses não
se realizem:

Que j’aime voir, chère indolente,


De ton corps si beau,
Comme une étoffe vacillante,
Miroiter la peau!

(...)
Tes yeux, où rien ne se révèle
De doux ni d’amer,
Sont deux bijoux froids où se mêle
L’or avec le fer.

A te voir marcher en cadence,


Belle d’abandon,
On dirait un serpent qui danse
Au bout d’un bâton.

(...)
Et ton corps se penche et s’allonge
Comme un fin vaisseau
Qui roule bord sur bord et plonge
Ses vergues dans l’eau.70

Procedendo a uma dissolução das musas ideais românticas, as representações


femininas em Baudelaire externam desejos eróticos independentes da mulher elegante
e bonita e transferidos para a mulher que trabalha na cidade. Isso se sintoniza com
as transformações do papel da mulher na sociedade: antes, a vida no lar, e, na
segunda metade do século XIX, a vida no trabalho ou mesmo na mendicância. Tais
fatos refletem a face miserável do progresso e da modernidade. No poema “A une
mendiante rousse”, o poeta desnuda, eroticamente, o corpo da mendiga, entrevisto
através dos farrapos. Mario Praz afirma que a temática acerca de mendigas, velhas
sedutoras, negras deslumbrantes e cortesãs é tratada na literatura do século XVII,
com certa leveza, mas retorna à produção literária do século XIX com “um sabor acre

70
BAUDELAIRE, 1991. p. 79.
58

de realidade nos românticos e no poeta em que a musa romântica destilou os mais


raros venenos, em Baudelaire”.71 A mendicante é alvo de desejo, apresentando uma
beleza grotesca que tem brilho e beleza próprias:

Blanche fille aux cheveux roux,


Dont la robe pas ses trous
Laisse voir la pauvreté
Et la beauté,

Pour moi, poète chétif,


Ton jeune corps maladif,
Plein de taches de rousseur,
A sa douceur.

Tu portes plus galamment


Qu’une reine de roman
Ses cothurnes de velours
Tes sabots lourds.

Au lieu d’un haillon trop court,


Qu’un superbe habit de cour
Traîne à plis bruyants et longs
Sur tes talons;

En place de bas troués,


Que pour les yeux des roués
Sur ta jambe un poignard d’or
Reluise encor;

Que des noeuds mal attachés


Dévoilent pour nos péchés
Tes deux beaux seins, radieux
Comme des yeaux;

Que pour te déshabiller


Tes bras se fassent prier
Et chassent à coups mutins
Le doigts lutins.72

O erotismo, em “A une mendiante rousse”, situa-se no âmbito do “erotismo


de voyeur”73 o qual o eu somente realiza o ato amoroso em suas visões e denuncia o

71
PRAZ, 1996. p. 58.
72
BAUDELAIRE, 1991. p. 128-129.
59

sadismo e suposto humanitarismo burguês. Na trivial cena urbana, a mendiga é


descrita com uma alta carga erótica, deslocando-se o erotismo para um outro tipo
feminino, distinto daquele tematizado pela literatura do século XIX:

– Cependant tu vas gueusant


Quelque vieux débris gisant
Au seuil de quelque Véfour
De carrefour;

Tu vas lorgnant en dessous


Des bijoux de vingt-neuf-sous
Dont je ne puis, oh! pardon!
Te faire don.

Va donc, sans autre ornement,


Parfum, perles, diamant,
Que ta maigre nudité,
O ma beauté.74

A mendiga, criatura que simbolicamente encerra o fim de um ciclo, associa-


se à imagem da morte.75 Ironicamente, deslocando o erotismo para o espaço da morte
cristalizada através da imagem do cadáver, Baudelaire veicula uma sensualidade
imprecisa e difusa, que está, portanto, longe da concretização sexual, como pode ser
observado no poema “A une charogne”, no qual há um sensualismo mórbido,
relacionado a um duplo sentimento perante as imagens de putrefação. Se, por um
lado, essas imagens provocam pavor, também despertam uma fascinação,76 pois a
carniça, “de pernas para cima”, encontra-se numa posição morbidamente erótica:

Rappelez-vous l’objet que nous vîmes, mon âme,


Ce beau matin d’été si doux:
Au détour d’un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux,

Le jambes en l’air, comme une femme lubrique,


Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d’une façon nonchalante et cynique
Son ventre plein d’exhalaison.

73
BRANCO, 1985. p. 105.
74
BAUDELAIRE, 1991. p. 130.
75
BATAILLE, 1989. p. 12-13.
76
BATAILLE, 1980. p. 65.
60

Le soleil rayonnait sur cette pourriture,


Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande Nature
Tout ce qu’ensemble elle avait joint,
(...)
Le mouches bourdonnaiente sur ce ventre putride,
D’où sortaient de noirs bataillons
De larves, qui coulaient comme un épais liquide
Le long de ces vivants haillons.

(...)
Les formes s’effaçaient et n’étaient plus qu’un rêve,
Une ébauche lente à venir,
Sur la toile oubliée, et que l’artiste achève
Seulement par le souvenir.77

No poema citado, os amantes saem de casa pela manhã e encontram um


corpo putrefato, coberto de vermes, que causa náusea à companheira e é um indício
de desordem e desagregação mas, ao mesmo tempo, apresenta uma beleza
macabra, que segundo o poeta é digna de ser pintada em uma tela.
Expectral, fugidia, a mulher doente é também desejada nos poemas e é
também uma representação da morte, como nos versos de “La muse malade”, que
tematiza uma musa dividida, angustiada, sem a oportunidade do prazer de ter
oferecido seu corpo:

Ma pauvre muse, hélas! qu’as-tu donc ce matin?


Tes yeux creux sont peuplés de visions nocturnes,
Et je vois tour à tour réfléchis sur ton teint
La folie et l’horreur, froides et taciturnes.

(...)
Je voudrais qu’exhalant l’odeur de la santé
Ton sein de pensers forts fût toujours fréquenté,
Et que ton sang chrétien coulât à flots rythmiques.78

Vista sob a ótica da amplidão, a morte, nos poemas baudelairianos, não


pode ser interpretada como um elemento de ruptura com a vida, mas como uma via
possível para o ser realizar sua expansão e fusão com o universo.79

77
BAUDELAIRE, 1991. p. 80-81.
78
BAUDELAIRE, 1991. p. 65-66.
61

Esses impulsos eróticos, por meio de imagens de cadáveres em


decomposição ou mulheres doentes, funcionam, segundo Lúcia Castello Branco,
“como veículos fundamentais para a expressão de Eros e para a composição de um
sensualismo mórbido”,80 deslocando o erotismo para a figura da morte.
No poema XXXII, de As flores do mal, por exemplo, o sujeito lírico deseja
uma “horrenda judia”, cujo corpo com fervor ele beijaria, exprimindo um sensualismo
pelo avesso, repleto de imagens de decomposição, de desagregação, da violência e
sem um desenho harmônico dos contornos. Mario Praz destaca que a judia
baudelairiana apresenta seus antecedentes no século XVII, na “bela caolha” e na
“bela calva” que também foram tematizadas pelo poeta italiano Adimari.81
Benjamin afirma “que as imagens da mulher e da morte se interpenetram
numa terceira, a de Paris”,82 encenadas sob o signo da desagregação e associadas
à morte, como pode-se observar no poema “Les petites vieilles”, no qual as mulheres
idosas são extraordinariamente associadas às rugas da cidade:

Dans les plis sinueux des vieilles capitales,


Où tout, même l’horreur, tourne aux enchantements,
Je guette, obéissant à mes humeurs fatales,
Des êtres singuliers, décripits et charmants.

(...)
– Avez-vous observé que maints cercueils de vieilles
Sont presque aussi petits que celui d’un enfant?
La Mort savante met dans ces bières pareilles
Un symbole d’un goût bizarre et captivant.83

De acordo com Lúcia Castello Branco, “as civilizações ocidentais das últimas
décadas do século XIX são marcadas por um profundo sentimento de
descontentamento com relação aos mecanismos e ideologias sociais”,84 o que foi

79
BRANCO, 1985. p. 73.
80
Id. Ibidem. p. 65.
81
PRAZ, 1996. p. 59.
82
BENJAMIN, 1991. p. 39.
83
BAUDELAIRE, 1991. p.133-134.
84
BRANCO, 1985. p. 79.
62

sentido por um grupo de literatos franceses, entre eles Baudelaire, que tomou
consciência das ruínas da sociedade burguesa:

Eros assumirá também sua feição de decadência: o cinismo e a violência dos


discursos procuram exprimir (...) tudo o que, até então, deveria ser camuflado,
já que a proliferação de sexualidades periféricas, de marginalidade e de
loucura constitui-se em evidência tangível do declínio das civilizações.85

Portanto, o erotismo tomou diversas feições na literatura, por meio de


criaturas marginais, como podemos observar na poesia baudelairiana, na qual as
cortesãs e prostitutas têm lugar de destaque. Nos “Escritos íntimos”, seguindo a trilha
da perda da aura, Baudelaire alinha o poeta à mesma posição daquelas, ao indagar:
“O que é a arte? Prostituição”.86 Ainda no poema “Não tenho por amante uma leoa
ilustre”, o poeta identifica-se com a prostituta pois, muitas vezes, é obrigado a
publicar e a vender sua obra em troca de sobrevivência:

Para ter borzeguins, sua alma pôs à venda,


Mas Deus riria se, ante essa infame oferenda,
Eu me tornasse tartufo um impostor,
Eu, que vendo a minha arte e quero ser autor.

(...)
Sequer vinte anos tem; os seios – que desgraça! –
De cada lado pendem como uma cabaça,
E contudo me arrastam ao seu corpo estreito,
Em cujas tetas eu, como um bebê, me aleito.

E embora ela não ganhe às vezes uma esmola


Para esfregar-se em quem a sua carne esfola,
Eu a lambo em silêncio até com mais fervor
Que Madalena em fogo os pés do Salvador.87

A cortesã, na imagem de Vênus ou Afrodite, encontra-se conformada à


imagem do demônio pela sua carga de sedução, capacidade de atração e de
mudança de sua máscara. Jean Shinoda Bolen88 afirma que Afrodite realizava seu
ritual de sedução, utilizando um disfarce, por meio do qual ela despertava a paixão

85
BRANCO, 1985. p. 81.
86
BAUDELAIRE, 1995. p. 503.
87
BAUDELAIRE, 1995. p. 262.
88
BOLEN, 1990. p. 325.
63

nos mortais e depois, conforme o caso, lançava-lhes uma maldição. Vênus encerra a
imagem da sedução e do erotismo, posto que, segundo a mitologia, era a mãe de
Eros. Para Baudelaire, em seus “Escritos íntimos”, “A Vênus eterna (caprichosa,
histérica, fantasista) é uma das formas sedutoras do demônio”.89

No poema “Sed non satiata”, o amor e a atração mesclam-se, realizando


uma oposição entre elementos clássicos e libertinos – a língua latina e o erotismo
exacerbado de Messalina, rainha oriental, que encerra a imagem do feminino cruel:

Bizarre déité, brune comme les nuits,


Au parfum mélangé de musc et de havane,
Oeuvre de quelque obi, le Faust de la savane,
Sorcière au flanc d’ébène, enfant des noirs minuits,
(...)
Par ces deux grands yeux noirs, soupiraux de ton âme,
O démon sans pitié! verse-moi moins de flamme;
Je ne suis pas le Styx pour t’embrasser neuf fois,

Hélas! et je ne puis, Mégère libertine,


Pour briser ton courage et te mettre aux abois,
Dans l’enfer de ton lit devenir Proserpine!90

A descrição da figura feminina como bizarra, marcada por perfumes exóticos,


está relacionada à escuridão e ao demoníaco de Fausto, de Obil, o feiticeiro africano
e de Prosérpina, personagem mitológica e rainha dos infernos.
O erotismo baudelairiano desloca-se também para as lésbicas, como ocorre
no poema “Lesbos”, no qual Baudelaire canta musas proibidas. De acordo com Praz,
na Paris do fim do século houve uma grande atração dos artistas pelas lésbicas,91 o
que explica a presença do tema no poema de Baudelaire:

Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias,


Lesbos, ilha onde os beijos, meigos e ditosos,
Ardentes como sóis, frescos quais melancias,
Emolduram as noites e os dias gloriosos;
Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias;
(...)

89
BAUDELAIRE, 1995. p. 539.
90
BAUDELAIRE, 1991. p. 78.
91
PRAZ, 1996. p. 293.
64

Desta Safo viril, que foi amante e poeta,


Mais bela do que Vênus pelas tristes cores!
– O olho azul sucumbe ao olho que marcheta
O círculo de treva estriado pelas dores
Desta Safo viril, que foi amante e poeta!92

Segundo Praz, Lesbos é uma concepção de amor hermafrodita, que na


mitologia é fruto do casamento de Hermes e Afrodite, gerando um ser viril e sedutor
ao mesmo tempo.93 Lesbos configura mais uma musa baudelairiana recolhida no
paganismo. Segundo May, “Eros é o desejo, a ânsia e a eterna busca de
expansão”94 e, dessa forma, podemos depreender que o deslocamento do erotismo
na poesia de Baudelaire, da mulher lésbica à cortesã, passando pela mendiga, é
uma forma de conhecimento do corpo, objeto que se oferece a múltiplas leituras na
obra do poeta francês.
Resumindo, longe de visar a uma totalidade, destacamos os principais temas
da modernidade baudelairiana que, com sua lírica cortante e crítica, soube mostrar,
sob um novo olhar, o progresso e o desenvolvimento da cidade, trazendo para a arte
novos elementos, tais como: a vida cotidiana, a crítica à sociedade burguesa, as ruas
da cidade moderna, os pobres, os heróis anônimos, a transitoriedade da beleza, a
mulher fatal, demoníaca e fugidia. Sem dúvida, Baudelaire colocou a “lírica francesa
no domínio europeu”,95 legou à posteridade o conceito de poeta moderno e, assim
ressoou em muitos outros poetas e obras, como em O livro de Cesário Verde, do
poeta português da segunda metade do século XIX.

