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A comunidade da infância

Títulos da Coleção Ensaios

A escola dos sentimentos. 2018.


Giuseppe Ferraro
Manifesto por uma escola filosófica popular. 2018.
Maximiliano Lionel Durán; Walter Omar Kohan
(em quarentena)
Ensayos En Lectura. Inutilidad, soledad y conversación. 2020.
Carlos Skliar
filosofia para crianças: a (im)possibilidade de lhe chamar outra coisa. 2020.
Magda Costa Carvalho
Ensayos para una didáctica filosófica. 2020.
Alejandro Cerletti
entre apostas e heranças. contornos africanos e afro-brasileiros na educação
e no ensino de filosofia no brasil. 2020.
Wanderson Flor do Nascimento
Infancia y Género. Exclusiones que nos rondan. 2020.
Olga Grau Duhart
Interculturalidade, natureza e educação. Afetos filosóficos. 2020.
Juliana Merçon
A comunidade da infância
David Kennedy
Coleção Ensaios

(em quarentena)

A COMUNIDADE DA INFÂNCIA

David Kennedy

Prólogo: Bernardina Leal e Rosana Fernandes

NEFI Edições
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Reitor: Ricardo Lodi Ribeiro
Vice-Reitor: Mario Sergio Alves Carneiro
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Luís Antônio Campinho Pereira da Mota
Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPEd)
Coordenadora: Ana Chrystina Venancio Mignot
Vice-Coordenador: Guilherme Augusto Rezende Lemos
Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Coordenador: Walter Omar Kohan

Conselho Científico (NEFI/UERJ) Conselho Editorial (NEFI/UERJ)


Alejandro Ariel Cerletti, Univ Buenos Aires e Univ Nac Gral Sarmiento Alice Pessanha Souza de Oliveira
Alexandre Filordi de Carvalho, UNIFESP, Brasil Allan Rodrigues
Alexandre Simão de Freitas, UFPE, Brasil Daniel Gaivota Contage
Barbara Weber, University of British Columbia Fabiana Martins
Beatriz Fabiana Olarieta, UERJ, Brasil Felipe Froes Pereira Trindade
Carlos Bernardo Skliar, FLACSO, Argentina Marcelly Custodio de Souza
César Donizetti Leite, UNESP, Rio Claro, Brasil Matheus Schmaelter
Claire Cassidy, University of Strathclyde, Escócia Ocimar Castro Maximo
Gregorio Valera-Villegas, Univ. Experimental Simón Rodríguez, Venezuela Robson Roberto Lins
Gustavo Fischman, Arizona State University, Estados Unidos da América Simone Berle
Jason Wozniak, West Chester University, Estados Unidos da América
Juliana Merçon, Universidad Veracruzana, México
Junot Cornelio Matos, UFPE, Brasil Capa:
Karin Murris, Cape Town University, África do Sul Marcelly Custodio de Souza
Magda Costa Carvalho, Universidade dos Açores, Portugal
Maria Reilta Dantas Cirino, UERN, Brasil Diagramação:
Marina Santi, Università degli Studi di Padova, Itália Marcelly Custodio de Souza
Maristela Barenco Corrêa de Mello, UFF, Brasil Simone Berle
Maximiliano Durán, Universidad de Buenos Aires, Argentina
Olga Grau, Universidad de Chile, Chile Revisão técnica deste livro:
Óscar Pulido Cortés, Universidad Tecnológica y Pedagógica de Colombia Magda Costa Carvalho
Paula Ramos de Oliveira, UNESP — Araraquara, Brasil
Pedro Pagni, UNESP — Marília, Brasil
Renato Noguera, UFRRJ, Brasil
Roberto Rondon, UFPB, Brasil
Rosana Fernandes, UFRGS, Brasil
Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo, UNICAMP, Brasil
Walter Omar Kohan, UERJ, Brasil
Wanderson Flor do Nascimento, UnB, Brasil

"A comissão para avaliação cega dos trabalhos da Coleção Ensaios em 2020 foi integrada por Maria Reilta Dantas Cirino
e Magda Costa Carvalho”

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
David Kennedy

A comunidade da infância. David Kennedy. — 1 ed. —


Rio de Janeiro: NEFI, 2020 — (Coleção Ensaios; 9).

ISBN: 978-65-991017-2-4
1. Infância, 2. comunidade de investigação filosófica, 3. educação
4. filosofia 5. filosofia para crianças. I Título. II Série.
CDD 370.1
Índice para catálogo sistemático:
1. Educação: Filosofia 370.1
© 2020 David Kennedy
© 2020 Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI/UERJ)
Site: http://filoeduc.org/nefiedicoes
Email: publicacoesnefi@gmail.com
Apresentação da Coleção

O Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro (NEFI/UERJ), como qualquer grupo de trabalho de
uma universidade pública, dedica seus esforços ao ensino, à pesquisa e à
extensão da universidade fora dos seus muros. Seu foco temático são as
relações entre infância, educação e filosofia, tanto no que diz respeito a
experiências filosóficas com crianças e à formação de professoras em escolas
públicas quanto ao estudo e ao exercício mais amplos possíveis da categoria
de infância. Desde 2003 o NEFI tem estabelecido parcerias de trabalho com
grupos de distintos países e acolhido as mais diversas pesquisas com muitas
formas institucionais: trabalhos de fim de curso, ou seja, monografias,
dissertações e teses de estudantes da UERJ, missões de estudo e de trabalho
com outras instituições nacionais e internacionais; pesquisadores visitantes;
estâncias de pós-doutorado… o NEFI ensaia uma vida acadêmica outra, a
errar no duplo sentido de se equivocar e de vagar em busca dessa vida
outra.
Assim, a Coleção “Ensaios” é um convite a ensaiar-se, na escrita, na
leitura, na vida. Os trabalhos que compõem esta coleção são cheios de erros
e de errância e chamam leitores e leitoras a ensaiar e ensaiar-se na leitura
e também na escrita, confiando no valor educativo tanto do equivocar-se
quanto do andar atento aos sinais do caminho.
Nesse ano de 2020 fomos surpreendidos por uma pandemia que se
alastra pelo Brasil ajudada pela indecência de um governo que privilegia
uma economia para poucos sobre a vida de todos. A pandemia colocou-nos
também em evidência o sem sentido de uma forma de vida que aceitávamos
e vivíamos. Nas universidades públicas um desafio nos foi colocado:
precisamos inventar outras formas de vida em comum, dentro e fora da
universidade. O vírus tem nos entregado a oportunidade de um tempo para
pensar na vida que estamos vivendo em nome da educação. Em que, pese
a irresponsabilidade do governo federal, alguns temos o privilégio de poder
ficar em casa, como suspendidos no tempo. Estávamos habituados a “não
ter tempo”, a ter tanto para fazer “em pouco tempo”, a ter que correr daqui
para lá, a “perder horas” no trânsito, a ocupar o tempo em exigências
administrativas e burocráticas e, de repente, temos tempo para o esquecido,
como o cuidado quotidiano das filhas e dos mais velhos, e, sobretudo, temos
tempo para pensar a vida presente atravessada pela pandemia e a vida que
queremos viver quando a pandemia passar, se é que de fato ela vai passar.
No NEFI pensamos que parte dessa tarefa diz respeito a ler, escrever,
estudar... com o cuidado que o momento merece e com a atenção voltada
para uma realidade devastadora como a imposta pelo governo fascista que
padecemos. E pensamos que a coleção Ensaios poderia ser um espaço para
fortalecer esse cuidado e essa atenção, consolidando nossas bibliotecas. Por
isso, convidamos amigos a nos oferecer suas obras, suas tentativas, seus
ensaios, entre filosofia, educação e infância. É nesses tempos que a coleção
“Ensaios” encontra seu tempo “em quarentena”. Tempos de pensar em
outras formas de vida.

Walter Omar Kohan


Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Rio de Janeiro, abril de 2020
"Esta coleção de textos é dedicada a Walter Kohan, amigo de longa
data e incansável colaborador na busca da conversa Norte-Sul/Sul-Norte, e
às colegas Bernardina Leal, Rosana Fernandes e Magda Costa Carvalho que
trabalharam na edição em português.”
Sumário

PRÓLOGO.................................................................................................................................................... 13
Bernardina Leal e Rosana Fernandes

ORIGEM DOS TEXTOS. .............................................................................................................................. 21

1. OS MOVIMENTOS DAS CRIANÇAS PEQUENAS: COMUNIDADE DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA


EMERGENTE NO DISCURSO DA PRIMEIRA INFÂNCIA ........................................................................... 23
Primeira conversação: Mágica e Ciência ...................................................................................... 26
Segunda conversação: Língua e Política....................................................................................... 32
Terceira conversação: O Sobrenatural, o Bem e o Mal ......................................................... 38
Algumas conclusões ............................................................................................................................ 43

2. RECONSTRUINDO A INFÂNCIA............................................................................................................. 51
A infância está desaparecendo? ....................................................................................................... 51
Criança como sujeito marginalizado ............................................................................................. 53
Crianças como propriedade ............................................................................................................. 54
Criança como economicamente desprovida ............................................................................... 55
Criança como outro ontológico ...................................................................................................... 55
Criança como epistemicamente incompleta............................................................................... 57
Criança como excluída da cultura ................................................................................................. 58
A criança como caso especial do outro marginalizado .......................................................... 59
O surgimento da forma moderna de colonização da criança: uma explicação psico-
histórica ................................................................................................................................................... 63
O privilégio epistêmico das crianças ............................................................................................ 70
Começando: Elementos de uma reconstrução emergente da relação criança-adulto. 72
O modo da mudança .......................................................................................................................... 79

3. NOTAS SOBRE A FILOSOFIA DA INFÂNCIA E A POLÍTICA DA SUBJETIVIDADE ................................ 81


A criança e a segunda harmonia ..................................................................................................... 81
A criança e o eu dividido .................................................................................................................. 85
A criança e a política da subjetividade ........................................................................................ 88

4. PENSAR POR SI MESMO E COM OUTROS .......................................................................................... 95

5. LAS CINCO COMUNIDADES ................................................................................................................ 105


La comunidad de gesto ..................................................................................................................... 107
La comunidad de lenguaje ................................................................................................................ 112
La comunidad de mente .................................................................................................................... 116
La comunidad de amor ...................................................................................................................... 118
La comunidad de interés .................................................................................................................. 122
Algunas interrelaciones ..................................................................................................................... 125
Crisis ........................................................................................................................................................ 127
Diálogo .................................................................................................................................................... 128
Juego......................................................................................................................................................... 130
Teleología ............................................................................................................................................... 133
Conflicto ................................................................................................................................................. 134
Disciplina ................................................................................................................................................136
Conclusión ............................................................................................................................................. 139
6. A ESCOLA DO TERCEIRO REINO ALEGRE ........................................................................................ 141

7. A PARTIR DE ESPAÇO SIDERAL E DO OUTRO LADO DA RUA:........................................................165


A DUPLA VISÃO DE MATTHEW LIPMAN ...............................................................................................165

8. AIÓN, KAIRÓS AND CHRÓNOS: FRAGMENTOS DE UMA CONVERSA INFINDÁVEL SOBRE INFÂNCIA,
FILOSOFIA E EDUCAÇÃO ......................................................................................................................... 193
Filosofia e educação ............................................................................................................................ 193
Perguntas............................................................................................................................................... 198
Educação ................................................................................................................................................ 203
Alegria — desejo............................................................................................................................... 206
Escolaridade e filosofia ...................................................................................................................... 210
Por que filosofia para crianças? ..................................................................................................... 215
com Walter Kohan

9. INCÊNDIOS: INFÂNCIA E INFANTIA .................................................................................................... 221


A infância como uma faca na garganta ..................................................................................... 222
Incêndios e a noção de infantia de J.-F. Lyotard..................................................................... 225
A elusão de infantia........................................................................................................................... 230
com Walter Kohan

REFERÊNCIAS ...........................................................................................................................................234
PRÓLOGO.

Bernardina Leal e Rosana Fernandes

Escrever sobre a escrita de David Kennedy é relembrar a amizade que


se inscreve na investigação filosófica com crianças; é enveredar pelos
movimentos infantis do pensar solidário e colaborativo; é encontrar a
generosidade do diálogo; é perceber o outro em sua diferença, na
proximidade que somente o respeito possibilita; é aprender como a
construção conceitual da infância ocorre e agir; é lidar com os jogos lógicos
e lúdicos que envolvem o pensar; é saber-se infantil diante de novas
culturas, idiomas, valores e escrituras; é questionar a adultez; é tanto mais,
quanto mais se torna difícil dizê-lo. Por isso é preciso ler o que David
escreve; é importante conhecê-lo; é urgente partilhar seus textos.
David escreve e sua escrita faz presente não o autor, mas o saber que
vem de sua escritura. David escreve e o conteúdo de sua escrita o supera,
apresenta-se maior do que ele. Sua presença é sutil. É que suas palavras
concordam com seus gestos, harmonizam-se com seu jeito de ser,
conformam um lugar de acolhimento. Suas atitudes, em qualquer tempo,
correspondem ao seu modo de inscrever-se na vida. Antes ou depois da
escrita, presente está aquele que escreve, honestamente.
Em nosso idioma, para nossa alegria, aqui estão reunidos alguns de
seus textos. Partilhados em disciplinas acadêmicas, lidos em encontros de
estudo ou desfrutados silenciosa e isoladamente, eles fizeram parte da
história da Filosofia da Infância em diversos espaços educativos brasileiros.
Escritas partilhadas, experiências de pensar com o outro, por si mesmo, foi
o desafio aceito por nós. Agora estamos diante do que conseguimos
recuperar verbalmente daquilo que deu suporte teórico ao que vivenciamos.

13
Bernardina Leal e Rosana Fernandes

Um livro segue sendo uma bela maneira de agregar amizades na


escrita. Este livro é a forma encontrada para assegurar a presença de David
Kennedy entre nós, que tanto o admiramos. Entretanto, resta algo que não
se sabe dizer sobre David Kennedy. Como algo que escapa, que foge ao
domínio da escrita. David parece nos alertar para algo que permanece
infantilmente sem palavra na linguagem.
David não se apresenta de imediato. Sua escrita, em voltas, por
aproximações e distanciamentos, revela conhecimentos e saberes acerca da
infância para tocar aquilo que infantilmente deixou de ser enunciado e
escapa à apreensão adulta dos dizeres acadêmicos. Depois de afastar-se do
que foi dito, quando retorna, é pelo avesso. Nesse deslocamento necessário
de um tempo presente, adulto, ele alcança uma temporalidade infantilmente
disponibilizada, escrevendo sobre a infância como se estivesse por aprender
a fazê-lo a cada vez. Até quando reconstrói o que se sabe sobre a infância,
produto do trabalho sistemático da humanidade, ele o faz abrindo espaços
para novas inscrições e entendimentos.
Vive-se. Coisas acontecem. Infâncias ocorrem. Acompanhar o que se
passa nesses acontecimentos infantis implica em movimentar a escrita,
colocar tudo na roda. Com o pensar incessante e questionador das crianças
a escrita adulta de David, transformada em estudo, descreve, questiona e
interfere nos modos de entendimento das crianças, lealmente.
David chega à lealdade de buscar o acontecido, o que se passou, o
que houve. Quando, onde e de que modo ocorreram as experiências do
pensar entre crianças. E, com a mesma precisão, o que se passou na
mediação docente, nas intervenções filosóficas e pedagógicas, no fazer
educativo escolar. O cuidado que emprega aos detalhes das ocorrências, na
recuperação de gestos e atitudes, na minúcia das palavras, no tom das falas,
na diversidade dos modos expressivos, como um perito que se detém no

14
Prólogo

rastro, provoca no leitor a responsabilidade pela resposta. Reconhecimento,


restituição.
Repensar os modos de entendimento que estruturam as relações
entre educação e infância é o que David nos impele a fazer por meio de
sua escrita. Pensar a infância de cada um e, ao mesmo tempo, pensar uma
infância coletiva ou indeterminada. E, mais do que isso, pensar um estado
infantil principiador de novos saberes e relações, na intensidade de estar
com o outro.
Entrar na obra de David implica em buscar novos entendimentos
para os problemas que ele coloca, procurar saídas e rotas de fuga para o
que já foi construído sobre a infância. Traduzir a possibilidade
transformadora das inscrições infantis nos modos adultos de dizer a
infância é o desafio posto. A desnaturalização das formas adultas da
pesquisa sobre a infância se revela na paciência de David ao detalhar seus
encontros com crianças e professores. Ainda que percorra caminhos
traçados pela história do conhecimento, por modos complexos de
elaboração de sentidos associados à infância, David cria trajetos e deixa
pistas de seus deslocamentos.
Acompanhar as trajetórias configuradas por David Kennedy implica,
portanto, em movimentar-se desde as conversas realizadas entre crianças e
professores de séries escolares iniciais até os aspectos historiográficos da
construção do conceito “infância”, passando por políticas de subjetividade,
tipos de comunidades de investigação filosófica e paragens nas
compreensões acerca do tempo, entre outras travessias.
David parece atestar o entendimento de que é preciso estar com o
tempo, humildemente deixando-se levar por ele, sem a pretensão de tê-lo.
Desnaturalizar o que se sabe sobre a infância significa também questionar
o que se julga saber sobre o tempo. Afinal, apenas na presença de
marcadores cronológicos expressões comumente empregadas fazem

15
Bernardina Leal e Rosana Fernandes

sentido: ter tempo, ganhar tempo, dispor de tempo, tempo de infância,


tempo passado, sem tempo, com tempo, ainda dá tempo, não há tempo,
data limite... Essas e várias outras composições associam o tempo à ideia de
medição ou propriedade. Assim também tem acontecido com a infância.
Alterar os modos de entendimento da infância exige, David nos alerta,
questionar profunda e honestamente nossos interesses, gestos, modos de
pensar e amar e, mais, inventar modos expressivos infantis. Se ainda nos
escapa algo do que a infância tem para dizer de si mesma, talvez seja porque
as palavras, expressões ou arranjos verbais chegam muito depois, somente
após a apreensão do que já existe. E antes, o que terá sido?
Sim, esse deve ser o caminho para chegar ao que David esconde:
buscar o que ele ainda não escreveu; o que ele não conseguiu dizer sobre
as infâncias que pesquisou. Investigar o que ele não conseguiu expressar do
que acompanhou e inquirir sobre as dúvidas que permanecem a instigá-lo
após tantos escritos. Perguntar pelo que aconteceu antes dos textos
tornarem-se seus. Sim, David nos dá muito com o que escreve, mas exige,
em resposta, muito mais!
Nossa inscrição responde à hospitalidade do modo de ser de David.
Especialmente nos momentos sombrios que temos vivenciado, diante de
ameaças à nossa dignidade pessoal e profissional, além dos riscos à nossa
saúde física, psíquica e emocional, escrever sob e sobre acolhimentos é uma
alegria!
Contar a experiência partilhada com David por meio de seus textos é
resistir aos modos de dominação que tentam se interpor no fazer educativo
que realizamos em diferentes espaços, modos e tempos. Ao narrar o que
vivencia em seus estudos, David faz permanecer viva sua inscrição nos
modos infantis de existência. Suas palavras ressoam o que foi vivenciado
com crianças em experiências do pensar em comunidades investigativas
filosóficas, com educadores em atividades laborais cotidianas, com

16
Prólogo

pesquisadores de diferentes partes do mundo em congressos, cursos e


encontros. Tanto o já feito e tanto mais o que pode vir a ser de novo!
Prescindimos de alternativas para escaparmos a ameaças inibidoras
da fala. Não podemos nos submeter a discursos constrangedores,
normativos e hierarquizantes do dizer. Nos resta inventar maneiras,
encontrar saídas. É na aventura do dizer que deixamos que as palavras
brotem, que a amizade aconteça; na coragem inventada que o momento
exige, é que nos desvencilhamos de medos.
A palavra escrita por David é forte e impactante, destemida. Ela revela
uma relação íntima entre o leitor e o texto, resultado dos encontros que a
permearam. David se faz sério, lógico e investigativo, mas sua escrita deixa
pistas de uma criança a brincar de ser um adulto assim. É como se depois
de anos de pesquisa, estudo e dedicação sobre a infância, ela se
apresentasse, brincalhona, por entre as paredes de suas palavras. Será?
Também brincantes, entre gavetas, prateleiras e arquivos nos
lançamos na procura do que havia sido e ainda é a presença de David entre
nós. A releitura dessa reunião de textos está acompanhada da presença,
lembrança e aprendizados de um início que remonta a vinte e poucos anos
atrás até o projeto de extensão “Filosofia na Escola”, desenvolvido em escolas
públicas do Distrito Federal. Anotações, cadernos, dossiês, composições
curriculares de cursos de extensão e especialização documentam a
intensidade do encontro com David. Nesses textos há pistas, ideias,
conhecimentos precisos e agudos, palavras que ensinam generosamente,
apontam, esclarecem, problematizam e nos forçam a pensar. O olhar, a
escuta e a voz do David são acolhedoras, atentas, sem pressa. Voz e escrita
comportam as pausas que decorrem quando há pensamento e criação. Seus
cursos, suas aulas, sua escrita têm rigor e afeto, expressam uma vida de
comprometimento com o filosofar com as crianças, com a infância e o
exercício do pensamento.

17
Bernardina Leal e Rosana Fernandes

É outono. Estamos em 2020. Em meio ao isolamento social em função


do novo coronavírus, as leituras são intercaladas por afazeres domésticos,
trabalho remoto, cuidados com a família, amigos e gente desconhecida que
precisa de amparo, além das instabilidades políticas com seus variados
desdobramentos. Embora seja difícil conjugar tudo isso, ler David, agora,
em companhia de amigos e companheiros de vida, produz uma força e um
sentimento de estar junto e o entendimento de que há, no mundo, muito
mais do que o que vemos e conhecemos, que há numerosos modos de
existência, atuais e virtuais. Ler David, ler sobre a infância e acompanhar
os medos, anseios e ansiedades de crianças e adultos nesta pandemia, exige
respostas acuradas, não reações imediatas. Exercitar a honestidade e a
pausa, para pensarmos juntos e vivermos, juntos, essa infância que se
apresenta diante de nós e nos toma, de súbito, é o que o momento exige.
Os textos de David Kennedy nos lembram que filosofar com crianças
é também criar respostas novas mediante os desafios e as questões de
nossos tempos, novas relações adulto—criança. Sempre que a palavra e o
já conhecido não podem mais abarcar o vivido, somos convocados a pensar
de novo, a suspender o que não conseguimos mais dizer e suspeitar, criar,
infanciar.
Ler David, hoje, nos ajuda no exercício de perguntar, de criar novas
maneiras de convívio, de rejeitar postulados e decisões institucionais e
governamentais acerca dos modos de trabalho e de vida. As palavras de
David nos colocam diante da responsabilidade de criar possibilidades de
acolher e acompanhar as crianças em seus questionamentos e suposições,
aumentando, mutuamente, nossa potência de pensar, agir e viver. Essas
leituras têm sido um respiro, embora às vezes falte fôlego, pois nos
perguntarmos pelo que importa, pela vida que queremos viver, pelo que
devemos aprender. Modificar hábitos cotidianos e modos de estar no

18
Prólogo

mundo é desafiador e exige trabalho, atenção, critérios e tempo. Corremos


riscos. Assim temos atravessado fluxos de infância.
Ler, eleger, entre tantas escritas, aquelas que possibilitam novas
inscrições, que nos dão força e nos potencializam é o que nos ocorre agora.
Os textos aqui reunidos nos ajudam a cuidar das conversações, a nos
ocuparmos do que importa, a exercitarmos o pensamento crítico, criativo,
colaborativo. Com David Kennedy, na amizade da leitura, fica o apelo à
partilha da admiração pela infância; fica também o desafio de vivenciar
infâncias nesse mundo novo que se apresenta.

Brasília e Porto Alegre, maio de 2020

19
ORIGEM DOS TEXTOS.

1. “Os movimentos das crianças pequenas: Comunidade de Investigação


Filosófica Emergente no Discurso da Primeira Infância” foi publicado como
“Young Children's Moves: Emergent Community of Inquiry in Early
Childhood Discourse." Critical and Creative Thinking 4, 1, 1996.

2. “Reconstruindo a infância” foi publicado como “Reconstructing


childhood”, Thinking 14, 1, 1998.

3. “A filosofia da infância e a política subjetividade” foi publicado como


“Notes on the Philosophy of Childhood and the Politics of Subjectivity.” The
Paideia Archive: Twentieth Century World Congress of Philosophy 18, 1998:
12-19. https://doi.org/10.5840/wcp20-paideia199818343

4. “Pensar por si mesmo e com outros” foi publicado in: Kohan, W. & Leal,
B. (Eds.), Filosofia para crianças em debate. Petrópolis: Vozes, 1999.

5. “Las Cinco Communidades.” Foi publicado em castelhano, traduzido por


Vera Waksman, in: Kohan, W.; Waksman, V. (Eds.), ¿Qué es Filosofia para
Niños? Ideas y Propuestas para Pensar la Educación. Buenos Aires: Oficina
de Publicaciones del CBC (UBA), 1997. Em inglês: "The Five Communities."
Analytic Teaching 15, 1 (November 1994) [também publicado em Inquiry
16,4 (Summer 1997)]

6. “A escola do terceiro reino alegre” foi publicado in: Kohan, W. (Org.),


Lugares da infância: filosofia. Rio de Janeiro: DP & A, 2004.

7. “Desde um espaço sideral e do outro lado da rua: a dupla visão de


Matthew Lipman” foi publicado em inglês como: “From outer space and
across the street: Matthew Lipman‘s double visión”. Childhood &
Philosophy, v. 7, n. 13, jan.-jun., 2011, p. 49-74.

8. “Aión, kairós and chrónos: fragmentos de uma conversa infindável sobre


infância, filosofia e educação” (com Walter Kohan) foi publicado em inglês
em Childhood & Philosophy, ISSN-e 1984-5987, v. 4, n. 8, 2008, p. 5-22.
David Kennedy

Em português, foi publicado em: (Re) tratos da infância e da educação.


Belem, PA: Açai, 2009, p. 131-159.

9. “Incêndios: infância e infantia” (com Walter Kohan) foi publicado em


inglês como: On Knives, Infantia, and the Inhuman: A Lyotardian Reading
of Incendies. Childhood & Philosophy. v. 12, n. 23, 2016, p. 137-154.

22
1. OS MOVIMENTOS DAS CRIANÇAS PEQUENAS:
COMUNIDADE DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA EMERGENTE
NO DISCURSO DA PRIMEIRA INFÂNCIA

O que acontece quando um pequeno grupo de crianças de cinco anos


se senta com um professor com sensibilidade filosófica para conversarem
sobre magia e ciência, sobre linguagem ou bruxas e fadas? É possível
identificar algumas estratégias recorrentes de argumentação filosófica ou
“movimentos” que permitem construir um argumento emergente maior?
Quero tentar seguir uma suspeita que tenho de que a natureza do diálogo
coletivo é tal que, quando crianças de quatro anos conversam em grupos,
e quando alguma estrutura é oferecida por um facilitador do diálogo
minimamente capacitado, o pensamento do tipo crítico, criativo e
colaborativo acontece mais ou menos espontaneamente e que há uma
estrutura emergente de argumentação que forma o horizonte de cada
discussão crítica.

23
David Kennedy

Defendo o pressuposto de que, de acordo com a natureza da


linguagem enquanto estrutura lógica e comunicativa, quando conversamos
- e especialmente quando falamos colaborativamente em turnos sobre um
determinado assunto -, fazemos espontaneamente pelo menos alguns dos
movimentos do pensamento crítico. A estrutura da língua e do discurso
comum nos leva a classificar e categorizar, a fazer generalizações, a prover
exemplos e ilustrações, a definir termos, a construir analogias e a formular
hipóteses. Fazer nosso caminho com a língua implica trabalhar com
critérios, consistência e contradição, conexões parte-todo e ambiguidade.
Em um nível básico, e desde que não estejamos inibidos por um conflito
extremo ou por alguma outra influência deformadora, não temos que nos
propor a trabalhar as ideias dos outros, a corrigir nossas próprias ideias
através do diálogo ou a propositadamente trabalharmos para produzirmos
um juízo justificável sobre o tema em discussão. Estou sugerindo que pelo
menos alguns destes movimentos e atitudes estarão presentes em qualquer
discurso grupal, seja de modo fraco ou forte dependendo dos membros do
grupo e de suas experiências neste tipo de conversação.
Também quero fazer um apelo de maior alcance acerca de o efeito
geral destes movimentos ser sistêmico: cada movimento está relacionado,
de alguma forma, com todos os que vieram antes dele e com todos os que
se seguem, ainda que apenas como elemento único de uma sequência
diacrônica. A conversação é uma estrutura discursiva emergente,
continuamente em construção por seus participantes. Não importa quão
efêmero, caótico ou entrópico seu estado corrente ou final seja, a
conversação nunca pode perder sua identidade sistêmica. A noção de Peirce
sobre a indução de acordo com a “lógica das relações”, ou “relativos”, pode
nos auxiliar a compreender este caráter construtor de sistemas inerente ao
diálogo grupal:

24
A comunidade da infância

A indução, de acordo com a lógica comum, surge da contemplação de uma


amostra de uma classe para a de toda a classe; mas, de acordo com a lógica
dos “relativos”, ela surge da contemplação do fragmento de um sistema
para o vislumbramento de um sistema completo.1

O modo como procede o “sistema completo” da discussão do grupo


– quer seja se constituindo, se dissipando ou em qualquer outro estado
caótico intermediário - é o que intento traçar aqui. Como um sistema
emergente e não-linear, podemos esperar que ele seja, em certa medida,
auto-organizador, que tenha um nível razoavelmente alto de
imprevisibilidade e que se propague em contínua transformação através de
desequilíbrio. Em uma conversação de caráter filosófico ou crítico, cada
rodada do diálogo pode ser caracterizada como um “movimento”, um
fragmento do sistema completo. Um movimento pode deixar o sistema mais
ou menos como estava, mas nunca exatamente como estava. Uma
taxionomia de movimentos e seus efeitos é impossível de fazer aqui, mas
podemos afirmar de uma forma geral que cada movimento age, em maior
ou menor grau, para lançar o sistema em desequilíbrio. Dependendo da sua
natureza, e de onde ele suja, o movimento pode atuar tanto para romper
um corrente equilíbrio, quanto para estabelecer um novo equilíbrio.
Contudo, estas duas ações são intercambiáveis, já que uma leva à outra. O
sistema, por si só, inclui todos os movimentos e usa todos os movimentos
no interesse do seu objetivo, que é a coordenação de todas as perspectivas,
o que, em termos de sistemas, significa entropia e, em termos humanos,
significa o esforço para a unidade na diversidade, isto é, a comunidade. Esta
unidade é apreendida indutivamente na lógica das relações que é guiada
por um intuitivo “vislumbramento de um sistema completo”.

1
Collected Papers of Charles Sanders Peirce, C. Hartshore, P. Weiss e A. Burks, ed, Cambridge:
Harvard University Press, 1935, 1958, vol. 4, par. 05.

