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Campinas – SP
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP
Maio/2003
3
______________________________________
Profa. Dra. Vilma Sant’Anna Arêas
Orientadora
_____________________________________
Profa. Dra. Laura Beatriz Fonseca de Almeida
(UNESP/Araraquara)
_____________________________________
Prof. Dr. Lauro Belchior Mendes
(FALE/UFMG)
_____________________________________
Prof. Dr. Haquira Osakabe
(IEL/UNICAMP)
_____________________________________
Prof. Dr. Alexandre Soares Carneiro
(IEL/UNICAMP)
____________________________________
Profa. Dra. Maria Betânia Amoroso
(IEL/UNICAMP) - Suplente
_____________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Ornellas Berriel
(IEL/UNICAMP) – Suplente
____________________________________
Prof. Dr. Márcio Seligmann-Silva
Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Teoria e História Literárias –
Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP
5
A minha orientadora,
Profa. Dra. Vilma Sant’Anna Arêas,
que me ensinou a viver com arte,
o que redobrou minha admiração
por sua trajetória.
6
AGRADECIMENTOS
RESUMO
seu diálogo com a obra de Charles Baudelaire, no que se refere aos temas da
ABSTRACT
This thesis studies the work of the portuguese writer Cesário Verde, with
special focus on his dialog with Charles Baudelaire’s poetry, concerning modernity
themes such as: the city, the workers, the social transformation and the diffuse
eroticism projected on the elegant woman, on the ugly and marginal woman or even on
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................... 11
INTRODUÇÃO
1
BROCA, 1993. p. 55.
2
SILVEIRA, 1992. p. 125.
13
3
ARÊAS, 1982. p. 134.
14
Uma poesia minha, recente, publicada numa folha bem impressa, limpa,
comemorativa de Camões, não obteve um olhar, um sorriso, um desdém, uma
observação. Ninguém escreveu, ninguém falou, nem um noticiário, nem uma
conversa comigo; ninguém disse bem; ninguém disse mal!... Literariamente
parece que Cesário Verde não existe.4
4
VERDE, apud. SILVEIRA, 1986. p. 17.
5
ARÊAS, 1986. p. 2.
6
Ressalte-se que o poema “Contrariedades” apresenta um intenso diálogo com “Uma vítima”, poema de Barros de
Seixas (1853-1881), autor do livro Cantos Modernos (Lisboa, 1879). Nesse poema, o autor tematiza o drama de uma
costureira tuberculosa que, conforme é anunciado no título, é uma vítima da sociedade injusta.
7
TAINE, 1913. Apud BRAYNER, 1979. p. 148.
8
VERDE, 1992. p. 56.
15
9
A presença de Zaccone no poema, segundo João Pinto de Figueiredo, explica-se pelo fato de Cesário Verde
conhecer sua obra através da Loja de Carrilho Videira, o editor do Zaccone, romancista popular e autor de obras
como A Prisão Número 7 e Os Grilhetas. FIGUEIREDO, 1981. p. 93.
10
VERDE, 1992. p. 56-57.
11
BENJAMIN, 1991. p. 58.
16
(...)
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Ouço-a a cantarolar uma canção plangente
Duma operereta nova!
(...)
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minha obras...
17
12
VERDE, 1992. p. 57-58.
13
A chamada “Geração de 70” congregou, entre 1971 e 1887, um grupo de intelectuais formados em Coimbra, que
se reuniram em torno das famosas “Conferências do Casino Lisbonense”. Tais discussões tinham por objetivo
colocar Portugal em sintonia com a Europa moderna, seguindo os preceitos filosófico-científicos de pensadores,
como Taine, Proudhon, Darwin, Spencer, Hegel e outros, com o intuito de promover uma renovação na cultura, na
sociedade, atacando três instituições principais: a monarquia, o clero e a burguesia.
14
Apud MACEDO, 1975. p. 49.
18
15
SALGADO JÚNIOR, 1946. p. 391.
16
SERRÃO, 1964. p. 20.
19
CAPÍTULO I
CESÁRIO VERDE
NA ENCRUZILHADA DO SÉCULO XIX
Quanto à poesia:
Um facto curioso – A rápida e extraordinária vulgarização que acharam
nos poetas portugueses os processos literários e os ideais artísticos de
Charles Baudelaire!
Averigua-se que o realismo baudelaireano está fazendo mais numerosas
e mais lamentáveis vítimas do que o velho romantismo de Byron, de Lamartine
e de Musset.2
1
José Duarte Ramalho Ortigão (1836-1915) foi um intelectual participante da Questão Coimbrã, juntamente com
Eça de Queirós. Em 1871 (mesmo ano das Conferências do Casino Lisbonense), Ortigão iniciou a publicação do
periódico As Farpas, que ficou a cargo de Eça de Queirós, sendo que somente no período de 1872 a 1882, Ramalho
Ortigão assumiu a redação do mesmo. Ortigão Ingressou no Grupo da “Geração de 70” e viveu do jornalismo e de
alguns empregos públicos. De suas viagens à Holanda e à Inglaterra, escreveu dois livros que transitam entre o
jornalismo e o diário íntimo: A Holanda (1885) e John Bull e a sua ilha (1887).
2
ORTIGÃO, s. d. p. 271.
3
SABINO, 2001. p. 580.
22
4
CANDIDO, 1987. p. 38.
5
FRIEDRICH, 1978. p. 45.
6
ORTIGÃO, s. d. p. 271.
23
7
ORTIGÃO, s. d. p. 271.
8
GOMES, 1989. p. 20.
9
SENNET, 2001. p. 95.
10
SENNET, 2001. p. 95.
24
(...) O poeta abusa um pouco dos adornos com que veste a sua dama, já
envolvendo-a em sedas multicores, o que é de mau gosto inadmissível, já
fazendo-a portadora dos esplendores de Versalhes...
11
ORTIGÃO, s. d. p. 272.
12
ORTIGÃO, s. d. p. 272-273.
13
Ei-la! Como vai bela! Os esplendores (...) E eu vou acompanhando-a, corcovado,
Do lúbrico Versalhes do Rei-Sol No trottoir, como um doido, em convulsões,
Aumenta-os como retoques sedutores. Febril, de colarinho amarrotado,
É como o refulgir dum arrebol Desejando o lugar de seus truões,
Em sedas multicores. Sinistro e mal trajado.
Deita-se com langor no azul celeste E daria, contente e voluntário,
Do seu landau forrrado de cetim; A minha independência e o meu porvir,
E os seus negros corcéis que a espuma veste, Para ser, eu poeta solitário,
Sobem a trote a rua do Alecrim, Para ser, ó princesa, sem sorrir,
Velozes como a peste. Teu pobre trintanário. (...)
25
(...) Depois tem um landau forrado de cetim “azul celeste”, coisa que ninguém
nunca teve e que a ninguém se permite (...). De sorte que destes versos salva-
se unicamente uma coisa verdadeira e sensata, que é a Rua do Alecrim.14
Temos de convir que esse comentário tem muito de uma visão sarcástica.
Para o crítico, as idéias estariam deslocadas pois o boulevard e a moda encontravam-
se descentrados, deslocados de seu lugar de origem – a Paris de Baudelaire. Na sua
transposição “inadequada”, a avenida (o boulevard) era a Rua do Alecrim e o atelier
de costura era o da Travessa de Santa Justa, o que falseava versos e contexto.