92
BAUDELAIRE, 1995. p. 133-134.
93
PRAZ, 1996. p. 292.
94
MAY, 1978. p. 80.
95
FRIEDRICH, 1978. p. 35.
65

2.3. Cesário Verde baudelairiano

2.3.1. A escrita da cidade

Cada cidade tem a sua linguagem nas


dobras da cidade transparente.
Carlos Drummond de Andrade

Baudelairianamente, Cesário Verde presenciou, na segunda metade do


século XIX, em sua curta vida, a cidade a se desenvolver, com suas contradições e
suas supostas mulheres fatais, observando, sempre atento, as transformações da
sociedade portuguesa, que se realizaram de maneira periférica, com empréstimos do
exterior. Construíram-se, em Portugal, estradas-de-ferro (1864 inaugurou-se a Linha
Férrea de Beira Alta, ligando Coimbra a Paris) e pontes, mas o país tornara-se
dependente da indústria inglesa. Também as cidades portuguesas incrementaram
seu desenvolvimento, com destaque para Lisboa e Porto.
Segundo Miriam Halpern Pereira, o Portugal do mil e oitocentos (1820-1890)
tinha uma economia baseada na agricultura e no comércio externo, sendo que nos
anos de 70 e 80 começava a se destacar a atividade industrial algodoeira e do
lanifício, nas cidades de Porto e Covilhã, enquanto Lisboa concentrava a indústria da
estamparia e do lanifício. A autora destaca ainda que houve um inquérito industrial
em 1881 e os inquiridores se defrontaram com uma enorme variedade de formas que
caracterizavam a paisagem industrial portuguesa, constituída de fábricas, oficinas e
indústrias em domicílios.96
É nesse contexto que a população da cidade se multiplica e as áreas rurais
se esvaziam, gerando contradições sociais. Tudo isso torna-se matéria literária,
frente à qual o poeta Cesário Verde assume uma posição crítica. Tal qual Baudelaire,
sua modernidade consiste na capacidade de recriar, poeticamente, a realidade em
cenas áridas. O poeta vê na cidade não só a decadência, mas uma beleza extraída
da atmosfera árida lisboeta, que é descrita por meio de muitas sensações – visuais,

96
PEREIRA, 2000. p. 217-220. O inquérito industrial de 1881 mostra que na indústria algodoeira de Lisboa, os
estabelecimentos estavam assim divididos: 1 fiação, 2 fiações-tecelagens, 4 tecelagens, 13 estamparias/tinturarias.
Mecanização na tecelagem e na fiação de algodão: cardas ativas 74, fusos ativos 24.320, teares mecânicos 74,
teares manuais 68. Operários – 2.661.
66

auditivas, táteis, olfativas e gustativas. Muitas vezes, os cinco sentidos se misturam,


“se unificam e sublimam”, dentro da poesia de Cesário Verde, conforme afirma David
Mourão-Ferreira.97
Tematizando, recorrentemente, o contexto urbano da Lisboa de fins do
século XIX, Cesário Verde publicou muitos poemas a esse respeito. Podemos citar
os principais deles como “O sentimento dum Ocidental”, “Desastre”, “Cristalizações”,
“Noite fechada”, “A débil” e “Num bairro moderno”. Há, ainda, os poemas nos quais
ele tematiza a femme fatale urbana. Porém, esses textos serão estudados à parte
pois, embora estejam associados ao espaço urbano, seu foco de observação
principal é a representação da mulher.
Nos poemas urbanos, o poeta percorre as ruas em busca de identidades,
procurando delinear a si mesmo, a partir de um espaço em emergência e consciente
da fragmentação do sujeito urbano nesse fim de século. Tal qual o flâneur baudelairiano,
o andarilho-poeta de Cesário Verde focaliza a pólis perversa, o movimento das ruas, a
multidão – signos do progresso e da modernidade – no poema “O sentimento dum
ocidental”. Neste, a imagem da cidade tem sua matriz na Paris de Baudelaire, ícone
da modernidade do século XIX. O título do texto anuncia um sujeito herdeiro da
tradição cultural de um “Portugal que fita o Ocidente”.
No poema citado, a cidade é focalizada em quatro momentos importantes,
indicados pelos subtítulos, que foram atribuídos por Silva Pinto, o primeiro editor do
livro de Cesário: I – Ave-Marias; II – Noite Fechada; III – Ao Gás; IV – Horas Mortas.
Todos esses momentos são registrados por um flâneur que, à medida que as horas
vão passando, vai mergulhando na urbe babélica. Ao iniciar o poema com o crepúsculo,
Cesário dialoga com o Poema “Le Crepuscule du soir”,98 de Baudelaire, que tematiza
o anoitecer na cidade, com todo o seu fascínio e horror. No poema em prosa “O
crepúsculo”, Baudelaire também afirma que o entardecer exacerba os loucos e é o

97
MOURÃO-FERREIRA, 1966. p. 131.
98
O soir, aimable soir, désiré par celui La Prostitution s’allume dans les rues;
Dont les bras, sans mentir, peuvent dire: Aujourd’hui Comme une fourmilière elle ouvre ses issues;
Nous avons travaillé! – C’est le soir qui soulage Partout elle se fraye un occulte chemin,
Les esprits que dévore une douleur sauvage. Ainsi que l’ennemi qui tente un coup de main;
Elle remue au sein de la cité de fange
Comme un ver qui dérobe à l’Homme ce qu’il mange.
(BAUDELAIRE, 1991. p. 139)
67

precursor das volúpias profundas,99 pois, traz a tona, os sentimentos de tédio e


melancolia.
Revelando as transformações pelas quais passa a sociedade portuguesa,
por meio de um eu que passeia por ruas e becos, atento ao que pode se transformar
em matéria poética, Cesário Verde capta os sentimentos de aprisionamento, de tédio
e de vazio, no que antes lhe era familiar. Nesse novo espaço, entra em cena a
literatura panorâmica, produzida pelo flâneur, o artista deambulante. O panorama é,
inclusive, um dos símbolos dessa nova situação da arte, conforme atesta Walter
Benjamin:
Mesmo do ponto de vista social, essa [nova] literatura é panorâmica. (...) Os
panoramas anunciam uma revolução no relacionamento da arte com a
técnica e são ao mesmo tempo, a expressão de um novo sentimento de vida.
(...) Nos panoramas, a cidade se abre em paisagem para o flâneur.100

Os sentimentos de tédio e melancolia são colocados na cena poética, por


meio do tratamento dado às ruas da cidade. No desenrolar das estrofes, a partir das
ruas, a cidade vai se abrindo em panorama, atravessada por um olhar múltiplo que
vai incluindo novas cenas e novos personagens:

Nas nossas ruas ao anoitecer,


Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,


O gás extravasado enjoa-me, pertuba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba,
Toldam-se duma cor monótona e londrina.101

Esses sentimentos de aprisionamento numa cidade de céu baixo e de


estranhamento em meio a cor londrina, revelam-se também pela perplexidade em
relação às edificações modificadas pelo signo da modernidade, pelo “gás extravasado”
e pelos “carros de aluguer”, elementos emblemáticos do projeto de modernização do
século XIX. Os carros de aluguer e as edificações são lembrados por Cesário Verde

99
BAUDELAIRE, 1995. p. 304.
100
BENJAMIN, 1991. p. 33-34.
101
VERDE, 1992. p. 102.
68

como símbolos de uma nova era, mas são contrapostos àqueles que trabalham em
favor das classes privilegiadas, como os carpinteiros e os calafates:

Batem os carros de aluguer, ao fundo,


Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,


As edificações somente emadeiradas;
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,


De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelo cais a que se atracam os botes.102

Nesse novo cenário, a via-férrea constituiu-se como um dos símbolos de


modernização. Além do valor simbólico, as estações encerravam também um valor
pragmático: pelo trem de ferro chegavam as pessoas, os livros e os materiais de
construção das cidades. O trem-de-ferro significou a possibilidade de transporte
muito mais rápido e em grande quantidade, de homens, matérias-primas e alimentos
para abastecer as cidades.
Em sua caminhada pela noite lisboeta, o poeta está “de costas para o mar,
de frente para a cidade”,103 evidenciando um novo olhar sobre Portugal; o olhar da
consciência da ruína de um império que se foi. Essa consciência de Cesário antecipa
o que Fernando Pessoa poetiza, mais tarde em “Mensagem” (1934). Nesse poema,
em sua terceira parte “Os campos”,104 o autor nos mostra um Portugal que fita o
ocidente, por meio de um olhar obscuro. Note-se que o rosto é uma interessante
representação de Portugal, pois é a parte do corpo que expressa sentimentos e

102
VERDE, 1992. p. 102.
103
OLIVEIRA, 1997. p. 200.
104
A Europa jaz, posta nos cotovelos: Aquele diz Itália onde é pousado;
De Oriente a Ocidente jaz, fitando, Este diz Inglaterra onde, afastado,
E toldam-se românticos cabelos. A mão sustenta, em que se apóia o roto.
Olhos gregos, lembrando. Fita com olhar esfíngico e fatal,
O cotovelo esquerdo é recuado; O Ocidente, futuro do passado,
O direito é um ângulo disposto. O rosto com que fita é Portugal.
(PESSOA, 1999. p. 45)
69

posições, o que nos leva a compreender a identidade cultural portuguesa, como


aquela marcada pela saudade da perda do império. Essa questão torna-se alvo de
um olhar crítico, que cobra e constata a derrocada do projeto expansionista, o que é
recriado por Pessoa nos seus famosos versos ”Cumpriu-se o mar, e o Império se
desfez. / Senhor, falta cumprir-se Portugal”.105
A viagem de Cesário é terrestre, como a de Garrett e é impusionada pela
constatação da crise de um Império decadente, que permanece apenas nas
pimenteiras, que advêm do épico de ontem,106 hoje representado pela brônzea
estátua de Camões. Ressalte-se que o brônzeo significa uma memória cinzelada,
cujo objetivo é a perpetuação do passado, chegando a ser quase sinônimo de
eternidade. Isso é retomado por Cesário Verde, no percurso territorial de um eu
solitário que se torna uma voz coletiva:

E evoco, então, crónicas navais:


Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde, inspira-me e incomoda!


De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.107

A retomada às formas literárias da tradição – as crônicas e a epopéia,


marcos de um passado glorioso – demonstra que esse sujeito solitário está em
busca de um modelo poético que represente o Portugal finissecular. Esse eu solitário
observa um país, de cujo cais partiam “soberbas naus” em busca de novos domínios
e onde, agora, atraca o “couraçado inglês”, símbolo da ameaça do poderio britânico
frente a um país decadente, que teve ao longo de muitos séculos, seu imaginário
formatado por um “excesso de interpretação mítica”,108 que o colocou na posição de

105
PESSOA, 1999. p. 53.
106
SILVEIRA, 1992. p. 126.
107
VERDE, 1992.p.102.
108
SANTOS, 1992. p. 137.
70

centro, no contexto europeu. Eduardo Lourenço afirma que tal império perdido, na
realidade, sobreviveu apenas como um império “imaginário”:109

(...) quem teve quinhentos anos de Império de nada ou só a ficção


encarecente que nos Lusíadas ecoa, não como mudadora de sua alma, mas
como simples nomenclatura extasiada de terras e de lugares que, na verdade,
salvo Goa, nunca habitamos como senhores delas.110

Isentando-se dessas representações imaginárias apontadas, Cesário Verde


olhando o Portugal de seu tempo, com suas “cicatrizes do sal”111 deixadas pelas
grandes viagens, expõe uma entrada épica das varinas112, esquadrinhando o tecido
esgarçado da cidade, que se quer moderna, exibindo seu avesso – a parte esquecida
pelo projeto de modernidade – a cidade das dobras, dos pobres e das infecções:

Vazam-se os arsenais e as oficinas;


Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!


Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,


Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!113

As partes doentias estavam associadas aos pobres, que vivendo à margem


da cidade, representavam uma “úlcera aberta” no corpo da urbe babélica, vizinha do
inferno.
Em “Noite fechada”, segunda parte do poema “O sentimento dum ocidental”,
o cair da noite vem acompanhado de um sentimento de mal estar. Ao mergulhar no
abismo noturno da urbe, o poeta utiliza contornos de som e luz, que permitem ao

109
LOURENÇO, 1988. p. 82.
110
LOURENÇO, 1988. p. 43.
111
ALEGRE, 1989. p. 44.
112
SENA, 1981. p. 162.
71

leitor vislumbrar nebulosos corredores, ouvir grades de cadeias que se fecham e em


tempo simultâneo, essas luzes fazem o sujeito poético desconfiar de aneurisma.
Sobre essas impressões sensoriais, Carlos Mendes de Souza114 afirma que Cesário
Verde é um poeta do visual e do auditivo, já que produz efeito imediato, na leitura de
seus poemas, a presença de elementos pictóricos que descrevem a noite urbana
com riqueza de detalhes, os quais são tomados da realidade, transformando a
paisagem em poesia a partir de contornos escuros. Nesse poema, Cesário também
dá um tom escuro ao clero e à Igreja, remontando à atmosfera da época da Santa
Inquisição, temática essa retomada da Geração de 70:

Toca-se as grades, nas cadeias. Som


Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão as velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!

E eu desconfio, até, de um aneurisma


Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,


E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas num saudoso largo,


Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.115

Espectral, a cidade é reconstruída por Cesário Verde, a partir de imagens


fúnebres, criando um espaço de morte e de enclausuramento, demonstrado pelo uso
de expressões como “muram-me” ou “afrontam-me”, que denotam o elevadíssimo grau
de aprisionamento do eu poético. Mas, a memória do sujeito poético serve como
instrumento para sair do enclausuramento, trazendo para a cena do presente as

113
VERDE, 1992. p. 103.
114
SOUZA, 1986. p. 29.
115
VERDE, 1992. p. 104.
72

patrulhas da Idade Média que partiam, como forma de alargar seus horizontes. Cesário
também evoca Camões, através de sua figura imortalizada no brilho do “brônzeo” :

Na parte que abateu no terramoto,


Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,


Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,


Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria


Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;
Idade-Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives


Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.116

A cidade modernizada pela reforma pombalina do século XVIII,117 defronta-se


com uma afluência de pessoas, o que vai instaurar, no século XIX, um fenômeno
inusitado: o surgimento da multidão, que comporta produtividade, violência, fascínio e
medo. E a aglomeração de trabalhadores é encenada no poema de Cesário, no qual
figuram cauteleiros, soldados, padeiros, forjadores, floristas, costureiras. Todos
esses representam a incipiente indústria de um país preso a uma estrutura agrária,
voltada para a exportação de produtos primários.118 Portanto, não há referências a
operários de indústrias na poesia verdiana e, sim, a trabalhadores de pequenas
manufaturas. Lendo a cidade, o poeta faz um inventário dos tipos humanos que nela

116
VERDE, 1992. p. 105.
117
HAROUEL, 1990. p. 92
118
REIS, 2000. p. 244.
73

circulam. Nessa cidade, observada à noite, onde circulam as elegantes, as floristas e


os emigrados, o andarilho-poeta, em seu itinerário sem pressa, visita todos os
lugares, mergulhando no abismo noturno, à medida que as horas avançam:

E mais: as costureiras, as floristas


Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu de luneta de uma lente só,


Eu acho sempre assunto a quadros revoltados;
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.119

Na terceira parte do poema – “Ao Gás” –, o flâneur mergulha numa cidade


infernal, ao criar uma imagem da urbe associada à doença, onde se articulam “moles
hospitais”, “impuras que se arrastam” e “burguesinhas do catolicismo”. Estas transitam
por um terreno inseguro, o que metaforicamente demonstra que os valores éticos da
sociedade moderna encontram-se minados pela hipocrisia. Em contraposição às
impuras, aos hospitais e às burguesinhas, os trabalhadores – o cauteleiro e o padeiro
– são vistos pelo flâneur em situação de produtividade. A cor vermelha do malho
denota o grande esforço do forjador e o cheiro de pão, a honestidade, a saúde e o
vigor do trabalhador em oposição à doença e à hipocrisia da sociedade burguesa:

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos


Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.

Cercam-me lojas, tépidas. Eu penso


Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um cumprimento imenso.