25
David Kennedy

Nas transcrições de conversações curtas entre pequenos grupos de


crianças de cinco a sete anos, que apresento a seguir, tento identificar os
movimentos envolvidos e ver como estes fazem avançar a discussão.
Também identifico padrões dinâmicos e mais amplos de argumentação, que
poderiam ser descritos como estilos dialógicos ou formas básicas de
padronização do jogo particular de linguagem que é um grupo investigativo.
O que eu estou tentando realizar aqui é realçar a estrutura da emergência
das conversações, identificando elementos recorrentes e pensando sobre
como eles operam. Escolhi três conversações para análise, todas elas
conduzidas, gravadas e transcritas por Vivian Lussey Paley, uma professora
do pré-escolar, e publicadas em seu livro Wally`s Stories (Harvard
University Press, 1981). Em cada caso, suas intervenções parecem ser
essenciais para a emergência da discussão, mas elas parecem-se mais com
um andaime para os movimentos que as crianças realizam
espontaneamente, do que com um chamado específico ou uma modelagem
destes movimentos. Deste modo, a professora mostra como uma facilitação
habilitada é necessária, mas não suficiente, para a emergência da
comunidade de investigação entre crianças pequenas.

Primeira conversação: Mágica e Ciência


Um pequeno grupo de alunos da segunda série está discutindo sobre
mágica.

Professora: Um garoto do jardim de infância disse à turma que queria se


tornar a mãe de um leão quando crescesse. Ele disse que faria isto
praticando mágica.
Thalia: Mágica não faz as coisas que as pessoas querem ser.
Professora: Há, afinal, algum uso para a mágica?
Thalia: Há truques de mágica. Você pode aprender truques.

26
A comunidade da infância

Harry: Bem, ele poderia colocar um disfarce e, então, poderia haver um


gravador ao lado dele de um leão e as pessoas pensariam que ele era um
leão de verdade.
Thalia: Mas isso ainda seria um truque.
Stuart: Como o estojo de mágica que minha irmã me deu. As bolas não
desparecem mesmo. Elas estão nas xícaras todo o tempo.
Harry: O único tipo de mágica que realmente existe é a força sobre-humana.
Isto é que é realmente verdade.
Allan: Se você sabe como fazer coisas mágicas, você tem que continuar a
praticar até que você saiba como fazê-las realmente bem.
Thalia: Mas ainda são apenas truques, Allan.
Allan: Todas as coisas não são truques, Thalia.
Professora: Mesmo que você praticasse durante anos, você poderia aprender
a tornar-se um animal?
Allan: Não, mas talvez alguma outra coisa.
Stuart: Meu amigo faz isto — não é mágica, mas é como mágica. Como
uma vez ele acreditou tão intensamente que seu pai lhe daria algo e quando
aquele dia chegou seu pai realmente lhe deu o que ele acreditou.
Professora: Isso é como desejar?
Stuart: Não. Ele estava apenas acreditando em sua mente que seu pai lhe
daria algo.
John: Este garoto na sua turma. Era apenas algo que ele queria mesmo que
acontecesse, mas não podia acontecer. Foi uma fantasia.
Harry: Cientistas podem trabalhar muito e elaborar uma fórmula para
transformar alguém em leão.
Thalia: O único tipo de mágica sobre a qual eu ouvi falar são milagres.
Professora: Será parecido com o amigo do Stuart acreditando, com muita
força, em algo?

27
David Kennedy

Thalia: Um pouco diferente. É como você desejar que algo vai acontecer,
mas você sabe que não acontecerá e, então, de repente, acontece.
Sally: Eu penso que pode haver uma poção algum dia. Eu não acredito que
possa acontecer. Eu quero dizer, uma poção para transformar alguém em
um leão. Mas pode acontecer.
Harry: Eles poderiam ser capazes, não de transformá-los em um leão, mas
fazê-lo parecer um leão, com todos os médicos esforçando-se muito para
isto.
Sally: Você quer dizer parecer um leão, mas não falar como um leão. Não
rugir, nem nada. Mas isto não seria mágica. Isto teria algo a ver com ciência.

O primeiro movimento dessa conversação, o da professora, é uma


questão exemplar. Ela é seguida por uma proposição, neste caso uma
declaração negativa da Thalia: “Mágica não faz as coisas que as pessoas
querem ser”. Ela poderia ser padronizada assim: “Nenhum ato de mágica é
um ato capaz de transformar as pessoas em algo ou alguém diferente”. A
mágica, diz a Thalia, não é real, mas é a arte da ilusão ou truques. Dois
exemplos são oferecidos, um por Harry, aplicado à pergunta original da
professora, e um exemplo pessoal do Stuart.
Então o Harry introduz uma nova ideia: a de que há mágica real e
verdadeira - a “força sobre-humana”. Esta ideia está assimetricamente
paralela à reivindicação de Allan de que a mágica poderia tornar-se “real”,
não apenas “truques”, se você os praticasse durante um tempo suficiente.
Em outras palavras, a diferença entre a mágica “real” e “truques” seria uma
diferença de grau mais que de tipo.
Thalia assegura que é realmente uma diferença de tipo: “São apenas
truques, Allan”. Mas Allan se apega à possibilidade de que possa haver uma
mágica que não seja apenas truques. Pode não ser uma muito precisa ou
altamente desenvolvida. Por exemplo, transformar-se em um animal pode

28
A comunidade da infância

ser muito difícil, mas talvez, depois de anos de prática, você possa tornar-
se “alguma outra coisa”.
Stuart, ainda extraindo algo de sua experiência pessoal, introduz um
novo conceito — “acreditar, mesmo”. Ele distingue isto de mágica, mas
reivindica que é “como mágica”, isto é, algo análogo. John contra argumenta
que isto também não é “real”: não é um truque, mas uma autoilusão, um
enganar-se a si mesmo.
Harry e Thalia introduzem duas outras novas ideias que sintetizam o
que veio antes. Harry apresenta uma ciência-mágica “real” que se afasta
bem das especulações de Allan. Ele diz “cientistas poderiam trabalhar
bastante e elaborar uma fórmula para transformar alguém em um leão”.
Thalia reage tanto ao desafio de Allan de que deveria haver uma mágica
“real” quanto à proposta de Harry da ciência como, pelo menos, algo
análogo à “mágica real”, oferecendo o milagre como um caso de mágica
“real” e, então, a distingue (com o auxílio da professora) do “acreditar” de
Stuart.
Sally entra na discussão. Ela retorna à sugestão de Harry sobre a
aproximação mútua entre mágica e ciência. “Eu penso que pode haver uma
poção algum dia. Eu não acredito que possa acontecer. Eu quero dizer, uma
poção para transformar alguém em um leão. Mas pode acontecer”. Ela está
reunindo o “Continue praticando até que você saiba como fazê-lo realmente
bem” do Allan, o “anos de prática” da professora, o “cientistas trabalhando
bastante para elaborar uma fórmula” do Harry, e resumindo as posições
deles com a noção de contínuo avanço científico e tecnológico que poderia
conduzir à descoberta. Sally usa a palavra “poção” que evoca, perfeitamente,
as históricas conexões entre mágica e ciência.
Harry responde a este movimento integrativo: “Eles podem ser
capazes de não o transformar em um leão, mas fazê-lo parecer com um
leão, com todos os médicos esforçando-se para isso”. Em outras palavras,

29
David Kennedy

seria ainda um “truque”. Harry está abordando a questão relativa à mudança


ontológica que está implícita na especulação de Sally. De fato, ele está
negando o poder de qualquer coisa transformar um tipo ontológico em
outro, o que reduziria o que a ciência poderia realizar a simples mudanças
de aparência. Sally, então, se autocorrige por meio da recolocação de seu
apelo: “Você quer dizer parecer com um leão, mas não falar como um leão.
Não rugir, nem nada”. E acrescenta: “mas isto não seria mágica. Seria algo
que teria a ver com a ciência”. Aqui Sally reintegra a questão implícita em
toda a discussão desde que a noção de ciência foi introduzida por Harry,
isto é, as similitudes e diferenças entre mágica e ciência. As crianças
parecem estar se movendo em direção ao mais amplo juízo de que a mágica
se relaciona à mudança ontológica, que não é possível, e que a ciência se
relaciona à mudança dentro de categorias ontológicas, o que é possível.
Que padrões de argumentação emergem dessa pequena discussão?
Primeiro, ela representa uma recolha de dados marcadamente rápida. Em
poucos minutos de fala representados aqui e com o auxílio habilidoso e
parteiro da professora, são introduzidas e examinadas nada menos que
quatro definições de mágica ou de coisas análogas à mágica. Essas quatro
definições emergem no contexto de duas grandes questões ontológicas mais
abrangentes: se há algo como mágica “verdadeira” e as diferenças e
similaridades entre mágica e ciência. Outro modo de descrever este
movimento será como proliferação, seja de exemplos, de membros de uma
classe ou de hipóteses. É um movimento enciclopédico, operando através
de associação e analogia. Frequentemente é dirigido pela experiência
pessoal, como, por exemplo, com Stuart, que cita ambos o estojo mágico
que sua irmã lhe deu e seu amigo que “acreditava, mesmo”. Esta é uma
estratégia do que Peirce denominou “abdução”2 e que, em oposição à

2
Para uma pequena discussão sobre a relação entre abdução e juízo conceitual, assim
como abdução e “qualquer universo dado do discurso”, ver Robert S. Corrington,

30
A comunidade da infância

indução ou dedução, procura superar os dados imediatos e incorporar


categorias mais gerais. O esforço da abdução está em ajustar-se aos signos
com os quais ela está trabalhando em um universo de discurso, ou jogo de
linguagem, e que irá satisfazer a todos. Estas crianças estão construindo
(ou reconstruindo) o jogo de linguagem sobre mágica/ciência/tecnologia,
que é parte de um jogo da linguagem ainda mais vasto sobre causalidade e
categorias ontológicas.
Proliferação não é, de forma alguma, tudo o que está ocorrendo nesta
amostra, como deveria ser em uma conversação que fosse dedicada, de
forma autoconsciente, a um “brainstorming”. Os processos fundamentais
de construção de sentido de juízos ativamente procurados — fazer
comparações, exemplificar, avaliar analogias, etc. — apreendem e guiam o
movimento do argumento. O resultado é uma estrutura emergente de
juízos locais, que crescentemente implicam em outros mais inclusivos e
universais. Poderíamos compará-lo à construção coletiva da estrutura de
“unidade de bloco”, na qual cada pessoa acrescenta um pedaço diferente,
conduzindo a relações espaciais tanto simétricas quanto assimétricas, mas
todas estruturalmente conectadas. Cada pedaço que não se equilibra aos
outros é dialogado até que se equilibre ou seja descartado.
A analogia com a “unidade de bloco” não é inteiramente adequada.
Por um lado, a estrutura é sempre provisória e nunca está completamente
em equilíbrio. Esta estrutura está sempre em busca de equilíbrio, mas
cresce apenas através da perda de equilíbrio. Os padrões deste movimento
geral podem ser descritos com palavras como ramificações, justaposição,
trama, síncope, todas em referência a uma emergência da discussão
localmente caótica, mas em última análise ordenada. Por exemplo, um
falante pode introduzir uma nova ideia, mas o falante seguinte manterá ou

Nature and Spirit. An essay in Ecstatic Naturalism ( New York: Fordham University
Press, 1992, p. 83-85).

31
David Kennedy

retornará a uma ideia anterior. No entanto, a nova ideia não estará perdida
— ela reaparecerá momentos depois, integrada na discussão maior, seja
pelo mesmo ou por outro falante. Uma ideia que, quando primeiramente
introduzida, parece não estabelecer qualquer conexão ou apenas uma
pequena conexão com as ideias precedentes, aparecerá, depois de algumas
rodadas, completamente conectada. Um momento de integração virá - como
acontece com a entrada de Sally na conversação acima transcrita — no
qual se encaixam elementos que estavam apenas vagamente conectados até
então e a discussão se auto clarifica. Isto ocorre por conta de sua qualidade
recursiva e integradora, de sua tendência a circular e a incorporar
elementos anteriores em sua próxima vaga constelatória.

Segunda conversação: Língua e Política


Instigada por observar Akemi, uma criança pré-escolar japonesa que
está preocupada em aprender inglês, Paley já envolveu as crianças em várias
questões sobre línguas: “Por que há tantas línguas diferentes?” e “Por que
há tantos alfabetos diferentes?” Agora, em uma terceira conversação, ela
levanta outra questão. Um dos participantes, Warren, é chinês-americano.
Ele fala apenas inglês, mas seus pais falam inglês e chinês. Em uma
conversação anterior, ele havia informado ao grupo: “Eu irei a uma escola
chinesa aos sábados quando eu completar seis anos”. Akemi é um imigrante
japonês recente que, depois de um período de rejeição, está, agora,
intensamente envolvido em aprender inglês.

Professora: Se você estivesse no comando do mundo, você faria


apenas uma língua ou várias línguas, do jeito que é agora?
Tanya: Uma língua. Oh, sim! Então eu poderia entender todas as
pessoas no mundo inteiro.

32
A comunidade da infância

Eddie: Não, deixa continuar deste jeito, assim diferentes países


continuarão a ser diferentes. Então você viaja para ver como aqueles países
são e como eles falam.
Ellen: Eu gosto do mundo do jeito que ele é, mas eu não gosto de
luta.
Professora: Será porque eles possuem línguas diferentes?
Ellen: Bem, se eles não podem se entender uns aos outros, eles podem
pensar que boas palavras soam como palavrões.
Wally: Ela quer dizer como se alguém diz: “vamos brincar” em francês,
então em chinês eles podem pensar que ele disse “vamos lutar”.
Warren: Deixa estar deste jeito porque se você é chinês você deverá
aprender inglês.
Professora: O inglês tem que ser a língua que todos aprendem?
Warren: Eu não sei o que Deus gosta de falar. Espere, eu mudei de
ideia. Deixa todos dizerem a mesma língua. Então quando minha mamãe e
meu papai conversarem quietinhos, eu poderei entendê-los.
Tanya: Eu também mudei de ideia. Melhor não ter a mesma língua.
Eis o porquê: seja quando for que este mundo teve a mesma língua, todos
iriam dizer que queriam que sua língua fosse aquela que todos terão que
ter. Então, todos iriam culpar alguém por dar a eles a língua errada.
Akemi: Se todos falassem Japão, todos têm que morar lá. Meu país é
pequeno demais para a grande América.
Warren: Todos podem vir para a China. Ela é bem maior. Deixa o
chinês ser a língua. Não, eu mudei de ideia. Deixa minha mãe e meu pai
falarem inglês todo o tempo. (retirado de Wally's Stories, pp.119-120).
Tanya inicia esta série de movimentos retomando a pergunta do tipo
“se-então” da professora com uma afirmação: ela está disposta a mudar o
mundo a fim de entender todos nele. Eddie argumenta, com o fundamento
de que a variedade é preferível à mesmidade em língua e cultura. Mas Ellen

33
David Kennedy

imediatamente relaciona variedade a conflito humano: “Eu gosto do jeito


que está, mas não gosto de lutas”.
A professora Paley volta a circular com uma questão esclarecedora
para a Ellen, conectando o tema diferença/conflito, que ela havia levantado,
à questão da língua em particular: “[As pessoas lutam] porque elas possuem
línguas diferentes?” Ellen aproveita a dica e oferece um exemplo de como
diferentes línguas poderiam levar ao conflito: “elas poderiam pensar que
boas palavras soam como palavrões”. Wally segue com um exemplo ainda
mais concreto: “Vamos brincar”, dito em francês, poderia soar como “Vamos
lutar”, em chinês.
Warren, o menino chinês-americano, cujos pais falam chinês e
também inglês, volta à parte da questão de “se você estivesse no comando
do mundo”, para introduzir os aspectos políticos associados à língua. A
política, é claro, é sobre conflito. Sua experiência em “ter que”, ou seus pais
“terem que”, aprender inglês, o leva a prever que a língua que todos
poderiam ser coagidos a aprender seria o Inglês. Este, como sabemos, não
é um prognóstico assim tão improvável. Paley novamente levanta uma
questão clarificadora: por que seria o Inglês a única língua, se houvesse
apenas uma?
Sua questão leva o Warren a procurar, além de sua experiência
indutiva, outros critérios mais abrangentes para a escolha da única língua
que todos falariam, caso houvesse apenas uma. Ele chega até Deus como o
fundamento e origem da língua. Mas, mesmo indo até Deus, ele compreende
que é epistemicamente impossível: “Eu não sei o que Deus gosta de falar”,
ele diz. E como em uma celebração irônica da aporia resultante, confrontado
com o paradoxo de não haver critério pelo qual escolher, ele retorna à sua
própria experiência concreta. Mas o retorno é uma brincadeira desvirtuada,
tal como sinalizado pela ostentação retórica: “Deixa todos dizerem a mesma
língua”, que apresenta a reversão de sua posição. Warren parece estar

34
A comunidade da infância

realizando uma brincalhona reductio ad absurdum. Na verdade, ele está


dizendo: “Já que é impossível decidir qual a língua que deve ser, que seja
aquela do meu interesse”. Sua reflexão irônica invoca a política da infância
na qual os pais não se sentem envergonhados de falar sobre coisas que eles
não querem que seus filhos saibam na presença deles, meramente ao trocar
a língua utilizada.
Tanya ecoa a expressão de Warren: “Mudei de ideia”, mas não para
brincar com destreza como Warren. Ela retorna e auto corrige sua primeira
exaltação à unidade à luz da questão relativa ao conflito político sobre a
língua, que havia sido levantada: “Todos irão dizer que querem que sua
língua seja aquela que todos terão que ter. Então todos irão culpar alguém
por dar-lhes a língua errada”. A autocorreção de Tânia é também uma
integração, pois ela conecta as contribuições de Ellen, Warren e Paley e
reafirma o amplo modo “se-então” modo pelo qual a conversação teve início.
Agora Akemi se pronuncia: “Se todos falassem Japão, todos têm que
morar lá. Meu país é pequeno demais para a grande América”. Sua
afirmação retoma a associação de Eddie entre línguas e os países para os
quais é possível “viajar e ver como os países são e como eles falam”. Ela usa
a conexão que o comentário dele evoca entre língua, identidade cultural e
nacional e lugar para comparar as duas línguas e lugares que ela conhece
e perceber suas maiores diferenças. Sua sentença “se-então” está
fundamentada na proposição “todos os falantes do japonês moram no
Japão”. Isto logicamente tornaria impossível a existência de apenas uma
língua, já que nem todas as pessoas do mundo caberiam no território
japonês — apesar de que Akemi possa ainda não estar segura de que isto
não aconteceria na “grande América”, que é enorme na comparação.
Finalmente, Warren realiza uma rápida exemplificação análoga à
comparação de tamanho feita por Akemi, usando a China, em vez do Japão,
“Todos podem vir para a China. Ela é muito maior” - e, desse modo,

35
David Kennedy

apresentando outra vívida comparação. Em seguida, ele novamente se


apossa de sua brincadeira irônica com a noção de estar “no comando do
mundo”, ao repetir, pela terceira vez: “eu mudei de ideia” e, novamente,
usando o majestoso e soberano imperativo “deixa”.
Esta conversação parece mais centrífuga que a primeira, que
construía uma estrutura bastante rígida. Talvez isto se deva, não apenas à
menor idade das crianças (cinco em vez de sete anos de idade), mas também
a quem são os participantes, assim como ao assunto da conversa e ao fato
de a professora tê-la apresentado com uma proposição contrafactual. As
contribuições de Warren, em particular, introduzem na estrutura uma
lógica irônica e humorística/paradoxal. Porém, todas as crianças parecem
favorecer um estilo de jogo combinatório. Há uma grande quantidade de
fala contrafactual brincalhona nesta conversação, isto é, modificando
hipoteticamente a situação e vendo o que acontece. É como a proliferação,
apesar de mais metodicamente dialética, no sentido de aprender a manter
sistematicamente semelhanças e diferenças entre si, a fim de explorar o
assunto. Peirce refere-se a esta tendência para jogos combinatórios como
“consciência esportiva”. Ela está conectada à sua ideia de “especulação
interpretativa” baseada na “Spieltrieb” de Schiller, ou instinto de jogo.3
A habilidade para jogar pressupõe a lógica das relações, pois aquela
que joga se dá à dinâmica e estrutura do jogo, assim como a um contexto
mais amplo, um todo implícito em cuja estrutura emergente ela
implicitamente confiou. Daí também a conexão entre especulação e a noção
caótica de “tiquismo” (tychism) — ou o papel do acaso, não apenas na
evolução, mas no desenvolvimento da investigação — combinada com o
“sinequismo” (synechism), isto é, a continuidade última e relacional de todas
as pessoas, coisas e ideias. A investigação se origina em uma forma de jogo

3
F. Schiller, On the Aesthetic Education of Man, ed. E.M. Wilkinson & L.A. Willoughby
(Oxford University Press, 1982.

36
A comunidade da infância

abdutivo com os conceitos em discussão, e variações casuais que conduzem


a compreensões não previstas e conexões que, eventualmente, levam a
uniformidades novas e mais altas do que aquelas originalmente violadas: “a
mudança gera ordem”. A especulação interpretativa é um tipo de
deslizamento sobre o jogo da linguagem e pensamento, abastecido pelo
instinto para o poder da conexão imprevista, na fé implícita de que “as
ideias tendem naturalmente a se generalizar, a constituir associações... a
“crescer” ou evoluir.”4
O contexto evolutivo desta conversação, dentro da qual estas crianças
jogaram, parece estar relacionado ao interjogo das duas questões implícitas
na questão original de Paley: 1) O que significaria ter o poder de realizar
algo tão global como mudar a língua que as pessoas falam? 2) Como seria
uma língua única mundial? O contexto, fornecido por estas duas questões,
não é apenas um contexto em evolução, mas é também um contexto
autorregulador. A introdução de cada novo elemento provoca, de algum
modo, uma mudança no todo. Ele perturba um equilíbrio corrente e inicia
o percurso para o reequilíbrio, e assim por diante, em um processo
evolutivo sempre em mudança, em expansão e imprevisível.
Este diálogo também possui momentos interessantes de
exemplificação, em particular os dois exemplos de como diferenças de
língua poderiam conduzir a lutas, nos quais Wally ilustra o exemplo de
Ellen mais concretamente. E, então, há o claro exemplo de autocorreção,
isto é o exemplo da Tanya, que mostra como sua primeira entusiástica
aprovação de uma língua mundial única é moderada pela discussão sobre
políticas da língua que decorre de sua afirmação original. A autocorreção
de Warren é brincalhona, irônica e retórica. Sua brincadeira se refere ao

4
Michael L. Raposa, Peirce’s Philosophy of Religion. Bloomington: Indiana University
Press, 1989, p. 47. Para ampla, bem documentada organização das noções de Peirce
de Tychism, especulação e jogo, ver p. 31-32, 74, 126-133.

37
David Kennedy

papel do interesse pessoal fora de considerações enormes, globais. Mas,


mesmo fazendo isto, ele está demonstrando sua própria reflexão sobre a
relação entre os dois, bem como provendo um comentário irônico sobre
política, acerca do qual grande parte da conversação trata. Mas, mesmo
fingindo autocorreção, Warren está reconhecendo-a como
fundamentalmente importante.
O processo de autocorreção opera tanto em indivíduos quanto no
grupo como um todo5 e parece ser governado pelo esforço social e cognitivo
para produzir estruturas de entendimento que reconhecem cada
perspectiva individual e harmoniza mais completamente cada uma com um
ponto ômega de uma perspectiva em direção à qual todos estão
caminhando, em constelações cada vez mais integradas. Corrington,
seguindo Peirce e Josiah Royce, caracteriza isso como um percurso implícito
de uma comunidade de intérpretes em trabalhar para “adaptar o eu e a
comunidade a uma rede de significados temática e inteligível”, através de
um processo de “libertar interpretações passadas da opacidade” e permitir
a emergência de novos significados.6

Terceira conversação: O Sobrenatural, o Bem e o Mal


Um pequeno grupo pré-escolar da professora Paley está discutindo
“a fada do dente”

Professora: Eu me pergunto por que as pessoas falam em uma fada


do dente e não em uma bruxa do dente...

5
Matthew Lipman, “Critical Thinking: What can It Be”, in Educational Leadership 46,
I, 1988, p. 38-43. Lipman identifica quatro aspectos do pensamento crítico em grupos:
fundamentação em critérios, sensibilidade ao contexto, busca de juízo sobre algum
assunto e autocorreção.
6
Robert S. Corrington, Nature and Spirit, p. 144.

38
A comunidade da infância

Jill: Uma fada do dente vem através da parede e uma bruxa tem que
bater na porta.
Wally: Se uma bruxa viesse, ela poderia roubar a criança.
Eddie: Jill, eu não penso que uma bruxa bateria na porta — ela a
arrombaria. Ela poderia até roubar a mãe.
Jill: A fada do dente deixaria 25 centavos e, então, a bruxa vem e
rouba o dinheiro. Mas, então, você faz o desejo novamente.
Warren: Uma bruxa levaria embora o travesseiro. Espere, primeiro
ela coloca sua vara mágica debaixo do travesseiro, então ela faz o travesseiro
desaparecer, aí a vara machuca sua cabeça. Então sua mãe tem que vir e
dormir com você porque você pode estar sangrando.
Deanna: Bruxas do dente deixariam aranhas no dinheiro.
Kim: Não existem bruxas do dente.
Deanna: Eu sei, quero dizer se existissem.
Kim: Bruxas não podem ser invisíveis. Então só uma fada pode ser
uma fada do dente.
Deanna: Fadas são sempre boas. Se elas fizerem algo ruim, elas se
tornam bruxas. Então, em seiscentos anos, uma bruxa pode ser fada de
novo.
Wally: Ah! Então é assim que existem fadas boas no Mágico de Oz.
(retirado de Wally's Stories, pp. 44-45)

A questão do que é igual e do que é diferente entre fadas e bruxas


está implícita na pergunta de abertura de Paley. Jill imediatamente fornece
uma distinção: fadas são sobrenaturais, ou pelo menos imateriais, enquanto
que bruxas são reais, pessoas de carne e osso. Wally acrescenta, então, que
bruxas e fadas têm motivos diferentes. Bruxas são, de fato, maliciosas,
enquanto, entende-se, fadas do dente vêm para realizar boas transações
com as pessoas.

39
David Kennedy

Eddie continua a construir o argumento ao moderar as intervenções


de Jill e Wally. Ele atribui poderes às bruxas que, se não são sobrenaturais
são, pelo menos, sobre-humanas: bruxas conseguem arrombar portas e, até
mesmo, roubar pessoas grandes. Jill, voltando à distinção entre as
motivações de bruxas e fadas, exemplifica-as descrevendo a primeira
roubando o dinheiro deixado pela outra. Mas Jill também acrescenta um
elemento cômico à história ao introduzir a ideia de que, mesmo se a bruxa
roubar o dinheiro, seria possível tê-lo de volta apenas desejando-o de novo.
Construindo sobre o motivo da bruxa roubando o dinheiro deixado
pela fada do dente, Warren elabora, em forma de história, uma cadeia
especulativa causal: a bruxa coloca sua vara mágica debaixo do travesseiro,
presumivelmente para apanhar o dinheiro. A vara faz o travesseiro
desaparecer, sua cabeça cai na vara, você se machuca, sua mãe vem e dorme
com você se você se você estiver sangrando. Como no diálogo anterior,
Warren está brincando com intensos sentimentos relativos aos seus pais,
com ideias sobre contingência e com a lógica do absurdo, todas em um
contexto de eventos casualmente encadeados. Ele tem um jeito de pensar
em voz alta ou deixar seu pensamento desabrochar e assisti-lo ironicamente.
Quando ele pensou na bruxa colocando sua vara debaixo do travesseiro, ele
já estava pensando no travesseiro desaparecendo e na cabeça da criança
caindo na vara e ela se machucando? Provavelmente, não. É como a lógica
selvagem do humor de Chaplin, pintada por Chagall.
Deanna retorna à questão original de Paley (talvez ela tenha estado
se debatendo com isto ao longo das últimas rondas): se fadas do dente
fossem bruxas do dente, elas deixariam dinheiro com aranhas nele. Seria
dinheiro ruim, assustador. Kim a relembra que a proposição “Nenhuma
bruxa é fada do dente” já havia sido feita e aceita. Deanna assegura a ela
estar especulando com uma proposição contrafactual. Porém, como se para
enfatizar e recapitular a discussão realizada até então, Kim repete o motivo

40
A comunidade da infância

pelo qual a proposição “nenhuma bruxa é fada do dente” foi aceita: bruxas
são materiais e visíveis e fadas do dente fazem coisas imateriais, invisíveis,
como atravessar paredes. Na verdade, ela está oferecendo um silogismo:

Todas as fadas são seres invisíveis


Nenhum ser invisível é bruxa
Nenhuma bruxa é fada

Kim também está introduzindo a ideia de que fadas do dente são


apenas um membro da classe de fadas. Deanna apanha esta ideia e a
desenvolve com uma afirmação que coloca em modo proposicional a
primeira observação realizada por Wally sobre as motivações das fadas e
bruxas em modo proposicional: “Todas as fadas são seres bons”. Ela, então,
introduz a questão sobre se a diferença entre fadas e bruxas é uma diferença
de grau ou tipo, ao oferecer a hipótese de que todas as fadas são boas, mas
podem tornar-se más, pelo que são punidas tornando-se bruxas, com a
possibilidade de conquistarem sua condição de fada depois de um longo
período de tempo. Os pares contrastantes implícitos, através dos quais ela
formula esta hipótese, estão em uma forma mais ou menos análoga
inacabada: bom/espiritual/invisível—mau/ material/visível.
Como se isto não fosse suficientemente complexo, Wally (em
referência a quem o livro de Paley é intitulado) faz outra transição: se fadas
e bruxas representam uma diferença de grau, então deveria ser possível
dizer que “Todas as fadas são bruxas boas” e “Todas as bruxas são fadas
ruins”. Isto ocorre a ele como a solução de uma questão que, de fato, o vem
preocupando desde que se familiarizou com O Mágico de Oz, onde há
bruxas boas. Isto é, a hipótese de Deanna serve para explicar, pelo menos,
este último caso. E, aqui, infelizmente, para nós, a transcrição acaba.