Mas não é isso o que acontece. Cesário Verde sintoniza a poesia portuguesa
com a modernidade européia e rompe com a tradição, não por somente absorver a
Paris de Baudelaire, (o boulevard, a dama fria e distante), mas por usar esses
elementos como lente rearticuladora do perfil português e de uma nova convenção
poética, o que é visível em todos os versos.
A crítica de Ortigão é irônica face ao colorido da dama e ao “landau azul-
celeste”, onde ela estava. Na visão do crítico, esses são elementos inverossímeis;
porém, a nosso ver, dentro da poesia de Cesário, tais aspectos exercem as funções
de demarcar a classe social de quem os usava e, ao mesmo tempo, pelo
deslocamento e pela ausência, situar Lisboa em outro lugar. Inteligente construção
pelo avesso, como vemos.
Quanto ao lugar do poeta, Ortigão não leva em consideração o aspecto
irônico que permeia a cena urbana de um amante desprezado, que se curva diante
de uma mulher e realiza uma encenação. Trata-se de um fingimento, no qual o “eu”
utiliza uma máscara assentada na figura do homem desprezado, mero personagem,
fato que marca a “despersonalização do poeta” como uma característica da lírica
moderna,15 lugar da expressão de várias vozes, que substituem a voz única e
direcionada do poeta clássico.
Para Ortigão, entretanto, um poeta deveria apresentar uma “postura moral
correta” e não se colocar na posição de amante humilhado, acometido de febres e
14
ORTIGÃO, s. d. p. 273.
15
GOMES, 1989. p. 20.
26
Como se pode ver, Ortigão recoloca em cena o “poeta perigoso”, aquele que
não é aceito na República de Platão, pois não produz uma escrita útil e consagradora
dos valores institucionalizados da pátria, além de permitir a si mesmo extravazar
sentimentos armazenados no inconsciente, sem centrar-se na ideologia de toda a
comunidade.18
Na visão de Ortigão, a presença de Baudelaire em Cesário Verde estava
associada ao niilismo, à desordem sexual, ao charco e à lama, o que representou um
tempero forte demais para a crítica portuguesa da época:
Eis aqui está, finalmente, a que uma fingida perversão leva um homem, talvez
digno e brioso: a afirmar de si mesmo, como a fina flor predilecta do ideal, que
quer ser lacaio!
Fazemos à dignidade deste poeta a justiça de acreditar que quebraria a sua
bengala nas costas de quem lhe atribuísse, em prosa, as maneiras, a toilette,
os pensamentos e os instintos de que ele se gloria em verso.
Tal é a deplorável influência do crevetismo na poesia moderna representada
na obra de um dos seus cultores, o Sr. Cesário Verde, ao qual sinceramente
desejamos que estas modestas observações contribuam para que continue a
ilustrar o seu nome tornando-se cada vez menos verde e mais Cesário!19
16
ORTIGÃO, s. d. p. 274.
17
ORTIGÃO, s. d. p. 274.
18
SANT’ANNA. 1979. p. 68-69.
19
ORTIGÃO, s. d. p. 274-275.
20
OEHLER, 1997. p. 14.
27
21
Programa das Conferências Democráticas. Apud MACHADO, 1998. p. 114.
22
MACHADO, 1998. p. 21-22.
28
Nos anos 20, o poeta já ocupava espaço no meio universitário, pois José
25
Régio, em 1925, defendeu uma tese de licenciatura, intitulada “As correntes e as
individualidades na moderna poesia portuguesa”, na qual reconhece a modernidade
da poética de Cesário, inclusive afirmando ser ele “o nosso mais representativo
poeta realista”, pois
23
RODRIGUES, 1998. p. 100-101.
24
BARROS, 1944. p. 113.
25
RODRIGUES, 1998.p. 100.
29
26
RÉGIO, 1941. p. 46-47.
27
SIMÕES, 1971. p. 91.
30
Aventamos que tal composição fosse, à data, pouco freqüente, se não inédita,
na poesia portuguesa; e mais sugerimos: que o modelo o tivesse Cesário ido
buscar a Baudelaire. De fato, em ‘Les Fleurs du mal’, cinco poemas
apresentam esse desenho estrófico: Le Balcon, Reversibilité, Moesta et
Errabunda, Lesbos e L’irreparable. (este último com uma variante que consiste
na substituição, no 2º e no 4º versos, dos alexandrinos por octossílabos).28
28
MOURÃO-FERREIRA, 1966. p. 68.
29
COELHO, 1961. p. 191. O autor cita alguns poemas de Cesário que estabelecem um claro diálogo com os versos
baudelairianos, como “Num Bairro Moderno” (“La Gèante”); “O Sentimento dum Ocidental” (“Le Crepuscule du soir”)
e “Cabelos”(“La Chevelure”).
30
SENA, 1981. p. 161.
31
FIGUEIREDO, 1986. p. 69.
31
32
CHANDLER, 1990. p. 7-8.
33
MENDES, 1987. p. 22-23.
34
E fico descansada, à noite, quando cismo, O enleio, a simpatia e toda a comoção,
Que tentam proscrever a sensibilidade, Tu mostras no sorriso ascético e perfeito
E querem denegrir o cândido lirismo, E tens o edificante e doce amor cristão
Porque o teu rosto exprime uma serenidade, Num trono de bondade, a iluminar-te o peito,
Que vem tranqüilizar-me, à noite quando cismo! Que é toda melodia e toda a comoção.
(VERDE, 1992. p. 190-191)
32
relevante, pois, o poeta demonstra um lirismo tradicional, sob uma forma estrófica
tomada de Baudelaire:
(...) Nenhum artista tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a
apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os
poetas mortos; não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo para contraste e
comparação entre os mortos. Entendo isto como um princípio de estética, não
apenas histórico, mas no sentido crítico.37
35
MOURÃO-FERREIRA, 1966. p. 98.
36
La nuit s’épaississait ainsi qu’une cloison,
Et mês yeux dans le noir devainent tes brunelles,
Et je buvais ton souffle, ô douceur! Ô poison!
Et tes pieds s’endormaient dans mês mains fraternelles
La nuit s’épaississait ainsi qu’une cloison.
Je sais l’art d’évouquer les minutes heureuses,
Et revis mon passé blotti dans te genoux.
Car à quoi bom chercher tes beautés langoureuses,
Ailleurs qu’en ton cher corps et qu’en ton coeur si doux?
Je sais l’art d’evouquer les minutes heureuses! (BAUDELAIRE, 1991. p. 85)
37
ELIOT, 1989. p. 39.
33
38
BENJAMIN, 1991. p. 55-56.
39
SARAIVA, 1997. p. 137.
40
SARAIVA e LOPES, 1996. p. 926.
34
41
RECKERT, 1987. p. 30.
42
MARTINS, 1988. p. 33-34 e 79.
43
MARGARIDO, 1988. p. 135-148.
44
MACEDO, 1975. p. 96.
35
45
FISCHER, 1987. p. 82-89.
46
CASTRO, 1990. p. 40.
47
MACEDO, 1988. p. 9.
36
48
GOMES, 1989. p. 141.