As burguesinhas do catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cuteleiro, de avental, ao torno,


Um forjador maneja um malho, rubramente;

119
VERDE, 1992. p. 106.
74

E de uma padaria exala-se, inda quente,


Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.120

Através de sua palavra cortante, Cesário Verde traz para a cena poética tecidos
estrangeiros, uma mulher velha e algumas flores ornamentais que murcham na
vitrine. A mulher é ironizada por sua suposta elegância. Lefèbvre destaca que o mito
da juventude está associado à primavera e à mulher, tendo se tornado um fetiche da
burguesia do século XIX.121 A vitrine é apreciada por um “ratoneiro”, ou seja, por um
sujeito que estava deslocado de seu lugar e que não pertencia às classes privilegiadas.
Todas essas personagens urbanas atravessam os pensamentos do flâneur:

E eu que medito um livro que exarcebe,


Quisera que o real e a análiser mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.
(...)
Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada, escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência, atrai, magnética entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,


À sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Na barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus meclemburgueses.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;


Plantas ornamentais secam nos mostradores,
Flocos de pós de arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins, requebram-se os caixeiros.122

Como está indicado na estrofe acima, com o advento da modernidade, a


burguesia assentada no poder, exibiu melhor a sua mercadoria: criam-se as vitrines,
misturando ferro e vidro, para o olhar e o consumo do homem urbano. O uso
conjunto de vidro e ferro afirmou-se como uma nova perspectiva para a arquitetura

120
VERDE, 1992. p. 106-107.
121
LEFÈBVRE, 1969. p. 186-188.
122
VERDE, 1992. p. 107.
75

urbana moderna. O vidro evidencia a fluidez e a visibilidade da imagem e do espaço,


conferindo um poder de exibição às vitrines:

As tensões interior/exterior ficam aguçadas pelo caráter diáfano do vidro. Curiosa


ironia dos materiais; ao contrário dos muros de pedra, dos gonzos de ferro,
dos postigos maciços, a vitrine é a maneira mais cínica através da qual o luxo
se deixa entrever, assinalando ao mesmo tempo, seu preço e seu dono.123

Em oposição às mulheres elegantes diante da vitrine e em meio à pesada


noite, um vendedor de loterias faz seu grito atravessar o silêncio sepulcral, enquanto
um mendigo suplica compaixão. Desse modo, o poeta revela, em sua escrita, a
cidade pelo avesso – a cidade dos excluídos, da miséria e dos flagelos sociais, ao
trazer para a cena a figura do professor de Latim mendicante, demonstrando o
caráter trágico da modernidade, que nega lugar à cultura da tradição:

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes


Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

“Dó da miséria! ... Compaixão de mim! ...”


E nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!124

Consciente da realidade sem esperanças, Cesário Verde, em “O sentimento


dum ocidental”, situa a cidade de Lisboa no mapa do inferno, tal qual um Dante, mas
traçando seu percurso na urbe, resgata a imagem do professor de Latim. Stephen
Reckert mostra-nos as fontes usadas por Cesário para construir essa personagem:

[O] encontro de Cesário com o seu ‘velho professor nas aulas de Latim’,
que constitui uma lembrança – esta sim, evidentemente propositada – do
episódio de Brunetto Latini: ‘sommo maestro in rettorica’, além de (segundo a
tradição apócrifa) mestre também do próprio Dante, e que – tal como o
professor de Cesário, ‘eterno, sem repouso’ – também andava continuamente
sanza riposo mai, cada um no seu respectivo inferno.125

123
HARDMAN, 1988. p. 37.
124
VERDE, 1992. p. 108.
125
RECKERT, 1983. p. 134.
76

João Pinto de Figueiredo tenta explicar a expressão “meu professor nas aulas
de Latim”126 pelo viés biográfico. Entretanto, o crítico não encontrou fontes suficientes
para afirmar com precisão se Cesário Verde estudou com um professor de Latim,
mas explica a sua presença pelo diálogo de Cesário com Raul Brandão e Gomes Leal.
O diálogo que Cesário estabelece seja com a tradição, seja com a sua época, para
colocar em cena esse professor de Latim não representa um fato relevante. O mais
importante é percebermos que esse professor constitui uma personagem, que
demonstra como a sociedade burguesa exclui algumas camadas em favor de outras,
como também a desvalorização da cultura clássica nessa mesma sociedade.
Na última seção do poema – “Horas Mortas” –, a noite na cidade já não é tão
aprisionante, pois, apesar do “tecto fundo de oxigênio”, o flâneur dá passagem à
“quimera azul de transmigrar”. Thaís Vinci Chaves comenta que “a transmigração é,
nesse caso, desejo de se libertar da cidade sufocante, mas também simbólica de
uma viagem que cruza tempo passado (frota dos avós) e futuro (raça ruiva do porvir),
empreendida pelo sujeito”.127 Os olhos do flâneur fixos na escuridão se entrecruzam
com o som de uma flauta, que ajuda a romper o silêncio:

O tecto fundo de oxigénio, d’ar,


Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

Por baixo, que portões! Que arruamentos!


Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipas, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pauta,


A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas, trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.128

Mas, a quimera é atravessada pelas “lágrimas dos astros” e por portões, lajes,
parafusos e fechaduras que remetem ao aprisionamento urbano. Segundo Helder

126
FIGUEIREDO, 1981. p. 132-133.
127
CHAVES, 1993. p. 142.
128
VERDE, 1992. p. 109.
77

Macedo, o som do parafuso lembra “que a firmeza artificial de todas as prisões é


desmontável, os pormenores significativos da realidade observada confirmam a prisão
fantasmagórica da cidade.”129 E “pelas linhas de uma pauta”, o flâneur segue pela
Lisboa modernizada. Esta, segundo Helder Macedo, em sua rigidez geométrica (com
as ruas retas da baixa pombalina), oferece um contraste com as notas da flauta, que
ressoam um ar pastoril de grande liberdade.130 O labirinto opressivo da cidade desperta
no flâneur, a busca da eternidade, do amor e da utopia “da raça ruiva do porvir”, que
recuperaria o país decadente, restituindo-lhe a condição perdida de império glorioso.
Conjugando presente e futuro, Cesário Verde mostra uma voz coletiva que anseia
por liberdade:

Se eu não morresse, nunca! E eternamente


Buscasse e conseguisse a perfeição das coisas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro tranparente!
(...)
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!

Mas se vivemos, os emparedados,


Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir estrangulados.131

Sufocado pelo ambiente urbano satânico e imerso no tédio, o flâneur percorre


“corredores nebulosos”, onde desfilam bebedores, guardas, prostitutas e cães sujos,
que se fundem numa grande massa, convertendo-se em uma só imagem – a da morte:
E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos;


Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;

129
MACEDO, 1988. p. 250.
130
MACEDO, 1988. p. 251.
131
VERDE, 1992. p. 109-110.
78

E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,


Amareladamente, os cães parecem lobos.

E os guardas, que revistam as escadas,


Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.132

Assim, os guardas, detentores das chaves da prisão e da ordem, fazem sua


ronda, enquanto as prostitutas, emblemáticas da “doença social”, tossem, fumando
nos balcões de pedra, o que denota a decadência e a degradação da sociedade. A
prostituta, em suas múltiplas imagens representadas na literatura, segundo
Margareth Rago, está associada a uma espécie de embaralhamento de relações:

(...) idéia de um degringolamento das relações sociais, da degeneração dos


costumes, da ruptura radical do entendimento entre o homem e seu meio [que]
se explicita numa representação trágica da cidade, lugar dos marginalizados e
da incomunicabilidade total entre as pessoas.133

Inscrita sob imagens fúnebres, a cidade construída pelo poeta é espaço


aprisionante do sujeito urbano no poema. Sobre essa visão de “cidade-sepulcro”,
Helder Macedo, assim se expressa:

É a visão de um mundo às avessas, de enormes “prédios sepulcrais”


projetando sombras sobre o vale escuro onde a dor humana, aprisionada
pelas vastas muralhas do seu cerco esmagador, procura os “amplos
horizontes” que, bloqueados, tornam o próprio impulso para a liberdade nas
marés frustres de um sinistro mar de fel.134

E, como última visão do poema “O sentimento dum ocidental”, Cesário Verde


nos fornece o panorama final de uma cidade, que vai “desaguar” num “sinistro mar”,
onde a metrópole aparece associada à necrópole, espaço sepulcral e de
emparedamento:

E enorme, nesta massa irregular


De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes

132
VERDE, 1992. p. 110-111
133
RAGO, 1992. p. 76.
134
MACEDO, 1975. p. 257.
79

E tem marés de fel, como um sinistro mar!135

Em “O sentimento dum ocidental”, com o avançar das horas, a cidade foi sendo
descortinada sob o olhar aguçado do flâneur, num movimento de verticalização/
horizontalização – do anoitecer à alta madrugada, o olhar termina horizontalmente no
mar, ou seja, no cais – ponto de partida do poema e da tradição da cultura portuguesa.
No poema “Num bairro moderno”, o flâneur verdiano faz um passeio matinal.
Ao contrário dos versos de “O sentimento dum ocidental”, nesse poema, a cidade é
vista sob a luz do dia. Às dez horas da manhã, contrapondo-se ao turbilhão da vida
dos trabalhadores, que sobem e descem a rua, um flâneur vagarosamente desce a
rua e ao observar a vida cotidiana, produz sua poesia-reportagem, a partir de
elementos prosaicos como a rua, com seus sons, cores e cheiros, registrando as
mais variadas cenas que confrontam o luxo e a pobreza:

Dez horas da manhã; os transparentes


Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.

Rez-de-chausée repousam sossegados,


Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego,


E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,


Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a:

135
VERDE, 1992. p. 111.
80

Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;


E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia...

Do patamar responde-lhe um criado.


“Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.” E muito descansado
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.

(...)
Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz nas costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.136

Esse flâneur verdiano, tal qual o flâneur baudelairiano, é um andarilho que


não está inserido no mundo da produção e do trabalho, questões que estavam na
ordem-do-dia e se contrapunham à ociosidade do literato, que produzia seu trabalho,
utilizando elementos cotidianos das ruas.
E enquanto caminha, o andarilho-poeta vai observando e recolhendo os
detalhes do panorama que se ergue à sua frente. As grandiosas casas e seus
interiores, com sua disposição espacial, protegidas do sol e do olhar dos passantes,
por meio de persianas, apresentam transparência e visibilidade para seus habitantes,
através de suas janelas. Ressalte-se que as janelas guardam a simbologia de
abertura para o mundo. A rua macadamizada é mostrada pelo caminhante como
indício de uma urbe moderna, onde se exibe o contraste entre o luxo do palacete, um
criado que absorveu a ideologia do patrão, uma sofrida vendedora de verduras e os
padeiros “claros de farinha”. Tanto a vendedora de verduras como os padeiros
demonstram como o trabalho marca seus corpos, que são curvos e vergados.
Nesse “bairro moderno”, Cesário mostra a cidade como locus da multiplicidade
de pessoas e lugares e como matéria de poesia lírica. Toda uma variedade de imagens
da cidade, com suas contradições, é captada pelo flâneur verdiano.

136
VERDE, 1992. p. 63.
81

No poema “A Débil”, o flâneur torna-se um voyeur, pois não está andando na


rua em meio às pessoas, está parado a observar de longe a vida urbana. Nesse
poema, entra em cena um sujeito-observador sentado num café a beber goles de
absinto,137 que demonstra uma grande intimidade com a vida urbana, inclusive
recorrendo ao paraíso artificial baudelairiano, sugerido pela bebida e fixando o olhar
numa passante, em um instante fugaz:

Sentado à mesa dum café devasso,


Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E quando socorreste um miserável,


Eu, que bebia cálices d’absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.138

Vale ressaltar que a metáfora da Babel é recorrente nas representações da


cidade moderna, quer seja pelo seu caráter de mistura de pessoas, quer seja pelo
seu caráter de modificação e intervenção, pois Babel remete à técnica, à pretensão
do homem em criar uma outra natureza, a artificial, sobre a natureza primitiva,
correspondendo, portanto, a um projeto de dominação da natureza: “Na literatura
apocalíptica, Babilônia-Jerusalém são uma antinomia como anticristo-Cristo; Babilônia é
a cidade da técnica, Jerusalém, da graça; Babilônia é a prostituta, Jerusalém, a
esposa.”139 No poema de Cesário, Babel é a antítese da “existência honesta, de cristal”
da passante, cujos valores se opõem à vida na cidade, pois ela demonstra uma atitude
caritativa o que, de modo geral, não é para o observador uma atitude típica da vida
urbana moderna, pois, em sua visão, a cidade é o locus da insensibilidade, pois os
indivíduos tornam-se estranhos uns ao outros e alheios a dor alheia.

137
Como ilustração da posição do artista no panorama da cidade, o fragmento do poema de Cesário Verde, remete
à descrição de Oscar Wilde, no conto “A esfinge sem segredo”, no qual o escritor inglês demonstra uma semelhante
percepção da vida urbana com todas as suas contradições: Estava eu, numa tarde, sentado no terraço do café de
La Paix, observando o esplendor e a miséria da vida parisiense e meditando, diante do meu vermute, no estranho
panorama de orgulho e de pobreza que desfilava à minha frente. (WILDE, s. d. p. 3)
138
VERDE, 1992. p. 59.
139
BÍBLIA SAGRADA, 1974. p. 1253.
82

No poema “Desastre”, a cidade também aparece como pano de fundo para a


denúncia da injustiça social. Através da figura do flâneur, Cesário Verde descreve a
cena da queda de um pedreiro de um andaime. Ao descrevê-la minuciosamente, o
poeta fornece um painel mais amplo da cidade, com toda a alienação de seus
passantes. Cesário coloca em contraposição, a vida dos oprimidos à dos mais
afortunados que passam curiosos, mas alheios ao sofrimento dos mais pobres. Por
meio da técnica de cortes, que diríamos cinematográficos, em diferentes planos, são
focalizados o operário e seus colegas, que tentam prestar-lhe socorro. Na mesma
cena, alterna-se a focalização dos demais passantes, entrecruzando-se alguns
diálogos fragmentados. Esses diálogos mostram a cidade como espaço de produção
e circulação de inúmeras versões sobre o mesmo acontecimento:

Ele ia numa maca, em ânsias contrafeito,


Soltando fundos ais e trêmulos queixumes,
Caíra dum andaime e dera com peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.

A brisa que balouça as árvores das praças,


Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.

(...)
Flanavam pelo aterro os dândis e as cocottes,
Corriam cher-à-blancs cheios de passageiros.
E ouviam-se canções e estalos de chicotes
Junto à maré, no Tejo, e as pragas de cocheiros.

Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,


A rir e a conversar numa cervejaria,
Gritava para alguns: “Que cena tão faceta!
Reparem! Que episódio!” Ele já não gemia.

(...)
Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!

(...)
Um fidalgote brada a duas prostitutas:
“Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!”
83

Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas


E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.

(...)
Todos os figurões cortejam-no risonhos
E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.

Ah! Ah! Foi para a vala imensa,


Na tumba, nenhum adeus dos rudes camaradas:
Isto porque o patrão negou-lhe a licença,
O Inverno estava à porta e as obras atrasadas.