41
David Kennedy

Esta conversação oferece um bom exemplo de recorrência e


integração, na medida em que o fim do diálogo é um retorno ao início, de
forma mais explícita e proposicional. Parece haver em andamento um
contínuo girar, relacionar e entrelaçar, ou a recapitulação do argumento do
grupo em cada indivíduo. Há sempre um todo implícito, uma construção
sintética. Outro aspecto interessante deste fragmento é que as
generalizações seguem os exemplos. Jill e Wally primeiro apresentam suas
proposições como casos concretos: chegar através de uma parede para
indicar que fadas são invisíveis e imateriais, e ao roubar para indicar que
bruxas são más, em vez de boas. Depois de cinco rodadas, através de Kim,
os dois apelos se afirmam como o mais proposicionalmente possível: “Não
existem bruxas do dente”, “bruxas não podem ser invisíveis” e “fadas são
sempre boas”. É como se a proposição não estivesse ainda em forma
consciente e emergisse através do jogo dialético da exemplificação. Isto
suscita questões interessantes sobre a relação lógica e temporal entre um
exemplo e a generalização que ele exemplifica.
Finalmente, é digno de atenção que esta conversação demonstre
crianças elaborando hipóteses na forma de declarações proposicionais,
como se fossem fatos. O exemplo mais dramático é a afirmação de Deanna
sobre bruxas, fadas e seiscentos anos. Este tipo de pensar é característico
de crianças pequenas, sob vários aspectos. Primeiro, é um tipo de
proliferação abdutiva: reunir tudo o que todos já ouviram, leram etc. sobre
bruxas e fadas. A validação empírica não é tanto a questão (ainda que
algumas vezes seja e possa ser a qualquer momento, se uma criança a
levantar), quanto elaborar um argumento que junte bem as peças. Em
segundo lugar, é um tipo de jogo dramático. Este grupo está brincando de
conhecer tudo, que é frequentemente a maneira com a qual crianças de
cinco anos de idade percebem os adultos. Então, de certo modo, nós
poderíamos dizer que elas estão jogando a história de uma comunidade de

42
A comunidade da infância

investigação. Em terceiro lugar, e relacionado ao jogo-história, representa a


tendência a presumir-se que qualquer coisa que você possa pensar pode
ser verdade só porque você pode pensá-lo, o que é característico da
qualidade “transicional” do espaço psicológico do jogo da criança pequena,
no qual as fronteiras entre fantasia e realidade, interior e exterior, ainda
não estão claramente definidas7. Tão frequentemente quanto as crianças
contestam declarações selvagens como as que Deanna faz sobre bruxas e
fadas, elas também constroem sobre elas, assim como vemos Wally fazendo
aqui. O valor da verdade tem a ver tanto com uma coerência total — um
senso de correção moral e estética — como com qualquer verificabilidade
empírica. Ou seja, a verdade é uma história sobre algo que faz sentido.

Algumas conclusões
Estou sugerindo que nós olhemos para os movimentos e tendências
que eu identifiquei neste artigo — o esforço para o juízo, a proliferação
espontânea de dados, a díade proposição-exemplificação, jogo combinatório,
ramificações, recapitulação e integração, a sobreposição assimétrica de
temas e ideias, auto-organização e autocorreção - como ocorrências em
grupos discursivos de modo espontâneo e caoticamente ordenado. Isto
ocorrerá, em graus maiores ou menores, sempre que um grupo de pessoas,
quaisquer que sejam suas idades, se sentem e busquem realizar juízos sobre
algo que os interesse. Mas há estruturas mais amplas emergindo através do
jogo de movimentos menores e tendências? Ou eles acontecem apenas
localmente e a sua combinação em padrões mais amplos é, pelo menos
entre crianças pequenas, casual? Estas transcrições são curtas demais para
responder a estas questões. Mas uma aplicação da teoria de sistemas não-

7
Para uma análise acurada de “pensamento transicional”, ver D.H. Winnicott, Playing
and Reality. New York: Basic Books, 1971.

43
David Kennedy

lineares e da epistemologia da comunidade de investigação de Peirce - isto


é, lógica das relações, abdução, sinequismo, especulação interpretativa e
tiquismo - sugeririam que, mesmo que elas se formem casualmente, elas
são sistêmicas e, numa visão mais ampla, são perceptíveis padrões
recorrentes.
Mas é quando chegamos a “uma visão mais ampla” que a teoria do
caos e a epistemologia da comunidade de investigação de Peirce podem
acompanhar-se. De acordo com a última, há um movimento evolucionário,
fundado no sinequismo e no agapismo, ou um amor, que trabalha
crescentemente para entrelaçar o universo de pessoas e ideias, que dá forma
à investigação. Em termos de investigação grupal, isto está expresso no
esforço do grupo em desenvolver um discurso que é comum a todos,
adequado a cada indivíduo e que permite um entendimento do mundo
sobre o qual está falando. Trata-se, em outras palavras, de um movimento
teleológico em direção a uma verdade que – de acordo com o que grupo
implicitamente acredita -, será descoberta, a longo prazo, mesmo que este
“longo prazo” seja infinito. De acordo com a teoria do caos, constelações de
ordem podem formar-se através da ordenação caótica da investigação e elas
podem repetir-se e, mesmo, formar uma ordem mais ampla quando vista
sob várias instâncias. Mas a ordem é cíclica, mais do que orientada por
objetivos. As estruturas que a teoria do caos descobre na matéria e em
processos biológicos são padrões altamente complexos, intrincados e
“infinitamente profundos” que se tornam evidentes dentro da aparente
desordem após um elevado número de rodadas de discussão8. Pode ser, de
fato, possível encontrar estes padrões em discussões grupais após várias
rodadas. Mesmo que assim seja, a teoria não parece levar em conta os
elementos de intencionalidade e transcendência no discurso humano que

8
James Gleick, Chaos: Making a New Science. New York: Viking, 1987, p. 56-74.

44
A comunidade da infância

impulsiona uma crescente coordenação de perspectivas individuais. Ao


contrário, ela pode distinguir um padrão complexo e intrincado de temas e
conceitos recorrentes, bifurcados, “fractados”, mas eles não possuem
qualquer significação além de seus arranjos e eles sempre devem aparecer
depois do fato, algo como conteúdos do inconsciente, como revelados em
sonhos ou outros fenômenos que apenas se apresentam apenas através de
sinais indiretos.
Também não é evidente se dinâmicas não-lineares podem ajudar-nos
a entender os momentos decisivos que deslocam a discussão “em direção
a” ou “para longe de” seu objetivo implícito de coordenação de perspectivas.
Estes momentos parecem depender, fundamentalmente, de cada pessoa
individualmente e do caráter habitual de sua ação dentro do grupo e - pelo
menos em grupos de crianças pequenas - das ações habituais do facilitador.
De fato, no caso da maioria das crianças de cinco anos, é possível que, sem
a convocação da professora e sua supervisão do grupo, conversações como
estas aqui transcritas nunca acontecessem ou, se acontecessem, seriam
efêmeras. Os movimentos de Paley, por exemplo, tendem a convidar, mas
nunca a forçar a recapitulação, a integração e a autocorreção. Eles agem
para preparar os participantes em movimentos reflexivos e metacognitivos,
que propiciam aparições rápidas da estrutura emergente da discussão e a
cristalizar seu esforço implícito em direção ao juízo. Tais movimentos não
são facilmente aprendidos — eles não consistem apenas em solicitações de
resumos. A professora deve dar-se, a si mesmo, ao jogo da discussão tanto
quanto os estudantes, mas ele age como representante da estrutura lógica
implícita da tradição discursiva na qual o grupo opera. Ela representa a
aplicação consciente dos movimentos críticos que as crianças estão
realizando de forma mais espontânea, menos consciente.
Em que medida o progresso da discussão depende dos indivíduos no
grupo — suas idades, temperamentos e outros aspectos do estilo pessoal,

45
David Kennedy

suas experiências e as tradições discursivas de suas famílias? Até que ponto


cada criança foi exposta a um tipo de conversa que, mais ou menos
conscientemente, aspire a proceder de forma crítica? Em cada uma das
conversações descritas acima, há algumas crianças que agem para cristalizar
estruturalmente a discussão: Kim, na conversação sobre a fada do dente;
Harry e Sally, na conversação sobre mágica; e Tanya, na conversação sobre
língua e política. Serão fortuitos os seus movimentos ou, se tivéssemos mais
exemplos, poderíamos encontrar estas mesmas crianças realizando-os de
forma claramente consciente?
Minha experiência em conversações com crianças pequenas me
levaria a levantar a hipótese de que em qualquer grupo pode haver algumas
crianças que são relativamente menos influenciadas por interesses pessoais
ou modos altamente concretos de pensar e que, regularmente, realizam
movimentos que conduzem a discussão em direção a níveis mais altos de
generalização. Pelo contrário, crianças como o Warren podem não realizar
contribuições que conduzam diretamente à recorrência e integração, mas a
criatividade, paixão, senso de ironia e jogo lógico que ele traz são igualmente
essenciais ao movimento da discussão. A implicação parece ser que cada
grupo de pessoas é uma constelação dinâmica única e que cada indivíduo
em tal grupo traz seu estilo distintivo para contribuir com a emergência da
discussão.
Outra implicação pode ser que nem todo grupo é suposto funcionar
como uma comunidade de investigação — pelo menos não para uma
comunidade de investigação filosófica ou uma que seja dominada pelo
discurso linguístico e lógico. A emergência de uma comunidade de
investigação filosófica ou científica poderia ser fortemente determinada pela
presença de certos tipos de pensadores e de falantes e pelo modo como
eles interagem ou não. Por outro lado, a regra das proporções parece indicar
que várias formas de inteligência e muitos níveis de desenvolvimento de

46
A comunidade da infância

inteligências lógicas e verbais estão representados em qualquer grupo


estatisticamente normal. Então pode ser que praticamente qualquer grupo,
na medida em que sejam reconhecidas e permitidas todas as modalidades
individuais no jogo, seja um contexto possível para a comunidade de
investigação. Finalmente, há a questão de como uma comunidade de
investigação se parece, age e sente quando está em modos que não sejam
os verbais e lógicos como, por exemplo, entre artistas ou poetas, dançarinos
ou buscadores espirituais. Esta questão está relacionada às diferenças
culturais. Qual é o papel do estilo discursivo cultural ou da tradição
discursiva na formação da comunidade de investigação? Como pensaria e
conversaria sobre mágica um grupo de crianças de rua, brasileiras, de cinco
anos de idade, ou crianças iranianas ou crianças americanas nativas? Seriam
óbvios os mesmos movimentos e padrões de argumentação se elas
estivessem conversando livremente?
Dado que elas estão utilizando a língua e a língua está enraizada em
algumas relações lógicas básicas e considerando que elas estão conversando
em um grupo pelo menos semipermanente e em movimento, e que a lógica,
como Peirce destacou, “está enraizada no princípio social”9, nós podemos
esperar que os mesmos tipos de coisas aconteçam: proliferação, proposição
e exemplificação etc. Talvez o que possa diferir dramaticamente sejam os
tipos de juízo em direção aos quais elas se constroem. Elas seriam
influenciadas, não apenas por preconceitos ontológicos e epistemológicos
da cultura particular, mas por questões que compelem significados para
aquelas crianças. O que, por exemplo, é intrinsecamente importante
investigar para um grupo de crianças brasileiras de rua? Para crianças em
idade escolar no Irã revolucionário? Para um grupo de crianças Navarro
que dificilmente deixa suas reservas? Além disso, seria esta forma de

9
C. S, Peirce, Collected Papers, vol. 2, par. 646.

47
David Kennedy

investigação deliberativa de grupo valorizada do mesmo modo ou para os


mesmos propósitos que a tradição filosófica e científica euro-norte-
americana?
Se não, qual seria uma forma análoga nessas outras culturas que
constituiria uma função social similar, isto é, a elaboração de juízos
deliberativos? Pode ser que em culturas nas quais a dúvida é menos
tolerada, a investigação de qualquer tipo seja relativamente suprimida, pois
a investigação é uma resposta adaptativa à dúvida. E a dúvida começa com
o isolamento, o questionamento e a análise de crenças10. É possível que para
uma cultura como a do Irã revolucionário ou mesmo na cultura Navarro,
um tal modo de funcionamento grupal seja entendido como inerentemente
destruidor da cultura e da comunidade. Se esse for o caso, então pode ser
chauvinista tentar exportar o modo crítico euro-norte-americano de realizar
juízos.
Qualquer que seja a verdade ou lógica destas especulações sobre a
universalidade dos movimentos discursivos de crianças pequenas sobre
diferenças individuais, grupais e culturais, nós as encontramos operando
em algumas escolas dos Estados Unidos da América. Dado que eles são
encontrados, isto é, que eles acontecem espontaneamente em discussões de
grupo — tanto quanto resultam de instrução ou mesmo modelagem —
me parece educacionalmente importante que professores aprendam a
reconhecê-los. Quando professores conseguirem fazê-lo, eles estarão na
melhor posição para reforçá-los e utilizá-los na facilitação da emergência
de estruturas mais amplas de discussão. Dada a necessidade de o professor
inserir-se no jogo da discussão a fim de saber qual o melhor movimento a
realizar, pode ser que a facilitação de uma comunidade de investigação seja
sempre uma arte — ou, pelo menos, um artifício — mais que uma ciência.

10
C. S. Peirce, Collected Papers, vol. 2, par. 397.

48
A comunidade da infância

A teoria de sistemas não-lineares nos leva a acreditar que qualquer


intervenção terá resultados inesperados, se não “no lugar de”, pelo menos
“em acréscimo a”, aqueles esperados. A discussão joga e o professor
experiente é um jogador experiente, em um jogo no qual crianças pequenas,
elas mesmas vivendo na era dourada do jogo, não são inábeis.

49
2. RECONSTRUINDO A INFÂNCIA

A infância está desaparecendo?


O “desaparecimento” da infância tem sido um tema contínuo de
especulação cultural nos Estados Unidos durante, pelo menos, os últimos
20 anos. A noção de que a criança está “desaparecendo” é tanto uma
descrição de uma mudança cultural percebida quanto uma reação cultural
implícita a isto. Ela assume, antes de mais nada, que há um fenômeno
normativo chamado “infância” que tem certas características identificáveis
que são, pelo menos potencialmente, evidentes em todas as crianças.
Também assume que tal fenômeno é histórico-cultural, uma vez que é
capaz de: ou não estar mais lá ou ter mudado a sua forma - não está claro
qual das duas coisas. Se for o primeiro caso, uma suposição adicional parece
ser que se, e quando, a “criança” “desaparece”, o que permanece é um
“adulto”.
O que faz esta suposição problemática é que “criança” e “adulto” são,
de qualquer maneira, um par contrastante: assim como não há nenhuma

51
David Kennedy

noção de “velho” sem uma noção correspondente de “jovem”, assim também


“criança” é inconcebível separado de “adulto”. Se todos nascêssemos e
permanecêssemos como “crianças”, deixaríamos de ter qualquer utilidade
para a palavra, e o mesmo aconteceria se todos nascêssemos e ficássemos
“adultos”. Assim, pareceria que se a infância vai desaparecer, então a adultez
vai desaparecer também. Qualquer mudança em um dos termos
necessariamente parece implicar uma mudança no outro. Seus
aparecimentos mediados cultural e historicamente são inseparavelmente
ligados.
Há algo que podemos saber sobre infância à parte deste aparecimento
histórico e cultural. “Criança” também é uma categoria biológica bem
definida, determinada por altura, peso, tamanho e função de órgãos,
configuração hormonal e estado neurológico, como também - embora em
um sentido mais fraco que este último -, também características cognitivas,
linguísticas, afetivas e psicomotoras. A criança biológica nunca
“desaparecerá”, pelo fato de que ela parece ser um aspecto permanente de
como a espécie se reproduz. O que pode desaparecer normalmente é
descrito em termos como “inocência”, significando tipicamente ignorância
de coisas que os adultos preferem manter segredo até mesmo uns dos
outros, como sexo, morte, loucura e vício. O que também pode aparecer e
desaparecer são atribuições de competência, responsabilidade ou
inteligência. Por exemplo, Neil Postman interpreta as características do que
hoje chamamos “infância” como um efeito que a imprensa escrita provocou
quando substituiu o ambiente de informação do mundo medieval – oral e
acessível às crianças - , pela palavra impressa, levando assim a impor s
crianças o longo aprendizado de uma habilidade difícil e,

52
A comunidade da infância

consequentemente, um novo estatuto de classe enquanto marginal


cultural.11
O argumento de Postman tem sentido histórico, mas de fato a
substituição da oralidade por um ambiente de informação letrada é apenas
uma entre uma série de fatores que conduziram à relativa marginalização
da criança no mundo moderno. Deve-se também ter em mente que, dada
a inseparabilidade dos conceitos de “criança” e “adulto”, todas estas
mudanças também refletem uma alteração do que significa ser um adulto.
Quero argumentar que, de uma perspectiva histórica dialética, a condição
da relação criança-adulto no fim do segundo milênio oferece a possibilidade
de uma alteração dos limites dentro desse par contrastante e, por
conseguinte, um momento para uma ação histórica da parte dos que se
preocupam, não somente com as crianças e a infância, mas também com a
reconstrução da adultez.
O papel da educação nesta ação histórica é um papel crítico,
particularmente o que Freire12 chama “educação problematizadora”, ou
“diálogo”, pois aqui é possível o locus de uma real mutualidade entre adulto
e criança. Mas antes de explorar a estrutura daquela mutualidade, é
necessário levar em conta a posição atual da criança no mundo social.

Criança como sujeito marginalizado


Do que podemos encontrar acerca de crianças no registro histórico,
elas parecem, desde os tempos mais remotos, ter sido sujeitadas à mesma
marginalização e estatuto de excluídas sociais que encontramos tão
frequentemente quando investigamos o estatuto da mulher, dos escravos,
das minorias étnicas ou raciais, dos loucos ou dos oprimidos

11
The Disappearance of Childhood. New York: Delacorte, 1984.
12
Freire, P., Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.

53
David Kennedy

economicamente. Crianças são, seguramente, um caso especial deste outro


marginalizado, mais perto das mulheres no fato de a subjugação delas pelos
centros de poder patriarcais se dá através de elementos que são
encontrados e, depois, reinscritos no e sobre o corpo. A dificuldade em
estudar a história da infância é que as crianças, assim como as mulheres,
estão, em muitos casos, simplesmente ausentes dos registros, e assim faz-
se necessário tirar conclusões através de evidências indiretas. Essa
dificuldade em si mesma, em combinação com as referências que
encontramos às crianças, oferece-nos uma pista forte de que as crianças
sempre ocuparam a seguinte posição ou estatuto face à maioria dos adultos.

Crianças como propriedade


Nas casas da Grécia e Roma antigas, o pai tinha o poder de vida ou
morte sobre suas crianças. Quando Lloyd deMause caracteriza a relação
parental primitiva de pai/filho como “infanticida”13, parece estar se referindo
a essa atitude fundamental de possessão não mitigada, tal que a criança não
é percebida como possuidora de qualquer humanidade para além da
humanidade projetada que o adulto lhe concede. Até que ponto as crianças
ainda são interpretadas como propriedade material de seus pais é indicado
hoje pela ambiguidade à volta da questão da custódia da criança, dos casos
de infanticídio parental ou homicídio, dos casos em que a criança é vítima
de abuso sexual e, provavelmente, aborto. No caso de abuso, a criança é
frequentemente entregue de volta à custódia dos pais que a ofenderam,
quando isto é claramente contrário aos seus melhores interesses, às vezes
resultando na morte dela. Na medida em que as crianças são propriedade,

13
deMause, L. The Evolution of Childhood. In: deMause, L. (org.), The History of Childhood. New
York: Harper, 1974.

54
A comunidade da infância

podemos dizer que elas são como os escravos e, até bastante recentemente
no Ocidente, como as mulheres.

Criança como economicamente desprovida


Tradicionalmente, as crianças não têm qualquer direito à propriedade
e a trabalho significante, exceto pela vontade de seus pais ou guardiões.
Crianças não têm qualquer meio econômico em nossa sociedade, à parte de
tarefas servis extremamente mal remuneradas. Em épocas históricas nas
quais as crianças eram uma parte da força de trabalho, elas parecem ter
desempenhado uma tarefa relativamente importante em economias agrárias
ou pastoreiras; ou, em cenários industrializados, tornaram-se escravos
explorados por baixíssimos salários.

Criança como outro ontológico


Aristóteles identifica as crianças com animais, escravos e mulheres.14
À criança, ele afirma, falta a capacidade de escolha, ou “agência moral”, ou
vontade, ou seja, lhe falta a habilidade para se envolver deliberadamente em
uma ação que vise uma finalidade, ou “algum tipo de atividade da alma em
conformidade com a virtude”. Por isso, a criança não pode ser chamada
“feliz”; e se a chamarmos feliz, “nós fazemos isso por causa das esperanças
que temos para o futuro dela”.15 Aristóteles parece estar empenhado na sub-
especiação ou na atribuição da diferença ontológica para membros de
grupos marginais ou estranhos culturais. A criança poderia até ser
considerada um tipo de proto-teratologia, no sentido em que qualquer coisa
não completamente humana - numa acepção adulta, masculina, nascida-

14
Aristóteles, Ética a Nicómaco I ix, 1099b33-1100a5; VI xiii, 11445-10 ; VII xii, 1153a30; Física, II 6,
197b7-8.
15
Aristóteles, Física II vi, 197b; Ética a Nicómaco I ix, 1100a.

55
David Kennedy

livre da palavra - é um tipo de monstro, i.e., um ser que não atingiu ou é


incapaz de atingir a “substância” humana. A criança se enquadra no
primeiro caso: o que faz da criança um perigo não é tanto que ela seja um
monstro, mas o fato de ela possuir todas as chances de se tornar um
monstro sem o amoldamento dos adultos. Assim, Erasmus, 1800 anos depois
de Aristóteles, nos fala:

“Para ser um verdadeiro pai, você tem que ter controle absoluto de todo o
ser de seu filho; e sua preocupação principal deve ser com aquela parte do
caráter dele que o distingue dos animais e está perto de refletir o divino...
Assim, o que nós podemos esperar do homem? Ele certamente será um ser
bruto improdutivo, a menos que imediatamente e sem demora seja
sujeitado a um processo de intensiva instrução.”16

O teor desta passagem poderia ser interpretado como um mero


exagero retórico se não fosse o fato de termos encontrado, junto com a
emergência do modernismo do qual Erasmus é um fundador cultural,
evidência do surgimento de uma tecnologia disciplinar aplicada ao
criminoso, ao louco e à criança na forma de confinamento em instituições,
castigo severo e sistemático, vigilância constante e “tratamento” na forma
de psicologias e pedagogias rígidas e objetivantes. A criança do primeiro
período moderno é entendida como necessitante de ser forjada, como
Michel Foucault afirma, em um “corpo dócil que pode ser sujeitado, usado,
transformado e melhorado.”17
A criança como outro ontológico também pode ser interpretada
positivamente, por exemplo, na noção do Alto Romantismo da infância
como um estado natural de “gênio”, como o “primitivo”, à parte da
consciência corrupta e vã da sociedade. Ou a “criança divina” do mito e da

16
On Education for Childhood. In: Rummel, E. (org.), The Erasmus Reader, trad. ingl. Toronto:
University of Toronto Press, 1990, p. 67-69.
17
Foucault, M., Discipline and Punish, trad. ingl. New York: Vintage, 1979, p. 198.

56
A comunidade da infância

religião, representada na infância do deus ou herói da Idade de Bronze, no


“eroti” hermafrodita da Grécia helenística ou o Jesus infante da Alta Arte
Renascentista. Aqui a criança age como tela para projeções, não do sub mas
do superhumano, de um estado não dividido de consciência que, para o
adulto, é projetado tanto no passado quanto no futuro. C.G. Jung chegou
ao ponto de identificar a “criança divina” como um arquétipo fundamental
do inconsciente, ou seja, uma imagem transcultural que se manifesta em
sonhos, mito, arte, psicoterapia.18 A alteridade física, linguística e
comportamental da criança extrai do adulto a projeção, tanto positiva
quanto negativa, do seu próprio sentimento de diferença.

Criança como epistemicamente incompleta


Se nós entendermos o “déficit” epistêmico da criança como estrutural
e ontogenético, tal qual nós o encontramos nas formulações piagetianas,19
ou como social no sentido de não ter ainda adquirido as convicções
epistemológicas e ontológicas de sua cultura, o resultado é o mesmo: a
criança é o outro irracional, o pensador mágico, o “nativo”. Novamente, há
nesta projeção um lado positivo e um lado negativo: do ponto de vista de
educar a criança pequena dentro das convicções da idade, é uma ausência
a ser preenchida, uma ignorância ou um primitivismo a ser superado. Do
ponto de vista do protesto romântico contra o universo epistêmico
racionalizado do Iluminismo, é uma janela que se abre para outra forma de
conhecimento, o qual é capaz, como as formas de conhecer dos místicos,
dos xamãs, das mulheres, dos loucos, etc., de render informação significante

18
Jung, C. G. & Kerenyi, K., Essays on a Science of Mythology: The Myth of the Divine Child and
Mysteries of Eleusis. Princeton: Princeton University Press, 1963.
19
Esta interpretação particular deficitária é mais característica das interpretações de Piaget feitas
por psicólogos e educadores durante a década de 80, do que da própria obra de Piaget, a qual
apresenta uma concepção mais rica em nuances.

57
David Kennedy

sobre o mundo. Para a contracultura epistemológica, a noção de Piaget do


adulto como sujeito epistêmico descentrado, que “encontrou nas estruturas
lógico-matemáticas um instrumento de integração crescentemente
independente da experiência”, pelo qual “conquista” o “ambiente
experienciado”20, representa uma forma do preconceito objetivista ocidental,
uma hipertrofia da divisão cartesiana entre sujeito e objeto, emblemática
da subjetividade alienada do modernismo.

Criança como excluída da cultura


É característico daquela forma de infância, que se afirma estar
desaparecendo, que as crianças sejam assiduamente mantidas afastadas dos
conhecimentos próprios dos adultos, principalmente assuntos como sexo,
morte, mas também de realidades sociais e econômicas difíceis e dos
aspectos mais obscuros da alma humana. Pais e educadores frequentemente
se dizem temerosos de que, se as crianças souberem “demais” sobre, por
exemplo, as realidades de exploração e opressão política e econômica,
conflitos de classes, racismo e etnocentrismo, genocídio, violência e abuso
sexual, abuso generalizado de poder pela autoridade política, etc. pode ser
um fardo demasiado pesado para elas aguentarem, e pode conduzi-las ao
cinismo, a desesperança ou a depressão. Muitos adultos são até céticos
sobre a introdução do “pensamento crítico” na educação, visto que, em suas
opiniões, poderia ocorrer uma erosão das relações corretas de autoridade
entre a criança e o adulto, o que, segundo eles, poderia ser consequência
de se encorajar essas crianças a “pensar por si mesmas”. Assim, a criança é
estrangeira em relação à cultura do adulto, um estatuto que, no mundo
moderno, é reproduzido institucionalmente no fato de que as crianças são

20
Piaget, J., Biology and Cognition. In: Inhelder, B. & Chipman, H. H. (org.), Piaget and His School,
trad. ingl. New York: Springer Verlag, 1976, p. 52.

58
A comunidade da infância

segregadas nas escolas (e também são segregadas por idade dentro das
escolas), excluídas dos lugares de trabalho dos adultos e forçadas a ficar em
áreas recreativas criadas para que elas brinquem e socializem Para além
disso, são objetivadas pelo “establishment” científico como unidades de
estudo, sujeitas a uma barragem de classificações normativas e são
atribuídas a elas estatutos semi-médicos quando se afastam da norma
(“incapaz de aprendizagem”, “hiperativo”, etc.).

A criança como caso especial do outro marginalizado


É muito mais fácil defender a existência dessas formas de
marginalização e objetificação no caso de adultos marginais — quer sejam
as pessoas de cor, os doentes mentais, “os primitivos”, “os pobres” ou os
criminosos. A reivindicação de que a criança pode se agrupar entre eles é
complicada pelo fato de que ela parece ser um caso especial de marginal.
Afinal de contas, há um ciclo de vida dos organismos, humanos ou outros.
O ciclo de vida humano tem, de fato, certos padrões distintivos, fases
aparentes com limitações e possibilidades próprias de cada um. Há uma
trajetória de desenvolvimento que pode ser descrita empírica e
biologicamente, um processo de “formação” ou “ortogénese”, que
tipicamente pode ser entendido como um movimento da “imaturidade” até
a “maturidade” ou, na formulação clássica de Werner, de “um estado de
relativa globalidade e indiferenciação para um estado de crescente
diferenciação, articulação e integração hierárquica.”21 A criança está
cronologicamente situada na extremidade inferior deste “continuum”.
Dados estes limites biologicamente determinados, nós notamos pelo
menos as seguintes regularidades, algumas das quais podem provavelmente

21
Werner, H., The Concept of Development from a Comparative and Organismic Point of View. In:
Harris, D. B. (org.), The Concept of Development. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1957,
p. 126.

59
David Kennedy

ser pensadas também para justificar, pelo menos em princípio, as formas


de marginalização citadas acima, ou pelo menos explicar por que elas
acontecem com tal regularidade:

A criança precisa de proteção por causa do seu tamanho mais


pequeno, peso mais baixo e musculatura mais fraca - em relação aos adultos
e às crianças mais velhas - fato que a torna uma potencial vítima daqueles
que são maiores e mais fortes que elas e menos capaz que os adultos para
executar muitos tipos de trabalho necessários à sobrevivência.
A criança precisa de proteção devido à sua relativa falta de
experiência, que lhe impede de ter uma base indutiva de exemplos concretos
por meio dos quais ela possa, resolver problemas ou fazer juízos.
Muitas crianças experimentam intensos períodos de instabilidade
emocional que, combinados com uma carência comparativa de um locus de
controle interno, as fazem mais sujeitas a “excessos” comportamentais,
tanto na forma de “ação transgressora” quanto de transtorno emocional.
Assim, a criança poderia ser perigosa para ela mesma ou para outros.
Muitas crianças não têm a disposição ou o aparelho de juízo para um
trabalho continuado no interesse da sua sobrevivência. As crianças podem
trabalhar e trabalham de fato, sendo que nas economias agrícolas e pastoris
são bastante capazes de desempenhar cabalmente algumas funções
econômicas necessárias. Mas, em sociedades industriais, os períodos em que
pudemos observar o tratamento das crianças como adultos capazes de
trabalho, testemunhamos uma exploração dramática do trabalho infantil e
maus tratos infringidos por aqueles que controlavam o trabalho delas.
Concedendo o estatuto especial de desenvolvimento das crianças, elas
ainda podem ser definidas como sujeitos marginalizados, até o ponto em
que as precauções tomadas pelos adultos para protegê-las dos resultados
potencialmente prejudiciais deste estatuto, em muitos casos, ou não as

60
A comunidade da infância

protegem ou as “superprotegem”, com resultados igualmente negativos


para ela. Não vejo nenhuma outra explicação - excetuando-se o fato de que
até certo ponto todas as pessoas nas sociedades ocidentais são, em maior
ou menor grau, marginalizadas - para as seguintes situações
contemporâneas nas vidas de crianças:
• A “guetorização” contínua e crescente de crianças em instituições -
escolas e creches – e a completa exclusão de crianças dos locais de
trabalho dos adultos.
• O desaparecimento sempre crescente dos espaços públicos para a
sociabilidade e brincadeiras das crianças, exceto aqueles criados
especificamente para tal propósito, i.e., “reservas” para brincadeiras.
• A apropriação contínua da criança pelo Estado e por instituições
educacionais poderosas as transformam em “matéria-prima” para
usos econômicos, militares e políticos, ou, como Ashis Nandy afirma,
para “uma versão inferior, fraca, mas utilizável do ser humano
completamente produtivo e realizador que possui o mundo
moderno.”22 Quando a retórica dos “recursos humanos” é combinada
com o crescente subfinanciamento da educação infantil por parte de
instituições públicas, a própria falta de coerência identifica esta
retórica como racionalização. Uma forma normativa de educação
“bancária” que continua ignorando o potencial de desenvolvimento
das crianças e fazendo delas o objeto de uma tecnologia educacional
desumanizante e pseudo-científica, embora haja uma abundante
evidência contrária.