37
CAPÍTULO II
ROTAS DA MODERNIDADE
Digo
Lisboa
Quando atravesso – vinda do sul – o rio
E a cidade a que chego abre-se como se
do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
em seu corpo amontoado de colinas –
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
(...)
E em seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
Digo para ver.
(Sofia de Mello Breyner Andresen.
Poema inaugural do livro Navegações.)
1
BERMAN, 1996. p. 16.
38
2
LEFÈBVRE, 1969. p. 211.
3
LEFÈBVRE, 1969. p. 212.
4
BERMAN, 1996. p. 17.
39
5
LEFÈBVRE, 1969. p. 200-201.
6
LEFÈBVRE, 1969. p. 277.
40
(...) Cronologicamente ele antecede o movimento em muitos anos (...). Assim, pode
ser considerado apenas um “precursor”, termo que dificilmente se ajusta a um
homem dotado de tal poder crítico e tão original sensibilidade que fazem dele
um dos maiores críticos do século. Sua principal realização crítica foi na arte,
mas ele era, embora não um teórico sistemático, um importante esteta geral e
um crítico literário distinto. Todavia, nem a estética nem a crítica de Baudelaire
atingem o mesmo grau de originalidade e sensibilidade que fez dele o magnus
parens da poesia moderna.11
7
OEHLER, 1997. p. 31.
8
OEHLER, 1997. p. 17.
9
LEFÈBVRE, 1969. p. 87.
10
COMPAGNON, 1996. p. 23-24.
11
WELLEK, 1972. p. 414.
41
12
COELHO, 1988. p. 13.
13
BAUDELAIRE, 1995. p. 859.
14
BAUDELAIRE, 1995. p. 859.
15
BENJAMIN, 1991. p. 39.
42
(...) Admira a eterna beleza e a espantosa vida nas capitais (...) Contempla as
paisagens da cidade grande, paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou
fustigadas pelos sopros do sol. Admira as belas carruagens, os garbosos
cavalos, a limpeza reluzente dos lacaios, a destreza dos criados, o andar das
mulheres ondulosas, as belas crianças, felizes por viverem e estarem bem
vestidas, resumindo, a vida universal.
Mas a noite chegou. É a hora estranha e ambígua em que se fecham
as cortinas do céu e se iluminam as cidades. (...) C. G. será o último a partir
de qualquer lugar onde possa resplandecer a luz, ressoar a poesia, fervilhar a
vida, vibrar a música. (...) Agora, à hora em que os outros estão dormindo, ele
está curvado sobre sua mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo
olhar que há pouco dirigia às coisas, lutando com seu lápis, sua pena, seu
pincel, lançando a água do copo até o teto, limpando a pena na camisa,
apressando (...) como se temesse que as imagens lhe escapassem, belicoso,
mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo. E as coisas renascem no papel,
naturais e, mais do que naturais, belas; mais do que belas, singulares (...).
Todos os materiais atravancados na memória classificam-se, ordenam-se,
harmonizam-se (...) que é o resultado de uma percepção aguda, mágica...16
16
BAUDELAIRE, 1995. p. 858-859.
17
BAUDELAIRE, 1995. p. 881.
43
A arte é um bem infinitamente precioso, uma bebida que refresca e reconforta, que
reconduz o estômago e o espírito ao equilíbrio natural do ideal.
Vós percebeis sua utilidade, ó burgueses – legisladores ou comerciantes –,
quando a sétima ou a oitava hora que soa, indigna vossa cabeça fatigada para
as brasas da lareira e as orelhas da poltrona. Um desejo mais ardente, uma
imaginação mais ativa, vos descansariam então do trabalho quotidiano.18
Essa desilusão do artista com a burguesia faz com que este cobre as
promessas não cumpridas e se volte contra a classe que o patrocina, discussão esta
que passou a ser uma constante na arte e na literatura de artistas que demonstraram
um comprometimento social e revolucionário.21
Outro aspecto discutido por Baudelaire, em “O salão de 1846”, é o estudo
crítico sobre a obra de Delacroix, a qual o poeta classifica como “verdadeiro sinal de
uma revolução”, pois o artista pinta figuras desoladas, mulheres doentes e feias, mas
cheias de uma beleza interior melancólica. Essa melancolia representa para Baudelaire
uma qualidade retratada pelo “verdadeiro pintor do século XIX”, justamente por
expressar os temas que tanto o fascinaram, conforme ele mesmo atesta:
18
BAUDELAIRE, 1995. p. 671.
19
CURY, 1986. p. 136.
20
BAUDELAIRE, 1995. p. 672.
21
OEHLER, 1997. p. 17.
44
Dessa forma, o poeta conclama todos a perceberem que cada época tem
seus temas e sua beleza próprios e que, para se viver a modernidade, é preciso ter
uma constituição heróica.
No artigo “A Exposição Universal de 1855”, Baudelaire expressa idéias
importantes que regeram a modernidade: o progresso material, a crítica e o deslocamento
da vitalidade. Isso pode ser observado nos próprios subtítulos do artigo: “Método de
crítica”, “Da idéia moderna de Progresso”, “Aplicação às Belas-Artes”, “Deslocamento da
vitalidade”. O poeta constata que a modernidade foi um processo doloroso e dissonante
dentro de sua arte, pois ao mesmo tempo em que ele encampou a vida moderna em
sua obra, a partir dos novos parâmetros de uma arte moderna, também se sentiu
angustiado ao fazer a crítica à modernidade, pois ele estava inserido no sistema
moderno e consciente do caráter trágico dessa mesma modernidade. Sobre isso,
Antoine Compagnon comenta em seu livro “Os Cinco Paradoxos da Modernidade”:
Baudelaire não foi daqueles que acreditaram no progresso: ele foi condenado
à modernidade. O paradoxo mais íntimo da modernidade é o fato de que a
paixão do presente, à qual ela se identifica, deva também ser compreendida
como calvário.24
22
BAUDELAIRE, 1995. p. 690.
23
BAUDELAIRE, 1995. p. 730.
24
COMPAGNON, 1996. p. 30.
45
Pergunte a qualquer bom francês, que lê diariamente o seu jornal no seu café,
o que entende por progresso, e ele responderá que é o vapor, a eletricidade e
a iluminação a gás, milagres desconhecidos dos romanos, e que essas
descobertas evidenciam plenamente a nossa superioridade em relação aos
antigos (...). [Entretanto] esses cérebros infelizes se cobriram de trevas e neles
estranhamente se confundiram as coisas da ordem material e da espiritual. O
pobre homem está de tal forma americanizado por seus filósofos zoocratas e
industriais que perdeu a noção das diferenças que caracterizam os fenômenos
do mundo físico e do mundo moral, do natural e do sobrenatural.26
25
BAUDELAIRE, 1995. p. 675.
26
BAUDELAIRE, 1995. p. 775.
27
COMPAGNON, 1996. p. 30
46
28
FRIEDRICH, 1978. p. 44.
29
GOMES, 1989. p. 13.
30
PRAZ, 1996. p. 19 e 45.
31
BARBOSA, 1986. p. 22.
32
GOMES, 1989. p. 17.
47
estranha para os próprios parisienses [que] não se sentem mais em casa nela.