E antes, ao soletrar a narração do facto,


Vinda num local hipócrita e ligeiro,
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto:
“Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!”140

A construção civil, um dos ícones do desenvolvimento da cidade, torna-se,


no poema, parte da paisagem da urbe e é usada para exprimir a atitude crítica do
narrador frente às implicações sociais: a multidão citadina prossegue, normalmente,
alheia ao acidente com o operário, e também, o patrão mostra extrema
insensibilidade, visando apenas ao lucro e à produtividade, característica do mundo
do trabalho dentro da sociedade moderna:

A sociedade industrial moderna, contudo, cunha a práxis humana de uma forma


específica. Cunha-a sob o signo do contraditório, da divisão, do esfacelamento.
E dentro da produção industrial, o termo “produtividade” guarda ainda uma
especificidade maior, que assume função importante no promover e sustentar
o todo contraditório dessa sociedade.
A produtividade industrial define-se como o quociente de produção pelo tempo
de duração de trabalho, ou seja, na medição rigorosa e maquinal,
devoradamente cronológica e desumana do “quantum” um operário produz.141

O poema “Desastre” não foi considerado interessante pelos críticos da obra


de Cesário Verde. Isso é compreensível, tendo em vista que o mesmo não foi
publicado em O livro de Cesário Verde, editado por Silva Pinto.142 O poema foi
republicado quase oito décadas depois por Alberto Moreira, em 1953, no Jornal de

140
VERDE, 1983. p. 162.
141
CURY, 1986. p. 136.
142
SERRÃO, 1986. p. 37-38.
84

Notícias. Mesmo um grande crítico, como Hélder Macedo, considera “Desastre” um


poema com excesso de sentimentalismo. Entretanto, consideramos que esse texto é
um marco importante na carreira do poeta, pois demonstra a temática da
preocupação social na poesia de Cesário. Conforme afirma João Pinto de
Figueiredo143, em “Desastre” já se fazem presentes a crítica social e a cidade com
suas mazelas, o que prenuncia os temas que serão recolocados de maneira
formidável no poema “O sentimento dum ocidental” (1880).
Torna-se importante ressaltar que o poema de Cesário ilumina a letra da
música “Construção”, de Chico Buarque, a qual dialoga com o citado poema, ao
mostrar a cidade como pano de fundo para tematizar o acidente ocorrido com um
operário da construção civil, que ao cair “atrapalha o trânsito” e o baque de seu corpo
no chão da rua, proporciona uma imagem de verticalidade citadina. Chico144 exibe a
cidade como uma rede, na qual grupos de pessoas vão tornando-se ilegíveis e
encobertos pela aparente legibilidade do projeto urbano moderno, que transforma a
todos em indivíduos anônimos.
No poema “Cristalizações”, em seu deambular na Babel, o poeta-andarilho
evidencia o contraste com a atividade, com a operosidade dos homens empenhados no
trabalho braçal. Essas cenas proporcionam uma produtividade ao poeta, servindo de
matéria para sua poesia, em um cenário urbano no qual os calceteiros trabalham, sob a
luz da manhã:

143
FIGUEIREDO, 1981. p. 80-82.
144
BUARQUE, 1975, L.1, f. 3.
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou para descansar como se fosse Sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gagalhou como se ouvisse música.
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacoe flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.
85

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,


Vibra uma imensa claridade crua.
De cócoras, em linha, os calceteiros,
Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as levações secaram do relento,


E o descoberto sol abafa e cria!
A frialdade exige o movimento;
E as poças d’água, como em chão vidrento,
Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dano aos rins que a marcha agita,


Disseminadas, gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem a manhã bonita,
Uns barracões de gente pobrezita
E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!


Tomam por outra parte os viandantes;
E o ferro e a pedra – que união sonora! –
Retinem alto pelo espaço fora,
Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,


Cuja coluna nunca se endireita,
Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
Pesam enormemente os grossos maços,
Com que outros batem a calçada feita.145

Nesses fragmentos, observamos as marcas que o trabalho imprime no corpo


do trabalhador e sua intimidade com a matéria bruta com que lida, inscrevendo nela
a própria marca. Como em outros poemas de Cesário Verde, há uma identificação do
poeta com o trabalhador braçal, mostrando que ele [o poeta] também marca seu texto
com seus próprios sinais, ao tomar a lição de Baudelaire, tematizando os trabalhadores,
a partir de sua própria ótica, ao mostrar uma realidade lisboeta diversa da parisiense,
na qual o calçamento de ruas era uma novidade, tudo isso é registrado através do
apelo sinestésico e da crítica social.
Construindo uma cidade de papel, descrita e delineada a partir dos tipos sociais
que nela vivem, o andarilho-poeta traz essa urbe para a cena escrita sob o signo da

145
VERDE, 1992. p. 68-69.
86

visibilidade, traduzindo-se no “dar a ver” e revelando, sob seu olhar arguto, o mundo do
trabalho, os espaços e as pessoas que nele circulam. No poema de Cesário, Lisboa é
encenada como uma cidade em desenvolvimento, onde começavam a serem abertas
avenidas e construídos edifícios. Inclusive, é visível a vontade do eu poético de
demonstrar simpatia e solidariedade para com os trabalhadores, ao colocá-los em
contraposição com a atriz que atravessa a cidade em direção ao ensaio de sua peça
teatral, a qual, apesar de ser elogiada, é definida como “demonico”. Esse confronto de
figurantes mostra que o espaço urbano deixou de ser apenas um conjunto de
edificações, passando a significar uma vitrine, na qual as personagens se expõem,
assim como são expostas as novas relações que se esboçam na época, lugar da
afluência evanescente dos cidadãos:

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,


Eu tudo encontro alegremente exacto.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
E tangem-me, excitados, sacudidos,
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

(...)
Homens de cargas! Assim as bestas vão curvadas!
Que vida tão custosa! Que diabo!
E os cavadores pousam as enxadas,
E cospem nas calosas mãos gretadas,
Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas


Uma bandeira penso que tranluz!
Com ela sofres, bebes, agonizas:
Listrões de vinho lançam-lhes divisas,
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

D’escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,


Surge um perfil direito que se aguça;
E ar matinal de quem saiu da toca,
Uma figura fina, desemboca,
Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento


E a quem, à noite na plateia, atraio
Os olhos lisos como polimento!
Com seu rostinho estreito, friorento,
Caminha agora para o seu ensaio.
87

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados


Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados:
Os das planícies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,


Furtiva a tiritar em suas peles,
Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
Neste Dezembro enérgico, sucinto,
E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,


Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na sanguínea, brutamente:
E ela vacila, hesita, impaciente
Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,


Sem que inda o público a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
Com seus pezinhos rápidos, de cabra!146

As cenas de trabalho descritas no poema provocam os sentidos do leitor,


como podemos observar no uso de imagens do tato, da visão, da audição, do olfato
e da gustação. Todas essas sensações se fazem presentes na frieza que exige o
movimento; nos charcos e nas lagoas brilhantes; no ferro e na pedra; no sílex e na
ferragem. Segundo Hélder Macedo, o apelo visual em “Cristalizações” apresenta
uma forte ligação com o quadro de Courbet “Os britadores de pedra”:147

A significação referencial deste quadro no contexto do poema deriva tanto de


Proudhon como de Courbet: com efeito a familiaridade, nos meios
portugueses intelectuais do tempo, com a pintura de Courbet, era sobretudo
devido às descrições e comentários de Proudhon, e aos usos que deles fez
Eça de Queirós.148

Em “Os britadores de pedra” (1851), Courbet captou o espírito de sua época,


ao exibir os desdobramentos da industrialização, com suas contradições por meio da

146
VERDE, 1992. p. 72-73.
147
ANEXO I.
148
MACEDO, 1988. p. 30.
88

pintura da vida cotidiana do duro trabalho de um jovem e de um ancião, que


vergados (o primeiro com roupas rasgadas e o segundo com estas remendadas),
cujos rostos não se vêem, expressando uma vida marcada pelas pedras. Tal qual
Cesário Verde, que por meio de palavras cortantes poetizou os trabalhadores no
calçamento das ruas, Courbet utilizou pinceladas encorpadas que mostram uma
correspondência do trabalho artístico com a pesada e miserável vida do proletário.
O poema “Noite Fechada” descreve a lembrança de um passeio feito por um
sujeito, que, ao lado de sua companheira, flana pela cidade num sábado à noite.
Invertendo a tônica do passeio, que ironicamente poderia ser um footing noturno
romântico, acompanhado por uma confissão de amor, o sujeito transforma-o em um
mergulho na cidade sob a luz do gás. O olhar aguçado do flâneur focaliza as ruas, o
cemitério e os jardins:

Lembras-te tu do Sábado passado,


Do passeio que demos devagar.
Entre um saudoso gás amarelado
E as carícias leitosas do luar?

Bem me lembro das altas ruazinhas


Que ambos nós percorremos de mãos dadas:
Às janelas palravam as vizinhas;
Tinham lívidas luzes as fachadas.

Não me esqueço das coisas que disseste,


Ante um pesado templo com recortes;
E os cemitérios ricos, e o cipreste
Que vive de gorduras e de mortes!

Nós saíramos próximo ao sol-posto,


Mas seguíamos cheios de demoras;
Não me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.

Tenho gravado no sentido,


Porque tu caminhavas com prazer,
Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.

Como uma mitra a cúpula da igreja


Cobria parte do ventoso largo;
E essa boca viçosa de cereja,
Torcia risos com sabor amargo.
89

A lua dava trémulas brancuras,


Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com árvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!

E para te seguir entrei contigo


Num pátio velho, que era dum canteiro,
E onde, talvez, se faça inda o jazigo
Em que eu irei apodrecer primeiro!149

Em meio ao monólogo do eu lírico, as qualidades físicas da companheira são


postas em contraposição à cidade, que é amarelada pelo gás e possui aspecto
fúnebre. O passeio prossegue e o flâneur lê a cidade que se ergue diante de seus
olhos, sob o viés de uma multidão de desconhecidos e de criaturas pobres que se
atropelam, saindo dos porões de uma urbe que se quer transparente:

Sei que em tudo atentavas, tudo vias!


Eu por mim tinha pena dos marçanos
Como ratos, nas gordas mercearias
Encafurnados por imensos anos!

Tu sorriras de tudo: os carvoeiros,


Que apareciam ao fundo dumas minas,
E à crua luz os pálidos barbeiros
Com óleos e maneiras femininas!

Fins de semana! Que miséria em bando!


O povo de folga, estúpido e grisalho!
E os artistas d’ofício iam passando,
Com as férias, ralados do trabalho.

O quadro interior, dum que à candeia,


Ensina a filha a ler, meteu-me dó!
Gosto mais do plebeu que cambaleia,
Do bêbado feliz que fala só!

De súbito, na volta de uma esquina,


Sob um bico de gás que abria em leque,
Vimos um militar, de barretina
E galões marciais de pechisbeque.

E enquanto ele falava ao seu namoro,


Que morava num prédio de azulejo,

149
VERDE, 1992. p. 83.
90

Nos nossos lábios retiniu sonoro


Um vigoroso e formidável beijo!

E assim ao meu capricho abandonada,


Errámos por travessas, por vielas,
E passamos por pé duma tapada
E um palácio real com sentinelas.

Eu que busco a moderna e fina arte,


Sobre a brumosa calçada sepulcral,
Tive a rude intenção de violentar-te
Imbecilmente, como um animal!

Mas ao rumor dos ramos e d’aragem,


Como longínquos bosques muito ermos,
Tu querias no meio da folhagem
Um ninho enorme para nós vivermos.

E ao passo que eu te ouvia abstractamente,


Ó grande pomba tépida que arrulha,
Vinham batendo o macadam fremente,
As patadas sonoras da patrulha.

E através da imortal cidadezinha,


Nós fomos ter às portas, às barreiras,
Em que uma negra multidão se apinha
De tecelões, de fumos, de caldeiras.150

No poema, o romântico discurso do caminhante desloca-se dos beijos e


abraços afetuosos para um ardente desejo sexual que atravessa o passeio citadino,
no qual o flâneur focaliza todo o esplendor e a miséria da urbe, através de um
“desencanto do mundo” envolto, segundo Silvana Oliveira, por uma “nostalgia do
inusitado e da irrupção do extraordinário na ordem urbana, como é o caso de Cesário
Verde”, que torna o seu deambular em uma existência fragmentada, que aos poucos
vai sendo costurada, formando um painel maior de uma realidade sem redenção e
sem “retorno a nenhuma pátria triunfante”.151
Recolhendo as ruínas, o lixo e as “dobras” da sociedade, o poeta, dentro
dessa perspectiva, tem a faculdade de recriá-la. Pode-se dizer que, tanto Cesário

150
VERDE, 1992. p. 84 e 86.
151
OLIVEIRA, 1996. p. 106.
91

Verde como Baudelaire recolheram as ruínas urbanas: aquilo que a cidade


dispensou ou perdeu. Walter Benjamin comenta a respeito da representação da
figura do trapeiro: ”Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu,
tudo o que ela desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele.
Compila os anais da devassidão, o carfanaum da escória.”152
Inventariando a dor humana, as ruínas e os vencidos, Cesário Verde fá-los
brilhar apenas por instantes fugidios que reluzem pela força de uma grande tristeza,
conforme postulou Benjamin, ao comentar criticamente a história dos vencidos.153
Nessa derrota, a cidade como pano de fundo torna-se palco para a encenação das
transformações modernas e espaço propiciador de uma nova lírica; ela mesma [a
cidade] se transforma em uma vitrine que se exibe, seduzindo quem a atravessa e
em cujo cenário sobressai um novo perfil feminino – a femme fatale urbana.