22
Reconstructing Childhood: A Critique of the Ideology of Adulthood. In: Traditions, Tyranny and
Utopias: Essays in the Politics of Awareness. Delhi: Oxford University Press, 1987, p. 61. Nos Estados
Unidos, a mais flagrante, proeminente e recente expressão deste conjunto de pressuposições, talvez
seja o relatório da Comissão Nacional em Excelência de Educação, A Nation at Risk: The Imperative
for Educational Reform. Washington D.C.: U.S. Government Printing Office, 1983, o qual começa:
“Nossa nação está em risco. Nossa outrora inquestionada proeminência no comércio, indústria,
ciência e inovações tecnológicas está sendo ultrapassada por competidores por todo o mundo.”

61
David Kennedy

• A relativa insensibilidade da sociedade para o abuso contra a criança,


nas suas mais variadas formas, análoga à sua insensibilidade aos
abusos que o homem infringe à mulher nas relações conjugais. Este
fato é comprovado nas decisões dos tribunais23, como também nas
reações cotidianas dos adultos que testemunham negligências ou
abusos cometidos contra as crianças em espaços públicos.
• A disciplina secular da psicologia do desenvolvimento que,
predominantemente, ainda interpreta a criança como “organismo”,
isola e nega-lhe sua subjetividade em teorias dos estágios e em
taxonomias objetificantes.
O fato de estas formas de colonização também serem impostas aos
adultos - como na marginalização dos trabalhadores pelas corporações do
capitalismo, na marginalização das pessoas de cor por políticas racistas e
etnocêntricas, e das mulheres por atitudes, políticas e práticas machistas e
patriarcais -, não mitigam ou servem de escusa à situação das crianças.
Poder-se-ia dizer que, em um mundo de generalizada objetificação e
“normalização” da vida humana através dos aparatos operados pelo Estado,
o locus estratégico para recuperarmos o que Paulo Freire denomina de
nossa “vocação ontológica de Ser Mais [humanos]”24, - a partir das
“tecnologias disciplinárias” perpetuadas pelas instituições governamentais,
corporativas, científicas e educacionais -, está no âmbito da criação e
educação das crianças, seja expressa dentro da família e da comunidade
local, ou da educação na escola. Isto porque a relação adulto—criança é o
lugar interpessoal onde a formação mais fundamental de autocompreensão
toma assento: onde o equilíbrio entre o consciente e o inconsciente, instinto

23
Nota do tradutor: o autor se refere a decisões de juízes que devolveram as crianças a pais que
tinham abusado delas, mesmo com risco físico para as crianças. Muitas delas acabaram perdendo a
vida.
24
Pedagogia do Oprimido, p. 70.

62
A comunidade da infância

e repressão, socialização e não-socialização, liberdade e auto-restrição, é


formado e praticado. O caráter desse equilíbrio determina a capacidade de
os seres humanos de qualquer época ou cultura seguirem sua “vocação,
como seres que não podem autenticar-se fora da busca e da transformação
criadora”25, o que parece ser a condição necessária para se resistir à
colonização.

O surgimento da forma moderna de colonização da criança: uma


explicação psico-histórica
Um olhar psico-histórico para a relação adulto-criança sugere que há,
por natureza, uma relação de projeção complexa entre adultos e crianças,
que revolve ao redor da economia de instinto e repressão ou, como o
historiador cultural Norbert Elias caracterizou, uma “interação” mutável
entre os níveis conscientes e os níveis inconscientes da personalidade.26
Parece característico do ciclo da vida em geral que a “criança” representa o
inconsciente, o irracional, o outro não socializado que o adulto carrega
dentro de si. A criança é o “ego primitivo” do adulto, presente nesse adulto
como um traço e como um potencial.
Nas sociedades em que a relação entre a expressão instintiva e a
repressão favorece a expressão, a criança e o adulto são menos diferenciados
e são tidos como representativos de diferenças de tipo em vez de diferenças
de grau. Assim, por exemplo, no período medieval, durante o qual as
manifestações da agressividade e de libidos eram menos coibidas na
população em geral, não existia, de acordo com Philippe Ariès,27 qualquer
concepção de “criança” como temos hoje; tão logo elas adquiriam linguagem

25
Ibid., p. 83.
26
Elias, N., The Civilizing Process: State Formation and Civilization, trad. ingl. Oxford: Blackwell,
1994 [1939], p. 475.
27
Centuries of Childhood: A Social History of Family Life, trad. ingl. New York: Knopf, 1962.

63
David Kennedy

e mobilidade, partilhavam da vida dos adultos. Correlativamente, os adultos


eram mais “infantis”, tal como hoje se entende. Eles viviam com uma
concepção estreita de privacidade em comparação com a que nós possuímos
hoje. O adulto típico daqueles tempos carregava menos um senso de si
mesmo como um indivíduo e mais como membro de uma coletividade. O
que Elias se refere como a “fronteira do pudor” estava mais distante.
Funções corporais, por exemplo, eram menos protegidas da visão pública;
a nudez não era entendida como embaraçosa ou vergonhosa na mesma
proporção em que é hoje; arranjos para dormir eram casuais, muito
comumente envolvendo dois ou mais estranhos dormindo na mesma cama.28
E as crianças, que partilhavam do que Ariès se refere como um ambiente
social “polimorfo”, eram encontradas em todos os lugares nos quais os
adultos estavam, engajados nos mesmos tipos de atividades, jogando os
mesmos jogos e ouvindo as mesmas histórias que os adultos ouviam.
As mudanças econômicas, políticas, tecnológicas, demográficas e
religiosas que deram lugar à mudança de uma economia instintiva para a
repressão são demasiado numerosas e complexas para serem enumeradas
aqui. Combinando as interpretações psico-históricas de Elias e Foucault,
encontramos a expansão, iniciada pela classe da “Corte” e tendo os mesmos
limites da ascensão das monarquias absolutas do começo da Europa
moderna, de um ideal clássico de introspecção referido por Foucault como
o “cuidado” ou a “tecnologia” do eu.29 Este “eu” do período moderno
emergente, universalizado pela ascendente classe média, é um indivíduo
antes de ser membro de qualquer comunidade. Ele é privado,
autoconsciente, solitário dentro do novo Cosmos descentrado copernicano

28
Elias, N., The Civilizing Process: The History of Manners, trad. ingl. Oxford: Blackwell, 1994 [1939],
p. 134-178. Cf. Shahar, Sh., Childhood in the Middle Ages London: Routledge, 1990.
29
Martin, L., Gutman, H. & Hutton, P. H., (org.), Technologies of the Self: A Seminar with Michael
Foucault Amherst: University of Massachusetts Press, 1988.

64
A comunidade da infância

e da epistemologia baconiana da ciência empírica e instrumental. Ele é o


que Elias chama de “homo clausus”: “Seu núcleo, seu ser, seu verdadeiro eu
aparece [...] como algo dividido dentro dele por uma parede invisível,
isolando-o, assim, de todas as coisas exteriores, inclusive de qualquer outro
ser humano.”30
A reorganização do polimorfismo social do mundo medieval resulta
tanto no incremento da interdependência social quanto na separação
psicossocial — um paradoxo histórico que não deveria ser difícil de
entender para nós, que vivemos em sociedades industrializadas do final do
século XX. Uma recente separação de classes articulada vem acompanhada
de uma crescente centralização estatal e controle das populações, e resulta
em lugares separados, porém relacionados — a casa, a escola, o lugar de
trabalho adulto, a prisão, o manicômio, o quartel. Relações de poder e poder
coercitivo dentro da sociedade se refletem em relações de poder dentro do
eu, girando em torno do equilíbrio entre repressão e vida instintiva e
impulsiva. O eu moderno torna-se “sujeito” em duas formas: tanto no
sentido de que formaram-se fronteiras mais nitidamente definidas e menos
permeáveis entre si próprio e seu ambiente natural e social, conduzindo
para uma “subjetividade” mais privada e introspectiva; quanto no sentido
de estar “sujeito a” uma nova disciplina de circunspecção pessoal e
interpessoal pela sociedade.
Este novo sujeito moderno observa a si mesmo cuidadosamente e
escreve manuais de etiqueta que podem ser lidos, hoje, tal como os manuais
endereçados às crianças em fase de socialização. Atitudes e
comportamentos comuns entre os adultos da idade média passaram a ser
vistos como vulgares e infantis. Antes de mais nada, o novo adulto é um
“leitor”. Ele lê a si mesmo, aos outros e às situações e, em vez de ir à praça

30
Elias, The History of Manners, p. 204. Cf. p. 205-215.

65
David Kennedy

pública para informar-se através de intercursos verbais com os outros, ele


se isola nos símbolos abstratos e silenciosos do sistema impresso, o qual
pode deslocar a linguagem e o pensamento para fora do tempo e para além
do mundo comunicativo cotidiano.31
O resultado do aparecimento do “sujeito” moderno é que a criança
permanece atrás e se torna nossa “criança” moderna. Considerando que
adultos e crianças tinham antes compartilhado, em larga medida, tanto o
mundo da vida privada, quanto o mundo da vida social, agora ambos têm
experimentado uma separação. Diferenças entre adultos e crianças têm se
tornado diferenças de tipo em vez de diferenças de grau. Doravante, as
crianças têm que fazer-se adultos através da educação. Como Elias diz:

...o modelo emergente [no começo do período moderno] é caracterizado


por uma profunda discrepância entre o comportamento dos chamados
adultos e das crianças. Mas, precisamente por este aumento da proscrição
social de qualquer impulso, pela repressão destes impulsos da superfície da
vida social e da consciência, a distância entre a estrutura da personalidade
e do comportamento dos adultos em relação às crianças foi
necessariamente ampliada. (...) As crianças têm que, num espaço de poucos
anos, alcançar o elevado nível de vergonha e repulsa que se tem
desenvolvido ao longo de muitos séculos. Sua vida instintiva tem de ser
rapidamente sujeitada ao controle estrito e amoldamento específico que
dão à nossa sociedade a sua feição, e que se desenvolveu muito lentamente
ao longo dos séculos.32

A característica principal deste “controle rígido e amoldamento


específico” é resumido no termo foucaultiano “disciplina”, ou “fórmulas de
dominação”, impostas no interesse da formação de um “corpo dócil”, ou
(na terminologia rousseauniana) de um “cidadão”. O corpo dócil tem sido
“sujeitado”, isto é, re-ajustado para atender os propósitos da economia e

31
Cf. ONG, W., Orality and Literacy: The Technologizing of the Word. New York: Methuen, 1982.
32
Elias, N., The History of Manners, p. 115.

66
A comunidade da infância

política modernas através “do controle, intensificação e da distribuição de


forças, do ajuste e da economia das energias”33.
Numa cultura ajustada para ser repressiva, a criança é o “corpo
selvagem” por excelência, até mesmo mais do que a mulher, o louco ou o
criminoso, pois ela representa a natureza e a origem, e cada uma das suas
expressões instintivas é uma lembrança viva dos próprios impulsos
reprimidos dos adultos. A criança tem se tornado um outro transgressivo,
a fonte de perigo emocional, análogo ao perigo epistemológico do louco, o
perigo social do pobre, o perigo sexual do sexo feminino. Refiro Elias numa
extensa citação:

À medida que o padrão de delicadeza e pudor aparece aos adultos como


mais “natural” e quanto mais se tomar como garantida uma restrição
civilizada aos impulsos instintivos, mais incompreensível se torna para os
adultos que as crianças não tenham esta delicadeza e pudor “naturalmente”.
[...] As crianças esbarram, necessariamente e por repetidas vezes, nos
limites da delicadeza dos adultos e, uma vez que elas ainda não estão
adaptadas, infringem os tabus da sociedade, cruzam a fronteira do pudor
adulto e penetram em zonas emocionais perigosas, que o adulto, ele
próprio, apenas pode controlar com dificuldade. [...] A ansiedade se apossa
dos adultos quando veem ameaçada a estrutura de sua própria vida
instintiva, tal como é definida pela ordem social. Qualquer outro
comportamento significa perigo. Isto conduz a um meio-tom emocional
associado a demandas morais e a uma severidade agressiva e ameaçadora
que as sustentam, visto que a quebra das proibições coloca em posição de
instável equilíbrio de repressão todos aqueles para os quais o modelo de
sociedade se tornou uma “segunda natureza”.34

Isto explica a severidade, na modernidade, do ensino das boas


maneiras às crianças desde muito novas em casa, mas especialmente nas
escolas, quando nós entendemos que o projeto é, de fato, corrigir a natureza

33
Foucault, M., The History of Sexuality, trad. ingl., v. I, extraído de Rabinow, P. (org.), The Foucault
Reader. New York: Pantheon, 1984, p. 267.
34
Elias, N., The History of Manners, p. 137.

67
David Kennedy

humana ao serviço do que se apresenta, por si mesmo, como o mais alto e


evoluído ideal da natureza humana. Lloyd deMause refere-se a dois tipos
de introdução de boas maneiras às crianças que predominaram no começo
do período moderno como “ambivalente” e “intrusiva”. Para o primeiro tipo,
a criança é ainda “um receptáculo de perigosas projeções” de sua própria
vida instintiva, conduzindo seus pais a sentirem a necessidade de,
forçosamente, “moldar”, mais tipicamente através de castigos físicos, as
crianças “dentro de uma forma”. Com o estabelecimento do modo intrusivo,
os pais têm removido suas próprias projeções para mais longe: a criança é
menos ameaçante, mas os pais ainda continuam precisando “dominar sua
mente, com vista a controlar seu interior, sua raiva, suas necessidades, sua
masturbação, sua própria vontade”35.
A formulação de deMause a respeito dos modos de criação de
crianças, dos quais ele teoriza seis,36 consiste no que ele descreve como a
“teoria psicogenética da história”, a qual postula um avanço37 evolutivo na
capacidade de os pais nutrirem e assegurarem seus filhos. Esse avanço,
segundo deMause, ativa a capacidade dos adultos “de regredir à idade
psíquica de suas crianças e trabalhar através das ansiedades próprias àquela
idade de uma maneira melhor neste segundo embate do que quando eles o
fizeram durante sua própria infância. O processo é similar à psicanálise, a

35
deMause, L., The Evolution of Childhood, p. 153.
36
Em The Evolution of Childhood, p. 53, deMause identifica os seguintes modos, os quais afirma
seguirem um progresso evolutivo através da história: Infanticida (Antigüidade até séc. IV d.C.),
Abandono (séc. IV a séc. XII), Ambivalente (séc. XIV a séc. XVII), Intrusivo (séc. XVIII), Socialização
(séc. XIX até a metade do séc. XX) e, Cooperação (começa no meio do séc. XX).
37
Não é necessário ler a teoria de deMause como evolucionista para que ela funcione. De fato, Peter
Peschauer sugeriu que todos os seis modos estejam presentes em qualquer determinada sociedade
humana, expressados em práticas que podem variar através da história e cultura. Ele ressalva o
aparecimento de uma cultura evolucionária pela sugestão de que um modo particular é
predominante em cada período, e que a direção ou progresso dos modos indicam que a criança é
uma projeção completa do próprio material instintivo do adulto, evoluindo para modos nos quais
está aumentando a separação entre os dois. Cf. “The Childrearing Modes in Flux: An Historian’s
Reflections”, The Journal of Psychohistory 17 (1), 1989, p. 1-41.

68
A comunidade da infância

qual também envolve regressão e uma segunda chance de enfrentamento


das ansiedades infantis”38.
Por seu lado, o sucesso desta “regressão ao serviço da criança” gira
em torno da consciência do adulto de sua própria relação projetiva com a
criança. O adulto, quando “confrontado com uma criança que necessita de
algo”, ou aproxima a criança como uma tela para a projeção de seu próprio
material inconsciente (reação projetiva); como um substituto de um adulto
em seu passado, com quem seu relacionamento é, ainda, não resolvido
(reação inversa); ou é capaz de sentir empatia pelas necessidades instintivas
da criança e fazer alguma coisa no intuito de satisfazê-las (reação de
empatia).39
A teoria de deMause tende a confirmar tanto a análise de Elias como
a de Foucault sobre a moderna relação adulto-criança. O que é
particularmente interessante acerca de sua teoria é um pressuposto que
parece paradoxal: a dinâmica fundamental da evolução da relação adulto-
criança envolve tanto uma abordagem mais próxima à criança, isto é, a
habilidade para identificar-se com suas necessidades instintivas, quanto
uma separação, tal como representada pela noção de retirada da projeção.
A reação de empatia torna-se possível porque o adulto é capaz de se separar
da ansiedade produzida pela “zona de perigo emocional” que a criança
desencadeia através da sua relativa falta de repressão ao instinto. Isto é, ele
pode, nas palavras de deMause, “regredir ao nível das necessidades da
criança e identificá-las corretamente sem uma mistura de suas próprias
projeções”, e assim “mantendo distância suficiente da necessidade com o
intuito de ser capaz de satisfazê-la”40.

38
The Evolution of Childhood, p. 3.
39
Ibid, p. 6.
40
Ibid., p. 6-7.

69
David Kennedy

Isto parece indicar um movimento dialético. A possibilidade de mais


íntimas aproximações às crianças por parte dos adultos é criada somente
como resultado de uma separação inicial, a qual é representada pelo
aparecimento da “fronteira do pudor” assinalada por Elias, isto é, o novo
equilíbrio entre instinto e repressão no adulto moderno. É através deste
novo equilíbrio que o adulto moderno se torna um ser hermenêutico, ele é
agora um “leitor” da vida e do outro e um leitor é, por definição, alguém
que interpreta. Esse intérprete deve interpretar porque está afastado da
situação, ou do “texto” - se tornou estrangeiro através da transformação do
tempo. Mas é somente esta situação de mudança ou relativo
desembaralhamento que torna o diálogo possível; e este diálogo resulta
numa “fusão de horizontes”, seguido por, nas palavras de Paul Ricoeur, uma
“apropriação”, ou reconstituição do texto dentro do entendimento do leitor,
que ele caracteriza como “entendimento na e através da distância”41.
Aplicado à relação adulto-criança, o processo hermenêutico é o que
deMause se refere como uma revogação da projeção através do
distanciamento psicológico, seguida pela identificação, ou a habilidade de
“regredir ao nível da necessidade da criança e identificá-la corretamente
sem se lhe acrescentar as próprias projeções do adulto.” É nesse momento
que o adulto desperta para a voz da criança.

O privilégio epistêmico das crianças


Estar desperto para a voz da criança significa que essa criança é
entendida como portadora de novas informações para a autocompreensão
do adulto. Como outro afastado, a situação da criança é análoga ao ponto
de vista que as teóricas feministas descrevem como “valiosos ‘estranhos’

41
Cf. Gadamer, H-G., Truth and Method, trad. ingl. New York: Crossroad, 1975; e Ricoeur, P., The
Hermeneutical Function of Distanciation. In: Hermeneutics and the Human Sciences, trad. ingl.
Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 143.

70
A comunidade da infância

para a ordem social”, ou “marginalizados de dentro”42. Como as mulheres,


pessoas de cor ou outros marginalizados pelo construto individual,
interpessoal e social, eurocêntrico e patriarcal, o lugar da criança no mundo
natural e social proporciona a ela uma “prerrogativa epistêmica”. Uma vez
que ela vive antes, ou às margens, da economia dos instintos do adulto, sua
relação com essa economia é inerentemente transgressiva. Dado que ela
não é, como descreve Sandra Harding, uma “nativa”43, ela percebe situações
que os nativos não percebem.
O que acontece ao adulto que escuta a voz da criança é que, através
dessa relação com a criança, redescobre a sua própria infância ao ter
consciência dos limites do instinto e da repressão resultantes da sua própria
formação de infância. Sendo consciente de sua própria “criança”, o adulto
recupera a si mesmo num nível mais alto: incorporando conteúdos
inconscientes à consciência. O processo de fazer consciente o inconsciente
é, como temos aprendido tanto de Freud como de Jung, o objetivo inerente
do desenvolvimento psíquico, quer seja formulado como “aonde o id estava,
lá o ego estará” (Freud), ou como a crescente abertura da consciência aos
conteúdos do inconsciente (Jung). De uma perspectiva Ricoeuriana, o
resultado do processo hermenêutico é uma “metamorfose do ego”, por meio
da qual, através de “um momento de distanciamento na relação do ego para
si mesmo”44, esse ego recupera-se a si próprio num novo equilíbrio. Alice
Miller o coloca de forma mais concreta:

Uma vez que sejam permitidas às crianças serem mais que os portadores
de projeções parentais, elas podem se tornar, para os seus pais, uma fonte
inesgotável de conhecimento sobre a natureza humana. Sensualidade,
prazer com o próprio corpo, prazer no afeto demonstrado por outra pessoa,

42
Harding, S., Whose Science? Whose Knowledge? Thinking from Women’s Lives. Ithaca, NY: Cornell
University Press, 1991, p. 124, 131.
43
Ibid., p. 307.
44
Ricoeur, P., “The Hermeneutical Function of Distanciation”, p. 144.

71
David Kennedy

a necessidade de se expressar, de ser ouvido, visto, compreendido e


respeitado, não ter que suprimir a raiva e a ira e ser permitido expressar
também outros sentimentos como pesar, temor, inveja e ciúme...45

Uma vez que que ir entrando em diálogo com a voz da criança


resulta numa maior integração psicológica por parte do adulto, isto é então
refletido na expansão de uma forma de educação das crianças que
reconhece a importância de satisfazer as “necessidades narcísicas” delas,
“tais como o respeito, ver-se em espelho, ser compreendida e ser levada a
sério”46. Isto, por sua vez, conduz ao desenvolvimento de adultos que
experimentam um relacionamento mais saudável e criativo entre os
elementos conscientes e inconscientes da personalidade, e são, portanto,
mais capazes de “investigação e transformação criativa”.

Começando: Elementos de uma reconstrução emergente da relação


criança-adulto
A possibilidade de uma mudança positiva dos limites entre “criança”
e “adulto” parece depender especialmente das condições materiais da
civilização. DeMause insiste em que aquilo que ele chama de “pressão
geracional para mudança psíquica”, a qual guia (e é guiada pela) a evolução
dos modos de criação das crianças, “ocorre de forma independente das
mudanças sociais e tecnológicas”47. Porém, achados do estudo da história da
infância continuam a confirmar a importância do aperfeiçoamento das
relações adulto-criança no crescimento e estabilidade política e econômica,
no relativamente sofisticado conhecimento, prática e acessibilidade médicas

45
Thou Shalt Not Be Aware: Society’s Betrayal of the Child, trad. ingl. New York: Meridian, 1986, p.
154.
46
Ibid, p. 144.
47
The Evolution of Childhood, p. 3.

72
A comunidade da infância

e epidemiológicas, na formação e manutenção de um ambiente de


informação que produza “leitores” (ou “hermeneutas”) num amplo sentido.
Além disso, qualquer argumento para uma mudança histórica
modelada na dialética hegeliana é um pouco suspeito. A interação variável
entre os níveis consciente e inconsciente na personalidade modal de
qualquer cultura é por demais complexa para ser consignada em um
movimento histórico “progressivo” e linear, e afigura-se ser caracterizada
na vida cotidiana pela assimetria, espiralamento, regressão, patologia,
fracasso, acidente, boa ou má “sorte”, etc.,48 como também por ser
influenciada por incontáveis e únicas, porém relativamente previsíveis,
variáveis locais e regionais. Pode-se reconhecer abertamente, pelo menos,
que o projeto de “revogação da projeção”, que conduz à “relação de
empatia”, parece ser um elemento chave para a capacidade de os seres
humanos de conviverem com a diferença e, então, articula-se
profundamente com a superação do sexismo, do racismo, do etnocentrismo,
do classicismo, da homofobia, da intolerância religiosa e do nacionalismo
agressivo. O que parece se seguir aos argumentos apresentados acima é
que a relação adulto-criança é o ambiente interpessoal onde qualquer
economia instintiva de um indivíduo se produz; e que é o caráter de tal
economia que configura a capacidade humana de tolerar a diferença, de
valorar as necessidades narcísicas dos outros, de se desenvolver
psicologicamente e na qualidade chamada “razoabilidade”, a qual, como
nosso século tem mostrado, não depende apenas de racionalidade.
Como iria se parecer uma cultura que tivesse internalizado o ideal de
empatia? Existem indicações de que esta mudança já tenha começado a se

48
Cf. Keniston, K., Psychological Development and Historical Change. In: Rabb, T. K. & Rotberg, R.
I, The Family in History: Interdisciplinary Essays. New York: Farrar, Straus & Giroux, 1976. Ele
caracteriza o desenvolvimento psicológico como “uma estrada muito áspera, marcada com
obstruções, entremeada com ruas sem saída, e com paradores sedutores.” (p. 149).

73
David Kennedy

insinuar, pelo menos no ocidente pós-moderno. A preocupação com a


“criança interna” na psicoterapia contemporânea parece ser uma delas.
Constitui um índice de revogação da projeção, no sentido em que o adulto
que reconhece a criança interna reconhece sua unidade ontológica com a
criança e está consciente de que o contínuo adulto-criança está presente
em cada época do ciclo da vida. Isto está relacionado à recente tendência
em teoria psicanalítica - implícita em Freud, mas explicitada na psicologia
do ego pós-Freudiana -, ao interpretar o processo de desenvolvimento como
vitalício. Neste ponto, o adulto é sempre ainda criança. Dieter Misgeld
apresentou esse entendimento eloqüentemente:

... em vez de localizar crianças e adultos como estando em estágios


diferentes dentro de uma sequência de desenvolvimento, como um ponto
final fixo como se fosse um padrão imutável válido para a avaliação da
sequência, uma orientação propriamente auto-reflexiva coloca em questão
a existência de entidades adultos e crianças definitivamente localizáveis. É
um questionamento no qual a comunidade do adulto e criança, seu
pertencer conjunto, é trazida à tona. Isto apenas acontece no
reconhecimento de que, enquanto adulto, não se é mais do que o
movimento de volta à criança e, daí em diante, até o ponto onde se
começou o movimento. Ter sido uma criança é ainda uma possibilidade
que se vive, algo a que se tem que regressar com vista a estabelecer a si
mesmo como um adulto. Se gera, reflexivamente, uma comunidade de
adultos e crianças na qual princípios e regras são debatidos em ambos os
lados, na qual estar amarrado à norma como um adulto pode ser
questionado fazendo-se referência às crianças como possuidoras de mais
princípios do que os adultos. Porque as crianças, às vezes, podem parecer
menos vinculadas à norma do que os adultos, por isso parecendo mais
adultas do que os próprios adultos... Um interesse nas crianças não é
independente de um interesse em estabelecermos para nós mesmos quem
nós somos, como adultos, e o que nós devemos encaminhar a fim de
vivenciar nossa adultez.49

49
Misgeld, D., “Self-Reflection and Adult Maturity: Adult and Child in Hermeneutical and Critical
Reflection”. Phenomenology + Pedagogy v. 3, n. 3 (1985), p. 199.

74
A comunidade da infância

Tal mudança de perspectiva tem implicações óbvias para a educação,


uma vez que estabelece o trabalho de base para uma pedagogia fundada no
diálogo entre o adulto e a criança. Também tem implicações para a
psicologia da criança, já que se torna problemática a direção do
desenvolvimento no qual todas as teorias adultistas dos estágios são
baseadas - a ideia de um “ponto de chegada fixo” da auto-possessão racional
cartesiana, ou do sujeito epistêmico descentrado Piagetiano. Assim, tal
mudança aponta para possibilidade, dentro das ciências humanas, de uma
metodologia dialógica preferivelmente a uma objetivante.
Reconhecer a unidade também envolve reconhecer a diferença. O
descentramento do adultismo implica o entendimento de que a criança
ocupa uma perspectiva através da sua colocação frente aos outros, a qual
não é completamente acessível aos adultos — essa perspectiva é informada
não somente pela diferença orgânica, mas pelo posicionamento no mundo
social e suas relações de poder e, também, no mundo natural. Ampliar os
privilégios epistêmicos para a criança implica colocar entre parênteses as
normas epistemológicas dos adultos e a postura de perceber o que a criança
pode saber, não somente por sua posição de “estranho de dentro”, mas
também por causa do seu baixo nível de socialização do estoque de
conhecimentos por ela recebido, isto é, a ausência de uma visão de mundo
cristalizada, ou de uma ontologia e epistemologia recebidas.50 Um exemplo
poderia ser a abertura da criança a outras espécies e outras formas de vida;
ou o que Dewey se refere como um “poder maravilhoso de atrair a atenção
cooperativa de outros” através de uma “habilidade flexível e sensitiva [...]
de vibrar empaticamente com as posturas e ações em torno dela”51. E

50
Para uma ideia da criança jovem como um profeta involuntário contra a redução ontológica da
natureza implícita no materialismo filosófico, Kennedy, D., Fools, Young Children, Animism, and the
Scientific World Picture. Philosophy Today, v. 33, n. 4 (1989), p. 374-381.
51
Dewey, J., Democracy and Education. New York: Macmillan, 1916, p. 43.

75
David Kennedy

Coleridge identificou a criança pequena com o que ele chamou de “razão


intuitiva”, a qual descreveu como “aquela intuição das coisas que surge
quando nos possuímos como seres em conjunto com o todo”, em contraste
com “aquilo que se apresenta quando [...] nos pensamos enquanto seres
separados e colocamos a natureza em antítese à mente, o objeto ao sujeito,
coisa ao pensamento, morte à vida”52.
O reconhecimento de que existem muitas coisas que a criança não
sabe e o adulto sim, mas de que também há coisas que a criança sabe e o
adulto não, se opõe à noção de “déficit teórico” da infância. Esse
reconhecimento também introduz outra fissura no edifício epistemológico
objetivista ocidental, em adição àquelas fissuras introduzidas pelo
feminismo e pelas epistemologias multiculturais. Pareceria indicar que
aquilo que o sujeito marginalizado sabe, o sabe porque ele não sabe algo
mais, isto é, o conhecimento tácito da estrutura dominante ou “nativa”. Se
este princípio é correto, ele também opera em outra direção e problematiza
a noção de um conhecimento unificado, ou pelo menos separado do diálogo
ilimitado como um princípio epistêmico fundamental. Nandy traz esse
ponto para o problema da revogação da projeção, fazendo a conexão entre
a cultura da infância e a cultura dos povos oprimidos, e as relações
respectivas delas com o colonialismo patriarcal branco. Ele diz:

A cultura do mundo adulto cruza e, às vezes, confronta o mundo da criança.