Começa-se a tomar consciência do caráter desumano da grande metrópole”.34
Ressalte-se que as reformas de Paris tiveram início em 1854 e Baudelaire
publicou As Flores do mal, em 1857, reunindo poemas escritos desde 1841. Podemos
perceber que há nos versos baudelairianos, um entrecruzamento da Paris antiga e a
das reformas, pois nos poemas encenam-se ambas as cidades e pode-se ver no
emblemático poema “Le Cygne”, o impacto das reformas haussmaniannas na vida
urbana.
A reforma urbana parisiense representou também a demolição da memória e
da cultura locais. A literatura retratou essa nova feição, pois, nela, a cidade tornou-se
“lugar de memória”, registro de criação, tanto pelo que ela conservou, tanto pelo que
ela destruiu. Baudelaire sentiu o impacto dos novos contornos das ruas, como se
sofresse uma desilusão amorosa, conforme nos mostra no poema “Le Cygne”:
33
Sobre o urbanismo de Haussmann, cf. BENÉVOLO, 1976. p. 85-147.
34
BENJAMIN, 1991. p. 41-42.
35
BAUDELAIRE, 1991. p. 130.
48
A mutação no espaço urbano faz com que o literato tente recuperar pela
memória a velha cidade, que se transforma em cidade-subterrânea, abafada por um
novo desenho urbano monumental, mas que é reescrita, a partir de reminiscências
de tempos e lugares que não mais existem. Alude-se, assim, à “ruína” da história,
sob uma forma alegórica:
Je ne vois qu’en esprit tout ce camp de baraques
Ces tas de chapiteaux ébauchés et de fûts,
Les herbes, les gros blocs verdis par l’eau des flaques,
Et, brillant aux carreaux, le bric-à brac confus.
36
BARBOSA, 1986. p. 56.
49
37
BAUDELAIRE, 1991. p. 130-131.
38
BENJAMIN, 1991. p. 106. Vale ressaltar que o livro de Verhaeren inverte a negatividade de Baudelaire, assim
como toda a poesia sobre a grande cidade depois de Baudelaire.
39
Id. Ibidem.
40
Id. Ibidem.
41
BAUDELAIRE, 1991. p. 127.
42
BENJAMIN, 1991. p. 119.
50
43
BENJAMIN, 1991. p. 59.
44
BAUDELAIRE, 1995. p. 333.
45
Cf. WILSON, 1993. p. 182-183.
46
BENJAMIN, 1991. p. 72.
47
BAUDELAIRE. Apud. PRAZ, 1996. p. 142.
51
48
BENJAMIN, 1991. p. 114.
49
BAUDELAIRE, 1995. p. 503.
50
FOUCAULT, 1997. p. 177.
51
BAUDELAIRE, 1991. p. 137.
52
52
BENJAMIN, 1991. p. 74.
53
BENJAMIN, 1991. p. 92 e 98.
54
BAUDELAIRE, 1991. p. 132.
53
que a cidade dispensou. Benjamin ressalta que a figura do trapeiro coincide com o
apogeu da indústria têxtil:
55
BENJAMIN, 1991. p. 51 e 103.
56
BAUDELAIRE, 1991. p. 152.
57
BENJAMIN, 1991. p. 50-51.
54
58
LEFÉBVRE, 1969. p. 382-383.
59
BAUDELAIRE, 1991. p. 152.
60
BAUDELAIRE, 1991. p. 77.
61
BATAILLE, 1989. p. 43-44.
55
que o satanismo foi uma transgressão das convenções sociais, ou seja, uma
inversão das noções de pecado, com a adoração a satã acompanhada pela
expressão de uma sexualidade sem pudores,62 o que representou uma opção para
eliminar a idéia de culpa cristã,63 tão presente no imaginário ocidental, como também
foi uma saída para exprimir o erotismo, o submundo e as contradições advindas do
progresso capitalista. Assim, no texto “Projéteis, sugestões”, Baudelaire afirma que
satã não está na figura sobrenatural projetada pelo cristianismo, mas no perverso
desenvolvimento da sociedade capitalista:
A imagem de satã, de acordo com Lefèbvre, variou de acordo com cada época,
cada povo, cada cultura, desde a sua mais tradicional construção (a figura vermelha
e de chifres), até nas suas metamorfoses, que se exibem na mulher encantadora, na
cidade babélica, no jogador, no vampiro etc. Vale ressaltar que o vampiro de
Baudelaire não é a figura tida como sobrenatural nos contos de Hoffmann. Esta
figura, na visão do poeta é indício do cômico circunscrito em imagens macabras, o
que aparece com clareza em seu ensaio “Da Essência do Riso”.65
No poema “Le Vampire”, Baudelaire circunscreve a mulher na figura de
sanguessuga, revestindo-a com características demoníacas. Como bem atesta Mario
Praz, “na segunda metade do século XIX o vampiro volta a ser uma mulher (...); mas
na primeira parte do século, o amante fatal e cruel é, em regra, um homem”,66 o que
altera as tradicionais posições de mulher submissa e sexo forte, como é bem colocado no
Poema “Le vampire”, no qual Baudelaire associa a mulher ao pólo do mal e do vício,
invertendo os signos amorosos:
62
BRANCO, 1985. p. 82.
63
MARCUSE, 1981. p. 70.
64
BAUDELAIRE, 1995. p. 514.
65
BAUDELAIRE, 1995. p. 745-746.
56
66
PRAZ, 1996. p. 90.
67
BAUDELAIRE, 1991. p. 82.
68
BAUDELAIRE, 1991. p. 159.
69
BRANCO, 1985. p. 22.
57
(...)
Tes yeux, où rien ne se révèle
De doux ni d’amer,
Sont deux bijoux froids où se mêle
L’or avec le fer.
(...)
Et ton corps se penche et s’allonge
Comme un fin vaisseau
Qui roule bord sur bord et plonge
Ses vergues dans l’eau.70
70
BAUDELAIRE, 1991. p. 79.
58
71
PRAZ, 1996. p. 58.
72
BAUDELAIRE, 1991. p. 128-129.
59
73
BRANCO, 1985. p. 105.
74
BAUDELAIRE, 1991. p. 130.
75
BATAILLE, 1989. p. 12-13.
76
BATAILLE, 1980. p. 65.
60
(...)
Les formes s’effaçaient et n’étaient plus qu’un rêve,
Une ébauche lente à venir,
Sur la toile oubliée, et que l’artiste achève
Seulement par le souvenir.77
(...)
Je voudrais qu’exhalant l’odeur de la santé
Ton sein de pensers forts fût toujours fréquenté,
Et que ton sang chrétien coulât à flots rythmiques.78
77
BAUDELAIRE, 1991. p. 80-81.
78
BAUDELAIRE, 1991. p. 65-66.
61
(...)
– Avez-vous observé que maints cercueils de vieilles
Sont presque aussi petits que celui d’un enfant?
La Mort savante met dans ces bières pareilles
Un symbole d’un goût bizarre et captivant.83
De acordo com Lúcia Castello Branco, “as civilizações ocidentais das últimas
décadas do século XIX são marcadas por um profundo sentimento de
descontentamento com relação aos mecanismos e ideologias sociais”,84 o que foi
79
BRANCO, 1985. p. 73.
80
Id. Ibidem. p. 65.
81
PRAZ, 1996. p. 59.
82
BENJAMIN, 1991. p. 39.