2.3.2. Erotismo dos perfis femininos

Conta-nos a Bíblia que, no episódio da destruição de Sodoma e Gomorra, Lot,


sua mulher e suas duas filhas foram salvas, pois Lot era o único habitante de Sodoma,
que cria na palavra de Deus. Entretanto, a mulher de Lot desobedece a ordem de Deus
e volta-se para trás, sendo punida com sua transformação em estátua de sal.154 Na
Bíblia, encontramos o marco da sociedade patriarcal, que vem colocando em xeque
a debilidade feminina:

A tradição judaico-cristã caracterizou-se igualmente por colocar a beleza


feminina em índex. Ainda que no Gênesis nada seja precisado a respeito da
beleza de Eva, pode-se pensar que foi por seus encantos que ela conseguiu
lançar Adão no caminho do pecado. Na Bíblia, a beleza das heroínas (Sara,
Judite, Salomé) tem cumplicidade com o ardil, a mentira e a astúcia.155

Ao longo da história das civilizações, a imagem da mulher permanece no


limiar de santa e pecadora, mística e louca, deusa e bruxa, rainha e escrava. Em muitas

152
BENJAMIN, 1991. p. 103.
153
BENJAMIN, 1991. p. 157-158.
154
BÍBLIA SAGRADA, 1999. Gênesis. Cap. 19, p. 12.
155
LIPOVETSKY, 2000. p. 112.
92

outras combinações binárias, opostas e sempre limítrofes, a mulher está sempre nesse
espaço antagônico:

Desde a antigüidade, a beleza feminina é celebrada pelos artistas e, ao


mesmo tempo, assimilada a uma armadilha mortífera. (...) Deslumbrante, a
beleza das mulheres dá medo; objeto de veneração, desperta a desconfiança
dos homens. O aparecimento dos discursos que glorificam o belo sexo, a partir
da Renascença, não fez desaparecer de modo algum essa ambivalência...156

A produção literária, ao longo dos tempos, vem apresentando imagens da


mulher que vão “desde a virgem casta à bacante, sempre revisitada pelo signo do
feminino”.157 As imagens das mulheres tematizadas pela literatura permaneceram como
verdadeiras e permanentes, ao se fixarem no imaginário social uma imagem maléfica
da mulher, caracterizando-a como uma criatura portadora de álibis e de artimanhas.
Na obra de Cesário Verde, a imagem feminina varia entre a mulher boa e
singela e a mulher fatal. Todas elas são tematizadas nos poemas “Esplêndida”,
“Deslumbramentos”, “Frígida”, “Setentrional”, “Humilhações”, “De tarde”, “Manhãs
brumosas”, “Manias”, “Ó áridas messalinas”, “Num tripúdio de corte rigoroso”,
“Lúbrica”. “Flores velhas”, “A Débil’ e “Cabelos”. Esses poemas demonstram bem as
duas imagens arquetípicas da sedução feminina:

A de Bela Adormecida, Branca de Neve, Cinderela, onde o homem é atraído


pela beleza. Apaixona-se, e a mulher parte com ele. A segunda é a de
feiticeira (Circe, Alcina) que prende o homem com um encanto. O mito nos diz
que Branca de Neve ou a Bela Adormecida estão enamoradas do príncipe.
Circe não está enamorada de Ulisses. Ela o quer, isso é certo, mas está
disposta a mantê-lo prisioneiro contra a sua vontade. Alcina encanta Rogério
para impedi-lo de combater contra os sarracenos, de quem é aliada.158

A femme fatale, glacial e distante, que tanto encantou os escritores europeus


da 2ª metade do século XIX, como a Salomé, de Wilde, a Carmen, de Mérimée,159 a
Salambô, de Flaubert, ou mesmo a Jeanne Duval, de Baudelaire, também se faz
presente na poesia de Cesário Verde. Essas mulheres são sempre urbanas,

156
LIPOVETSKY, 2000. p. 169.
157
VILALVA, 1999. p. 4.
158
ALBERONI, 1988. p. 70.
159
Em Carmen, de Mérimée, D. José, apaixonado, implora que ela volte para ele, mas ela não cede às suas
súplicas, residindo aí sua grande arma de sedução.
93

remetendo à cidade como o locus da impossibilidade de realização do amor. A


personagem Salomé remonta à Bíblia, ao Livro do Novo Testamento, onde são
citadas duas Salomés, que, ao comportarem duas faces opostas, são o próprio duplo
que habita o imaginário masculino.
Segundo a narrativa bíblica, Salomé era uma princesa judia, que dançou
durante o banquete de aniversário de seu padrasto Herodes, o qual encantado,
ofereceu-lhe o que ela desejasse. Salomé pediu a cabeça de João Batista e isso lhe
foi concedido. A outra personagem Salomé, que figura na Bíblia é uma santa, esposa
de Zebedeu e mãe dos apóstolos Tiago Maior e João Evangelista. Pode-se observar
que a imagem da primeira Salomé é a da mulher poderosa e má, que foi tematizada
na literatura do século XIX. Gilles Lipovestsky destaca que esteve em alta, na
literatura e nas artes de um modo geral, a temática da mulher fatal, aquela que leva
os homens à ruína e que é um misto de encanto e decadência:

Prolongando a tradição literária que remonta à antigüidade clássica, os


românticos e as correntes “decadentistas” deram um relevo particular ao tipo de
mulher vampiresca, bela e impura, inumana e funesta. De Carmen (Mérimée)
a Salambô (Flaubert), de Cécile (Sue) a Maria Stuart (Swimburne), a Salomé
(Wilde, Laforgue ou Malarmé), a Basiliola (D’Annunzio), a Madame de Stassville
(Barbey D’Aurevilly) a Hyacinthe (Huysmans), toda uma galeria de retratos ilustra
a figura da “bela dama impiedosa” que reúne todos os vícios e todas as volúpias.
Poetas, romancistas e pintores fazem triunfar a “beleza do mal” (Baudelaire), a
linaça do encanto e da decadência, a beleza meduséia toda impregnada do
trágico, da perversidade e da morte. Os quadros de Stuck, Moreau, Khnopff,
Klimt testemunham essa fascinação pela beleza demoníaca da mulher.
Representando mulheres hieráticas de olhar insondável, de traços imóveis e
frios, de gestos solenes, os artistas de fim de século, (...) procuraram exprimir
a crueldade infernal da mulher, criatura sem alma que faz o mal, provoca o
sofrimento e a morte, levando o homem à anarquia de sentidos e ao caos.160

De acordo com Margareth Rago, é preciso distinguir a mulher fatal, da


prostituta, pois essa última vende seu corpo, enquanto a mulher fatal é aquela que
apenas seduz e humilha os homens, sendo também, muitas vezes confundida com a
prostituta. Ainda segundo a autora, a femme fatale é a figura feminina associada ao
desejo, ao prazer e à loucura masculina:

160
LIPOVETSKY, 2000. p. 171.
94

A femme fatale, cheia de artifícios, ousada e extravagante, é dotada de um


instinto sexual indomável, que obsessiona os homens cultos (...) Dos médicos
aos literatos, toda uma produção artística procura estabelecer os limites da
sexualidade feminina. (...) A mulher fatal irrompe na literatura como alguém
dotada de uma super-sexualidade, como figura noturna, bela e má, encarnando
o primado do instinto sobre a razão. Ameaçadora para a sobrevivência da
civilização, esta figura, que deseja a ruína e a castração de todos os homens
pelo puro prazer de destruição, invade o imaginário de poetas, pintores e
artistas, tanto quanto de médicos, juristas e criminologistas...161

A representação da dama fatal revestida de erotismo, na obra de Cesário


Verde, já foi motivo de especulação biográfica e, segundo atesta Alfredo Margarido,
a crítica portuguesa preocupou-se muito pouco em tratar desse tema, mesmo sendo
ele tema “central na organização do imaginário do poeta”.162 Entretanto, Jorge de
Sena destacou que, apesar da presença de elementos autobiográficos, a poesia de
Cesário não é confessional. O crítico afirma, ainda, que o exagero da humilhação do
homem pobre pela dama fatal não estava de acordo com a condição social do poeta:

Se repararmos em que, apesar dos inúmeros e até dos directos elementos


autobiográficos de que é composto, o lirismo apostrofante de Cesário nada tem
de confessional (é curioso notar, por exemplo, a insistência do motivo do pobre
desprezado pela grande dama, para os efeitos a tirar do qual, Cesário Verde
exagera numa baixa condição social que estava muito longe de ser a sua).163

Se Jorge de Sena afirmou que a pobreza e a humilhação estavam distantes


da condição econômica de Cesário, parece-nos que é preciso olhar para a figura do
amante desprezado, na poesia verdiana, como um flâneur que circula pela urbe e
entrecruza imagens de erotismo/mulher e cidade. Seu erotismo, muitas vezes,
desloca-se da mulher urbana para a mulher campestre, como também volta seu foco
de atenção para os elementos da natureza.
Óscar Lopes identifica o erotismo de Cesário em sua filiação a Baudelaire,164
como já o tinha feito Ramalho Ortigão, porém, de forma irônica. Não nos resta dúvida
de que essa é uma das linhas que une Cesário ao poeta francês, mas é preciso
observar que o erotismo em Cesário representa, também, uma sintonia com as idéias

161
RAGO, 1992. p. 73.
162
MARGARIDO, 1988. p. 130.
163
SENA, 1987. p. 161.
95

literárias do século XIX. Segundo Mário Praz, isso corresponde a uma inversão pois,
no início do século, prevaleceu o herói byroniano, o homem fatal, que submete a mulher
a seus caprichos e, na segunda metade do século XIX, a mulher fatal irrompeu na
literatura, por meio do exotismo, como projeção fantástica de um erotismo
exacerbado e da presença de mitos antigos, como Esfinge, Afrodite ou Vênus.165
Já Hélder Macedo compreende o erotismo verdiano na contraposição entre
cidade/campo, criado/senhora, sendo que a cidade é associada a um erotismo de
humilhação, acompanhado de um desejo impossibilitado de realizar-se, enquanto, no
campo, os desejos eróticos são libertadores, para o sujeito poético.166 O eminente
crítico associa ainda a mulher urbana e a rural, numa perspectiva de representação
da inferioridade portuguesa frente à Inglaterra, mas acreditamos que, para além
dessa representação, a dama fatal, na pele de mulher inglesa, também pode ser lida
como uma crítica irônica por parte de Cesário a essa superioridade e também como
uma reflexão sobre a dependência econômica de Portugal.
O erotismo, na poesia de Cesário, é difuso: chega à mulher fatal urbana, mas se
desloca para a mulher campestre. Apesar dessa última figurar nos versos verdianos
como uma criatura simples e pura, ela também torna-se alvo do olhar erótico. Há ainda
o erotismo despertado pela mulher feia, como ocorre com a vendedora de verduras
do poema “Num bairro moderno”, ou mesmo por um tipo masculinizado da mulher
rural, como ocorre no poema “Manhãs brumosas”, no qual o poeta descreve o
feminino com características de um “rural boy”.
Lançando um olhar sobre a série de poemas que tematizam a “dama fatal”,
na obra verdiana, podemos perceber que essa figura arrebatadora é sempre
encenada como soberba, frente a um jovem admirador. Segundo Mario Praz, a moda
literária que tematizou a mulher fatal se esmerou em colocá-la numa posição
superior e circunscrita, sob o signo da devoração:
Segundo esta concepção da mulher fatal, o enamorado é normalmente um
jovem e mantém uma atitude passiva; é obscuro, inferior à mulher na condição
ou na exuberância física, e ela está diante dele na mesma relação que a

164
LOPES, 1973. p. 624.
165
PRAZ, 1996. p. 181-186.
166
MACEDO, 1975. p. 13.
96

aranha fêmea, o louva-a-Deus etc. estão diante do respectivo macho: o


canibalismo sexual é aqui monopólio da mulher.167

Na obra de Cesário Verde, encontramos as características apontadas acima,


por Praz, não só no poema “Esplêndida” como em outros textos, nos quais a dama
subjuga seu admirador, convertendo-o em um servo. A mulher figura em coloridas
sedas e tem todas as suas qualidades físicas e atitudes aristocráticas muito bem
ressaltadas, como ocorre no poema “Esplêndida”:

Ei-la! como vai bela! Os esplendores


Do lúbrico Versailles do Rei-Sol
Aumenta-os com retoques sedutores,
É como o refulgir dum arrebol
Em sedas multicores.
(...)
É fidalga e soberba. As incensadas
Dubarry, Montespan e Maintenon
Se a vissem ficariam ofuscadas.
Tem a altivez magnética e o bom tom
Das cortes depravadas.
(...)
E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.168

O esplendor da dama coberta de ouro, como o Palácio de Versailles,


segundo Cesário Verde, é maior que o das damas francesas, verdadeiras
representantes do Ancièn Régime, o que pode ser lido como uma crítica de Verde a
essa forma de governo. O dourado remete a uma posição superior de deusa.
Segundo Qualls-Corbett, “Afrodite era freqüentemente citada como a ‘dourada’. O
dourado não apenas define o seu esplendor, mas também simboliza (...) a
consciência do relacionamento e do sentimento”.169 No poema de Cesário, até

167
PRAZ, 1996. p. 192.
168
VERDE, 1992. p. 187.
169
QUALLS-CORBETT, 1990. p. 74.
97

mesmo a carruagem toma um aspecto brilhante, colocando na dama e no objeto um


brilho, que é artificial como a cidade, com suas luzes e sua sociabilidade:

É ducalmente esplêndida! A carruagem


Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar,
Atrai como a voragem.170

A humilhação presente no poema não pode ser considerada no seu sentido


literal, como o fez Jorge de Sena, pois, na verdade, não se trata de uma posição de
inferioridade do poeta, mas expressa um modelo literário em voga para focalizar uma
forma de erotismo, por meio de um flâneur que passeia pela cidade e fixa o olhar na
dama inacessível.
Cesário prossegue encenando a mulher fria e distante, ameaçadora e tirana
que se traveste de mulher britânica o que, segundo Hélder Macedo, traduz um
complexo de inferioridade de Portugal perante as nações do Norte, fato que tanto
atormentou os membros do grupo da Geração de 70, como Oliveira Martins e Antero
de Quental, como podemos observar no Poema “Deslumbramentos”, no qual a dama
atrai também seu admirador, pela beleza, mas à distância mantém a glacialidade dos
“gestos de metal”:

Milady, é perigoso contemplá-la,


Quando passa, aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

(...)
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar.171

A “grande dama fatal” reveste-se de um jogo duplo de “arcanjo e demônio” e


está condenada a ficar sozinha, pois, de acordo com os ditames do século XIX, a
mulher vaidosa e tirana era aquela não-esposável. Essa imagem da mulher sedutora,

170
VERDE, 1992. p. 188.
171
VERDE, 1992. p. 31.
98

conformada ao demônio, construiu-se ao longo da Idade Média, persistindo até fins


do século XIX, época em que ainda não havia sido superada no imaginário
tradicional a idéia da sedução feminina confundida com os malefícios de Eva. Vale
ressaltar que a imagem do anjo percorre não só a literatura, como também a Bíblia.
O anjo é, portanto, o anunciador da vontade divina e, algumas vezes, é possível
encontrarmos sua imagem conformada à de algoz; já o demônio representa o
oposto, o vencido, o enfeitiçador:

O seu olhar possui, num jogo ardente,


Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo:
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo.

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,


E mostre, se eu beijar-lhe as breves mãos,
o modo diplomático e orgulhoso
Que Ana d’Áustria mostrava aos cortesãos.172

Cesário faz uma referência a Ana d’Áustria, Infanta da Espanha, que tinha o
hábito de receber em sua corte. Essa alusão, segundo Hélder Macedo é uma forma
de criticar as personagens do antigo regime, marcando bem a relação entre uma
possível submissão sexual e social.173 Numa visão final, contrariamente ao poema
“Esplêndida”, o eu poético não se mantém em postura submissa diante da mulher,
mas lança uma imagem de destruição, na qual, “os povos humilhados pela noite” se
vingariam e ele assistiria à derrocada da dama, com a conseqüente transformação
das vestes das rainhas em farrapos:

Mas cuidado, Milady, não se afoite,


Que hão de acabar os bárbaros reais,
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do luxo, nas estradas,


Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver errar, alucinadas,

172
VERDE, 1992. p. 32.
173
MACEDO, 1986. p. 85.
99

E arrastando farrapos – as rainhas!174

Essa humilhação é um elemento erótico que funciona como um instrumento


para despir a dama pelo olhar. Essa mulher, “ducalmente, esplêndida”, encerra ainda
uma humilhação, que é propositalmente colocada pelo poeta, como um fosso social
entre o desejante e o desejado, com a finalidade de exprimir os desejos eróticos numa
sociedade que exigia decoro e não permitia tal expressão. Despir o luxo da rainha
demonstra, segundo Fernando Cabral Martins, uma atitude insubmissa de um
personagem masculino, que se insurge contra a vassalagem amorosa, expondo uma
“situação dramática que (...) não é metáfora da humilhação do povo explorado pela
classe possidente, mas a idolatria que aquele personagem devota àquela que o
despreza.”175
A dama e o seu admirador humilhado novamente aparecem no poema
“Humilhações”, que foi dedicado a Silva Pinto, amigo de Cesário. A recorrência à
humilhação amorosa nos remete a um fenômeno psicológico, associado a Leopold
Von Sacher-Masoch. De acordo com Margarido, “a carga masoquista manifesta-se
(...) de maneira absoluta, não na relação com a estrutura física do poeta, mas
levando em linha de conta a lógica perversa do discurso poético”.176
No poema “Humilhações”, Cesário mostra indícios da urbanização do século
XIX, que instaurou um novo modo de sociabilidade, com a freqüência a teatros e
concertos, onde os indivíduos tornam-se atores de um “tipo muito particular” do
“grande teatro da vida urbana”.177 Nesse poema, recoloca-se o tema da mulher
soberba, elegante, hipnótica e desdenhosa, diante de quem o flâneur se humilha,
tópico da literatura da época:

Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Jó,


Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.