Idealmente, esse compartilhamento de espaço deveria acontecer na base do
respeito mútuo. Que isto não aconteça é uma medida do nosso medo de
perder nossa própria individualidade através dos nossos contatos próximos
com culturas que ousam representar nossos outros eus, assim como
também uma medida do nosso medo da liminaridade entre o adulto e a
criança que muitos carregamos dentro de nós mesmos. Esta é a
liminaridade que Freud trabalhou em sua interpretação da psicopatologia.
Esta é, também, a liminaridade que Gandhi teve de enfrentar abertamente

52
Citado em Kennedy, D. The Hermeneutics of Childhood. Philosophy Today, Vol. 36, n. 1 (1992),
p. 44 -58.

76
A comunidade da infância

em sua batalha contra a ideologia do colonialismo... O teste final de nossa


habilidade em viver uma existência bicultural ou multicultural talvez ainda
seja nossa habilidade em vivermos com nossas crianças em reciprocidade.53

O ambiente originário e principal para a interseção e confrontação, a


que se refere Nandy, será sempre a família nuclear, independentemente de
quão isolada e marginalizada ela possa se tornar. Contudo, o papel potencial
da escola, nessa “partilha de um espaço [...] na base do respeito mútuo”,
não pode ser subestimado. Este potencial só pode ser realizado através de
uma reorientação por parte do sistema educacional, o qual, até o momento
presente é - assim como a maioria da população de pais aos quais serve -,
orientado, ainda que apenas por omissão, para a criança-como-matéria-
prima, um modelo deficiente.
Compreender a escola como um lugar de socialização mútua, onde,
para citar Nandy, “nossos vínculos mais liberalizantes podem ser com as
crianças não socializadas”,54 pareceria significar mudanças tão profundas
como quase inimagináveis em nossa presente situação. Significaria, pelo
menos, o desmantelamento da estrutura de poder hierárquica adulta das
escolas, a qual procedem para manter o modelo de produção educacional;
uma reformulação completa de um sistema objetivante de apreciação e
avaliação, o qual veicula o sistema curricular e pedagógico “bancário” ao
qual serve; e uma reconstrução da criança como sujeito - como ativo e
competente protagonista em seu próprio processo de aprendizado e de
desenvolvimento. Mesmo num sentido genérico, isto implicaria uma
reintegração dos mundos vividos pelas crianças e adultos, e uma superação
da guetorização das crianças dentro das escolas e creches. Ambas se dariam
através da reestruturação dos espaços de trabalho e através da reclamação
de espaço público para que as crianças brinquem e socializem.

53
“Reconstructing Childhood”, p. 73, 75.
54
Ibid., p. 75

77
David Kennedy

A importância do pensamento crítico, ou filosofia, na redefinição da


criança como sujeito que sabe, é particularmente crucial para a
transformação tanto da relação adulto-criança quanto da escola, porque sua
atividade característica está no âmago de uma educação problematizadora
e dialógica. Filosofia é a disciplina que emerge mais diretamente do sentido
humano fundamental de espanto, e que também suscita o questionamento,
tanto da realidade, quanto do nosso conhecimento acerca de tal realidade.
Com a prática do conhecimento questionador - tanto do próprio quanto
dos outros - promete ser a cunha epistêmica e curricular que abre a
experiência da infância à reflexão, tanto por parte das crianças quanto dos
adultos.
Parece ser mais do que coincidência o fato de que a valoração negativa
do poder de juízo, de raciocínio e de reflexão da criança tem legitimado a
marginalização das crianças desde Aristóteles até Piaget. O que isto significa
do ponto de vista da criança é que o adulto não pode “escutar” sua forma
de razão, tanto no que esta forma tem de similar como de diferente da do
próprio adulto, o que faz da infância uma cultura do silêncio. A voz da
criança torna-se uma voz desde as margens, associada a uma natureza
“essencial”, à animalidade, à loucura, à criminalidade, ao divino55, isto é, ao
sem voz. O tipo de reflexão que a filosofia figura - especialmente a filosofia
feita em diálogo comum ou “comunidade de investigação” - oferece uma
oportunidade ideal para os adultos garantirem a prerrogativa epistêmica
das crianças, reconhecerem uma fala diferente da sua própria, defrontarem-
se com uma cultura que “representa nossos outros eus”, viverem o outro
lado.

55
Assim J. Derrida diz: “o Homem se chama homem só traçando limites que excluem seu outro do
jogo da suplementaridade: a pureza da natureza, da animalidade, do primitivismo, da infância, da
loucura, da divindade. A aproximação para estes limites é temida imediatamente como uma ameaça
de morte, e desejada como acesso a uma vida sem diferença”. Of Grammatology, trad. ingl. Baltimore:
Johns Hopkins Press, 1976, p. 245.

78
A comunidade da infância

O modo da mudança
Qualquer que seja a causa formal ou eficiente, é provavelmente
seguro (e talvez confortável) dizer que a transformação positiva da relação
adulto-criança não está realmente sob nosso controle. As vicissitudes da
dialética histórica que esbocei neste trabalho foram, sem dúvida,
simplificadas demais, e, como conhecimento retrospectivo, não têm,
necessariamente, qualquer valor preditivo. De fato, nossa época está
assombrada pelo espectro do que Postman chama de “adulto-criança”, isto
é, uma personalidade modal, produzida e mantida pela televisão, com a
“idade mental de treze anos”, quer ela tenha oito ou trinta anos de idade,
que sorri maliciosamente diante das mesmas piadas sexuais em séries
televisivas e vibra diante da mesma violência (quer real ou representada —
isto nem sempre é claro), que veste as mesmas roupas e assiste aos mesmos
eventos esportivos. Do ponto de vista do reequilíbrio da economia
instintiva, isto pareceria análogo àquilo que os estudantes de culturas
bilíngues chamam de “semilinguismo”, erosão da competência linguística
em ambas as línguas que a pessoa fala.
Uma mudança histórica do tipo aqui discutida parece acontecer de
modo fragmentado e se caracteriza por períodos, possivelmente muito
longos, de avanços, de retrocessos, de supressão, de reação e, de repente,
de saltos imprevisíveis. O único controle real que nós possuímos sobre ela
é provavelmente no campo da educação. Mas o caráter colonizador da
educação patrocinada pelo Estado parece estar ainda profundamente
entranhado na corrente principal. Enquanto isso, os esforços na
descentralização escolar, dominados como são por interesses próprios
econômicos, religiosos e de classe, tendem a reproduzir o modelo
hegemônico. Como quer que seja, a emergência da teoria e prática
educacionais dialógicas centradas na criança parece oferecer a esperança

79
David Kennedy

mais concreta para a possibilidade de reconstrução social através da


reconstrução dialética da relação adulto-criança.

80
3. NOTAS SOBRE A FILOSOFIA DA INFÂNCIA
E A POLÍTICA DA SUBJETIVIDADE

A criança e a segunda harmonia


A criança aparece pela primeira vez, nos textos antigos conhecidos, não
como um princípio, mas como um fim. Ela representa a ideia de efetivação
do crescimento espiritual como inversão do ciclo da vida. No século VI a.c.
Lao-Tsé diz: “Ele que está em harmonia com o Tao é como uma criança
recém-nascida. Seus ossos são brandos, seus músculos são fracos, mas o
aperto da sua mão é poderoso... O poder do Mestre é assim. Ele deixa todas
as coisas virem e irem sem esforço, sem desejo”56. Jesus fala da obtenção de
maturidade espiritual como “tornar-se como criancinhas”57. Plotino compara
crianças com adultos “cujas aptidões e atividades mentais estão ocupadas
com grande número de assuntos passando rapidamente por todos, sem
demorar-se em nenhum”. Já entre as crianças, por outro lado, os objetos

56
Lao-tsé, Tao-te ching. Trad. de Stephen Mitchell. New York: Harper & Row, 1988, par. 55.
57
Marcos, 10, 13.

81
David Kennedy

“ganham presença”, porque a atenção da criança não está “espalhada”,


dispersa no mundo de multiplicidade.58
Nesse magnífico e eterno mito ocidental, a criança representa uma
unidade ontológica original de ser e conhecimento, pensamento e
experiência — identidade realizada. A criança é pré-moral, o adulto
realizado é pós-moral. O relato da viagem de um para outro começa com
uma Queda na divisão. Essa é, segundo o relato, uma queda necessária, pois
ela inaugura uma viagem psicológica e espiritual que — se a pessoa não
morrer no deserto da adultez — promete auto-reintegração em um nível
superior. A lógica da história de Hegel reproduz este mito universal do ciclo
vital do indivíduo. Por isso, ele pode dizer: “A harmoniosidade da infância
é um dom da mão da natureza: a segunda harmonia deve resultar do afã e
do cultivo do espírito”59.
Não apenas em Hegel, mas em seus contemporâneos românticos, o
mito da árdua jornada psicológica da unidade recuperada deixa suas
amarras religiosas e de outra dimensão e entra no tempo. Schiller exprimiu
em 1795 o ideal romântico em referência às crianças:

Elas são o que nós fomos; elas são o que nós devemos tornar-nos
novamente. Nós fomos natureza assim como elas, e nossa cultura, mediante
a razão e a liberdade, deve conduzir-nos de volta para a natureza. Elas são,
portanto, não só a representação da nossa infância perdida, [...] mas são,
também, representações da nossa realização mais elevada no ideal.60

58
Bales, Eugene. Recordação, esquecimento e a revelação do ser em Heidegger e Plotino.
Philosophy Today. v. 34, n. 2, 1990, p. 142.
59
Citado In: Abrams, M. H. Natural Supernaturalism: Tradition and Revolution in Romantic
Literature. New York: W. W. Norton, 1971, p. 380.
60
Von Schiller, Friedrich. Naive and Sentimental Poetry and On the Sublime. New York: Frederick
Unger, 1966, p. 85.

82
A comunidade da infância

Unidade original, eu e natureza dados como um, o universal concreto. O


Romantismo redescobre a “divina” arquetípica criança da mitologia61 bem
aqui na terra como um profeta, um vidente silencioso, um enigmático sinal
de vida sem divisão, sem differance. A linguagem desse profeta é a
brincadeira. Heráclito diz: “O tempo é uma criança movendo fichas num
jogo. Seu reino é o de uma criança”62. Agostinho, em crise, andando de um
lado para outro em frenética agonia pelo jardim, ouve a “voz de uma criança
numa casa próxima”, cantarolando “pega-a e lê, pega-a e lê”. Agostinho abre
a Bíblia que está na sua mão, na passagem que muda para sempre a sua
compreensão da vida.63 Em 1933, Cartier-Bresson fotografa um grupo de 12
crianças em idade escolar brincando nas ruínas de uma casa em Nápoles.
Emoldurados por um buraco que se abre numa parede de argamassa, sua
diversão extasiante parece tanto uma dança celebratória como uma
escaramuça de guerra, quando eles se agarram, fogem, riem, gritam,
ameaçam, dão risadinhas, correm, fitam, choram. No quadro “Virgem e
Menino com Santa Ana”, de Leonardo (c. 1508, Louvre), o Cristo menino,
nu, brinca com o cordeiro que representa seu assassínio sacrificial. Em
“Virgem no Roseiral”, de Stefan Lochner (c. 1450, Colônia), o pequeno
Menino nu segura na mão uma bola de ouro, que lhe é apresentada por
um anjo. O jogo, diz Melanie Klein, é “o mais importante meio de expressão
da criança”. Visto que seu “consciente está por ora em íntimo contato com
seu inconsciente”, a linguagem do jogo é a mesma “com que nós estamos
familiarizados nos sonhos”.64 Para a imaginação romântica, o jogo exprime
um princípio ontológico. Ele é a atividade em que convergem o universal e

61
Sobre a divina criança no mito e na psicanálise. ver Jung, C. G., Kerenyi, C. Essays on a Science of
Mythology: The Myth of the Divine Child and the Mysteries of Eleusis. Princeton, NJ: Bollingen, 1963.
62
Diels-Kranz. Fragmento 52.
63
Saint Augustine, Confessions. Trad. R. S. Pine-Coffin. Harmonsworth: Penguin Books, 1961, p. 177
[trad. brasileira pela Vozes].
64
Klein, Melanie. The Psycho-analysis of Children. London: Hogarth Press, 1980, p. 7, 9.

83
David Kennedy

o particular, o possível e o dado, o aleatório e o determinado, acaso e


destino, contingência e objetivo, é e deveria ser, tempo e eternidade. O
mundo da natureza brinca e a brincadeira humana representa essa
brincadeira e transforma-se nela, superando, assim, a nossa separação do
mundo. No jogo, a tirania de meios e fins é quebrada, e a causalidade dá
lugar à sincronicidade. O jogo implica um diferente relacionamento sujeito-
objeto, eu-mundo, interior-exterior. “Os jogadores”, diz Gadamer, “não são
os sujeitos do jogo: ao contrário, o jogo meramente alcança apresentação
por meio deles.”65 O jogo situa-se no que Winnicott, descrevendo crianças
pequenas, chamou “espaço transicional”, que é também o espaço da arte,
da fantasia e da emoção profunda, onde os limites do ego tornam-se
permeáveis e o muro que nós construímos entre realidade e imaginação é
temporariamente transposto. Posto que o jogo não está “dentro” nem
“fora”66, ele é vivenciado como o casamento do princípio de prazer com o
princípio de realidade. N. O. Brown chama isto “significado psicanalítico da
história”: “O nosso indestrutível desejo inconsciente de retorno à infância,
nossa profunda fixação na infância é um desejo de retorno ao princípio de
prazer, de uma recuperação do corpo do qual a cultura nos aliena, e de
brincar, em vez de trabalhar”67. O jogo é pura presença, acesso a uma vida
sem diferença. Schiller o expressa claramente: “O impulso a brincar visaria
a extinção do tempo a tempo e a reconciliação do devir com o ser absoluto,
da variação com a identidade”68.

65
Gadamer, Hans-Georg. Truth and Method. Trad. Ingl. New York: Continuum, 1975, p. 92 [trad.
pela Vozes].
66
Winnicott, D. W. Playing and Reality. New York: Basic Books, 1971, p. 41.
67
Brown, N. O. Life Against Death. Middletown, CT: Wesleyan University Press, 1959, p. 38.
68
Schiller, Friedrich. On the Aesthetic Education of Man. New York: Frederick Ungar, 1965, p. 74.

84
A comunidade da infância

A criança e o eu dividido
Platão e Aristóteles inserem a criança num tempo permanentemente
resistente à extinção no tempo. Fazendo isso, eles colocam a criança como
unidade original e símbolo da segunda harmonia, sujeita à supressão.
A criança entra pela primeira vez no tempo ocidental na teoria
platônico-aristotélica do eu tríplice e suas vicissitudes. Na criança, o
equilíbrio entre as três dimensões do eu — apetite, vontade ou “o elemento
vivaz”, e razão — está ontogeneticamente desbalançado. A criança carece
de razão. Por isso Platão considerava que as crianças eram modelos do
apetite indomado e da vontade descontrolada. Elas são propensas — junto
com mulheres, escravos e a “multidão inferior” — à “grande quantidade de
apetites, prazeres e sofrimentos diversos” próprios dos naturalmente
imoderados.69 “Elas estão cheias de sentimentos exaltados já desde o
nascimento.”70 “O menino... justamente porque, mais do que qualquer outro,
tem uma fonte de inteligência nele que ainda não tem ‘funcionado sem
embaraços’,... é o mais ladino, malicioso e indisciplinado dos brutos. Por
isso a criatura deve ser mantida sob controle...”71. A única virtude das
crianças parece ser o fato de serem “facilmente moldadas”, isto é, elas
podem ser transformadas em adultos. Isto requer uma certa forma de
educação como necessidade pessoal e social — daí que a República é o
primeiro sistema educacional do Ocidente.
Aristóteles desenvolve o raciocínio de Platão mostrando como a
comunidade do eu está desviada nas crianças. A preponderância da sua
natureza apetitiva resulta na ou da falta de capacidade de escolha ou “ação
moral”, isto é, a habilidade para engajar-se propositadamente em uma ação

69
The Republic of Plato. Trad. de F. M. Cornford. London: Oxford University Press, 1941, p. 125.
70
Republic, p. 125, 138.
71
Platão, Laws. In: Hamilton, E., Cairns. H. (eds.) Collected Dialogues. Princeton, NJ: Bolingen, 1961,
p. 1379.

85
David Kennedy

visando uma finalidade.72 Por esta razão, a criança não pode ser considerada
“feliz”, porque a felicidade resulta de “atividade de acordo com a virtude”,
que é um estado em que a função executiva da razão controla instinto e
vontade. A felicidade requer bondade plenamente adulta e uma vida
completa. As crianças não preenchem os requisitos de uma “vida completa”.
Se nós dizemos que uma criança é feliz, “é em razão das esperanças que
temos para seu futuro”73. Também não podemos chamar uma criança de
“amigo”, embora possamos amá-la: “Seria absurdo um homem ser amigo
de uma criança”74.
As formulações de Aristóteles e Platão são primeiras manifestações
de uma simbolização permanente, pela qual a criança é ao mesmo tempo
deficiência e perigo. Aristóteles poderia até ser lido como uma teoria
implícita de monstros, no sentido de que as crianças “parecem” humanas
— entendendo-se por “humano” adulto, de sexo masculino, nascido livre e
regido pela razão — mas não são. Elas combinam os mesmos elementos
numa mistura diferente e deficiente. É bem verdade que a criança, se não
tiver nascido escrava ou do sexo feminino, tem a oportunidade de virar um
adulto — isto é, razão em correta proporção com vontade e apetite -, ao
passo que a mulher e o escravo nunca conseguirão. Mas a transição torna-
se problemática. Na realidade, segundo Platão, algumas crianças nunca se
tornam “adultos” no sentido de uma harmonia do eu tríplice: “Algumas, eu
diria, nunca se tornam racionais, e a maioria só em idade avançada.”75 Faz-
se necessária uma tecnologia para atingir a condição adulta, ou seja, a

72
Aristóteles. Physics. In: Ackrill, J. L. (ed.). A New Aristotle Reader. Princeton, NJ: Princeton
University Press, 1987, 197b7-10, p. 104. Ver no mesmo volume Eudemian Ethics, 1224a27-29, p. 492-
493.
73
Aristóteles. Nichomachean Ethics. Trad. M. Ostwald. Indianapolis, In: Bobbs-Merrill, 1962,
1099b:25-1100a:5, p. 22-23.
74
Eudemian Ethics, 1239a:1-6.
75
Republic, p. 138.

86
A comunidade da infância

educação, que Aristóteles define, na linha de Platão, como ser “instruído a


partir da infância para sentir prazer e dor nas coisas adequadas; pois isto é
educação correta”76. A educação como treinamento apresenta-se, então,
como um ritual de força e uma absoluta necessidade cultural.
O eu tríplice de Platão e Aristóteles não é tanto um eu plural quanto
uma comunidade estrutural de funções, na qual a obtenção da condição
adulta indica que as partes alcançam um equilíbrio normativo, colocando-
se os “elementos afinados uns com outros ajustando a tensão de cada um
na intensidade certa”77. A metáfora viaja pela filosofia ocidental do eu até
formulações do século XX como as de Freud e Erikson. A criança do
racionalismo patriarcal ocidental representa a ambiguidade do que é dado
como o humano no princípio do ciclo vital e a possibilidade da construção
de um eu ideal em que “cada parte da sua natureza exercita sua função
apropriada, de reger ou ser regida”78. Esta construção tem prosseguimento
na vida adulta no que Foucault chamou “as tecnologias do eu”79. A unidade
do eu só é conseguida por meio da eterna vigilância da razão sobre o apetite
e a vontade, sendo um produto de constante autoexame e reajuste por
autodisciplina. Este sistema de dominação interna é reproduzido
macrocosmicamente, não só na República de Platão, mas no sistema
sociopolítico indo-europeu como um todo, onde reis (razão) controlam
guerreiros (vontade intrépida) que, por sua vez, exercem domínio sobre as
classes agrárias (apetite).80

76
Nichomachean Ethics, 1104b, p. 37.
77
Republic, p. 102.
78
Republic, p. 141.
79
Martin, L., Gutman, H., Hutton, P. H. (eds.). Technologies of the Self: A Seminar with Michael
Foucault. Amherst: University of Massachusetts Press, 1988.
80
Dumezil, Georges. The Destiny of the Warrior. Chicago: University of Chicago Press, 1970.

87
David Kennedy

A criança e a política da subjetividade


Não é coincidência que a filosofia da infância divida espaço com a
filosofia do eu e da construção da subjetividade. A criança sempre tem tido
uso simbólico como enunciado probatório para concepções da “natureza”
humana — quer na depravação original da criança dos puritanos, na
totalidade primordial da criança dos românticos ou no evolucionismo de
estágios na versão da infância da psicologia biologizante. Mas cada “criança”
representa também um correspondente “adulto”. Dada a inseparabilidade
dos dois conceitos, dizer o que é uma criança é, ao mesmo tempo, dizer o
que um adulto é, ainda que seja dizendo o que ele não é. Dizer o que é
uma criança é também dizer como tornamo-nos adultos; e dizer o que é
um adulto é dizer que relacionamento temos com a nossa infância.
Eu gostaria de sugerir que a narrativa que tem informado os
relacionamentos entre os elementos desse par contrastante, pelo menos
desde Aristóteles e Platão, é a história do relacionamento incômodo entre
desejo e razão nos adultos. A criança é ambivalente na imaginação adulta
porque ela representa uma condição limítrofe do humano. Como o louco,
o divino, o animal - ou, no patriarcado, a mulher -, todos representações
do desejo em alguma forma “pura”, a liminaridade da criança ao mesmo
tempo a exclui e a privilegia. Por isso era uma criança que ia ao encontro
do Deus antes dos adoradores, nos mistérios secretos de Elêusis.81
Em nossos tempos, Freud adotou esta conhecida narrativa e
descreveu-a como a relação entre instinto e repressão. Ele deu continuidade
à concepção platônica do desenvolvimento como o esforço para integrar
uma subjetividade dividida por uma disputa fundamental. A importância de
Freud para a filosofia da infância está no fato de ele inaugurar uma filosofia

81
Golden, Mark. Children and Childhood in Classical Athens. Baltimore, MD: Johns Hopkins
University Press, 1990, p. 44.

88
A comunidade da infância

do eu cujo resultado é combinar as duas simbolizações da infância — a


unidade ontológica original e a deficiência perigosa — e mostrar seu inter-
relacionamento.
A unidade original que a criança representa na visão de Freud é
descrita no que ele chama “narcisismo infantil”, o paraíso de desejo onde
os limites do eu são os limites do mundo. Na primeira infância, pensamento
e ato são um só, eu e mãe/outro [(m)other] são um só. A serpente neste
Jardim é a natureza dual e contraditória do desejo — Eros e Tanatos. Eros
não pode concluir seu impulso pela unidade no tempo e em multiplicidade.
Somente a Morte e seu agente, a Agressão, podem atingir a homeostase
final que é a meta do Amor.
No relato mítico de Freud, a Queda da criança na divisão está inscrita
no corpo. Primeiro, o desmembramento do prazer na separação ontogênica
das zonas — boca, ânus, genitais. A crise edípica cimenta a fixação do
prazer nos genitais e estabelece a proibição do desejo como um princípio
de propriedade. A criança cai lenta, mas, infalivelmente, afastando-se do
estado de graça da sexualidade polimórfica, da existência como jogo erótico
espontâneo, da mágica simbiose de sujeito e objeto, eu e mundo, interior e
exterior.
Para Platão, Aristóteles e Freud, a infância desaparece quando a razão
ou o Ego assumem a sua função executiva, só que para Freud o Ego não é
inteiramente razão; ele é, em parte, consciente e, em outra parte,
inconsciente. Também não é dominante, mas um mediador, uma quarta
função que cresce como resultado da interação entre os outros e que tenta
integrá-los. Além do mais, na medida em que a neurose — isto é, crônica
falta de integração das funções do eu — é a condição humana, a experiência
do narcisismo infantil continua a ser uma irracionalidade existencial.
Lyotard refere-se a essa irracionalidade como infantia, ou “aquilo que
resiste, apesar de tudo”. Ele diz: “Mas alguma coisa nunca será derrotada,

89
David Kennedy

ao menos enquanto os humanos nascerem bebês, infantes. Infantia é a


garantia de que continua a existir um enigma em nós, uma opacidade não
facilmente comunicável — que resta alguma coisa que permanece, e que
nós devemos dar testemunho dela”82. A “deplorável e admirável
indeterminação” da primeira infância é, para Lyotard, aquilo que pode
resistir ao ideal Iluminista de “emancipação”, o “inumano” da sistematização
e complexificação disfarçado de “desenvolvimento”. A meta da emancipação
é “garantir plena posse de conhecimento, vontade e sentimento; de modo a
dar-se a si mesmo a autoridade do conhecimento, a lei da vontade e controle
sobre os próprios afetos”83.
O adulto realizado “emancipado” do Iluminismo é inaugurado no
Ocidente por Platão e Aristóteles. Ele (sic) domina o apetite através da
razão, que se utiliza da vontade como os governantes indo-europeus usam
das tropas para controlar as massas. Para obter controle, a criança e o
“nativo”, ambos representando vida instintiva, apetite, prazer, o corpo —
isto é, a transgressivo — devem ser excluídos e subjugados. Ashis Nandy
analisa o relacionamento entre o que ele chama “ideologia da condição
adulta” e o colonialismo:

Na medida em que a condição adulta em si é valorizada como um símbolo


de totalidade e um produto final do crescimento ou desenvolvimento, a
infância é vista como um estado transicional imperfeito na rota para a vida
adulta, a normalidade, a completa sociabilização e condição humana. Esta
é a teoria do progresso aplicada ao ciclo de vida do indivíduo. Dela resulta
o uso frequente da infância como modelo de imaturidade cultural e política
ou, o que dá no mesmo, de inferioridade. Boa parte da influência da
ideologia colonialista e boa parte do poder da ideia de modernidade podem

82
Lyotard, J-F, Larochelle, G. What Which Resists, After All. Philosophy Today. v. 36, n. 4, 1992, p.
416.
83
Lyotard, J-F. Mainmise Philosophy Today, v. 36, n. 4, 1992, p. 421. E veja, na mesma edição,
Lindsay, Cecile. Corporalidade, ética, experimentação: Lyotard nos anos 80, p. 389-401. Ver também
Lyotard, J-F, The Inhuman. Trad. G. Bennington e R. Bowlby. Stanford, CA: Stanford University Press,
1991.

90
A comunidade da infância

ser atribuídas às implicações evolucionárias do conceito da criança na visão


de mundo do Ocidente.84

Freud vaticina uma ruptura nesse quadro de colonização interna e


externa. Na sua formulação, as políticas do eu mudam, e a criança e a vida
instintiva que ela representa ficam reposicionadas. A criança não mais está
dominada, apagada, sujeita a supressão na personalidade adulta, mas passa
a representar a voz sempre presente das demandas do id. Estas demandas
são vivenciadas tanto no interior como no exterior: como a lembrança
obsessiva da experiência da onipotência alucinatória do processo primário
na própria infância da pessoa; e como o relacionamento do adulto com a
criança real — o eu do desejo em conflito e diálogo com a “razão” — na
parentalidade e na educação. As políticas da subjetividade são também as
políticas de educação infantil e as da diferença.
O quadro fica complicado por causa de uma ambivalência arraigada.
Para o Freud “civilizado”, a criança é a voz da neurose. O neurótico recusa-
se a abrir mão das demandas da infância, da possibilidade de um mundo
indiviso. O adulto que privilegia a sua “criança” torna-se pueril, isto é,
incivilizado. A própria possibilidade de civilização baseia-se na repressão.
Em certo momento, Freud definiu a psicanálise como “uma prolongação da
educação visando superar os resíduos da infância”85. Para esse Freud a
criança é ainda a deficiência perigosa.
Para o Freud “selvagem” e seus intérpretes, esses mesmos resíduos
são a nossa única esperança de sermos libertos do traço inumano do
“progresso”, ou da sistematização e complexificação. Freudianos radicais

84
Nandy, Ashis. Reconstructing Childhood: A Critique of the Ideology of Adulthood. In: Traditions,
Tyranny and Utopias: Essays in the Politics of Awareness. New Delhi: Oxford University Press, 1987,
p. 57.
85
Freud, S. Five Lectures on Psychoanalysis. In: Strachey, J. (ed.). The Standard Edition of the
Complete Psychological Works of Sigmund Freud, 24 vols. London: Hogarth Press, 1957, v. 11, p. 48.

91
David Kennedy

como Brown86 desenterram o romantismo de Freud e reverenciam a criança


como a voz do desejo que não será sufocada ou apagada por um
racionalismo contaminado pelo que ele reprime. Para o modernismo que se
desintegra no pós-moderno, a criança é mais um outro excluído — com as
mulheres, os loucos, os “desencaminhados”, os “nativos” — mais uma voz
das margens da subjetividade platônica patriarcal. Ela ocupa seu lugar com
os outros “estranhos privilegiados” da epistemologia feminista,87 que
representam, pela sua própria liminaridade, a nossa única esperança de
desmantelamento de uma noção de subjetividade baseada na dominação.
Em Freud, as políticas da subjetividade voltam-se para o
desmantelamento da hierarquia. Seu modelo cria uma abertura para mudar
relações de poder, para intriga, para transgressão, para diálogo entre os
elementos do eu. Neste sentido ele está, mais do que afastando-se de Platão
e Aristóteles, prenunciando as relações dentro da comunidade do eu, em
sua complexidade e seu paradoxo. Ele abre o caminho para o que Kristeva
chama “sujeito-em-decurso”, ou o eu entendido como um pluralismo de
relacionamentos em vez de uma “organização constituída por exclusões e
hierarquias”88. A infância simboliza a “jouissance”, a experiência do “tempo
esquecido” pré-edípico, momentos de êxtase em que o modelo socialmente
construído da linha divisória entre eu e mundo exterior é desconstruído em
benefício da auto-reconstrução ininterrupta.89 Se Platão está certo ao dizer
que o estado é o mandado do eu em grande escala, quais são as
consequências deste novo modelo de subjetividade para os sistemas

86
Brown, N. O. Life Against Death, e Love’s Body. Berkeley: University of California Press, 1966.
87
Harding, Sandra. Whose Science? Whose Knowledge? Thinking from Women’s Lives. Ithaca, NY:
Cornell University Press, 1991, p. 124-131.
88
Kristeva, Julia. Desire in Language. New York: Columbia University Press, 1980, p. 135; e
The Powers of Horror: An Essay on Abjection. New York: Columbia University Press, 1987, p. 65.
89
Marchak, Catherine. The Hoy of Transgresion: Bataille and Kristeva. Philosophy Today, v. 34, n.
4, 1990, p. 354-363.