83
BAUDELAIRE, 1991. p.133-134.
84
BRANCO, 1985. p. 79.
62
sentido por um grupo de literatos franceses, entre eles Baudelaire, que tomou
consciência das ruínas da sociedade burguesa:
(...)
Sequer vinte anos tem; os seios – que desgraça! –
De cada lado pendem como uma cabaça,
E contudo me arrastam ao seu corpo estreito,
Em cujas tetas eu, como um bebê, me aleito.
85
BRANCO, 1985. p. 81.
86
BAUDELAIRE, 1995. p. 503.
87
BAUDELAIRE, 1995. p. 262.
88
BOLEN, 1990. p. 325.
63
nos mortais e depois, conforme o caso, lançava-lhes uma maldição. Vênus encerra a
imagem da sedução e do erotismo, posto que, segundo a mitologia, era a mãe de
Eros. Para Baudelaire, em seus “Escritos íntimos”, “A Vênus eterna (caprichosa,
histérica, fantasista) é uma das formas sedutoras do demônio”.89
89
BAUDELAIRE, 1995. p. 539.
90
BAUDELAIRE, 1991. p. 78.
91
PRAZ, 1996. p. 293.
64
92
BAUDELAIRE, 1995. p. 133-134.
93
PRAZ, 1996. p. 292.
94
MAY, 1978. p. 80.
95
FRIEDRICH, 1978. p. 35.
65
96
PEREIRA, 2000. p. 217-220. O inquérito industrial de 1881 mostra que na indústria algodoeira de Lisboa, os
estabelecimentos estavam assim divididos: 1 fiação, 2 fiações-tecelagens, 4 tecelagens, 13 estamparias/tinturarias.
Mecanização na tecelagem e na fiação de algodão: cardas ativas 74, fusos ativos 24.320, teares mecânicos 74,
teares manuais 68. Operários – 2.661.
66
97
MOURÃO-FERREIRA, 1966. p. 131.
98
O soir, aimable soir, désiré par celui La Prostitution s’allume dans les rues;
Dont les bras, sans mentir, peuvent dire: Aujourd’hui Comme une fourmilière elle ouvre ses issues;
Nous avons travaillé! – C’est le soir qui soulage Partout elle se fraye un occulte chemin,
Les esprits que dévore une douleur sauvage. Ainsi que l’ennemi qui tente un coup de main;
Elle remue au sein de la cité de fange
Comme un ver qui dérobe à l’Homme ce qu’il mange.
(BAUDELAIRE, 1991. p. 139)
67
99
BAUDELAIRE, 1995. p. 304.
100
BENJAMIN, 1991. p. 33-34.
101
VERDE, 1992. p. 102.
68
como símbolos de uma nova era, mas são contrapostos àqueles que trabalham em
favor das classes privilegiadas, como os carpinteiros e os calafates:
102
VERDE, 1992. p. 102.
103
OLIVEIRA, 1997. p. 200.
104
A Europa jaz, posta nos cotovelos: Aquele diz Itália onde é pousado;
De Oriente a Ocidente jaz, fitando, Este diz Inglaterra onde, afastado,
E toldam-se românticos cabelos. A mão sustenta, em que se apóia o roto.
Olhos gregos, lembrando. Fita com olhar esfíngico e fatal,
O cotovelo esquerdo é recuado; O Ocidente, futuro do passado,
O direito é um ângulo disposto. O rosto com que fita é Portugal.
(PESSOA, 1999. p. 45)
69
105
PESSOA, 1999. p. 53.
106
SILVEIRA, 1992. p. 126.
107
VERDE, 1992.p.102.
108
SANTOS, 1992. p. 137.
70
centro, no contexto europeu. Eduardo Lourenço afirma que tal império perdido, na
realidade, sobreviveu apenas como um império “imaginário”:109
109
LOURENÇO, 1988. p. 82.
110
LOURENÇO, 1988. p. 43.
111
ALEGRE, 1989. p. 44.
112
SENA, 1981. p. 162.
71
113
VERDE, 1992. p. 103.
114
SOUZA, 1986. p. 29.
115
VERDE, 1992. p. 104.
72
patrulhas da Idade Média que partiam, como forma de alargar seus horizontes. Cesário
também evoca Camões, através de sua figura imortalizada no brilho do “brônzeo” :
116
VERDE, 1992. p. 105.
117
HAROUEL, 1990. p. 92
118
REIS, 2000. p. 244.
73
As burguesinhas do catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
119
VERDE, 1992. p. 106.
74
Através de sua palavra cortante, Cesário Verde traz para a cena poética tecidos
estrangeiros, uma mulher velha e algumas flores ornamentais que murcham na
vitrine. A mulher é ironizada por sua suposta elegância. Lefèbvre destaca que o mito
da juventude está associado à primavera e à mulher, tendo se tornado um fetiche da
burguesia do século XIX.121 A vitrine é apreciada por um “ratoneiro”, ou seja, por um
sujeito que estava deslocado de seu lugar e que não pertencia às classes privilegiadas.
Todas essas personagens urbanas atravessam os pensamentos do flâneur:
120
VERDE, 1992. p. 106-107.
121
LEFÈBVRE, 1969. p. 186-188.
122
VERDE, 1992. p. 107.
75
[O] encontro de Cesário com o seu ‘velho professor nas aulas de Latim’,
que constitui uma lembrança – esta sim, evidentemente propositada – do
episódio de Brunetto Latini: ‘sommo maestro in rettorica’, além de (segundo a
tradição apócrifa) mestre também do próprio Dante, e que – tal como o
professor de Cesário, ‘eterno, sem repouso’ – também andava continuamente
sanza riposo mai, cada um no seu respectivo inferno.125
123
HARDMAN, 1988. p. 37.
124
VERDE, 1992. p. 108.
125
RECKERT, 1983. p. 134.
76
João Pinto de Figueiredo tenta explicar a expressão “meu professor nas aulas
de Latim”126 pelo viés biográfico. Entretanto, o crítico não encontrou fontes suficientes
para afirmar com precisão se Cesário Verde estudou com um professor de Latim,
mas explica a sua presença pelo diálogo de Cesário com Raul Brandão e Gomes Leal.
O diálogo que Cesário estabelece seja com a tradição, seja com a sua época, para
colocar em cena esse professor de Latim não representa um fato relevante. O mais
importante é percebermos que esse professor constitui uma personagem, que
demonstra como a sociedade burguesa exclui algumas camadas em favor de outras,
como também a desvalorização da cultura clássica nessa mesma sociedade.
Na última seção do poema – “Horas Mortas” –, a noite na cidade já não é tão
aprisionante, pois, apesar do “tecto fundo de oxigênio”, o flâneur dá passagem à
“quimera azul de transmigrar”. Thaís Vinci Chaves comenta que “a transmigração é,
nesse caso, desejo de se libertar da cidade sufocante, mas também simbólica de
uma viagem que cruza tempo passado (frota dos avós) e futuro (raça ruiva do porvir),
empreendida pelo sujeito”.127 Os olhos do flâneur fixos na escuridão se entrecruzam
com o som de uma flauta, que ajuda a romper o silêncio:
Mas, a quimera é atravessada pelas “lágrimas dos astros” e por portões, lajes,
parafusos e fechaduras que remetem ao aprisionamento urbano. Segundo Helder
126
FIGUEIREDO, 1981. p. 132-133.