174
VERDE, 1992. p. 33.
175
MARTINS, 1988. p. 47.
176
MARGARIDO, 1988. p. 134.
177
SENNET, 1988. p. 147.
100

Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás;


As damas ao chegar gemem nos espartilhos,
E enquanto vão passando as cortesãs e os brilhos,
Eu analiso as peças no cartaz.

Na representação dum drama de Feuilllet,


Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.178

De acordo com Hélder Macedo, a informação do poeta sobre o drama do


escritor francês Octave Feuillet (1821-1890), que era encenado naquela noite,
representa também uma crítica ao autor de peças. A peça Roman d’un jeune homme
pauvre, de Feuillet, tem como temática um relacionamento impossível entre um
jovem de classe social baixa apaixonado por uma mulher de classe elevada, tal qual
ocorre no poema de Cesário Verde:

(...) Feuillet era o manipulador de personagens-tipo que, no dizer ferino de


Flaubert, devia o seu sucesso a duas razões: a primeira, as classes baixas
acreditarem que as classes altas eram como ele as representava; e, a
segunda, as classes altas verem-se representadas como gostariam de ser.179

Note-se, também, no poema, a recorrência às rendas e aos tecidos


importados da frança que é utilizada por Cesário para sugerir um erotismo à moda
baudelairiana, em que o “ranger das sedas” indicia carícias íntimas.
É no espaço urbano que se dá o jogo do esconder/surgir, no qual as pessoas
afluem, mas logo desaparecem, encenando uma característica muito própria da
multidão. Ao fechar o poema, Cesário expõe as contradições do capitalismo pois, em
meio ao luxo das damas no teatro, protegidas pela guarda que “espanca o povo”,
surge uma mendiga:

Saí; mas ao sair senti-me atropelar


Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda
Cresci com raiva contra o militar.

178
VERDE, 1992. p. 42.
179
MACEDO, 1988. p. 21.
101

De súbito, fanhosa, infecta, rota, má


Pôs-se à minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
– Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?180

O admirador humilhado, que se encena no poema, só sustenta tal posição no


que se refere à conquista amorosa pois, como cidadão, ele assume uma atitude
divergente, contrapondo-se ao poder da polícia e confrontando as classes sociais
distintas.
No poema “Frígida”, tal qual em outros textos como “Esplêndida” e
“Humilhações”, a imagem da fêmea fatal também se faz presente na pele da mulher
britânica e fria, pois é aquela que não só é superior, como também é ironizada pelo
título – “Frígida” – que insinua um problema sexual. Essa mulher, portanto, não pode
proporcionar prazer sexual ao homem:

Balzac é meu rival, minha senhora inglesa!


Eu quero-a, porque odeio as carnações redondas!
Mas ele eternizou-lhe a singular beleza
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.181

Este poema, partindo da submissão amorosa do eu poético à amada pela


qual ele padece, constrói um perfil de mulher inatingível, que fere como metal e é
gelada como o inverno. Essa dama conjuga as antinomias céu e inferno, anjo e
demônio, tomando um aspecto fúnebre e vampiresco, características presentes no
poema “As metamorfoses de um vampiro”, de Charles Baudelaire. Tal fato pode ser
confirmado na própria menção que Cesário faz a Baudelaire, no poema:

Admiro-a. A sua longa e plácida estatura


Expõe a majestade austera dos invernos:
Não cora no seu todo a tímida candura;
Dançam a paz dos céus e o assombro dos infernos.

Eu vejo-a caminhar, fleumática, irritante,


Numa das mãos franzindo um lenço de cambraias...
Ninguém me prende assim, fúnebre, extravagante,
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia!

180
VERDE, 1992. p. 44.
181
VERDE, 1992. p. 90.
102

Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite,


Mas nunca a fitarei duma maneira franca;
Traz o esplendor do dia e a palidez da noite,
É como o sol, dourada, e, como a Lua, branca!

(...)
Cintila no seu rosto a lucidez das jóias.
Ao encarar consigo, a fantasia pasma;
Pausadamente lembra o silvo das jibóias
E a marcha demorada e muda dum fantasma.

Metálica visão que Charles Baudelaire


Sonhou e pressentiu em seus delírios mornos,
Permita que eu lhe adule a distinção que fere,
As curvas da magreza e o lustre dos adornos!

Deslize como um astro, um astro que declina;


Tão descansada e firme é que me desvaria,
E tem a lentidão duma corveta fina
Que nobremente vá num mar de calmaria.

Não me imagine um doido. Eu vivo como um monge,


No bosque das ficções, ó grande flor do Norte!
E, ao persegui-la, penso acompanhar de longe
O sossegado espectro angelical da Morte!

O seu vagar oculta uma elasticidade


Que deve dar um gosto amargo e deleitoso,
E a sua glacial impassibilidade
Exalta o meu desejo e irrita meu nervoso.

(...)
E se uma vez me abrisse o colo tranparente,
E me osculasse, enfim, flexível e submissa,
Eu julgaria ouvir alguém, agudamente,
Nas trevas a cortar pedaços de cortiça.182

A beleza medúsica da dama estrangeira, no poema “Frígida”, atribui um valor


erótico ao corpo vestido; a saia que arregaça e ondula sugere um entrever desse
corpo, cuja marca, Cesário tomou da matriz baudelairiana erótica e satânica.
Entretanto, o poeta não se limitou a fazer uma transposição pura e simples da
temática de Baudelaire, mas, sem dúvida, reorganizou os elementos baudelairianos

182
VERDE, 1992. p. 91-92.
103

de acordo com uma ótica própria, conforme podemos constatar nas palavras de
Alfredo Margarido. O crítico português afirma que Cesário inverte a comum posição
homem/mulher, rompendo com a posição do amante humilhado pela mulher-
serpente, ao fechar os versos com o ruído agressivo e violento do corte da cortiça, o
que mostra um diálogo de Verde com João de Penha, quanto à organização das
estrofes, com a presença de uma quadra final que vai de encontro ao pensamento
anunciado nas estrofes anteriores:
O último verso é exclusivamente português, por exigir não apenas a leitura,
mas a possibilidade de reproduzir tanto na memória como na crispação física,
o ruído agressivo provocado pela operação. Serve ela para denunciar a
impossibilidade de aceitar a inversão da relação com a mulher desejada, já
que o regresso a uma situação “normal” corresponderia à anulação do desejo,
destruindo a totalidade do investimento erótico.
A singularidade da estrofe funciona como uma estratégia do poeta, para
dissimular a extrema importância da situação: o desejo não pode afirmar-se
senão quando a humilhação existe, sendo reforçada pelo movimento ascendente
do desejo. A inversão da relação de humilhação, banalizando a mulher desejada,
expulsa o poeta de seu próprio desejo. A brutalidade do ruído da cortiça cortada
não pode deixar a mínima dúvida quanto ao caráter agressivo da norma, perante
o desejante que não poderá satisfazer-se senão por meio da humilhação.183

As oposições céu e terra, sol e lua, amargo e doce, presentes no poema


“Frígida”, ressaltam a dualidade feminina e exibem uma imagem maléfica da mulher.
Michelle Perrot ressalta que as representações da mulher como “origem do mal e da
infelicidade, potência noturna, força das sombras, rainha da noite”184 são bastante
antigas e recorrentes, inclusive, são imagens que remetem ao Gênesis, pela força
sedutora de Eva, que coloca o homem em posição submissa.
Tal qual em “Frígida”, também no poema “Arrojos”, a mulher distante
desperta “loucos desvarios” e faz com que seu admirador, metaforicamente, cometa
loucuras, o que demonstra uma atitude de extremo romantismo:

Se a minha amada um longo olhar me desse


Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.

183
MARGARIDO, 1988. p. 143.
184
PERROT, 1988. p. 168.
104

Se ela deixasse, extático e suspenso


Tomar-lhe as mãos mignonnes e aquecê-las,
Eu como um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o nome das estrelas.

(...)
S’ ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o sol como desfaço,
As bolas de sabão das criancinhas.185

Em tom confessional o eu poético, heroicamente, como um Ulisses, “domaria


o mar” e o atravessaria, mas para sua decepção o olhar de sua amada é uma
espada: gelado metal que remete para a dureza humana. Ao estilo de João Penha186
que, ironicamente, dava fechos aos seus poemas, com o intuito de provocar o riso,
Cesário coloca seu personagem à altura de um Odisseu para encenar uma decisão
absolutamente trivial – a de não mais freqüentar o café moderno e abandonar a vida
de solteiro, porém, o faz ironicamente, com vassalagem amorosa e “cantos
moribundos”:

Se a Laura dos meus loucos desvarios


Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.

(...)
S’ ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abalaria as sólidas montanhas.

E se aquela visão da fantasia


Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.187

A distância da mulher e o amor avassalador, encenados ironicamente são


retomados das fórmulas românticas parodiadas por Cesário Verde. Segundo Thaís

185
VERDE, 1992. p. 185-186.
186
MOISÉS, 2001. p. 178.
187
VERDE, 1992. p. 186.
105

Vinci Chaves, o poeta coloca em cena uma “mulher inatingível e um herói prometeico
circunscrito pela paródia, produzindo um perfil de herói risível, bufão e derrotado”.188
Isso confere ao poema uma dimensão de crítica ao estilo romântico, ao elevar a
dramaticidade de um fato e desconstruí-lo, em seguida, mostrando-o como algo
banal. O discurso romântico é ironizado e também torna-se alvo de crítica no poema
“Num tripúdio de corte rigoroso”.
Nesse texto, entra em cena o sensualismo amoroso de uma mulher inatingível
possuidora de formas corporais artísticas perfeitas, ao estilo de Vênus. Mas a
expectativa do leitor é frustrada, pois o amor não se realiza e é sobretudo ironizado.
O poeta lança mão do repertório romântico, satirizando suas construções poéticas, por
meio de um sujeito que remete uma carta de amor, recheada de sentimentalismo e
recebe uma resposta em que a mulher utiliza as mesmas fórmulas textuais:

Num tripúdio de corte rigoroso,


Eu sou quem descobriu a Vénus linfática,
– Beleza escultural, grega, simpática,
Um tipo peregrino e luminoso. –

Foi lâmpada no mundo cavernoso,


Inspiradora foi de carta enfática,
Onde a alma candente mas sem táctica,
S’espraiava num canto lacrimoso.

Mas ela em papel fino e perfumado,


Respondeu certas coisas deslumbrantes,
Que o puseram, ó céus, desapontado!

Eram falsas as frases palpitantes,


Pois que tudo, ó meu Deus, fora roubado
Ao bom do “Secretário dos Amantes”.189

Note-se que o erotismo, no poema acima citado, encontra-se deslocado para


Vênus, como estátua, nua, no modelo grego, reproduzindo um ideal de perfeição,
projetado na visão de um objeto escultural. Porém, essa Vênus é “linfática”, metáfora
da doença que foi bastante utilizada por Baudelaire tanto para criticar a cor da pele,

188
CHAVES, 1993. p. 76.
189
VERDE, 1992. p. 173.
106

extremamente pálida, das personagens românticas como para decantar suas musas
doentes. Também no poema em prosa “O Bobo e a Vênus”,190 o poeta francês
ridiculariza um bufão que se põe a observar a estátua de formas perfeitas. Em seus
“Escritos Íntimos”, Baudelaire também compara Vênus a uma das formas do demônio.191
No poema “A forca”, Cesário Verde prossegue parodiando as fórmulas
românticas burguesas, ao encenar uma mulher distante, que é conquistada no jogo
do amor:

Já que adorar-me dizes que não podes,


Imperatriz serena, alva e discreta,
Aí, como no teu colo há muita seta
E o teu peito é o peito dum Herodes.

E a vida depurada no cadinho


Das eróticas dores do alvoroço,
Acabará na forca, num azinho,

Mas o que há-de apertar o meu pescoço


Em lugar de ser corda de bom linho
Será do teu cabelo um menos grosso.192

Há, nos versos acima, referência ao personagem bíblico Herodes, que


condenou Cristo à morte, mas a mulher revestida como Herodes, matará seu amante
com os cabelos, assim encenando-se eroticamente uma morte por amor. Segundo
Bataille, o erotismo e a morte relacionam-se sempre:

O erotismo é a aprovação da vida até na morte. A sexualidade implica a


morte, não somente no sentido de que os recém-chegados prolongam e
substituem os desaparecidos, mas porque faz entrever a vida do ser que se
reproduz.193

Ridicularizando fórmulas românticas e invertendo o poder da dama, Cesário


realiza de maneira notável sua crítica à sociedade, por meio de um anticlericalismo,
que se traduz tanto nas suas referências irônicas aos padres, como também

190
BAUDELAIRE, 1995. p. 283-284.
191
BAUDELAIRE, 1995. p. 539.
192
VERDE, 1992. p. 172.
193
BATAILLE, 1989. p. 12.
107

naqueles personagens que apresentam comportamento moral discutível e


freqüentam as missas. No poema “Manias”, a dama poderosa e maléfica, que sugou
as forças masculinas, é ridicularizada por sua decadência física e financeira, que são
associadas à degradação e à hipocrisia da sociedade. Nesse poema, o
relacionamento amoroso é ironizado por meio da “submissão canina” do
companheiro:

O mundo é velha cena ensanguentada,


Coberta de remendos, picaresca,
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei dum bom rapaz – hoje uma ossada, –


Que amava certa dama pedantesca,
Pervessíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.