92
A comunidade da infância

políticos do mundo? O fato de a repressão e a dominação dentro da


comunidade do eu serem problematizadas e criticadas leva ao mesmo
resultado para a dominação e repressão econômica e política?
O elo crítico entre a política no interior da pessoa e a política exterior
que a circunda poderia ser a educação infantil. Quando o sujeito-em-
decurso dialoga com a infantia, ele dialoga também com a criança real. Na
ideologia da educação infantil pós-moderna, Eros vence Tanatos com
diálogo e integração. O adulto sujeito-em-processo reconhece a voz da
diferença, do Outro, que a criança real representa. Como o artista e o gênio,
a criança sugere-nos, com seu próprio desequilíbrio, novas maneiras de nos
equilibramos. A criança é o gênio ingênuo-nativo da espécie. Voltando a
Schiller:

A modalidade ingênua de pensamento pode... ser atribuída apenas às


crianças e àqueles de temperamento infantil... Todo verdadeiro gênio tem
de ser nativo, ou não é gênio. Só a sua ingenuidade contribui para seu
gênio, e ele não pode repudiar moralmente aquilo que ele é intelectual e
esteticamente... Somente ao gênio é dado estar à vontade para além do
costumeiro e estender o alcance da natureza sem ir além dela.90

A criança — dentro e fora — é o profeta da futuridade, o ser


experimental que oferece-nos indícios de como “estender a natureza sem ir
além dela”. Isto lembra aquilo que Merleau-Ponty descreveu como “a tarefa
do nosso século... A tentativa de explorar o irracional e integrá-lo numa
razão expandida”91. Outros poderiam falar em recuperação do corpo ou
sublimação não repressiva, ou em vencer o patriarcado, a dominação e a
colonização, tanto do interior como do exterior. “Nossos laços mais
liberadores”, diz Nandy, “podem ser os que mantemos com nossas crianças

90
Schiller. Naive and Sentimental Poetry, p. 85.
91
Merleau-Ponty, Maurice. Sense and Nonsense. Evanston, IL: Northwestern University Press, 1964,
p. 63.

93
David Kennedy

subsocializadas. E a prova final para nossa capacidade de viver uma


existência bicultural ou multicultural talvez ainda seja nossa aptidão para
viver com nossas crianças em relação de interdependência”92. Enquanto isso,
as crianças brincam.

92
Nandy, p. 75.

94
4. PENSAR POR SI MESMO E COM OUTROS

A peculiaridade mais característica da teoria e da prática da


comunidade de investigação filosófica (CIF), que à primeira vista parece
contraditória, é o modo como ela tanto favorece o significado comum,
intersubjetivo, como estimula as pessoas a pensar por si mesmas. Pensamos,
em geral, que as duas coisas, se não são opostas, não estão especialmente
relacionadas. O ato de pensar por si mesmo é geralmente associado ao
Iluminismo ocidental do século XVIII — à problematização automática de
crenças sustentadas coletivamente —, ao ceticismo e ao individualismo. A
comunidade é geralmente associada à afirmação de crenças e pressupostos
sustentados coletivamente, e ao necessário sacrifício da opinião individual
por um bem maior.
A CIF combina o individual e o coletivo, de uma forma que, mais do
que nova, tem estado sempre presente entre nós, mas surgiu historicamente
associada ao tipo de discurso intersubjetivo chamado diálogo. A atenção
explícita e centrada numa teoria do diálogo é, pelo que sei, própria do

95
David Kennedy

século XX, embora ela tenha suas raízes filosóficas no idealismo alemão que
começa em Kant e passa por Fichte, Hegel e Feuerbach. É de Feuerbach
que tomamos a frase “Eu e Tu”, que Rosenzweig, na sua metafísica do
diálogo entre Deus, o mundo e a pessoa, legou a Buber. A filosofia do
diálogo viaja, de três maneiras muito diferentes, no existencialismo em
Levinas, na fenomenologia em Merleau-Ponty, e na hermenêutica e na teoria
do jogo em Gadamer.
Gadamer chamou o diálogo socrático de um “viajar separadamente
que visa a unidade”, o que exprime perfeitamente a aparente antinomia
associada à estrutura e à dinâmica da CIF. O diálogo assume duas coisas ao
mesmo tempo: a radical incomensurabilidade das perspectivas individuais,
e uma disposição a ter a própria perspectiva mudada pela interação com
outro. No diálogo, nós estamos posicionados num espaço existencial e
interpretativo que Buber (1970) e outros têm denominado o “entre” — um
espaço que, em termos hermenêuticos, não é o do intérprete nem o do
interpretado, não é o espaço do sujeito nem o do objeto. Diálogo é a própria
estrutura de acontecimento de um espaço de diferença, de uma
interrogação do outro — ou do objeto de investigação — ou ambos —
que é necessariamente também uma auto-interrogação. Ele é uma situação
intersubjetiva singular e significativa. Buber evoca este espaço interpretativo
na sua descrição do momento do surgimento da objetivização e da
categórica tipificação da experiência que ele chama de relação “Eu-Tu”.
Levinas denomina-o “desorientação”, “rompimento” que resulta na “ruptura
do eu-egoísta e no seu recondicionamento face ao Outro” (Levinas 1987:
17). O recondicionamento leva-nos a reconhecer o outro na sua
individualidade como “aquele que é singular” — aquele que anula ou foge
de todas as projeções do ego, e existencialmente vem até antes do ego. A
teoria do diálogo baseia o sujeito não apenas no outro, mas nos limites da
sua própria subjetividade — onde ele só pode conhecer-se em relação a

96
A comunidade da infância

um processo dialético intersubjetivo de transformação mútua. Daí que


mesmo quando individualiza o outro, o diálogo cria comunidade entre o eu
e o outro.
A estrutura de intersubjetividade característica do diálogo comum
exige, não o abandono, mas a expansão da estrutura do dialógico para o
multilógico. Corrington (1987) usa a semiologia de Peirce para desenvolver
a ideia de CIF como comunidade de signos, ou de “matriz de signos”. Numa
comunidade de interlocutores, nenhuma afirmação está isolada daquelas
que a precederam, nem é indeterminada pela afirmação a que ela responde
— e, por consequência, pela afirmação a que ela dará origem. Isto implica
uma totalidade — um sistema emergente de signos, mas dado que o
discurso intersubjetivo dá-se no tempo, o caráter integral da matriz nunca
estará presente, salvo como uma espécie de Gestalt implícita, ou um
horizonte. O pensamento dialógico é uma “série ilimitada”, na qual um
signo dado qualquer — isto é, uma ideia ou proposição - desde que “é
indeterminado tanto por seus antecedentes como por seus consequentes”,
jamais terá um valor de verdade totalmente determinável. “Somente num
futuro ideal a série de signos alcança plena convergência e total
transparência” (Corrington 1987: 12, 13). Na CIF, somos atraídos para esse
horizonte, que representa a coordenação de todas as perspectivas
individuais num juízo comum que podemos chamar de “verdade”, mas que,
como é característico dos horizontes, embora sempre presente, nunca
chega. Na verdade, da CIF, o juízo final está sempre surgindo, sempre
pendente, sempre a insinuar-se. Se não tivéssemos uma sólida noção disto,
nós não o faríamos. Mesmo com essa noção, nós agimos em meio a um
paradoxo do tipo: a “plena convergência e total transparência” é prometida
somente se cada perspectiva mantiver a sua integridade finita e localizada
— isto é, só se cada pessoa “pensar por si mesma”. No entanto, nós
iniciamos o “entre” do diálogo, a experiência da diferença, o desafio de

97
David Kennedy

pensar com outros, com a promessa de superação da nossa finitude, em


busca daquela verdade “do longo prazo”, que será a verdade de todos. Como
podem esses dois impulsos coexistir e, muito menos, fomentar-se
mutuamente?
Kant fornece-nos uma outra via para penetrar esta aparente
antinomia do individual e do coletivo, com a sua ideia de sensus comunis
logicus, ou senso comum lógico (como oposto ao senso comum estético, ou
“gosto”). Em sua Critique of Judgment (Crítica do juízo, 1987: 160-161), ele
nos fornece três “máximas” da “compreensão comum humana”:
1) Pensar por si mesmo; 2) Pensar do ponto de vista de todo mundo;
e 3) Pensar sempre consistentemente. As três máximas correspondem,
respectivamente, a um modo de pensar sem preconceitos, ampliado e
consistente.
A primeira máxima, que Kant denomina “a máxima da compreensão”,
está para ele associada, na verdade, ao Iluminismo, e envolve o abandono
do que ele chama “razão passiva”. O maior preconceito, no entender dele,
“consiste em pensar que a natureza não está sujeita às regras que a
compreensão, mediante suas próprias leis essenciais, estabelece como base
da própria natureza” (p. 161). Na realidade, ele chama esse preconceito de
“superstição”. Aquele que pensa sozinho obedece apenas à sua
compreensão, termo com o qual, segundo eu suponho, Kant alude ao que
o eu transcendental pode saber, e à medida em que esse eu transcendental
é capaz de ligar, mediante a imaginação, suas intuições empíricas às suas
estruturas conceituais. Quem pensa por si mesmo aceita somente o que faz
sentido para ela. Aqui, pensar por si mesmo é uma disposição cognitiva que
reflete o subjetivismo paradoxal da razão categórica “pura”, que “estabelece
a base da natureza”, isto é, que entende ser dadora da natureza e não dada
por ela. Ela só não é um solipsismo graças a sua invocação de uma “lei
essencial” e universal da compreensão, da qual não podemos afastar-nos

98
A comunidade da infância

sem cair na “superstição”. Sem a máxima seguinte, este tipo de convicção


significa em si quase que uma superstição. É idealismo radical no nível de
Fichte, no qual o “eu” pressupõe o não-eu. Em termos de intersubjetividade,
é uma condição pré-dialógica, a modalidade especulativa que Levinas (1987:
68) descreve, de forma diversificada, como “inteligibilidade”, “razão” e
“conhecimento”. Ele diz:

A luz que permite deparar-se com alguma coisa distinta do eu faz com que
ele se depare com essa coisa como se esta proviesse do ego. A luz, o brilho,
é em si mesmo inteligibilidade; fazendo com que tudo provenha de mim,
ela reduz toda experiência a um elemento de recordação. A razão está
sozinha. E neste sentido o conhecimento jamais se depara com nada
verdadeiramente distinto no mundo. Eis a verdade profunda do idealismo.

A segunda máxima — “pensar do ponto de vista de todo mundo” —


é chamada por Kant de máxima do “juízo”, pois ela nos exorta a refletirmos
sobre o nosso juízo “de um ponto de vista universal” (p. 161). Ela é realmente
uma impossibilidade (como é também, aliás, a primeira), um ideal de
transparência intersubjetiva ou permutabilidade em direção ao qual o
“entre” do diálogo representa o limite mais distante. Eu só posso pensar do
ponto de vista do outro reproduzindo os signos que ele produz — quer
sejam verbais ou não-verbais — como sendo meus signos. O signo
“recebido” por mim não é igual ao signo que foi “enviado”, e sim a minha
reprodução desse signo, que é um outro signo na série. Seria, portanto,
mais correto falar, como fazemos na teoria da comunidade de investigação,
em uma “coordenação de perspectivas”, ou pontos de vista, ou juízos. A
singularidade de cada ponto de vista jamais é anulada, porque ela está
fundada no corpo vivido, no fato de eu estar aqui, agora, neste lugar e
tempo e você, aí, agora, nesse lugar e tempo; ela é uma função de finitude
existencial.
Por outro lado, eu só me conheço na minha finitude por meio da
minha relação com outras finitudes, e com um mundo caracterizado pela

99
David Kennedy

finitude, que já é, ao menos, uma superação parcial da finitude.93 E se eu


aceito a noção de que a reflexão, a mente — a própria consciência de si
mesma — só é possível quando passo a ver-me como um outro, é
impossível não “pensar do ponto de vista de todo mundo”. “É quando
assume a atitude do outro”, diz Mead (1934), “que o indivíduo consegue
perceber-se como um eu” (p. 194). Isto é uma completa inversão do
idealismo fichteano, no qual o eu pressupõe o outro; neste caso, eu sou
dado a mim mesmo por um outro — por certo um outro internalizado,
mas um outro —, primeiro um outro individual (mãe, pai), depois um
outro universal, categórico.

Todo eu individual dentro de uma dada sociedade ou comunidade social


reflete, na sua estrutura organizada, todo o modelo relacional de
comportamento social organizado que essa sociedade ou comunidade
apresenta ou está levando adiante e a sua estrutura organizada é
constituída por esse modelo... A estrutura de cada eu individual é
constituída diferentemente por esse modelo. O indivíduo está
continuamente reagindo contra essa sociedade. Toda adaptação envolve
alguma mudança na comunidade, à qual o indivíduo adapta-se (Mead, p.
202).

O raciocínio de Mead entrelaça a primeira e a segunda máximas de


Kant. Ele mostra como ambas são possíveis e, também, como é resolvida a
aparente antinomia do individual e o coletivo. O eu já vem “outrificado” —
trazendo o outro universal como o ângulo de visão pelo qual ele mesmo se
firma. A sua “contínua reação contrária” é a atualidade dinâmica percebida
que é fonte da necessidade e da capacidade de pensar por si mesmo. A
posição a partir da qual ele reage é a do “alguém singular”, a posição
irrepetível da sua finitude. Ninguém mais pode achar-se nesse lugar e nesse
tempo em particular, mas esse lugar e esse tempo estão relacionados com

93
A ausência deste conhecimento pode ser uma das fontes do contentamento e dos terrores da
subjetividade infantil, ou do que Freud chamava “narcisismo primário”.

100
A comunidade da infância

todos os outros lugares e tempos finitos de todos os sujeitos, como signos


numa matriz de signos e, nessa relação, o eu experimenta a infinitude.
Portanto, assim como é impossível superar a minha finitude e adotar um
ponto de vista universal, é impossível penetrar completamente na minha
finitude, exceto de um ponto de vista universal. Contudo, esta segunda
máxima também representa uma condição pré-dialógica, porque não é o eu
pressupondo o outro, mas o eu pressuposto pelo outro, e em nenhum dos
casos há um “entre”.
Tampouco é a terceira máxima de Kant — a máxima do pensamento
coerente, ou “razão” —inerentemente dialógica, pois diálogo é um
acontecimento, um movimento, não uma forma de discurso ou
argumentação. Parece-me que a terceira máxima representa aquilo que nós
chamamos de “razoabilidade”, isto é, a disposição a dar e pretender razões
para os juízos, e a pretender de si mesmo e de outros que elas sejam
coerentes num arcabouço maior de razões, quer aquelas razões se chamem
“fatos”, “crenças” ou “argumentações”. Kant diz que “é a mais difícil de
atingir e, na verdade, só pode ser atingida depois que a repetida obediência
a uma combinação das duas primeiras tenha se tornado uma habilidade
adquirida” (p. 161-162). É difícil saber exatamente a que Kant está se
referindo com essa “habilidade” de combinar o pensar por si mesmo com
o pensar do ponto de vista do outro. Talvez ele queira dizer um introduzir
na prática consciente a situação de intersubjetividade descrita por Mead na
citação. Mead diz: “O indivíduo está continuamente reagindo contra essa
sociedade. Toda adaptação envolve alguma mudança na comunidade, à qual
o indivíduo adapta-se.” Eu aprendo a “reagir” a partir da minha finitude,
que é uma forma de adaptação à comunidade e, também, mediante essa
reação, a comunidade readapta-se como um todo, o que, por sua vez, causa
outra reação contrária e adaptação da minha parte e assim por diante. Kant
parece estar dizendo que só quando isto torna-se uma praxis para mim eu

101
David Kennedy

sou capaz de pensar “consistentemente”. Eu sugeriria que essa é a


“habilidade” fundamental do diálogo.
Certamente ela não abrange o conceito de diálogo completamente,
mas aqui eu estou pensando no diálogo apenas na estrutura de discurso da
CIF. O que ela me sugere é que diálogo é a coisa paradoxal de ir além de
pensar por si mesmo, mas só enquanto se pensa por si mesmo ou mediante
o ato de pensar por si mesmo. Talvez isto seja o que Gadamer quer dizer
com “viajar separadamente visando a unidade”. Nós aferramo-nos à nossa
compreensão mesmo reconhecendo que ela vem de além de nós mesmos
— que ela surge de um encontro do eu e do outro num espaço discursivo
que não pertence a nenhum dos dois. Este espaço discursivo é simbolizado
fisicamente pelo espaço do círculo que fazemos quando estamos sentados
no piso de uma sala de aula ou em torno de uma mesa. Trata-se de um
vazio de tipo pleno, do qual cada um de nós forma um limite exterior, mas
cujo círculo interior apresenta-se infinito. E o diálogo que estamos
vivenciando está desenrolando-se em múltiplas modalidades — postural,
cinética, gestual, auditiva, visual, fonêmica, musicalmente (extremo de
tensão e conjuntura).
O nível ao qual damos mais atenção na comunidade de investigação
filosófica é, por certo, o conceitual. E, nesta dimensão, é a lógica que
desempenha o papel principal na operacionalização da terceira máxima de
Kant. Em nosso discurso comum, a lógica funciona como um juiz, árbitro,
disciplinador, um conjunto de regras ou uma estrutura operativa — ou
como medidas, forma, disposição, linhas de contorno, etc. da área onde o
jogo do diálogo filosófico é jogado (ou joga-se por si mesmo). É a lei da
contradição — lei fundamental de qualquer lógica — que exige a habilidade
de combinar as duas primeiras máximas. É onde as duas primeiras máximas
encontram-se na linguagem: onde o pensar por si mesmo deve ser
articulado em termos universais e onde o pensar que se entende ser

102
A comunidade da infância

universal deve ser articulado em termos que o ser singular possa


compreender. Daí que o discurso da CIF realize duas coisas: ele promove a
diferenciação do indivíduo em relação ao coletivo mas, ao mesmo tempo, é
a afirmação desse logos que Heráclito (fragmentos 1, 2, 89) diz ser “comum
a todos” e reforça a responsabilidade de cada indivíduo por seu “único
mundo em comum”, pela “inteligência” do “que o circunda”. E a lógica é
que traça este movimento diferenciador e unificante.
A afirmação de Mead segundo a qual “toda adaptação envolve alguma
mudança na comunidade à qual o indivíduo adapta-se”, também traz à baila
mais uma característica da CIF, que é a sugestiva facilidade com que ela se
presta à explanação pela teoria de sistemas. Qualquer comunidade de
pessoas compreende um sistema desse tipo, que está continuamente a
surgir pela interação das duas primeiras máximas de Kant, dentro do
contexto discursivo da sua terceira máxima. Quando a interação indivíduo-
comunidade virou uma “habilidade” na qual todo membro é cada vez mais
eficiente, o processo de autocorreção através do qual o sistema se
desenvolve torna-se mais claro, mais palpável, mais positivo. É a
autocorreção o que distingue uma comunidade meramente homeostásica
de uma comunidade dialógica. O diálogo pressupõe autocorreção e, no
diálogo comum, autocorreção individual é também autocorreção comum,
porque qualquer adaptação de uma perspectiva individual é também uma
adaptação da coordenação de perspectivas, que inclui a perspectiva de todo
mundo.
Em resumo, o diálogo humano é a posição intersubjetiva onde são
possíveis o individual e o comum, o eu e o outro, o pensar por si mesmo e
o pensar com outros. Uma característica do diálogo é que ele nunca é
automático — pois esse é um sinal certo de objetificação, da relação eu-
aquilo. O diálogo sempre envolve risco, porque ele é um processo contínuo
de reconfiguração mútua. Ele é apenas tão previsível quanto a próxima

103
David Kennedy

resposta e, se a resposta pode ser prevista, o diálogo acabou ou está


perdendo vigor.
Na teoria e na prática da filosofia para crianças é impossível evitar as
implicações educacionais mais amplas deste modelo. Uma vez que a noção
de diálogo é introduzida na práxis educacional, como ocorreu neste século
com o trabalho de Freire e Lipman, o status hegemônico da forma de
pedagogia tradicional, transmissionista, é permanentemente posto em
dúvida. A pedagogia da CIF não pode ser separada de uma visão educacional
mais ampla baseada no diálogo. No caso das escolas em geral e de suas
práticas, o conceito de diálogo tem implicações importantes, não apenas
para a transformação do currículo, mas também para a transformação do
conjunto da comunidade deste coletivo criança-adulto, desta forma de
comunidade intencional que chamamos de escola. Como seria um currículo
planejado mediante o diálogo adulto-criança e adulto-adulto? E uma
estrutura administrativa baseada no diálogo adulto-adulto, adulto-criança e
criança-criança? Com certeza nós temos alguns indícios proféticos na obra
de educadores como A. S. Neil, George Dennison, Chris Meroviglio, e
diversos outros experimentadores brilhantes e heroicos, a maioria não
renomados, mormente do último século. Mas ainda há vozes clamando no
deserto, enquanto a nossa civilização empenha-se em elaborar uma filosofia
da infância digna da visão daquelas. A obra de Lipman marca um momento
decisivo nesse empenho, o que sua enganosa simplicidade parece desmentir.
Nós não podemos deixar de acreditar que ela representa o futuro da relação
adulto-criança e a sua institucionalização nas escolas.

104
5. LAS CINCO COMUNIDADES

Quienes han experimentado la alegría y el terror de la formación


intensiva de una comunidad de cuestionamiento e investigación
(comunidad de cuestionamiento e investigación) durante un cierto período
de tiempo comprenden intuitivamente que se trata de un proceso de
desarrollo que tiene estructuras y patrones característicos. Podemos
intentar glosarlos de diferentes maneras: siempre serán metáforas, ya que
cualquier momento en la vida de la comunidad de cuestionamiento e
investigación es un instante de vertiginosa libertad.
Un primer supuesto de la comunidad de cuestionamiento e
investigación es que su forma, que incluye sus estructuras características y
sus patrones dinámicos, no es meramente fortuita o sólo una manera de
llegar a la verdad. Tiene la forma que tiene porque el mundo está construido
de tal modo que el individuo no puede conocer la realidad adecuadamente;
en consecuencia, la investigación debe ser una aventura comunitaria. La
verdad, tal como lo formuló Charles Sanders Peirce, es "aquello que la

105
David Kennedy

ilimitada comunidad de investigadores habrá descubierto que es el caso en


el largo plazo".94 Sólo así llegamos a la verdad que es adecuada para
nosotros, mediante un largo y a menudo tortuoso proceso de construcción,
reorganización y rearticulación de los sentidos que se anuncian de manera
incipiente por todas partes a nuestro alrededor.
Las cinco dimensiones estructurales de la comunidad de
cuestionamiento e investigación que identifico podrían quizás agruparse de
otro modo y se les podría dar otros nombres. De hecho, estoy forzando la
separación para entenderlas mejor, pero en realidad son una sola cosa, o al
menos, están inextricablemente superpuestas, son interdependientes e
interactivas. Las llamo gesto, lenguaje, mente, amor e interés. Quiero,
además, llamarlas "comunidades" porque cada una de ellas es la expresión
de un proceso comunicativo, interpretativo que converge en un cuerpo
común de signos. Cada una participa de un proceso de cambio en
desarrollo, en el cual aunque cada miembro determina de alguna manera el
sentido del grupo, el todo tiene un carácter emergente que trasciende a
cada individuo en particular. No se puede interpretar acabadamente cada
comunidad sin tener en cuanta a las otras. El gesto y el lenguaje tienen
cierta primacía, por cuanto son los sistemas exotéricos a través de los cuales
se expresan los cuerpos de signos más esotéricos de la mente, el interés y
el amor, pero esa expresión es en todos los casos sólo una traducción y, se
puede afirmar que, en un sentido más profundo, tanto el gesto cuanto el
lenguaje pueden originarse en las otras tres comunidades.
Quiero asimismo identificar algunos patrones dinámicos de
intersubjetividad que atraviesan cada una de estas comunidades —modos
en que nuestras conversaciones parecen funcionar, cosas que nos
encontramos pensando, diciendo y haciendo una y otra vez. Una es crisis,

94
Michael L. Raposa, Peirce's Philosophy of Religion, (Bloomington: Indiana University Press), 1989,
p.154.

106
A comunidade da infância

que proviene de la palabra usada en griego para juicio y que trae como
componentes inseparables el riesgo y la oportunidad. Otros temas que
habré de caracterizar son diálogo, juego, teleología, conflicto y disciplina.
Pero primero, las cinco comunidades.

La comunidad de gesto
Esta es quizás la forma de comunidad más obvia y, sin embargo, la
más ignorada. Me refiero al nivel somático y kinestésico fundamental de
intersubjetividad "previo" al lenguaje, que fundamenta, enmarca y se
manifiesta en los niveles de interacción verbales y noéticos. Aun antes de
abrir la boca, ya estamos produciendo sentido juntos. Antes de los signos
que representan ideas o incluso objetos en el mundo, están los signos más
fundamentales de los estados mentales sintientes del cuerpo—James Edie
se refiere a esto como "la aparición física del sentido"— y este signo del
mundo, como el signo del mundo que es el lenguaje, es un signo
compartido, interactivo.95
El gesto es un signo mundano de una intervisibilidad intensa,
continua. Todos nos sentamos mirándonos las caras alrededor de la mesa
—estamos directa o periféricamente, en la mira del otro. Pero lo visual es
sólo una especie de conducto para los procesos liminares y subliminares
que Howard Gardner ha caracterizado como una inteligencia sobre uno
mismo —lo kinestésico-corporal.96 En este nivel, todo ocurre
simultáneamente y todo tiene un efecto: cambiar de postura, levantar la
mano, tensar la espalda y el cuello, mover la cabeza y los ojos al hablar, al
escuchar, etc. Este constante diálogo postural, kinestésico, es inmediato,
simultáneo y completamente inevitable. Desde el momento en que estás en

95
James M. Edie, "Prefacio" en Maurice Merleau-Ponty, Conciousness and the Acquisition of
Language, trad. Hugh J. Silverman (Evanston, Il: Northwestern University Press, 1973), pp. xiii-xiv
96
Cf. Howard Gardner, Frames of Mind (New York: Basic Books, 1985).

107
David Kennedy

mi espacio físico, tanto si estamos abrazados o si nos damos la espalda o


algún punto intermedio, siento y percibo mi presencia física de modo
diferente de cuando estoy solo, y estamos involuntariamente en una
situación de armonía o desarmonía, en un juego de mutua instigación, en
el cual, es cierto, podemos ser más o menos sensibles, más o menos
dispuestos, pero nunca neutrales. En toda nuestra interacción gestual —
proxémica, kinésica, expresión facial, mirada, modulación de la voz y tiempo
concedido al responder— estamos continuamente controlando y actuando
para alterar los afectos vitales de cada uno, lo cual, especialmente en la
comunidad de cuestionamiento e investigación, mantiene y refuerza nuestra
interacción lingüística y noética. Esta danza depende también del género:
cada miembro aporta a la discusión el lenguaje corporal característico de
su sexo así como las sutiles diferencias gestuales de la interacción intra e
inter géneros.97
No sólo hay una mutua regulación pulsional dentro de la comunidad
del gesto, sino también una co-construcción de las imágenes corporales.
Cuando vos, con quien he pasado horas sentado alrededor de una mesa
hablando, compartiendo y no compartiendo los puntos de vista,
esforzándonos para expresar ideas, al hablar, levantás la cabeza, te
encontrás con mis ojos de una determinada manera, una manera que al
principio me resultaba extraña, pero que ahora espero y comprendo como
significativas del mismo modo que vos lo hacés, física y gestualmente, es
decir, más o menos inconscientemente. Entonces yo, en mi propio

97
Estos patrones fundamentales de regulación mutua pueden trazarse desde la situación
interlocutiva primaria del lactante y la madre. La madre y el bebé son una persona en la medida en
que el bebé carece de la capacidad de regular su propio afecto vital y, en consecuencia depende de
la madre para su autorregulación. El modo en que la madre "baila" con el niño para hacer esto es
internalizado por el niño y se convierte en un marco de referencia para los gestos que ha de esperar,
un estilo particular de bailar que puede ser más o menos inhibido, más o menos armónico, etc. Ver
Daniel Stern, The Interpersonal World of the Infant, New York: Basic Books, 1985, especialmente el
capítulo 7, donde describe lo que llama “afecto armonizador”.

108
A comunidade da infância

acomodamiento gestual, te permito tener una nueva comprensión de tu


propio gesto. Así, en nuestra danza gestual nos revelamos nuevamente a
nosotros mismos. Creo que esto es lo que Paul Schilder quiere decir cuando
afirma que "cada uno construye su propia imagen corporal en contacto con
otros", y su referencia a esto como un "esfuerzo constructivo continuo".
Dice que hay "un constante ir y venir inconsciente de otras personalidades
dentro de nosotros... un continuo movimiento de personalidades y de
imágenes corporales hacia nuestra propia imagen corporal..." En otro lugar
se refiere a este proceso como un "diálogo" de imágenes corporales.98
Estamos ubicados en esta constante co-construcción, porque nuestra propia
imagen corporal es incompleta si se la toma por separado; en un nivel
gestual, el otro conoce más sobre nosotros que nosotros mismos. Así pues,
estamos inmersos en un interminable proceso de autocomprensión en un
nivel somático por medio de la identificación, la proyección y otros procesos
por los cuales partes de nosotros y partes de los otros interactúan, se
comunican y manifiestan energías constructivas y destructivas, dominantes,
sumisas e igualitarias, inclusivas y exclusivas. Lo que siempre falta, sin
embargo, en el encuentro, lo que lo hace para siempre incompleto, lo que
lo convierte en el drama de lo oculto y lo revelado, es el irremisible residuo
de ocultamiento, de opacidad frente a vos —mi aislamiento radical— pues
hay aspectos de quién soy yo que están presentes en el mundo natural de
signos de mis gestos, pero que son desconocidos tanto para vos como para
mí. Ese juego de lo que se oculta y lo que se revela crea el drama de nuestro
diálogo gestual.
Este esfuerzo constructivo incesante está dado también por su
carácter incipiente. La danza que expresa este entrenamiento mutuo,
aunque se fundamente y se comente en un discurso oral, es en sí mismo

98
Paul Schilder, The Image and the Appearance of the Human Body: Studies in the Constructive
Energies of the Psyche (New York: International Universities Press, 1950), pp. 235-273

109
David Kennedy

un discurso sin palabras. Es un hablar natural, aquello que Dewey llamó


signos "naturales" como opuestos a "intencionales".99 Entonces, así como
una nube representa la lluvia, aunque no intente representarla, ruborizarse,
estirar la boca, representa algo más allá de nuestras intenciones. En esto
estamos expuestos a todos los involuntarismos de nuestra naturaleza social
animal: sincronización del gesto, impregnación postural, modos de mirar y
varias formas de armonización afectiva y contagio, a través de la "mímica
motora" —reflejos, ecos y cosas por el estilo—, experimentada por
nosotros, tal como la describió Merleau Ponty, como magia o "acción a
distancia". Experimentamos una participación colectiva en aquello que
denomina una "corriente de experiencia psíquica indiferenciada... un estado
de permanente 'histeria' (en cuanto a la indistinción que se da entre lo que
es vivido y aquello que es sólo imaginado entre el yo y los otros).100 Negar
nuestra ubicación en este espacio de contagio, de transgresión,
"construcción", "mezcla" y "expansión" involuntarias (términos de Schilder),
de incalculables efectos, es negar una forma de conocimiento cuya fuente
no podemos identificar o controlar, pero que no por eso deja de ser una
fuente de conocimiento. La estructura de discurso lingüístico de la
comunidad de cuestionamiento e investigación tampoco puede existir
separadamente, por cuanto es su fundamento y su vehículo. "El discurso
emerge del 'lenguaje total' tal como lo constituyen gestos, mímicas, etc."
dice Merleau-Ponty.101 No solamente el discurso en general, sino también los
elementos funcionales del diálogo —elaboración, reparación, tiempo y
armonización—están fundamentados aquí en el cuerpo.
¿Existe en el desarrollo de la comunidad de cuestionamiento e
investigación un proceso de construcción colectiva definible, una gestalt

99
John Dewey, How We Think, (Buffalo(New York: Prometheus Books, 1991 [1910]), p. 171.
100
Merleau-Ponty, pp. 45-46.
101
Ibid., p. 12.