127
CHAVES, 1993. p. 142.
128
VERDE, 1992. p. 109.
77
129
MACEDO, 1988. p. 250.
130
MACEDO, 1988. p. 251.
131
VERDE, 1992. p. 109-110.
78
132
VERDE, 1992. p. 110-111
133
RAGO, 1992. p. 76.
134
MACEDO, 1975. p. 257.
79
Em “O sentimento dum ocidental”, com o avançar das horas, a cidade foi sendo
descortinada sob o olhar aguçado do flâneur, num movimento de verticalização/
horizontalização – do anoitecer à alta madrugada, o olhar termina horizontalmente no
mar, ou seja, no cais – ponto de partida do poema e da tradição da cultura portuguesa.
No poema “Num bairro moderno”, o flâneur verdiano faz um passeio matinal.
Ao contrário dos versos de “O sentimento dum ocidental”, nesse poema, a cidade é
vista sob a luz do dia. Às dez horas da manhã, contrapondo-se ao turbilhão da vida
dos trabalhadores, que sobem e descem a rua, um flâneur vagarosamente desce a
rua e ao observar a vida cotidiana, produz sua poesia-reportagem, a partir de
elementos prosaicos como a rua, com seus sons, cores e cheiros, registrando as
mais variadas cenas que confrontam o luxo e a pobreza:
135
VERDE, 1992. p. 111.
80
(...)
Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz nas costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.136
136
VERDE, 1992. p. 63.
81
137
Como ilustração da posição do artista no panorama da cidade, o fragmento do poema de Cesário Verde, remete
à descrição de Oscar Wilde, no conto “A esfinge sem segredo”, no qual o escritor inglês demonstra uma semelhante
percepção da vida urbana com todas as suas contradições: Estava eu, numa tarde, sentado no terraço do café de
La Paix, observando o esplendor e a miséria da vida parisiense e meditando, diante do meu vermute, no estranho
panorama de orgulho e de pobreza que desfilava à minha frente. (WILDE, s. d. p. 3)
138
VERDE, 1992. p. 59.
139
BÍBLIA SAGRADA, 1974. p. 1253.
82
(...)
Flanavam pelo aterro os dândis e as cocottes,
Corriam cher-à-blancs cheios de passageiros.
E ouviam-se canções e estalos de chicotes
Junto à maré, no Tejo, e as pragas de cocheiros.
(...)
Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!
(...)
Um fidalgote brada a duas prostitutas:
“Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!”
83
(...)
Todos os figurões cortejam-no risonhos
E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.
140
VERDE, 1983. p. 162.
141
CURY, 1986. p. 136.
142
SERRÃO, 1986. p. 37-38.
84
143
FIGUEIREDO, 1981. p. 80-82.
144
BUARQUE, 1975, L.1, f. 3.
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou para descansar como se fosse Sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gagalhou como se ouvisse música.
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacoe flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.
85
145
VERDE, 1992. p. 68-69.
86
visibilidade, traduzindo-se no “dar a ver” e revelando, sob seu olhar arguto, o mundo do
trabalho, os espaços e as pessoas que nele circulam. No poema de Cesário, Lisboa é
encenada como uma cidade em desenvolvimento, onde começavam a serem abertas
avenidas e construídos edifícios. Inclusive, é visível a vontade do eu poético de
demonstrar simpatia e solidariedade para com os trabalhadores, ao colocá-los em
contraposição com a atriz que atravessa a cidade em direção ao ensaio de sua peça
teatral, a qual, apesar de ser elogiada, é definida como “demonico”. Esse confronto de
figurantes mostra que o espaço urbano deixou de ser apenas um conjunto de
edificações, passando a significar uma vitrine, na qual as personagens se expõem,
assim como são expostas as novas relações que se esboçam na época, lugar da
afluência evanescente dos cidadãos:
(...)
Homens de cargas! Assim as bestas vão curvadas!
Que vida tão custosa! Que diabo!
E os cavadores pousam as enxadas,
E cospem nas calosas mãos gretadas,
Para que não lhes escorregue o cabo.
146
VERDE, 1992. p. 72-73.
147
ANEXO I.
148
MACEDO, 1988. p. 30.
88
149
VERDE, 1992. p. 83.
90
150
VERDE, 1992. p. 84 e 86.
151
OLIVEIRA, 1996. p. 106.
91
152
BENJAMIN, 1991. p. 103.
153
BENJAMIN, 1991. p. 157-158.
154
BÍBLIA SAGRADA, 1999. Gênesis. Cap. 19, p. 12.
155
LIPOVETSKY, 2000. p. 112.
92
outras combinações binárias, opostas e sempre limítrofes, a mulher está sempre nesse
espaço antagônico:
156
LIPOVETSKY, 2000. p. 169.
157
VILALVA, 1999. p. 4.
158
ALBERONI, 1988. p. 70.
159
Em Carmen, de Mérimée, D. José, apaixonado, implora que ela volte para ele, mas ela não cede às suas
súplicas, residindo aí sua grande arma de sedução.
93
160
LIPOVETSKY, 2000. p. 171.
94
161
RAGO, 1992. p. 73.
162
MARGARIDO, 1988. p. 130.
163
SENA, 1987. p. 161.
95
literárias do século XIX. Segundo Mário Praz, isso corresponde a uma inversão pois,
no início do século, prevaleceu o herói byroniano, o homem fatal, que submete a mulher
a seus caprichos e, na segunda metade do século XIX, a mulher fatal irrompeu na
literatura, por meio do exotismo, como projeção fantástica de um erotismo
exacerbado e da presença de mitos antigos, como Esfinge, Afrodite ou Vênus.165
Já Hélder Macedo compreende o erotismo verdiano na contraposição entre
cidade/campo, criado/senhora, sendo que a cidade é associada a um erotismo de
humilhação, acompanhado de um desejo impossibilitado de realizar-se, enquanto, no
campo, os desejos eróticos são libertadores, para o sujeito poético.166 O eminente
crítico associa ainda a mulher urbana e a rural, numa perspectiva de representação
da inferioridade portuguesa frente à Inglaterra, mas acreditamos que, para além
dessa representação, a dama fatal, na pele de mulher inglesa, também pode ser lida
como uma crítica irônica por parte de Cesário a essa superioridade e também como
uma reflexão sobre a dependência econômica de Portugal.
O erotismo, na poesia de Cesário, é difuso: chega à mulher fatal urbana, mas se
desloca para a mulher campestre. Apesar dessa última figurar nos versos verdianos
como uma criatura simples e pura, ela também torna-se alvo do olhar erótico. Há ainda
o erotismo despertado pela mulher feia, como ocorre com a vendedora de verduras
do poema “Num bairro moderno”, ou mesmo por um tipo masculinizado da mulher
rural, como ocorre no poema “Manhãs brumosas”, no qual o poeta descreve o
feminino com características de um “rural boy”.
Lançando um olhar sobre a série de poemas que tematizam a “dama fatal”,
na obra verdiana, podemos perceber que essa figura arrebatadora é sempre
encenada como soberba, frente a um jovem admirador. Segundo Mario Praz, a moda
literária que tematizou a mulher fatal se esmerou em colocá-la numa posição
superior e circunscrita, sob o signo da devoração:
Segundo esta concepção da mulher fatal, o enamorado é normalmente um
jovem e mantém uma atitude passiva; é obscuro, inferior à mulher na condição
ou na exuberância física, e ela está diante dele na mesma relação que a
164
LOPES, 1973. p. 624.