Aos domingos a deia já rugosa


Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue em atitude receosa,
Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa
O livro com que a amante ia ouvir missa!194

Como uma “imponente ruína”, a dama decadente assistia missas aos


domingos em atitude hipócrita, como bem denuncia o eu poético. Mas a posição da
amante inverte-se pois, apesar de pedante, ela já apresenta indícios de dependência
de seu companheiro, sendo descrita com adjetivos que denotam doença e decadência.
Apesar de suas atitudes recheadas de vaidade e orgulho, a dama “chagada” e “rugosa”,
apresentava um perfil de mulher fatal, pela sua perversidade e não pela beleza.
Elaborando um outro perfil de mulher fatal, Cesário Verde coloca em cena as
messalinas, no poema “Ó áridas messalinas”. Segundo Mário Praz, a messalina foi
um retrato feminino bastante tematizado por românticos e realistas no século XIX,
que eternizaram essa imagem da dama fatal e prostituta poderosa, como “o eterno
feminino cruel personificado no cortejo das luxuriosas rainhas orientais”.195 A origem

194
VERDE, 1992. p. 167.
195
PRAZ, 1996. p. 213.
108

dessa figura remonta à rainha oriental, fascinante, a qual os escritores do século XIX
foram buscar no Oriente exótico.
O nome Messalina sofreu um processo de evolução, tornando-se sinônimo de
“prostituta” e contrapondo-se à mulher pura e casta, vista como um ser sublime. Essa
visão, cara ao século XIX, marcou a época em que as atenções se voltaram para a
mulher, a fim de moldá-la, produzindo-se um modelo ideal, a partir da imagem de Nossa
Senhora. Essas idéias estiveram presentes nos discursos médico, político e literário,
que foram atravessados pela filosofia comtiana, a qual propalava a canonização da
mulher como a “deusa do lar”. Literariamente, os escritores representavam-na como
a mulher boa ou seja, como aquela que era ideal para o casamento:

Ó áridas messalinas
Não entreis em meu santuário,
Transformareis em ruínas
O meu imenso sacrário!

(...)
A mulher é ser sublime,
É o conjunto de carinhos,
Ela não propaga o crime,
Em sentimentos mesquinhos.

Vós sois umas vis afrontas,


Que nos dão falsos prazeres,
Não sei se sois más, se tontas,
Mas sei que não sois mulheres!196

Essas “áridas messalinas” são, portanto, mulheres impuras, dos “falsos


prazeres”, que preenchem as noites, mas não alimentam os sonhos românticos do
homem. Ressalte-se que as “Messalinas” representam um conjunto de defeitos e de
poderes satânicos, ironizados pelo eu poético, que não sabe se elas são tontas ou vis.
Essa mulher lasciva e imoral também se torna tema do poema “Lúbrica”, no
qual o amante demonstra um desejo ardente, frente à vulgaridade da mulher,
desconstruindo a imagem romântica de um ser frágil, meigo e passivo:

196
VERDE, 1992. p. 155.
109

Teus olhos sensuais


Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,


Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas.197

A mulher despudorada será novamente tematizada no poema “Proh Pudor”,


de Cesário, encenando a possibilidade de realização do amor. No poema “Proh
pudor”, são evocadas imagens de um sensualismo amoroso e de fantasias sexuais
noturnas que, a despeito do título que indica vergonha, tudo acontece, livremente,
sem culpas ou medos:

Todas as noites ela me cingia


Nos braços, com brandura gasalhosa;
Todas as noites eu adormecia,
Sentindo-a desleixada e langorosa.

Todas as noites uma fantasia


Lhe emanava da fonte imaginosa;
Todas as noites tinha uma mania
Aquela concepção vertiginosa.198

O sensualismo e a concepção de amor evocados no poema realizam-se em


moldes modernos, sem a promessa de casamento.199 A mulher não está moldada
conforme as imagens de santa, ela também deseja e demonstra sua opção por viver
um amor livre:

Agora, há quase um mês, modernamente,


Ela tinha um furor dos mais soturnos,
Furor original, impertinente...

197
VERDE, 1992. p. 179.
198
VERDE, 1992. p. 164.
199
Sobre a origem do casamento. Cf. ROUGEMONT, 1965. p. 59.
110

Todas as noites ela, ó sordidez!


Descalçava-me as botas, os coturnos
E fazia-me cócegas nos pés...200

No poema “Impossível”, tal qual em “Proh Pudor”, a mulher não é inatingível


e o espaço do voyeurismo, que foca a mulher distante, cede lugar à plena realização
do amor carnal, sem as convenções sociais do casamento religioso:

Nós podemos viver alegremente,


Sem que venham com fórmulas legais,
Unir as nossas mãos, eternamente,
As mãos sacerdotais.

Eu posso ver teus ombros desnudos,


Palpá-los, contemplar-lhes a brancura,
E até beijar-lhe teus olhos tão ramudos,
Cor d’azeitona escura.

(...)

Já vês, pois, que podemos viver juntos,


Nos mesmos aposentos confortáveis,
Comer dos mesmos bolos e presuntos,
E rir dos miseráveis.
(...)

Posso ser teu amigo até à morte,


E sumamente amigo! Mas por lei,
Ligar a minha sorte à tua sorte,
Eu nunca poderei!

Eu posso amar-te como o Dante amou,


Seguir-te sempre como a luz ao raio,
Mas ir, contigo, à Igreja, isso não vou,
Lá nessa é que eu não caio!201

Nesse poema, o sujeito revela cenas íntimas de uma vida burguesa e,


ironicamente, no desfecho, defende o relacionamento livre, desconstruindo os
paradigmas românticos do amor atrelado ao casamento. A referência à concepção
de amor dantesca, que é aquela que prima por imagens hiperbólicas, justifica o título

200
VERDE, 1992. p. 165.
201
VERDE, 1992. p. 159.
111

do poema, no qual o amante afirma que tudo é possível, inclusive o amor, o


impossível é justamente o casamento.
O amante submisso e desprezado inverte sua posição nos poemas “Lágrimas” e
“Cinismos”, onde entra em cena a mulher desprezada e submissa. A imagem evocada
no poema “Lágrimas” – para seguirmos a trilha da associação da escrita de Cesário com a
pintura – nos remete ao quadro “Arrufos”, do pintor brasileiro Belmiro de Almeida,202
que foi influenciado pelo realismo de Courbet e pintou a vida cotidiana. O quadro
apresenta a cena de uma mulher atirada ao chão, chorando aos pés do homem, que se
encontra no modelo clássico de superioridade masculina, atitude que foi amplamente
propagada no século XIX. Semelhante cena é possível observar no poema de Cesário
Verde, no qual se encena um drama, que é ironizado pelo eu poético:

Ela chorava muito e muito, aos cantos;


Frenética, com gestos descabidos;
Nos cabelos, em ânsias despendidos,
Brilhavam como pérolas os prantos.

Ele, o amante sereno como os santos,


Deitado no sofá, pés aquecidos,
Ao sentir-lhe os soluços consumidos,
Sorria-se cantando alegres cantos.203

Os poemas “Lágrimas” e “Cinismos” criticam a conquista amorosa, a


submissão do homem romântico, o emocionalismo exagerado, ridicularizando sua
importância, por meio de um humor perverso, que rompe com o tom de exaltação da
mulher descrita.
No poema “Cinismos”, o amante, ironicamente, encena um sofrimento para
que a mulher fique enternecida e chore. Porém, a falsa declaração de amor é
atravessada por uma risada sarcástica:

Eu hei-de lhe falar lugubremente


Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.

202
ANEXO II.
203
VERDE, 1992. p. 162.
112

Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,


Chamar-lhe minha cruz e meu calvário,
E ser menos que um Judas empalhado

(...)
Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar enternecida!
E eu hei-de, então, soltar uma risada.204

Nesse poema, Cesário critica os princípios burgueses que fomentam a


crença de que a mulher só é valorizada enquanto não tenha sucumbido à conquista.
O poeta dispara reprimendas sobre o herói romântico, que só existe enquanto
personagem “de papel” construído a partir de um falso discurso, recheado de frases
exageradas. Tal discurso tem o poder de fazer a mulher inatingível sucumbir à
irônica e falsa idolatria, sendo logo menosprezada perversamente, com a risada de
seu admirador.
Além das mulheres tiranas, vulgares ou desprezadas, freqüenta também a
poesia de Cesário Verde a mulher angelical. Essa ambivalência caracteriza as típicas
representações femininas do século XIX, que se afirmam “em torno da oposição de
dois grandes estereótipos clássicos: a pureza e a luxúria, o anjo e o demônio, a
beleza virginal e a beleza destruidora”,205 conforme já afirmamos anteriormente.
A mulher angelical figura na obra de Cesário Verde, na maior parte das vezes,
em poemas de tema campestre, com exceção do texto “A débil”, que aborda o espaço
urbano. Nesse caso, a mulher meiga e frágil atravessa a cidade, mas não pertence
àquele universo, pois é boa e angélica. “A débil”, segundo Joel Serrão, apresenta nexos
com “A uma passante”, de Baudelaire, em sua temática urbana e na pose literária do
narrador, que está sentado num café. Entretanto, suas características são opostas às
da “passante” baudelairiana, pois ela é uma mulher do tipo anjo, enquanto a “passante”
se exibe, balançando o vestido e lançando olhares provocantes no meio da multidão:

Eu, que sou feio, sólido, e leal,


A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre recatada

204
VERDE, 1992. p. 183-184.
205
LIPOVETSKY, 2000. p. 172.
113

Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso,


Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E quando socorreste um miserável,


Eu, que bebia cálices d’absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

(...)
Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, – talvez que o não suspeites! –
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.


Triste eu saí. Doía-me a cabeça;
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.206

A naturalidade com que o narrador se refere às exéquias do monarca diz


respeito à data do luto oficial pela morte de D. Fernando. Tal fato demonstra o
desprezo republicano de Cesário pela monarquia, transformando um acontecimento
oficial em uma cena banal, preferindo observar a passante que, sendo uma
“pombinha tímida e quieta”, no meio do “bando de corvos pretos”, é desejada pelo
observador que a despe em pensamento. A mulher angelical de “A Débil” liga-se às
outras mulheres castas e boas que fuguram em poemas como “Setentrional”, “Flores
velhas”, “Responso” e “Meridional – Cabelos”.
Em “Cabelos”, um dos primeiros poemas de Cesário, o eu poético demonstra
uma concepção de amor romântico e uma verdadeira fixação nos cabelos da musa.
Cabe aqui salientar, que a imagem dos cabelos da mulher amada, associada à idéia
de morte, percorre outros poemas do autor, como é o caso de “Lúbrica”:

Ó vagas de cabelo esparsas longamente,


Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente

206
VERDE, 1992. p. 37-38.
114

E a rude escuridão dum largo e negro mar

(...)
Consente que eu aspire este perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro,
E faz morrer de febre um louco sonhador.

(...)
Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,
Na vossa vastidão posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.207

O poema citado é, segundo Margarido, “consagrado à imensidão dos cabelos,


onde encontramos tanto a lição clássica das sociedades européias, como a presença do
modelo literário que se associa à Bíblia, Shakespeare e Baudelaire”.208 Em “Cabelos”,
Cesário Verde dialoga com “La Chevelure”, poema de Baudelaire que também
apresenta uma relação amorosa expressa por meio dos cabelos da amada, com todo
o seu perfume e sua sensualidade.209 É possível observarmos, no poema de Cesário, a
imagem dos cabelos como “espelho” e “cristal num lago fulgente”. Estes elementos
denotam fluidez e visibilidade por meio dos quais o eu poético poderá se projetar. Os
versos que fecham o poema comparam os cabelos a um manto que asfixia,
revelando um indício de morte no qual erotismo e morte aparecem associados, mais
uma vez na poética de Verde.
No poema “Manhãs brumosas”, o poeta representa a mulher do campo, com
uma carga erótica destilada no verso “Traz um vestido claro a comprimir-lhe os
flancos, / Botões a tiracolo e aplicações vermelhas”. Porém, essa mulher é uma
estrangeira – irlandesa caracterizada sob a insígnia dos “soberbos desmazelos” que
toma uma feição masculina por estar à frente das decisões:

207
VERDE, 1992. p. 36-37.
208
MARGARIDO, 1988. p. 137.
209
O toison, moutonnant jusque sur l’encolure!
O boucles! O parfum chargé de nonchaloir!
Extase! Pour peupler ce soir l’alcôve obscure
Des souvenirs dormant dans cette chevelure,
115

Parece um “rural boy”! Sem brincos nas orelhas,


Traz um vestido claro a comprimir-lhe os flancos,
Botões a tiracolo e aplicações vermelhas;
E à roda, num país de prados e barrancos,
Se as minhas mágoas vão, mansíssimas ovelhas,
Correm os seus desdéns, como vitelos brancos.

E aquela cujo amor me causa alguma pena,


Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhã, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, bucólica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.210

A descrição masculinizada da irlandesa é detalhada em suas características


físicas rústicas: “Alta, escorrida, abstracta, os grossos tornozelos”, o que segundo
Margarido, torna-se indício da “importância da sedutora máscara, mas até a
possibilidade do travesti”,211 na qual está em cena Hermafrodito, o deus bissexual
filho de Hermes e Afrodite, que carrega consigo uma imensa carga de sedução da
mãe e uma grande fibra do pai.212
Portanto, a masculinidade da Irlandesa assemelha-se às características da
vendedora de verduras de “Um bairro moderno”, vista pelo flâneur em suas “grossas
pernas [de] um gigante”. Ela trabalha como um homem, tal qual as varinas, com seus
“troncos varonis”, do poema “O sentimento dum ocidental”. Por meio da vendedora
de verduras, há ainda um deslocamento dos impulsos eróticos para a apreciação da
pobreza da mulher vestida de chita, calçando tamancos e meias azuis de algodão.
Tal qual Baudelaire, Cesário manifestou desejo por mulheres mal vestidas, como
ocorre em “A uma mendiga ruiva”, do poeta francês.
Barthes afirma que “saber” e “sabor” têm a mesma origem etimológica e que a
escrita, como os elementos da cozinha, transforma-se a partir da inserção de novos
ingredientes.213 Também no erotismo de “Num bairro moderno”, os impulsos deslocam-

Je la veux agiter dans l’air comme un mouchoir! (BAUDELAIRE, 1991. p. 76)


210
VERDE, 1992. p. 89.
211
MARGARIDO, 1988. p. 147.
212
BOLEN, 1990. p. 323.
213
BARTHES, s. d. p. 21.
116

se para as verduras, as quais o poeta-andarilho transforma em corpo, denotando um


desejo carnal, que vai sendo, passo a passo associado à arte culinária e à devoração:214
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia
E nuns repolhos seios injectados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,


Negras e unidas, entre verdes folhas,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos – ossos nus, da cor do leite,
E os cachos d’uva – os rosários d’olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante


Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,


Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

E pitoresca e audaz, na sua chita,


O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.215

A transformação do corpo da vendedora de hortaliças em alimento, por meio


de uma “visão de artista”, foi recorrentemente lida por muitos críticos (Hélder
Macedo, Cabral Martins, Elza Miné, André Crabbé), como um diálogo da poesia
verdiana com a pintura maneirista do italiano Giuseppe Arcimboldo – “As quatro
estações: Primavera, outono, verão e inverno” (1563)216 – quadros que retratam os
vegetais conformados a um corpo humano. De forma bizarra, Arcimboldo pinta

214
Sobre as imagens de cozinha na escrita, cf. SOUZA, Ilza Matias. Arte amorosa e devoração literária. 1993. Tese
(Doutorado em Literatura Comparada) – Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte.
215
VERDE, 1992. p. 64-67.
216
ANEXO III.
117

retratos a partir de objetos diversos, corpos alongados, que se contorcem, quebrando


com os tradicionais traços da lei da proporção.
As hortaliças, no poema de Cesário, encontram-se ordenadas a fim de
formar um corpo, fornecendo uma visão pictórica para o leitor, a partir da imagética
de cores. Vilma Arêas destaca que há um jogo de duas metáforas – uma viva (as
faces do fruto) e outra já gasta (as maças do rosto):

Tal jogo metafórico, ao mesmo tempo em que mostra o alimento comum que
sustenta o corpo poético ou, pelo menos, a solidariedade de seus termos,
“lava”, exibe em sua nudez os lugares de onde emergem os personagens e
sua circunstância: a “vida fácil” dos ricos em suas casas apalaçadas, a
rapariga de tamancos, “rota”, o cidadão a caminho do serviço...217

Essa transfiguração do corpo feminino em vegetal,218 prossegue em


“Setentrional”, no qual podemos observar processo semelhante, no caso de uma flor
campestre – a bonina. Nesse poema, a mulher é caracterizada como uma flor
campestre, que foge com o amado da cidade babélica, lugar do vício e da distorção.
Trata-se de uma mulher urbana, de feição burguesa, que está no campo,
oferecendo, assim uma possibilidade de realização do amor:

Talvez já te esqueceste, ó bonina,


Que viveste no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.