110
A comunidade da infância

gestual grupal? Schilder dice que no se produce cosa tal como una imagen
corporal colectiva, sino sólo lo que él llama una comunidad parcial de
imágenes corporales, pero estamos tentados de afirmar que una gestalt
colectiva gestual es un análogo necesario del proceso colectivo de mente y
lenguaje —i.e. la Discusión— que es más fácil de ver, porque deja huellas,
porque no es "mudo". Merleau-Ponty sugiere al menos una coordinación
grupal de perspectivas fisionómicas cuando afirma que "en la actividad del
cuerpo, como en el lenguaje, existe una lógica ciega, pues en la comunidad
de sujetos hablantes se observan leyes de equilibrio sin que ningún
miembro sea consciente de ello."102 Quizás podamos aproximarnos a esta
idea, nuevamente con la ayuda de Merleau-Ponty, por medio de la idea de
"estilo" que él define como una "manera que aprehendo y luego imito" de
otras personas, aun cuando sea incapaz de definirla", a través del poder
comprehensivo de mi corporeidad."103
A medida que pasa el tiempo en la comunidad de cuestionamiento e
investigación, dado que nos entendemos con nuestros cuerpos y en
coordinación con las realidades del lenguaje, la mente, el poder y el deseo,
construimos juntos una manera de sentarnos a la mesa que es la suma de
todos nuestros hábitos posturales, faciales, de nuestros modos de mirar y
movernos y también algo mayor que la suma. Como la relación que tienen
nuestras imágenes corporales entre sí, este todo está continuamente en
construcción; hay, como dice Schilder del diálogo de imágenes corporales
individuales, "un examen continuo para averiguar qué partes encajan en el
plan y en el todo".104 Este todo incompleto da forma tanto al movimiento de
la Discusión al tiempo que ésta da forma a aquél, en el sentido de que
cuando los movimientos son "buenos" el todo se va tejiendo y hay un

102
Ibid., p. 95.
103
Ibid., pp. 42-43.
104
Schilder, p. 286.

111
David Kennedy

sentimiento de excitación compartida que se expresa gestualmente. Se


producen constantemente alteraciones que dependen de cuán descansadas
están las personas, por su estado de salud y por las diferentes energías de
deseo e interés —ya sea conflictos, expansión, sutilezas de eros, dominación,
intimidación, confusión, etc. Cuando un "grande" se dirige a nosotros —en
general un maestro del lenguaje y del intelecto (aunque esa maestría tenga
también una contraparte gestual)— nos sentamos, nos movemos, hablamos
de manera diferente. Cuando una bala perdida, un "vago" (crónico,
momentáneo o episódico) nos molesta, nos confunde o nos infecta, el estilo
de nuestro todo grupal cambia. Aquellos que están dotados kinestésica y
corporalmente nos mueven gestualmente alrededor de la mesa, con un
efecto profundo, aunque sutil. Como una comunidad de amor,
instintivamente trabajamos para asimilar individuos que son gestualmente
incongruentes —que son demasiado expresivos o muy poco expresivos, que
no sincronizan del todo bien en cuanto a los aspectos gestuales del
mantenimiento y el reparo conversacional —dentro de un estilo gestual
más amplio, que se construye por la interacción continua y que a su vez es
influido por ellos. Y como la comunidad de cuestionamiento e investigación
practica otras formas expresivas, como el compartir comidas, bailar, hacer
música, teatro, beber, hacer ejercicio, jugar, viajar, pasar tiempo juntos, etc.,
esa experiencia acumulativa, muda pero expresiva, vuelve a traerse a la
ronda, donde sus cambios sutiles pero inalterables agregan su efecto.
Entonces, la comunidad gestual, como las otras, se desarrolla con el tiempo
en la dirección de una mayor interactividad y coordinación, o pérdida de
coordinación o alguna cosa intermedia.

La comunidad de lenguaje
Ya he citado a Merleau-Ponty cuando dice "el discurso emerge del
'lenguaje total' constituido por gestos, mímicas, etc." Luego continua

112
A comunidade da infância

diciendo: "Pero el discurso se transforma. Por empezar, usa los órganos de


fonación para una función que no les es natural —en efecto, el lenguaje
carece de órganos. Todos los órganos que contribuyen al lenguaje ya tienen
otra función... El lenguaje se introduce como una superestructura, esto es,
como un fenómeno que ya es testigo de otro orden."105 En tanto testigo de
"ese otro orden", el lenguaje como comunidad de signos tiene primacía
dentro de la comunidad de cuestionamiento e investigación. Lo gestual —
levantar los hombros, una mano que tiembla, una ceja que se levanta, el
rubor o la palidez, inclinar la cabeza hacia adelante o hacia atrás al escuchar
una idea, etc.— introduce un elemento permanente de ambigüedad en
cualquier acto de habla. Lo gestual puede debilitar los actos de habla —el
temblor de la mano cuando se dicen palabras ciertas—, apoyarlos o
comentarlos irónicamente. Los gestos pueden glosar lo lingüístico hasta el
punto de hacer que las palabras signifiquen exactamente lo contrario de su
sentido habitual. Con todo, las palabras, al menos en la comunidad de
cuestionamiento e investigación, siempre se elevan y apuntan más allá del
gesto hacia el pensamiento. La paradoja reside en que nunca pueden
delinear, aprehender o expresar el pensamiento completamente, porque son
una parte inextirpable del pensamiento y no pueden delinearse,
aprehenderse o expresarse por sí mismas.106
A pesar de esta debilidad, tanto el gesto como la mente, que están
respectivamente "por debajo" y "por encima" de las palabras, se enfrentan
con el problema de que dependen de las palabras para su expresión
completa, aunque la expresión completa sea imposible. El gesto, tan natural
como opuesto a un signo intencional, es rudimentario e inacabado fuera de

105
Merleau-Ponty, p. 12.
106
Esto parece relacionarse con la paradoja señalada por Russell: la paradoja de la clase que no
puede incluirse a sí misma (e.g. la clase de las sillas no es en sí misma una silla).

113
David Kennedy

la palabra que emerge de él107, y la mente, aparte de su fundamento en el


gesto, ese mundo de signos sintiente e involuntario, y fuera de su
iconografía más mística en las artes, sólo emerge de alguna manera por
medio de las palabras. Las palabras, al menos en la práctica de la poesía, de
la filosofía y del diálogo real son un fenómeno fronterizo. El discurso oral
y la escritura emergen frente al pensamiento, encuentran a la mente en
algún lugar intermedio; nunca saben si están encontrando y expresando a
la mente o si la están creando.
Todas estas paradojas de expresión indican la función de mediación
o traducción del lenguaje en la comunidad de cuestionamiento e
investigación. Es cierto que todas las comunidades están en un proceso
continuo de inter-traducción, pues cada una trata de llegar a ser
transparente en términos de la otra. Pero las palabras, como "testigos de
otro orden" están preeminentemente entre las comunidades, esforzándose
por traducir los sentidos de cada una a una lengua ideal. La comunidad de
lenguaje siempre está tentada de pensar que, cualquiera sea el tema, hay
una proposición formal a mano —una manera de "decirlo todo". Este rol
presuntuoso del lenguaje como la esfera objetiva, la comunidad en la que
se puede hablar, a menudo nos impide ver cuánta traducción se necesita
constantemente dentro de la misma comunidad discursiva. De modo más
evidente, la traducción es necesaria entre la variedad de lenguajes que se
hablan dentro de la comunidad, cada uno de los cuales tiene una manera
particular de poner los pensamientos en palabras, así como particulares
protocolos interlocutivos y maneras habituales de combinar la palabra y el
gesto características. Cada miembro de un grupo de lenguaje debe trabajar
para traducir, no sólo las palabras, sino también estas características más

107
Siempre quise conducir una reunión de comunidad de cuestionamiento e investigación sin
palabras, sólo con gestos.

114
A comunidade da infância

fundamentales del discurso del otro grupo. Cuando en un grupo existen


dos o más lenguajes, esto llega a ser una tarea crítica.
Entre los hablantes de un mismo idioma, existen diferentes géneros
y vocabularios (filosófico, poético, narrativo, histórico, etc.) que dan forma,
a menudo inconscientemente, a la manera en que las personas hablan y
piden intertraducción. Hay también estilos expresivos (circular, lineal,
aforístico, sistemático, elíptico, alusivo, inspirado, irónico, etc.) que
caracterizan no solamente a los individuos sino también a los tipos de
lenguajes necesarios para expresar (al tiempo que influenciar, en
proporciones incalculables) ciertos tipos de pensamiento.
Por último, tenemos la música del énfasis, del desafío, del contorno y
de la articulación, que actúa como un suelo aún más esencial para el
discurso que el gesto. Imaginemos una voz en el teléfono, o hablando por
detrás de una pantalla: puede comunicar independientemente del gesto, de
hecho en ocasiones más intensamente, sin complicarse por las opacidades
y las ambigüedades del gesto y la fisionomía. El elemento musical del
discurso es esencial al sentido, desde lo más genérico, el trazo melódico de
la pregunta, la orden, la advertencia, la tranquilidad, etc., hasta la sutileza
particular, por ejemplo, la calidad de la persona comunicada por la voz. Si,
por medio de un fenómeno conocido como "enmascaramiento"
disfrazáramos el contenido del discurso de la comunidad de
cuestionamiento e investigación y solamente escucháramos la melodía,
seguiríamos teniendo registro de una reunión, en las subidas y bajadas, los
ritmos, las pausas, las intensidades de los interlocutores. El nivel musical
del lenguaje está en relación con el gesto, con las palabras, con los patrones
de pensamiento, con el amor y las relaciones de poder, i.e. con todas las
comunidades; y como ocurre con todas las comunidades, las expresa a todas
y es incompleta sin ellas.

115
David Kennedy

La comunidad de mente
La comunidad de mente opera en un continuo desde el pensamiento
deliberativo, disciplinado de la lógica Occidental, con una voluntaria
sumisión a sus leyes, hasta la cualidad de cuidado por el todo, un campo
emergente de ideas, que se encuentra a sí mismo moviéndose extrañamente
más allá de la ley de contradicción y del tercero excluido. El borde principal
de este emergente se llama, a veces, la "discusión", que por medio de un
proceso dialéctico, dialógico, busca un horizonte que se aleja
constantemente. El borde emergente implica un todo, que es aprehendido
por cada individuo tanto estética y emocional como lógicamente. Lo capto
de acuerdo con mi capacidad para integrarlo, y su calidad total cambia cada
vez que actúo dentro de él. Es vulnerable frente a la confusión cuando la
discusión se pierde, pero la misma calidad de emergencia, de sentir
autocorrectivamente el propio camino, es necesaria para su progreso.
Quizás más que cualquier otra, la comunidad de mente requiere cierto
coraje, o disciplina de juego, una confianza en el despliegue de la discusión
por medio del conflicto y el intercambio de perspectivas.
Todos tenemos la impresión de que la mente, o el pensamiento, está
en alguna medida fuera del tiempo; un sistema de signos —naturales,
intencionales, icónicos, establecidos o lingüísticos— lo introduce, si bien
imperfectamente, en el tiempo. Pero esto no quiere decir que separada del
lenguaje sea pura, etérea o "espiritual", pues como lo señala Peirce, "la
materia de la mente es el sentimiento, ya que las ideas no son más que
continuos de sentimientos vivos". Porque "el sentimiento vago es el estado
primordial de la mente" y los sentimientos son pensamientos vagos, la
comunidad de cuestionamiento e investigación es tanto un fenómeno
emocional cuanto mental. Tanto la mente como el sentimiento operan por
asociación, expansión, conexiones y uniones. La discusión siempre lleva a
un estado de sentimiento tanto como a un juicio puramente cognitivo. "Las

116
A comunidade da infância

más altas verdades sólo pueden sentirse"108; y la emoción fuerte, aunque


vaga, siempre acompaña el tipo de reflexión más abstracta.
La comunidad de mente es como la comunidad de gesto, en la medida
en que por una cosa el pensamiento es específico. Como señala Dewey,
"diferentes cosas sugieren sus propios sentidos apropiados, cuentan sus
propias historias únicas y hacen esto de muchas maneras diferentes con
diferentes personas". Entonces, el estilo de pensamiento de una persona es
tan idiosincrásico, tan ligado a la cosa particular que esa persona está
pensando, como un gesto está ligado a una persona determinada, un
momento, un sentimiento o una interacción postural y kinésica.
La mente se parece al gesto en que —una vez más en palabras de
Dewey—"no somos nosotros quienes pensamos, en algún sentido
activamente responsable; el pensamiento es, más bien, algo que ocurre en
nosotros". Como la danza gestual en la que estamos envueltos, la inexorable
dialéctica del pensamiento llega a su fin en nosotros, individualmente y
como grupo. Estamos familiarizados con su doble movimiento, desde lo
finito, parcial, confusamente dado hasta el todo que involuntariamente se
sugiere a sí mismo, que luego apela a casos adicionales a los que ese
mencionado todo ha dirigido nuestra atención. La investigación grupal
consiste en acortar distancias, unir, avanzar y retroceder, por un proceso
de análisis y síntesis, entre lo observado y lo condicional. Aunque
rudimentario y tortuoso, el movimiento se dirige siempre hacia la
generalización, abarcando y uniendo elementos que previamente eran
entendidos como separados, dispares.109 Así, la lógica ordinaria —la lógica
de clases— opera bajo lo que Peirce caracteriza como la "atracción" del
todo, que se siente vagamente como un sentido liberado de las restricciones

108
Raposa, pp. 38, 131.
109
John Dewey, Ibid., pp. 39, 34, 79, 80, 211.

117
David Kennedy

locales y es comprendido solamente por medio de otro tipo de lógica, que


él llama "lógica de relaciones". La última intuitivamente comprende su
propia posición como moviéndose del fragmento al sistema, procediendo
hacia sistemas de relaciones cada vez más abarcativos.110 Este movimiento a
menudo conlleva lo que Corrington llama "un salto más allá de los datos
corrientes [en un] intento por alcanzar una expansión genérica mayor".111
Las ideas surgen espontáneamente, se expanden, son afectadas unas por
otras y forman ideas más generales.
Pero aunque seamos intuitivamente concientes de que no hay
pensamiento aislado y que cualquier estructura noética dada que
contemplemos es un fragmento de un todo mayor, ese todo está más allá
de nosotros. Y puesto que el pensamiento sólo puede expresarse por signos
y todo signo está determinado por lo que venía antes de él y por lo que
viene después, la mente está intrínsecamente impedida en su movimiento;
es falible, siempre discutible, en riesgo. La dirección de la discusión emerge
solamente por medio de ensayos tentativos y siempre es visible sólo
parcialmente. Pero la sensación de que nos atrae un summum bonum —
una coordinación de perspectivas, un estado tanto emocional, gestual y
perceptual cuanto cognitivo—, nos mantiene en un estado de oscura
excitación al seguir la discusión.

La comunidad de amor
La comunidad de cuestionamiento e investigación es un grupo de
romance, cuyo eros es tanto sexual, platónico (en el sentido del eros del
Banquete) como agápico. El eros sexual de la comunidad de
cuestionamiento e investigación se experimenta no solamente en las varias

110
Raposa pp. 18, 25.
111
Robert S. Corrington, The Community of Interpreters (Macon: GA; Mercer University Press, 1987)
p.3.

118
A comunidade da infância

atracciones mutuas entre individuos o combinaciones de individuos,


captadas en varios niveles de sublimación o desublimación, sino también
como un movimiento grupal hacia la unidad en un nivel somático, que se
inicia y se sostiene en la comunidad de gestos. La finalidad de la comunidad
de investigación puede plantearse como aquello que Marcuse describe como
la "transformación de la sexualidad en eros", por medio de la emergencia
de la "sublimación no represiva".112 Los miembros del grupo experimentan
esta transformación como un sentido vívido de belleza, energía y afinidad
mutua, así como un camino hacia la revelación, la vulnerabilidad y el
cuidado mutuo, donde adquiere dimensiones agápicas. Es análogo al
movimiento de la comunidad noética hacia la coordinación de perspectivas
implícita en la captación del todo, y de la comunidad gestual hacia la
perfecta ejecución de la danza kinésica, proxémica, epidérmica y atenta. Los
riesgos que la comunidad de amor enfrenta incluyen la permanente
posibilidad de desintegración personal y social por medio de la explotación
personal y/o sexual y los sentimientos de celos, de amor no correspondido,
de antagonismo, de excesiva reserva, etc., todos los cuales están asociados
a las vicisitudes que tienen lugar dentro de la comunidad de interés.
También está asociada con la comunidad de amor la "ilusión grupal", i.e. la
percepción de una armonía que es por ahora una expresión de deseo. Pero
la comunidad de amor ofrece la oportunidad de curar, en el sentido de
hacer un todo, de recobrar un tipo de equilibrio emocional en el cual el
individuo experimenta que su identidad es completada por el grupo y
viceversa.

112
Herbert Marcuse, Eros and Civilization (Boston: Beacon Press, 1955) cap. 10, "The Transformation
of Sexuality into Eros".

119
David Kennedy

La comunidad de amor es tanto noética como emocional. La razón


puede entenderse como una forma de amor, 113 un ansia para la cual sentido
y belleza son sinónimos. Todas las personas tienen un deseo natural, como
una forma de curiosidad, de ampliar su ámbito de familiaridad con las
personas y las cosas. Instintivamente comprendemos que no estamos
completos mientras estamos solos, que la experiencia de una persona no es
nada si permanece sola.114 Este impulso a asociarse es el Eros que Freud
llamó un instinto,115 la fuerza creativa, empática que nos lleva a la relación
[con otro] como una forma de autorrealización y nos conecta a unos con
otros, así como conecta las ideas unas con otras. En sus dimensiones
agápicas,116 el amor elimina las cualidades más concretas, sensuales y sexuales
de lo erótico y es experimentado como una influencia mediadora, que,
análoga a la ley de la mente, nos proyecta en la independencia y nos
envuelve en la armonía.
Pero por medio de todas las modalidades del amor la comunidad de
investigación se junta, se mantiene unida, trabaja en el conflicto, emprende
conjuntamente la disciplina y crece en unidad tanto como en complejidad.
En el amor comprendemos a la comunidad de cuestionamiento e
investigación como un "yo más grande" en formación. En la comunidad de
amor, como dice Corrington, "los horizontes individuales de sentido se
abren unos a otros de tal modo que la plenitud horizontal puede reemplazar
la autorreferencia narcisista de la vida precomunicativa."117 La comunidad de

113
Ver Ann Sharp, "Peirce; Feminism and Philosophy for Children", Analytic Teaching (14, 1), 1993,
p.58
114
Raposa, p. 83.
115
Peirce lo identificó como algo más. Para él es, de hecho, el principio de "amor evolutivo" por el
cual tanto la naturaleza y la mente, o el pensamiento, tienden hacia la unidad y la totalidad. Dada la
metafísica freudiana, "instinto" debe haber sido la única manera en que él podía llamarlo.
116
Rechazo deliberadamente cualquier tipo de distinción final entre eros y agape. Los considero
formas, modos o dimensiones de lo mismo.
117
Corrington, p. 43.

120
A comunidade da infância

cuestionamiento e investigación es por definición una comunidad de


personas que son amigas o en proceso de llegar a serlo, quienes frente a
las poderosas fuerzas del interés propio y del miedo, experimentan un
crecimiento en la razonabilidad que es tanto ético, como estético, social ,
emocional y también cognitivo.
Estas relaciones se logran después de un largo trabajo. En todo grupo
existe una conexión previa, en la cual el amor y el interés están
entremezclados (nunca llegan a estar completamente separados) y el
trabajo de la comunidad de cuestionamiento e investigación consiste en
forjar relaciones de amor fuera de esta conexión ya existente. En un cierto
punto en nuestra formación, enfrentamos la crisis de desarrollo de la
"ilusión grupal" mencionada más arriba, y en ese momento, una ruptura es
necesaria, algo que rompa el falso sentido de la armonía y nos confronte
con nuestras diferencias, nuestras distancias, de un modo realista hasta el
punto en que lo que aparece como amor es interés propio disfrazado. Y esa
no es la única crisis. El éxito de la comunidad de amor debe ser, en muchas
oportunidades, rescatado de las garras de lo que Corrington llama las
"fuerzas corrosivas del solipsismo y del individualismo agresivo",118 a costa
del conflicto, una cuidadosa autodisciplina y numerosos actos de sacrificio,
pequeños y grandes. Pero este trabajo, aunque progrese por medio del
sacrificio, es en última instancia aliado de la comunidad de interés, porque
se sostiene por nuestra comprensión intuitiva de que el amor no es
irracional: es por el contrario la más alta lógica, que, de acuerdo con Peirce,
"inexorablemente requiere que nuestros intereses no sean limitados. No
debe detenerse en nuestro propio destino sino abarcar la comunidad toda...
La lógica se arraiga en el principio social."119

118
Ibid, p. 17.
119
En Collected Papers 2.654. Citado en Raposa, p. 23.

121
David Kennedy

La comunidad de interés
La comunidad de interés podría también caracterizarse como la
comunidad del interés de cada yo, o simplemente del yo o como la
comunidad política. Es la comunidad de individuos que buscan poder e
invulnerabilidad a través de la amistad, la alianza, la puesta en práctica, la
influencia, la dominación, la jerarquía, el favor especial, etc. Cada individuo
es llevado a "ser alguien", a contar, a tener importancia y para lograrlo está
continuamente, de manera, casi inconsciente, negociando la influencia y el
reconocimiento tanto con el grupo como todo, como con diferentes
subgrupos y con cada individuo dentro del grupo.
La negociación se construye socialmente, con relaciones de poder que
en todos los casos, de manera tácita o no, ya están definidas, pero siempre
en proceso de cambio y variación. Esto es necesario en la medida en que
ser un yo significa pasar por series continuas de interpretaciones que se
derivan en parte de la estructura comunitaria y, entonces, mi
autocomprensión depende en gran medida de cómo el grupo me
comprende a mí. Por otra parte, es una necesidad trágica, puesto que lo
que la hace completamente necesaria es mi radical finitud, un solipsismo
involuntario que subyace a la "autoreferencia narcisista de la vida
precomunicativa" mencionada más arriba. Estoy atrapado en mi propio
horizonte y ese horizonte está arraigado en aquello que Corrington llama
una "voluntad de vivir descontrolada y sin guía.. que se encuentra en todos
los seres, que los obliga a luchar unos contra otros por la dominación...
dando lugar a una lucha trágica que, en su forma extrema, hace imposible
la comunidad."120
Esta finitud trágica da cuenta de los elementos patológicos y
disfuncionales que con tanta facilidad perturban a la comunidad de

120
Corrington, p. 26.

122
A comunidade da infância

cuestionamiento e investigación —individuos o subgrupos que detentan


mucho o muy poco poder, o que luchan con resentimiento o exclusión;
individuos comprometidos con conflictos personales o con necesidades o
ambiciones que tienen un efecto disruptivo dentro del grupo, etc. En una
atmósfera semejante, el rumbo de la comunidad hacia una transparencia
semiótica se distorsiona inevitablemente. Se manifiesta no sólo en el tipo
de luchas y de tensiones ya mencionadas, sino también en la politización
del propio proceso hermenéutico: el resultado es que los individuos, algunos
grupos o el grupo entero, ya no siguen la investigación adonde ella conduce,
sino que inconcientemente orquestan argumentos para convalidar
estructuras ideológicas previas o para glorificarse a sí mismos de manera
aún más directa. Dada esta situación trágica, cargada de inconsciencia y
ambigüedad, la tarea de una verdadera coordinación de perspectivas surge
como una tarea infinita y ardua, por cuanto implica la crucifixión de los
elementos solipsistas del propio horizonte.121 También es cierto que, el mayor
regalo que se hace a la comunidad de cuestionamiento e investigación es la
individualidad de cada miembro, en toda su finitud; y podría ser que el
interés sea la fuerza que conduce el desarrollo de la comunidad desde un
extremo, mientras que el amor lo atrae desde el otro. Mi inerradicable
individualidad es tanto mi trágica debilidad, por la cual me encuentro a mí
mismo en un estado de fragmentación horizontal, cuanto mi "falla feliz",
que me lleva a superar mi separación a través del diálogo. Es de nuestro
mayor interés seguir la discusión, la cual promete superar las distorsiones
que crea la individualidad, porque promete la superación de la distorsión y
la división y representa así la completitud del yo.
La comunidad de cuestionamiento e investigación se toma muy en
serio la tarea de llegar a ser una comunidad que incluya a todos, no

121
Ibid, p. 47, 67.

123
David Kennedy

favorezca a ninguno y limite las tendencias de los individuos dominantes o


disruptivos. Cuanto más lazos estrecha un grupo, mayor es el peligro de
disrupción, en el movimiento de cada individuo por la afirmación y el poder.
Esto es así porque el amor nos lleva a una autorrevelación, pero esa
autorrevelación incluye la revelación de nuestra radical finitud, de lo oscuro
y lo abyecto que hay en cada uno de nosotros, de nuestras particulares
formas de egoísmo. Cuanto más miramos dentro de nosotros, más
necesitamos tolerar. Pero también hay cosas en cada uno que necesitamos,
no sólo tolerar, sino también perdonar: condiciones de aislamiento moral e
intelectual que, en la medida en que la comunidad de cuestionamiento e
investigación es un proceso transformador, deben ser superadas o el grupo
entero se ve comprometido. Se trae otra vez al individuo dentro del grupo
por medio del sacrificio y la confrontación. Pero el resultado nunca está
garantizado y el proceso de transformación del individuo aislado y
disruptivo a través del amor del grupo está repleto de ambigüedades y
puntos oscuros. Allí donde pensamos que la discusión puede estar
perdiendo su rumbo, puede ser precisamente el lugar donde debemos
seguirla; entonces, una disrupción individual, aparentemente solipsista,
puede ser exactamente lo que el todo necesita para superar el solipsismo
colectivo, aunque este hecho no necesariamente mitigue los orígenes
solipsistas del comportamiento individual disruptivo. Lo que sí parece claro
es que la comunidad de cuestionamiento e investigación avanza más
genuinamente por medio de los actos, pequeños y grandes, de la
autodisciplina y el sacrificio, que rompen el encanto del interés y apuntan
al punto omega de la comunidad de amor —cada individuo fundiendo su
individualidad empáticamente con sus compañeros.

124
A comunidade da infância

Algunas interrelaciones
Quisiera explorar ahora algunas de las relaciones analógicas, las
armonizaciones expresivas y las influencias mutuas entre las cinco
comunidades; sin olvidar que la descripción de estas interrelaciones
corresponde siempre a "un modo de decir", dado que en la experiencia las
cinco comunidades son inseparables.
El gesto y el lenguaje están siempre en alguna relación de mutuo ir y
venir, aunque las modalidades de ese ir y venir puedan ser irónicas,
contradictorias o ambiguas. El gesto también interactúa con la mente, en
un reflejar o expresar su movimiento generalizador y dialéctico dentro de
nosotros y entre nosotros, en un signo natural cuya forma más intencional
es la danza.122 Entonces, el pensamiento nos mueve: nuestros rostros brillan,
se contraen, estamos posturalmente electrificados por una idea; una
contribución que ciñe la discusión, también nos ciñe alrededor de la mesa.
El amor y el interés dan forma a las energías y modalidades más
fundamentales del gesto, por cuanto, biológicamente, el movimiento se
arraiga en el deseo y el miedo (nos acercamos hacia uno y nos alejamos del
otro), que se manifiestan en los objetivos, catexis, antipatías, seguridades e
inseguridades del yo y sus relaciones. El interés y el deseo se reflejan y
expresan también en la danza intersubjetiva que tiene lugar entre los
individuos y algunas veces entre los subgrupos, danza que puede ser erótica,
tímida, agresiva, juguetona, abstracta, ambigua, formal, no decisiva, etc.
El lenguaje, sólo por ser una traducción de la mente, es ya una
distorsión, aunque pueda ser una distorsión coherente. Esto también ocurre
con sus efectos en las otras comunidades. En cada caso, el costo que se
extrae de traducir cosas en palabras es la dimensión misma que hace a la
comunidad ser lo que es. Aunque lo poético, en la medida en que es un

122
En el último, el gesto va por delante de la mente y la guía.

125
David Kennedy

desorden del lenguaje, rompe esta sujeción a la lógica de la gramática, sólo


permite una visión limitada del estado “puro” de la mente, el deseo y el
interés, y no una traducción sistemática, pues eso nos retrotraería una vez
más a un sistema lingüístico. Además, la comunidad de cuestionamiento e
investigación no puede mantener durante mucho tiempo lo poético como
una forma de discurso, pues es un discurso transgresor, asimétrico,
individualista y por lo tanto adverso a la necesidad de la comunidad para
construir un universo de signos comunes.
La mente, el lenguaje y el gesto son estadios o pantallas o espacios
expresivos donde es representada y actuada la disimulación del eros, del
ágape y de las ambigüedades de la personalidad individual y de la voluntad
de poder. Como has llegado a conocerme por mis ideas, por mi manera
característica de hablar acerca de mis ideas y por mi presencia postural y
kinésica, entiendes cada vez más que todo esto apunta a una característica
cualitativa del yo, a una manera que tengo de llevar mi identidad a lo largo
del tiempo; que a su vez se conecta con formas características de interés y
amor, i.e. una manera de trascenderme (llegando o no) a un vos, a un otro,
y a una comunidad como un todo más amplio, del cual yo mismo me siento
parte. ¿Qué busco realmente? ¿A qué estoy dispuesto a renunciar para
alcanzarlo? ¿De qué modo formo parte de este grupo? ¿Cómo lo estoy
usando? ¿Cómo estoy permitiendo que el grupo me use a mí? ¿De qué tipo
de amor soy finalmente capaz? Esto es verdad para las formas
características del amor y el interés, no solamente de los individuos sino
también de los subgrupos y del grupo como un todo. El interjuego entre el
amor y el interés es complejo y está cargado de vicisitudes y auto-
disimulación y su intersección hace de la comunidad de cuestionamiento e
investigación una comunidad de justicia o injusticia, de impulsos y prácticas
realmente democráticas o de sutiles tiranías. Esto se vuelve particularmente
problemático cuando los temas de la justicia en la escuela, en la comunidad

126
A comunidade da infância

o en la sociedad llegan a ser tan apremiantes que la comunidad de


cuestionamiento e investigación, para mantener su identidad ética, debe
asumirlos como uno de los elementos de su propia investigación.123
A las relaciones entre las comunidades, se suman patrones
típicamente dinámicos e interactivos que recorren la totalidad del proceso
de desarrollo de la comunidad de cuestionamiento e investigación, que
vemos representarse una y otra vez. Hasta qué punto una determinada
comunidad de cuestionamiento e investigación permanece junta, crece y
alcanza juicios que son significativos depende en gran medida de cómo sus
miembros transitan estos patrones —cómo los soportan, cuánto obedecen
a sus limitaciones, cuánto los dominan, cómo aprenden a tomar una
dirección (o a evitarla) por medio de ellos. He identificado seis.