165
PRAZ, 1996. p. 181-186.
166
MACEDO, 1975. p. 13.
96
167
PRAZ, 1996. p. 192.
168
VERDE, 1992. p. 187.
169
QUALLS-CORBETT, 1990. p. 74.
97
(...)
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar.171
170
VERDE, 1992. p. 188.
171
VERDE, 1992. p. 31.
98
Cesário faz uma referência a Ana d’Áustria, Infanta da Espanha, que tinha o
hábito de receber em sua corte. Essa alusão, segundo Hélder Macedo é uma forma
de criticar as personagens do antigo regime, marcando bem a relação entre uma
possível submissão sexual e social.173 Numa visão final, contrariamente ao poema
“Esplêndida”, o eu poético não se mantém em postura submissa diante da mulher,
mas lança uma imagem de destruição, na qual, “os povos humilhados pela noite” se
vingariam e ele assistiria à derrocada da dama, com a conseqüente transformação
das vestes das rainhas em farrapos:
172
VERDE, 1992. p. 32.
173
MACEDO, 1986. p. 85.
99
174
VERDE, 1992. p. 33.
175
MARTINS, 1988. p. 47.
176
MARGARIDO, 1988. p. 134.
177
SENNET, 1988. p. 147.
100
178
VERDE, 1992. p. 42.
179
MACEDO, 1988. p. 21.
101
180
VERDE, 1992. p. 44.
181
VERDE, 1992. p. 90.
102
(...)
Cintila no seu rosto a lucidez das jóias.
Ao encarar consigo, a fantasia pasma;
Pausadamente lembra o silvo das jibóias
E a marcha demorada e muda dum fantasma.
(...)
E se uma vez me abrisse o colo tranparente,
E me osculasse, enfim, flexível e submissa,
Eu julgaria ouvir alguém, agudamente,
Nas trevas a cortar pedaços de cortiça.182
182
VERDE, 1992. p. 91-92.
103
de acordo com uma ótica própria, conforme podemos constatar nas palavras de
Alfredo Margarido. O crítico português afirma que Cesário inverte a comum posição
homem/mulher, rompendo com a posição do amante humilhado pela mulher-
serpente, ao fechar os versos com o ruído agressivo e violento do corte da cortiça, o
que mostra um diálogo de Verde com João de Penha, quanto à organização das
estrofes, com a presença de uma quadra final que vai de encontro ao pensamento
anunciado nas estrofes anteriores:
O último verso é exclusivamente português, por exigir não apenas a leitura,
mas a possibilidade de reproduzir tanto na memória como na crispação física,
o ruído agressivo provocado pela operação. Serve ela para denunciar a
impossibilidade de aceitar a inversão da relação com a mulher desejada, já
que o regresso a uma situação “normal” corresponderia à anulação do desejo,
destruindo a totalidade do investimento erótico.
A singularidade da estrofe funciona como uma estratégia do poeta, para
dissimular a extrema importância da situação: o desejo não pode afirmar-se
senão quando a humilhação existe, sendo reforçada pelo movimento ascendente
do desejo. A inversão da relação de humilhação, banalizando a mulher desejada,
expulsa o poeta de seu próprio desejo. A brutalidade do ruído da cortiça cortada
não pode deixar a mínima dúvida quanto ao caráter agressivo da norma, perante
o desejante que não poderá satisfazer-se senão por meio da humilhação.183
183
MARGARIDO, 1988. p. 143.
184
PERROT, 1988. p. 168.
104
(...)
S’ ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o sol como desfaço,
As bolas de sabão das criancinhas.185
(...)
S’ ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abalaria as sólidas montanhas.
185
VERDE, 1992. p. 185-186.
186
MOISÉS, 2001. p. 178.
187
VERDE, 1992. p. 186.
105
Vinci Chaves, o poeta coloca em cena uma “mulher inatingível e um herói prometeico
circunscrito pela paródia, produzindo um perfil de herói risível, bufão e derrotado”.188
Isso confere ao poema uma dimensão de crítica ao estilo romântico, ao elevar a
dramaticidade de um fato e desconstruí-lo, em seguida, mostrando-o como algo
banal. O discurso romântico é ironizado e também torna-se alvo de crítica no poema
“Num tripúdio de corte rigoroso”.
Nesse texto, entra em cena o sensualismo amoroso de uma mulher inatingível
possuidora de formas corporais artísticas perfeitas, ao estilo de Vênus. Mas a
expectativa do leitor é frustrada, pois o amor não se realiza e é sobretudo ironizado.
O poeta lança mão do repertório romântico, satirizando suas construções poéticas, por
meio de um sujeito que remete uma carta de amor, recheada de sentimentalismo e
recebe uma resposta em que a mulher utiliza as mesmas fórmulas textuais:
188
CHAVES, 1993. p. 76.
189
VERDE, 1992. p. 173.
106
extremamente pálida, das personagens românticas como para decantar suas musas
doentes. Também no poema em prosa “O Bobo e a Vênus”,190 o poeta francês
ridiculariza um bufão que se põe a observar a estátua de formas perfeitas. Em seus
“Escritos Íntimos”, Baudelaire também compara Vênus a uma das formas do demônio.191
No poema “A forca”, Cesário Verde prossegue parodiando as fórmulas
românticas burguesas, ao encenar uma mulher distante, que é conquistada no jogo
do amor:
190
BAUDELAIRE, 1995. p. 283-284.
191
BAUDELAIRE, 1995. p. 539.
192
VERDE, 1992. p. 172.
193
BATAILLE, 1989. p. 12.
107
194
VERDE, 1992. p. 167.
195
PRAZ, 1996. p. 213.
108
dessa figura remonta à rainha oriental, fascinante, a qual os escritores do século XIX
foram buscar no Oriente exótico.
O nome Messalina sofreu um processo de evolução, tornando-se sinônimo de
“prostituta” e contrapondo-se à mulher pura e casta, vista como um ser sublime. Essa
visão, cara ao século XIX, marcou a época em que as atenções se voltaram para a
mulher, a fim de moldá-la, produzindo-se um modelo ideal, a partir da imagem de Nossa
Senhora. Essas idéias estiveram presentes nos discursos médico, político e literário,
que foram atravessados pela filosofia comtiana, a qual propalava a canonização da
mulher como a “deusa do lar”. Literariamente, os escritores representavam-na como
a mulher boa ou seja, como aquela que era ideal para o casamento:
Ó áridas messalinas
Não entreis em meu santuário,
Transformareis em ruínas
O meu imenso sacrário!
(...)
A mulher é ser sublime,
É o conjunto de carinhos,
Ela não propaga o crime,
Em sentimentos mesquinhos.
196
VERDE, 1992. p. 155.
109
As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...
197
VERDE, 1992. p. 179.
198
VERDE, 1992. p. 164.
199
Sobre a origem do casamento. Cf. ROUGEMONT, 1965. p. 59.
110
(...)
200
VERDE, 1992. p. 165.
201
VERDE, 1992. p. 159.