Que fugiste comigo na Babel,


Mulher como não há, nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regamos com prantos uma acácia.219

A bonina no poema de Cesário Verde transforma-se em freira e o eu poético


em “gordo frade” para ficar a seu lado, encerrando o poema com tom humorístico,
que quebra a exaltação feminina:

217
ARÊAS, 2001. p. 156.
218
ARÊAS, 2001. p. 158.
219
VERDE, 1992. p. 34.
118

(...)
E foste sepultar-te, ó serafim;
No claustro das fiéis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras resignadas.

E eu passo tão calado como a Morte,


Nesta velha cidade tão sombria,
Chorando aflitamente a minha sorte
E prelibando o cálix da agonia.

E, tristíssima Helena, com verdade,


Se pudera na terra achar suplício,
Eu também me faria gordo frade
E cobriria a carne de cilícios.220

Vale ressaltar que o bucolismo foi um tema bastante trabalhado na literatura


desde Teócrito, o qual relembra a simplicidade do campo desde sua mocidade na
Sicília, por meio da perspectiva da artificialidade urbana de Alexandria. Segundo
Hélder Macedo, o tema pastoril foi sofrendo mutações ao longo do tempo, mas
apresenta sempre uma percepção urbana do campo:

É uma literatura sobre a cidade cujo significante é o campo; uma literatura sobre
o presente cuja matéria é o passado; uma literatura crítica cuja expressão é o
louvor. O que dificilmente poderá ser é uma literatura do campo para o campo, já
que o campo que louva só existe como antinomia da cidade que critica.221

A mulher identificada como a flor campestre – a bonina – apresenta nexos


com o poema medieval “Le Roman en Rose”, de Guillaume de Lorris, no qual a dama
a quem o poeta adora aparece na figura de um botão de rosa. Em 1864, o pintor
inglês Dante Gabriel222 pintou uma representação desse poema, encenando a
imagem da mulher mesclada à flor e o enamorado em posição submissa à dama.
O idílio amoroso de “Setentrional” prossegue no campo, em um movimento
de memória, do passado entrelaçado com o presente, tendo como pano de fundo
todos os elementos caros a esse ambiente: rouxinóis, trigais, folhagens etc.

220
VERDE, 1992. p. 36.
221
MACEDO, 1988. p. 21.
222
ANEXO IV.
119

Entretanto, a lembrança da paisagem bucólica é atravessada pelo tempo presente,


quando o casal já não está mais no campo:

E eu passo, tão calado como a Morte,


Nesta velha cidade tão sombria,
Chorando aflitamente a minha sorte
prelibando o cálix da agonia.223

Em “Flores velhas”, semelhantemente ao poema “Setentrional”, há um


movimento de memória do poeta, que relembra o amor passado no campo com a
etérea e “pálida Clarisse”. O desejo amoroso inocente, repleto de frescor do campo
é, segundo Lúcia Castello Branco, a manifestação de um “erotismo desprovido de
ânsias, mas feérico, sinestésico (...)”,224 cuja realização se efetiva apenas no plano
espiritual e decorativo sugerido pela paisagem campestre:

Em tudo pude ver ainda a tua imagem,


A imagem que inspirava os castos madrigais;
E as virações, o rio, os astros, a paisagem,
Traziam-me à memória idílios mortais.

Diziam-me que tu, no flórido passado,


Detinhas sobre mim, ao pé daquelas rosas,
Aquele teu olhar moroso e delicado,
Que fala de langor e d’emoções mimosas;

E, ó pálida Clarisse, ó alma ardente e pura,


Que não me desgostou nem uma vez sequer,
Eu não sabia haurir do cálix da ventura
O néctar que nos vem dos mimos da mulher!

(...)
Lembrei-me muito, muito, ó símbolo das santas,
Do tempo em que eu soltava as notas inspiradas,
E sob aquele céu e sobre aquelas plantas
Bebemos o elixir das tardes perfumadas.

E como na minha alma a luz era uma aurora,


A aragem ao passar parece que me trouxe
O som da tua voz, metálica, sonora,

223
VERDE, 1992. p. 36.
224
BRANCO, 1985. p. 76-79.
120

E o teu perfume forte, o teu perfume doce.225

Eros, portanto, manifesta-se na figura da “pálida Clarisse”, de feição


espectral, associada a um idílio amoroso que poderá resultar na imagem da morte,
tópico de temática romântica. Helder Macedo226 destaca que há, nesse poema, além
de fantasias mórbidas, uma ironia que o percorre com a exposição de duas mortes –
a morte da amada e a cidade como signo da morte:

E quando m’envolveu a noite, a noite fria,


Eu trouxe do jardim duas saudades roxas,
E vim a meditar em quem me cerraria,
Depois de eu me morrer, as pálpebras já frouxas.
(...)
Portanto, eu, que não cedo às atracções do gozo,
Sem custo hei-de deixar as mágoas deste mundo,
E, ó pálida mulher, de longo olhar piedoso,
Em breve te olharei calado e moribundo.

Mas quero só fugir das coisas e dos seres,


Só quero abandonar a vida triste e má
Na véspera do dia em que também morreres,
Morreres de pesar, por eu não viver já!
(...)
E não virás, chorosa, aos rústicos tapetes
Com lágrimas regar as plantações ruins;
E esperarão por ti, naqueles alegretes,
As dálias a chorar nos braços dos jasmins!227

A presença de Eros, deslocado para uma multiplicidade de lugares que não


diretamente o corpo feminino, mas que se associa a ele, aparece também no poema
“Provincianas”, de temática campestre, no qual Cesário está a ler a paisagem como
um enorme corpo feminino, que mostra a explosão do amor e da saúde, qualidades
do mundo campestre. Nesse caso, os relevos transformam-se em seios e a
paisagem dourada conforma-se à imagem feminina :

225
VERDE, 1992. p. 76-77.
226
MACEDO, 1977. p. 66.
227
VERDE, 1992. p. 80-81.
121

Olá! Bons dias! Em março,


Que mocetona e que jovem
A Terra! Que amor esparso
Corre os trigos, que se movem
Às vagas dum verde garço!

(...)
Toda a paisagem se doura,
Tímida ainda, que fresca!
Bela mulher, sim senhora,
Nesta manhã pitoresca,
Primaveril, criadora!

Cresce o relevo dos montes,


Como seios ofegantes,
Murmuram como umas fontes
Os rios que dias antes
Bramiam galgando pontes.228

Ressalte-se que os seios femininos são recorrentemente tematizados no


erotismo de Cesário, como no poema “De tarde”, que apresenta um campo, sob uma
perspectiva urbana, pois trata-se de um pic-nic. Há, ainda, outros elementos do
poema que nos fornecem indícios de uma visão urbana sobre o campo, como a
própria indumentária feminina de conteúdo erótico, com rendas e decotes. Esse
campo corresponde ao locus do amor, da beleza e da juventude, conforme atesta
Alfredo Margarido, ao sublinhar “a importância da submissão dominical do campo ao
apetite de exotismo que percorre os tecidos das pequenas e domésticas paixões
lisboetas”.229 Tal afirmação sugere também um diálogo com a pintura “Um domingo
de verão na Ilha de Jatte”230 (1884-1886), no qual Georges Seurat (1859-1891)
retrata mulheres burguesas a passeio em um ambiente bucólico. No quadro, o pintor
cobriu a tela com pequenos pontos de cores não-misturadas, dando ênfase à cor e à
luz. Em Cesário Verde, podemos observar a temática do passeio burguês, o pic-nic,
no qual incide um jogo de luz e de cores variadas:

228
VERDE, 1992. p. 151-152.
229
MARGARIDO, 1988. p. 150.
230
ANEXO V.
122

Naquele pic-nic de burguesas,


Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo caso dava uma aquarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,


Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.231

Utilizando elementos visuais, Cesário compõe uma cena minuciosa através


de uma aquarela, onde salta à leitura a estética impressionista do quadro “Almoço na
relva”,232 (1863) de Manet (1832-1883), sugerindo também o erotismo dos seios da
moça, que é descrita colhendo ramalhete vermelho de papoulas. Manet declarou que
o verdadeiro tema de seu quadro era a luz e não, a vida cotidiana.
Em Cesário, encontramos além do jogo de luz e cor, a explosão de Eros, por
meio da carga vermelha dos seios que saem da renda e se associam ao ramalhete
de papoulas. A cena sugere um torpor erótico, especialmente se considerarmos que
o ópio extraído da papoula foi um dos elementos decantados por Baudelaire, como
aquele que levava ao êxtase e a uma transposição de fronteiras:

Ó justo, sutil e poderoso ópio! Tu que ao coração do pobre como do rico, para
as feridas que não cicatrizarão jamais e para as angústias que induzem o
espírito à rebelião, levas um bálsamo suavizante: eloqüente ópio! Tu que, pela
tua poderosa retórica, desarmas as resoluções da cólera e que, por uma noite,
restituis ao homem culpado as esperanças da juventude e as suas antigas mãos
puras de sangue; que ao homem orgulhoso dás um esquecimento passageiro.233

Cesário prossegue com Eros, através de rendas, papoulas e seios, sendo


esses últimos associados a “duas rolas” e fornecendo indícios de mais um elemento
da paixão, que é o pombo e seus arrulhos:

Todo o púrpuro, a sair da renda


Dos teus seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda

231
VERDE, 1992. p. 112.
232
ANEXO VI.
233
BAUDELAIRE, 1995. p. 400.
123

O ramalhete rubro das papoulas.234

Como se pôde observar no poema citado, há uma interação entre natureza,


sensualidade e busca do prazer, veiculados por elementos cromáticos, que criam
motivos eróticos e têm forte apelo sinestésico para o leitor.
Todas essas considerações, feitas sobre perfis femininos inflados de
erotismo na obra de Cesário Verde, apontam como a presença de Eros se mostra de
diversas formas: via deslocamentos do corpo feminino para a natureza, por meio de
distanciamento do sujeito poético travestido na figura do flâneur frente à mulher fatal,
ou mesmo na focalização das mulheres campestre e vulgar.
Ressalte-se que a expressão do erotismo, no tempo de Cesário, foi encarada
como uma “perversão”, o que pôde ser visto na leitura que o crítico português Ramalho
Ortigão fez dos versos de Cesário Verde. O crítico apontou, no poeta português e em
Baudelaire, o desejo e o erotismo como sinônimos de distorção. Lúcia Castello Branco
destaca que os “deslocamentos do erotismo através de um visualismo minucioso,
que se detinha na composição de cenários”235 foi, sem dúvida, uma forma de
descortinar a hipocrisia da sociedade e afirmar a expressão e a expansão dos impulsos
eróticos, o que ressalta a importância vital da atividade sexual e do desejo, na vida
humana, não só para o século XIX, mas para qualquer época.

234
VERDE, 1992. p. 113.
235
BRANCO, 1985. p. 114-115.
125

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como propósito empreender uma leitura do texto de Cesário
Verde, como representativo do século XIX, no cenário das letras portuguesas. Pelo
seu intenso diálogo com Charles Baudelaire, Cesário demonstrou sintonia com o
fazer poético moderno, lançando mão de uma apropriação de temas da modernidade
baudelairiana, no tocante à visão da urbe infernal, ao erotismo difuso, à descrição
dos variados perfis femininos e ao projeto crítico-literário de sua poesia, pois
“Cesário é aquele que à beira d’água, mas voltado para a terra, vê a cidade que se
agiganta, se moderniza; Cesário olha para entender o seu tempo.”1
Tendo essa perspectiva em vista e com ela iluminando a obra verdiana,
pudemos perceber que aceitar a influência de Baudelaire em Cesário é admitir que
ambos os poetas viveram problemas comuns em cenários diferentes, numa época de
urbanização acelerada. Embora atraídos pela cidade, eles revelaram profundos
sentimentos de tédio e fascinação, diante da urbe, registrando em suas obras, com
arguta sensibilidade, como o progresso se alimentou da degradação humana e criou
uma realidade cruel e demoníaca.
Mesmo sem ter participado de grupos literários ou políticos, Cesário Verde
não foi um literato alheio às questões sociais de seu tempo: ele trouxe para a cena
poética um lirismo social inquestionavelmente novo, pela sua documentação do
cotidiano. Contrapondo-se à poesia de cunho filosófico de um Antero de Quental,
Cesário foi o autor da geração realista que introduziu definitivamente o tom coloquial
urbano na poesia, desprezando a linguagem convencional. Ele poetizou uma época
de progresso material, associando-a à noção de decadência, tal qual Baudelaire.
Ambos os poetas tomaram como matéria poética a realidade crua e por isso,
Cesário, sem dúvida, tem uma relevante importância para a história da literatura
portuguesa, assim como o poeta francês em relação à história da literatura francesa.
Inscrever Cesário Verde no panorama literário português da década de 70 do
século XIX, no que se refere às conquistas da modernidade, sem dúvida é constatar

1
SILVEIRA, 1992. p. 125.
126

que o poeta configurou uma voz disssonante e marginal. E, mesmo não sendo
reconhecido em sua época, ele sintonizou a poesia portuguesa às modernas
correntes literárias européias e projetou seu diálogo mais amplo com a poesia do
século XX.
Como poeta da multiplicidade, por sua capacidade de ver o mundo sob
vários ângulos e por sua reformulação da convenção poética, Cesário prenunciou o
grande poeta Fernando Pessoa e seus heterônimos. Tal qual o flâneur baudelairiano,
Cesário recolheu elementos diversificados, criando uma poesia múltipla que se
projetou no tempo, originando um “caleidoscópio crítico”. Sua obra já suscitou
sucessivos olhares e leituras que, não se excluindo mutuamente, mostram como o
texto verdiano foi uma conquista da modernidade, ao se tornar um espaço de
reflexão sobre as questões sociais e um meio de reinvenção da linguagem. Cesário
foi além da “quimera azul de transmigrar”, construindo sua própria modernidade: seu
desejo de um “livro que [exacerbasse]” a arte de seu tempo não se reduziu a um
simples sonho seu, mas constituiu uma leitura possível nos séculos XX e XXI,
criando intertextos e dicções em tempos e literaturas posteriores.
127

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135

ANEXOS
136

ANEXO I
137

ANEXO II
138

ANEXO III

PRIMAVERA VERÃO

OUTONO INVERNO
139

ANEXO IV

LE ROMAN DE LA ROSE
140

ANEXO V
141

ANEXO VI

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