111
202
ANEXO II.
203
VERDE, 1992. p. 162.
112
(...)
Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar enternecida!
E eu hei-de, então, soltar uma risada.204
204
VERDE, 1992. p. 183-184.
205
LIPOVETSKY, 2000. p. 172.
113
(...)
Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, – talvez que o não suspeites! –
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
206
VERDE, 1992. p. 37-38.
114
(...)
Consente que eu aspire este perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro,
E faz morrer de febre um louco sonhador.
(...)
Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,
Na vossa vastidão posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.207
207
VERDE, 1992. p. 36-37.
208
MARGARIDO, 1988. p. 137.
209
O toison, moutonnant jusque sur l’encolure!
O boucles! O parfum chargé de nonchaloir!
Extase! Pour peupler ce soir l’alcôve obscure
Des souvenirs dormant dans cette chevelure,
115
214
Sobre as imagens de cozinha na escrita, cf. SOUZA, Ilza Matias. Arte amorosa e devoração literária. 1993. Tese
(Doutorado em Literatura Comparada) – Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte.
215
VERDE, 1992. p. 64-67.
216
ANEXO III.
117
Tal jogo metafórico, ao mesmo tempo em que mostra o alimento comum que
sustenta o corpo poético ou, pelo menos, a solidariedade de seus termos,
“lava”, exibe em sua nudez os lugares de onde emergem os personagens e
sua circunstância: a “vida fácil” dos ricos em suas casas apalaçadas, a
rapariga de tamancos, “rota”, o cidadão a caminho do serviço...217
217
ARÊAS, 2001. p. 156.
218
ARÊAS, 2001. p. 158.
219
VERDE, 1992. p. 34.
118
(...)
E foste sepultar-te, ó serafim;
No claustro das fiéis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras resignadas.
É uma literatura sobre a cidade cujo significante é o campo; uma literatura sobre
o presente cuja matéria é o passado; uma literatura crítica cuja expressão é o
louvor. O que dificilmente poderá ser é uma literatura do campo para o campo, já
que o campo que louva só existe como antinomia da cidade que critica.221
220
VERDE, 1992. p. 36.
221
MACEDO, 1988. p. 21.
222
ANEXO IV.
119
(...)
Lembrei-me muito, muito, ó símbolo das santas,
Do tempo em que eu soltava as notas inspiradas,
E sob aquele céu e sobre aquelas plantas
Bebemos o elixir das tardes perfumadas.
223
VERDE, 1992. p. 36.
224
BRANCO, 1985. p. 76-79.
120
225
VERDE, 1992. p. 76-77.
226
MACEDO, 1977. p. 66.
227
VERDE, 1992. p. 80-81.
121
(...)
Toda a paisagem se doura,
Tímida ainda, que fresca!
Bela mulher, sim senhora,
Nesta manhã pitoresca,
Primaveril, criadora!
228
VERDE, 1992. p. 151-152.
229
MARGARIDO, 1988. p. 150.
230
ANEXO V.
122
Ó justo, sutil e poderoso ópio! Tu que ao coração do pobre como do rico, para
as feridas que não cicatrizarão jamais e para as angústias que induzem o
espírito à rebelião, levas um bálsamo suavizante: eloqüente ópio! Tu que, pela
tua poderosa retórica, desarmas as resoluções da cólera e que, por uma noite,
restituis ao homem culpado as esperanças da juventude e as suas antigas mãos
puras de sangue; que ao homem orgulhoso dás um esquecimento passageiro.233
231
VERDE, 1992. p. 112.
232
ANEXO VI.
233
BAUDELAIRE, 1995. p. 400.
123
234
VERDE, 1992. p. 113.
235
BRANCO, 1985. p. 114-115.
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve como propósito empreender uma leitura do texto de Cesário
Verde, como representativo do século XIX, no cenário das letras portuguesas. Pelo
seu intenso diálogo com Charles Baudelaire, Cesário demonstrou sintonia com o
fazer poético moderno, lançando mão de uma apropriação de temas da modernidade
baudelairiana, no tocante à visão da urbe infernal, ao erotismo difuso, à descrição
dos variados perfis femininos e ao projeto crítico-literário de sua poesia, pois
“Cesário é aquele que à beira d’água, mas voltado para a terra, vê a cidade que se
agiganta, se moderniza; Cesário olha para entender o seu tempo.”1
Tendo essa perspectiva em vista e com ela iluminando a obra verdiana,
pudemos perceber que aceitar a influência de Baudelaire em Cesário é admitir que
ambos os poetas viveram problemas comuns em cenários diferentes, numa época de
urbanização acelerada. Embora atraídos pela cidade, eles revelaram profundos
sentimentos de tédio e fascinação, diante da urbe, registrando em suas obras, com
arguta sensibilidade, como o progresso se alimentou da degradação humana e criou
uma realidade cruel e demoníaca.
Mesmo sem ter participado de grupos literários ou políticos, Cesário Verde
não foi um literato alheio às questões sociais de seu tempo: ele trouxe para a cena
poética um lirismo social inquestionavelmente novo, pela sua documentação do
cotidiano. Contrapondo-se à poesia de cunho filosófico de um Antero de Quental,
Cesário foi o autor da geração realista que introduziu definitivamente o tom coloquial
urbano na poesia, desprezando a linguagem convencional. Ele poetizou uma época
de progresso material, associando-a à noção de decadência, tal qual Baudelaire.
Ambos os poetas tomaram como matéria poética a realidade crua e por isso,
Cesário, sem dúvida, tem uma relevante importância para a história da literatura
portuguesa, assim como o poeta francês em relação à história da literatura francesa.
Inscrever Cesário Verde no panorama literário português da década de 70 do
século XIX, no que se refere às conquistas da modernidade, sem dúvida é constatar
1
SILVEIRA, 1992. p. 125.
126
que o poeta configurou uma voz disssonante e marginal. E, mesmo não sendo
reconhecido em sua época, ele sintonizou a poesia portuguesa às modernas
correntes literárias européias e projetou seu diálogo mais amplo com a poesia do
século XX.
Como poeta da multiplicidade, por sua capacidade de ver o mundo sob
vários ângulos e por sua reformulação da convenção poética, Cesário prenunciou o
grande poeta Fernando Pessoa e seus heterônimos. Tal qual o flâneur baudelairiano,
Cesário recolheu elementos diversificados, criando uma poesia múltipla que se
projetou no tempo, originando um “caleidoscópio crítico”. Sua obra já suscitou
sucessivos olhares e leituras que, não se excluindo mutuamente, mostram como o
texto verdiano foi uma conquista da modernidade, ao se tornar um espaço de
reflexão sobre as questões sociais e um meio de reinvenção da linguagem. Cesário
foi além da “quimera azul de transmigrar”, construindo sua própria modernidade: seu
desejo de um “livro que [exacerbasse]” a arte de seu tempo não se reduziu a um
simples sonho seu, mas constituiu uma leitura possível nos séculos XX e XXI,
criando intertextos e dicções em tempos e literaturas posteriores.
127
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ANEXOS
136
ANEXO I
137
ANEXO II
138
ANEXO III
PRIMAVERA VERÃO
OUTONO INVERNO
139
ANEXO IV
LE ROMAN DE LA ROSE
140
ANEXO V
141
ANEXO VI