Crisis
Se ha convertido casi en un lugar común de las teorías del desarrollo
que, en cualquier proceso dialéctico, el movimiento hacia adelante implica
una ruptura del equilibrio previo de manera que permita establecer un
nuevo equilibrio en un nivel superior. La investigación avanza a través de
continuas disrupciones; Lipman lo compara con el caminar "en el que sólo
se avanza perdiendo constantemente el equilibrio."124 Duda y creencia —
una compleja red de creencias y supuestos instintivos, en su mayoría vagos
y muchos de ellos, en algún momento dado, totalmente inconscientes125—
permanecen en un estado de constante tensión dinámica. Cuando estas

123
Para un ejemplo de este dilema, ver Marguerite y Michael Rivage-Seul, "Critical Thought and
Moral Imagination: Peace Education in Freireian Perspective", en McLaren, P. & M. Lankshear (eds.),
The Politics of Liberation (South Hadley, MA: Bergin and Garvey, 1994).
124
Matthew Lipman, Thinking in Education, Cambridge: Cambridge University Press, 1991, p. 232.
125
Raposa, p. 96. En la p. 104 se refiere a "un sistema completo de opiniones, hábitos de pensamiento
que pueden considerarse instintivos o, en palabras de Peirce, ocasionados en el aprendizaje infantil
y la tradición."

127
David Kennedy

creencias-hábitos entran en crisis, cuando la experiencia las arroja a un


estado de perplejidad, el acto de búsqueda, de investigación comienza.
Como dice Dewey, "el pensamiento comienza en el punto donde los caminos
se bifurcan."126 Al igual que la necesidad de apoyar el otro pie, el movimiento
para recobrar el equilibrio, para volver a un estado de creencia es
irresistible.127
La experiencia superlativa de la comunidad de cuestionamiento e
investigación es la clara sensación de que el sentido ha sido intensificado al
ser confrontado con un problema que no es un mero ejercicio, sino que
llama genuinamente la atención. La comunidad de cuestionamiento e
investigación es un lugar aparte, en el que hemos llegado juntos a
experimentar esta crisis de sentido. Es el espacio de problematización, de
cuestionamiento, de cambio, donde la falta de comprensión, la ausencia
parcial de sentido que habita aun lo más familiar y conocido, ya no es
rutinariamente suprimida, sino elevada como aquello en lo que más nos
fijamos.128 Esto requiere cierto coraje, renuncia y habilidad para resistir. Hace
del espacio gnoseológico, psicológico y social de la comunidad de
cuestionamiento e investigación un lugar extraordinario, un lugar de agon
del que salimos modificados.

Diálogo
La crisis se precipita por medio de otro. El diálogo comienza en el
reino de la "segundidad" de Peirce, donde la experiencia contradice nuestras

126
Dewey, p. 11.
127
Esto lo señala Raposa, p. 95. Distingue esta forma de duda de la duda cartesiana de creencia igual
a cero, que es una suerte de patología intelectual, o al menos un fanatismo.
128
En How we think Dewey dice, "ningún objeto es tan familiar, tan obvio, tan común , como para
que no pueda presentar, en una situación nueva, algún problema.” (p. 120)

128
A comunidade da infância

perspectivas y requiere a su vez una mediación, cuyo proceso da como


resultado juicios que llevan a una coordinación cada vez mayor de las
perspectivas. Entonces, el diálogo comienza en lo que Gadamer llama un
"momento de negatividad"129 de contradicción por otro, cuando otro nos
contradice y así se profundiza la complejidad. Es un proceso en el cual
algunos elementos de mi perspectiva se confirman y otros se vuelven
dudosos; por esta razón, requiere lealtad a la creencia de que la experiencia
de la contradicción, emprendida con buena fe, me llevará a fortalecer mi
propia perspectiva y una posterior coordinación de nuestras perspectivas;
de tal modo que, de acuerdo con Peirce, la evolución se dirige hacia una
mayor variedad y diversificación y una mayor regularidad, de la legalidad.
"Aunque ´lo homogéneo dé lugar a lo heterogéneo´, estos elementos
diversos son llevados hacia una relación armónica en otro nivel y llegan a
ser coordinados dentro de un sistema de relaciones algo más general. Desde
esta perspectiva, la variedad no es nunca mero caos, la simple ruptura del
orden; de manera más esencial, es un necesario catalizador del crecimiento
de la razón." La comunidad de cuestionamiento e investigación puede
pensarse como una persona más amplia, y el crecimiento de las personas
nunca es mera adición, sino una continua diversificación y armonización,
una con la otra, de sistemas aún más complejos..."130
El diálogo tiene la paradójica característica de "viajar por separado
hacia la unidad".131La discusión progresa cuando se enreda en una
contradicción. Esto es inevitable, en tanto la comunicación es asimétrica —
la misma recepción de un signo por otra persona significa su

129
Hans-Georg Gadamer, Truth and Method, New York: Crossroad, 1975, p. 318.
130
Raposa, pp. 78 y 83.
131
Para una brillante fenomenología de la dialéctica, ver H.-G. Gadamer, The Idea of the Good in
Platonic-Aristotelian Philosophy, New Haven: Yale University Press, 1986. Para un resumen de estos
argumentos, ver mi "Hans-Georg Gadamer's Dialectic of Dialogue and the Epistemology of the
Community of Inquiry" in Analytic Teaching 11, 1, 1990, pp. 43-51.

129
David Kennedy

transformación irrevocable en otro signo y es imposible volver al sentido


original previo a la interpretación. La discusión sigue su camino a través de
este interminable proceso de interpretación y reinterpretación, por medio
del cual los sentidos llegan a ser verdaderamente compartidos por la
comunidad.132 Aunque la perspectiva de cada miembro es, en su finitud,
irreductible a la de otro, cada perspectiva puede llegar a ser parte de una
perspectiva mayor, que surgirá siempre de la continua reformulación de
posiciones como un resultado del interjuego de perspectivas.

Juego
Como un momento de negatividad, de la contradicción que tiene
lugar, el diálogo es un trabajo de los más profundos, aun como aquello a lo
que se refería Sócrates en el Fedón como "práctica para la muerte". Desde
el punto de vista del campo de sentidos emergentes que crea, el diálogo es
profundamente lúdico, porque rompe la rutina de lo instrumental, la
"voluntad de vivir descontrolada y sin guía". Al abrirnos nosotros mismos
a la perspectiva del otro, estamos arrojados a un espacio de emergencia y
transformación, en el que la discusión ya no surge de ninguna persona en
particular sino del intercambio entre las personas. A través de lo que Peirce
llamó la "reflexión interpretativa", "permitimos que los signos se
desplieguen en patrones nuevos y creativos,"133 y a menudo lo inesperado, la
combinación azarosa permite que la discusión progrese.
Según la noción de "tychismo" (del griego týche = azar) de Peirce, el
azar genera orden, ya que en su espontaneidad, en su diferencia, en su
variación, actúa como un catalizador en la producción de niveles más
elevados de uniformidad, rompiendo viejos hábitos y estimulando el

132
Corrington, pp. 41 y 42.
133
Corrington, p. 8.

130
A comunidade da infância

desarrollo de nuevos hábitos de comportamiento.134 El tychismo es una


función de la lógica de relaciones que opera por medio de la asociación de
elementos aparentemente disímiles, que luego se encuentran relacionados
dentro de marcos de referencia más amplios. Estos patrones llegan a ser
visibles cuando en la comunidad de lenguaje, de mente e incluso de gesto,
se admite el impulso al juego. Porque si, como dice Peirce, "la emoción es
un pensamiento vago, imperceptible,"135 el juego es la respuesta del
sentimiento a las ideas, a la unidad de un horizonte de sentido más allá de
nosotros, que funciona como una atracción, por cuanto el sentido mismo
del jugar entra y responde con todo nuestro ser a algo más grande que
nosotros.
Tanto Peirce cuanto Dewey asocian la "falta de propósito y el
desinterés" del impulso lúdico a la actitud científica.136 La actitud mental
ideal es "ser lúdico y serio al mismo tiempo", en tanto "el juego mental libre
implica seriedad, un seguimiento comprometido del desarrollo del tema en
cuestión", mientras que el "puro interés por la verdad coincide con el amor
por el libre juego del pensamiento."137 Cuando jugamos con ideas en la
comunidad de cuestionamiento e investigación, permitimos que la
estructura de la comunidad de mente se cristalice y se articule más allá de
nosotros, partiendo de cada uno y atravesándonos a todos.
El abandono de nosotros mismos al juego intrínseco de relaciones
siempre emergentes de la comunidad de mente requiere del coraje de dar,
en palabras de Dewey, un envión, un salto, la propiedad de aquello que no
puede ser absolutamente garantizado de antemano, independientemente de

134
Raposa, pp. 32, 74; Corrington, p. 126.
135
Raposa, p.131. Peirce también dijo "las más grandes verdades sólo pueden sentirse." (ibid)
136
Ibid, pp. 218-219.
137
Dewey, p. 219.

131
David Kennedy

las precauciones que se tomen."138 Se necesita disciplina para suspender el


juicio y cultivar una variedad de sugerencias alternativas sin establecer una
prematuramente. Aprendemos a balancear el foco de atención entre la
investigación como algo que fluye momento a momento y algo que promete
una culminación, un resultado. Sabemos que estamos jugando cuando nos
encontramos a nosotros mismos observando la belleza de las relaciones
internas, del surgimiento de la mente en la lógica de relaciones, mientras
se vislumbra su última dirección como un horizonte, inminente aunque
infinitamente lejano. A través de los movimientos que nos transportan,
tenemos un sentido estético de su estructura, pues más allá de nosotros se
forma un lazo de continuidad que reúne los estadios sucesivos. Esto nos da
la fuerza y la confianza para seguir la discusión adonde nos lleve a través
de un caos aparente, evitando lo que Dewey llamó "pavear" que, en un tono
excesivamente festivo lleva a la disipación y a la desintegración de la
investigación.139
Me he concentrado en el juego de la comunidad de mente, pero el
juego esta presente, por cierto, en el lenguaje, que gusta jugar con el sonido,
el sentido y la estructura; en el gesto, donde la imitación y el comentario
inconsciente de la postura, el movimiento y la expresión, entran en un
permanente intercambio; en el interés y el amor, ya que ambos buscan de
manera espontánea y generalmente inconsciente, la expresión lúdica en las
relaciones de tipo erótico, compasivo, de dominación o sumisión y de intriga
que se establecen con los otros. Todas estas formas no sólo son análogas,
sino que también son elementos del juego de la comunidad de mente, en
tanto cada comunidad es una traducción dinámica y reflexiva de las otras.

138
Ibid, p. 75.
139
Ibid, p. 217

132
A comunidade da infância

Teleología
Somos capaces de entregarnos al juego del diálogo en la comunidad
de cuestionamiento e investigación porque confiamos implícitamente en
que hay una formación inmanente y un despliegue tanto del pensamiento
como de la estructura relacional entre nosotros. Sentimos que estamos
embarcados juntos en un movimiento hacia una coordinación de
perspectivas, a través de la cual nuestro universo de sentido será
transformado, incluyendo la relación fundamental entre el individuo y el
grupo, i.e. la estructura óntica de la comunidad misma. Este télos se
presenta como lo que Corrington llama una "fuente incondicional de valor"
que desde adentro, nos conduce y desde afuera, nos atrae. Promete un
estado de perfecta razonabilidad, de unidad inclusiva y de apertura radical,140
i.e. de superación de la finitud trágica que perturba y distorsiona nuestra
investigación, así como nuestras relaciones. Entonces, cada acto
interpretativo individual apunta más allá de sí mismo hacia un todo en
formación, hacia una perspectiva más abarcadora en la que todos los signos
se ubican unos en relación con otros. Cada acto interpretativo es, en
definitiva, juzgado por ese horizonte infinito que prometía una verdad total
o "un largo plazo infinito que garantiza la validación de los actos
interpretativos."141Aunque no podemos evitar operar atraídos por este
horizonte infinito, siempre excede el horizonte de lo que puede estar
presente ante nosotros en un momento dado; entonces tenemos solamente
verdades parciales, destellos de la verdad que manifiesta aspectos de sí
misma en el discurso humano; no podemos deducir de antemano cómo se
verá. Como plantea Corrington, "ninguna serie [de signos] alcanzará la
totalidad, aunque ninguna serie dejará de anhelar la integración completa

140
Corrington, p. 12.
141
Ibid, p. 47.

133
David Kennedy

(encompassment)." Algo así como un ansia genérica anima cada serie


cuando se mueve hacia la Integración misma."142

Conflicto
El conflicto en la comunidad de cuestionamiento e investigación está
habitualmente asociado con la comunidad de interés —con luchas
personales, divisiones ideológicas o actitudes o comportamientos
presuntuosos, insensibles y difamantes. Pero así la razón entra
necesariamente en contradicciones que le permiten desarrollarse: el
conflicto es un tema universal de la comunidad de cuestionamiento e
investigación. La experiencia de la investigación siempre acarrea un
elemento negativo, una necesidad de ser refutado para aprender lo que no
se sabe. El dia de dialéctica representa el proceso de diferenciación, de un
ir a través en el que las cosas se separan, lo cual implica siempre un cierto
grado de conflicto.
El conflicto es un resultado de la resistencia de la segundidad, los no-
yo, lo particular y disruptivo, a nuestras expectativas. La resistencia es un
elemento clave en el progreso de la discusión, pues a través de ella, la
realidad resiste las pretensiones de cualquier teoría que se vuelve presuntiva
e intenta explicar más de lo que realmente puede; en consecuencia los
caminos falsos son eliminados.143 Pero el hecho de que todo conflicto sea un
aspecto central, necesario de todo proceso dialéctico no reduce el
importante riesgo que representa para la comunidad de cuestionamiento e
investigación. Este riesgo aumenta por nuestra tendencia a sostener un
modelo homeostático o de "orden" del proceso grupal, que entiende el
conflicto como inherentemente malo y desintegrador, y que en

142
Ibid, p. 66.
143
Ibid, p. 4.

134
A comunidade da infância

consecuencia debe ser evitado o suprimido a cualquier precio. Pero así


como el conflicto cognitivo transforma la comunidad de mente, el conflicto
social transforma las comunidades de amor e interés y produce
discernimiento moral. Cuando se atraviesa el conflicto con la humildad que
viene del discernimiento que puede ser transformador, el individualismo se
modera y la relación individuo-grupo se va alterando gradualmente.
¿Qué es lo que provoca conflicto social en la comunidad de
cuestionamiento e investigación? Todas las personas tienen la experiencia
de sí mismas como parte de un todo mayor, pero también experimentamos
una irreductible dimensión de discontinuidad, pues cada uno de nosotros
ocupa un horizonte que nos conecta tanto como nos separa . Rara vez
llegamos a probar y articular nuestro propio horizonte —de hecho, como
dice Corrington "es parte de la lógica de los horizontes olvidar que es un
horizonte." Además, hay un movimiento desde cada horizonte individual
para llegar a ser general; Corrington lo llama "el ansia de cada horizonte
de expandirse hacia lo genérico y de abarcar, su deseo de llegar a ser
idéntico al mundo mismo."144 Este ansia está relacionada con la "falta feliz"
mencionada antes —el movimiento hacia la unidad que, combinado con el
atractivo del "abarcar" nos lleva hacia la coordinación de perspectivas. Es
siempre un movimiento ambivalente, pero sólo es demoníaco cuando
persiste en la otredad, la independencia, la fuente de su impulso hacia la
unidad. En palabras de Peirce "la individualidad es el lugar del mal si se
construye como término más que como momento o fase del movimiento
circular del amor.145
Este olvido de mi propio horizonte —e incluso de que ocupo un
horizonte — no lleva en general a la perversión sino más bien a diversas

144
Ibid, p. 64
145
Raposa, p. 90

135
David Kennedy

formas de rigidez e inercia o a compromisos ideológicos que "perjudican el


movimiento abierto de la articulación de signos."146 Mi olvido no puede ser
superado desde el interior de mi propio horizonte sino sólo al ser, de una
manera u otra, humillado: son los golpes, las rupturas que experimento por
medio del diálogo, los que sirven para clarificar mi horizonte para mí
mismo, y en consecuencia, permiten una coordinación posterior con los
horizontes de los otros. Mi horizonte nunca será completamente
transparente a mí mismo —eso parece ser una imposibilidad ontológica.
Pero cuando choca con un horizonte ajeno, lo que está oculto en él se revela
y se ve forzado a una nueva autorreflexividad.147
El carácter irrevocable de nuestra finitud constituye un elemento
inexpugnable de ocultamiento mutuo de los individuos. Esta "última
rebeldía por parte de los horizontes a manifestar sus aspectos peculiares y
malvados"148 es un elemento trágico de la vida en comunidad. Pero desde el
punto de vista del movimiento dialéctico en el que nos sentimos
comprometidos como comunidad, esta búsqueda radical de individualidad
aparece como el momento negativo necesario en el desarrollo creativo del
amor.149 La tensión entre las irreductibles oscuridades de nuestro propio
horizonte y el horizonte de los horizontes que nos atrae requiere de una
disciplina para la cual nos encontramos a nosotros mismos aptos gracias al
amor.

Disciplina
La disciplina es la virtud operativa de la comunidad de
cuestionamiento e investigación, en tanto implica un mínimo nivel de

146
Ibid, p. 57.
147
Ibid, p. 64.
148
Ibid, p. 66.
149
Raposa, p. 89.

136
A comunidade da infância

autocontrol individual y colectivo que hace posible sobrellevar los conflictos


y vicisitudes, no sólo de la discusión sino del proceso social del grupo, sin
perder la sinceridad, sin volverse introvertido, sin tratar de dominar, sin
quedarse estancado en un conflicto ideológico, sin esperar de la comunidad
más de lo que es capaz de dar en un momento dado. Cada comunidad de
cuestionamiento e investigación necesita su particular forma de expresión
de esta virtud, que depende de los individuos participantes, pero lo que
parece ser genérico a todas sus modalidades es el autocontrol y la
perseverancia.
La comunidad de mente requiere la disciplina de la lógica de clases y
también la disciplina más amplia, más rigurosa de soportar el suspenso
psicológico que precisa el pensamiento crítico. En el ámbito de la expresión
de ideas, existe una disciplina necesaria por el hecho de que, en palabras
de Dewey, "la descarga o expresión directa o inmediata de una tendencia
impulsiva es fatal para el pensamiento. Sólo cuando el impulso es, de alguna
manera, controlado y contrarrestado, surge la reflexión."150 Esto es cierto no
solamente para el individuo sino también para el grupo, por cuanto al seguir
la discusión donde nos lleve, se busca mantener un rumbo que a menudo
nos exige contener un pensamiento o una contribución cuando no existe
una razón obvia o intrínseca para hacerlo, excepto que en todo momento
en la comunidad de cuestionamiento e investigación hay tantos
contribuyentes posibles como miembros y cada uno puede reclamar llevar
adelante la discusión, aun cuando (recordando el principio del tychismo)
parezca una disgresión. La disciplina que me pide que contenga mi
contribución en beneficio de otro se vuelve más rigurosa cuando la
contribución del otro me parece confusa, ofuscatoria, fuera de lugar o
incluso si simplemente me parece que desvía la discusión de un tema con

150
Ibid, p. 64.

137
David Kennedy

el que yo creo que aún no hemos terminado. Para ser capaz de practicar
esta disciplina, debo tener confianza en el carácter evolutivo de la
comunidad de cuestionamiento e investigación —que aunque "a la razón
le gusta esconderse", la discusión, como el agua que busca su nivel,
eventualmente superará todos los obstáculos que le impiden avanzar.
En las áreas del amor y el interés, la misma disciplina es necesaria
para proteger el espíritu de la investigación de los riesgos de
monopolización, agresividad, competitividad, seducción, timidez,
intimidación, sobreexcitación, disipación, negativismo, parálisis,
trivialización y otros. Además, cualquier discusión dada genera su propia
lógica y ritmo, que no puede anularse por un método mecánico. El
entendimiento debe esperar el kairós, el momento oportuno y no forzar el
diálogo hacia patrones predeterminados.151 Cada miembro de la comunidad
de cuestionamiento e investigación debe llegar a entender y a practicar los
sacrificios, grandes y pequeños, que son necesarios para animar y proteger
ese momento oportuno. Esta habilidad de sacrificio se expresa de manera
muy concreta cuando los miembros aprenden a retener su participación
porque perciben que algo más importante emerge del horizonte discursivo,
a convertir en pregunta lo que iba a ser una afirmación positiva o a dejar
de lado la posibilidad de continuar un intercambio que limita la
participación de los otros. Esta disciplina está bajo el signo cristiano de la
crucifixión o el principio de que nada se transforma sin una muerte o una
pérdida —en este caso la pequeña muerte de nuestra potencial
intervención. Actúa minando las formas más extremas de individualismo y
purificando progresivamente las distorsiones hermenéuticas individuales o
subjetivas,152 lo que a su vez aumenta la agudeza del juicio y, de ese modo

151
Corrington, p. 43.
152
Ibid, p. 77.

138
A comunidade da infância

la disciplina. Cuanto mejor percepción tengo de la discusión en todo


momento, más fácil me resulta suprimir mi propia participación por el
momento, pues soy intuitivamente consciente de que puedo participar en
más de una oportunidad. Así, Dewey decía que cuando se concibe a la
disciplina en términos intelectuales, se la "identifica con la libertad en su
verdadero sentido." Entonces, la disciplina de la comunidad de
cuestionamiento e investigación se vuelve menos costosa y más alegre a
medida que la comunidad se desarrolla. El entusiasmo de seguir la discusión
adonde lleve recompensa nuestros esfuerzos tenaces y pacientes y nuestras
continuas escaramuzas con la confusión y el retraso. Ese entusiasmo nos
recuerda que estamos siendo transformados, individualmente y en términos
de nuestras relaciones mutuas, por un incesante proceso dialéctico.

Conclusión
Aun antes de ser una comunidad de signos naturales e intencionales,
la comunidad de cuestionamiento e investigación es un contexto
comunicativo, un terreno de intersubjetividad dinámica, que está
continuamente creciendo, cambiando, ocupada en nacer o en morir. Su
investigación no es meramente cognitiva, sino lingüística, personal, social,
emocional, política, erótica, festiva. Si se desarrolla bien, está abierta en
todos estos niveles a la emergencia de algo, en un movimiento dialéctico,
autocorrectivo que parece interminable. Lo que la mantiene en
funcionamiento es el impulso erótico hacia la sabiduría y este eros hace
posible los sacrificios que demanda. El amante del todo sacrifica sus
reclamos peculiares en pos de la transformación del grupo que, a su vez, lo
transformará a él. Este principio recorre como un filamento rojo todas las
dimensiones de la comunidad de cuestionamiento e investigación. En la
comunidad de mente, debemos aceptar el desmembramiento de nuestra
opinión, abandonar una conclusión provisoria para permitir que la

139
David Kennedy

discusión continúe y llegar juntos a un nivel superior. La naturaleza misma


del diálogo implica este extraviarse para poder llegar allí. En la comunidad
de gesto, el ego más fuerte aprende, en el intercambio de afecto vital, a
retener y permitir que el otro comience a andar, de modo de alcanzar una
plenitud compartida. En la comunidad de lenguaje, aprendemos a preguntar
más que a declamar, a clarificar más que a reproducir opiniones. En la
comunidad de interés, aprendemos que nuestro fortalecimiento personal, el
reconocimiento por parte del grupo de quienes somos y de quienes
queremos ser, depende en última instancia de nuestro reconocimiento de
la individualidad irreemplazable del otro y de nuestro respeto de esa
individualidad como si manara de algo más allá de ese individuo. En la
comunidad de amor, descubrimos las complejas disciplinas afectivas y
eróticas que permiten desarrollar una capacidad para alcanzar niveles más
profundos de amistad.
Nos parece que estos sacrificios valen la pena, pues percibimos la
relación entre ellos y la noción socrática de la filosofía como "preparación
para la muerte." Intuimos que nada se mejora o se transforma sin muerte.
La relación trágica entre el individuo y el grupo se resuelve por medio del
sacrificio y, a través de este, el individuo vuelve a encontrarse a sí mismo
en un contexto más amplio. El riesgo es que el sacrificio no lleve a ninguna
parte —que uno se reprima por una verdad que nunca emerge o que sea
saboteado por aquellos (incluido él mismo) que están demasiado
interesados en lo propio, o carecen de disciplina para retenerse. Pero tan
inevitable como el riesgo, el impulso hacia la transformación individual y
colectiva es aún mayor y su promesa siempre nos atrae.

140
6. A ESCOLA DO TERCEIRO REINO ALEGRE153

Reimaginar a prática escolar significa pensar uma instituição que crie


as condições para uma relação dialógica entre as formas de intencionalidade
da infância e da adultez. O filósofo romântico Friedrich von Schiller
entendia "o terceiro reino alegre da brincadeira" como representando uma
reconciliação dialética entre "ideias racionais" e "o interesse dos sentidos,"154
ou razão e desejo, e — entendido tanto como sinônimo quanto como
analogia — processo primário e secundário, conteúdos inconscientes e
conscientes, impulso e hábito, e por fim, ego e si mesmo [self]. Entender a
escola como um laboratório, um estúdio, ou uma zona cultural experimental
— o espaço transicional no qual esta reconciliação ocorre contínua e
perenemente — pede um lugar onde os adultos inventam, mantêm e
medeiam uma estrutura de atuação interativa que, como diz Dewey,
"permite que o impulso imaturo exercite suas potencialidades

153
Tradução de Juliana Merçon. Título original: “The School of the Third Joyous Kingdom”.
154
Friedrich von Schiller, 1954 [1795], p. 78, 75.

141
David Kennedy

reorganizadoras"155 no hábito. Imaginar a prática educacional desta maneira


de nenhuma forma supera a função perene da escola como lugar onde as
"fronteiras dos egos" são expandidas para incluir "ferramentas e
habilidades," onde nós primeiro experienciamos, como Erik Erikson coloca,
"o prazer de completar um trabalho através da atenção fixa e dedicação
perseverante," ou onde as crianças "recebem alguma instrução
sistemática".156 A diferença entre entender a escola como um lugar para
reconstrução cultural em oposição a um lugar para reprodução cultural
está, não na supressão do mundo de instrumentalidade, mas na introdução
do diálogo como um princípio mediador fundamental.
Assim como está a escolarização, tal qual a sabemos, seus objetivos
implícitos, em sua maior parte, estão em direta contradição com uma
condição principal para o diálogo — que é possível somente em um
contexto de relações não-instrumentais. A apresentação de Buber do
relacionamento complexo, emergente e incontrolável entre relações
dialógicas e instrumentais nos pares básicos de palavras "Eu-Tu" e "Eu-Isso"
torna claro que as relações dialógicas e instrumentais são mutuamente
dependentes e até mesmo mutuamente implicativas.157 O mundo
instrumental de "uso" é, de fato, o que tipicamente queremos dizer com o
"mundo como experiência" em oposição ao "mundo de relação". Não
obstante, a escola está hoje em dia implicitamente construída, não apenas

155
John Dewey, 1988 [1922]), p. 70.
156
Erik H. Erikson, 1963, p. 259.
157
“A sublime melancolia da nossa espécie consiste em que todo Tu deve se tornar um Isso em nosso
mundo. Não importa quão exclusivamente presente ele tem estado no relacionamento de direção —
assim que o relacionamento tiver feito o seu percurso ou for permeado pelo meio, o Tu se torna um
objeto entre outros, possivelmente o mais nobre deles e ainda um deles, atribuída sua medida e
fronteira. A atualização do trabalho envolve uma perda de atualização… Todo Tu no mundo está
condenado por sua natureza a se tornar uma coisa ou pelo menos a entrar para o domínio das coisas
uma e outra vez… O Isso é a crisálida, o Tu a borboleta. Só que nem sempre esses estados se alternam
com clareza; muitas vezes é uma série de eventos intrincadamente entrelaçada que é tortuosamente
dual" Martin Buber, 1970 [1922], p. 68-69.

142
A comunidade da infância

como um reflexo involuntário, mas como uma reificação intencional daquele


mundo-de-uso — como um mundo da reprodução calculada do "cidadão",
do "trabalhador", e do "consumidor", sendo que no último está também
implícito o "consumidor-de-informação", isto é, alguém que aceita o relato
da mídia estatal acerca do mundo — não importa se por "estado" se
entende o governo ou as corporações que, em uma economia globalizada,
o controlam. A escola como a sabemos simplesmente não pode se entender
senão como uma arma colonizadora do estado, tomada em seu sentido mais
amplo para incluir, não apenas formas legais, políticas e econômicas, mas
também sociais, culturais e relacionais — desde a forma da comunidade à
forma da família e à forma da organização sexual individual e da moralidade
sexual.
Como uma instituição colonizadora, é tarefa da escola produzir,
através do que Dewey descreve como "convertendo uma docilidade original
frente ao novo em uma docilidade para repetir e se conformar",158 um
sujeito adulto que manterá essas formas. A maneira como a escola cumpre
isso é colocando impulso e hábito, razão e desejo, em desacordo, e assim
separando a conexão dialética entre eles, que é o local do potencial para a
reconstrução individual e social.
O que é reproduzido na própria estrutura e intento da escolarização
tradicional é, sejam quais forem as boas intenções de seus operativos, "o
divórcio social entre hábito de rotina e pensamento, entre meios e fins,
prática e teoria." De fato, Dewey chega a desconstruir os interesses por
detrás daquelas "boas intenções" em poucas sentenças: "Aqueles que
desejam um monopólio do poder social acham desejável a separação entre
hábito e pensamento, ação e alma, tão característica da história. Isto porque
o dualismo os capacita para fazer o trabalho do pensamento e do

158
John Dewey, 1988 [1922], p. 50.

143
David Kennedy

planejamento, enquanto os outros permanecem como dóceis, mesmo se


inábeis, instrumentos de execução. Até que este esquema seja mudado, a
democracia está fadada a ser pervertida em sua realização."159
Embora superar as relações instrumentais que estão inscritas na
escola como uma instituição de reprodução social de nenhuma maneira
implique negar a escola como uma preparação para o mundo do trabalho,
implica sim a reconstrução do mundo do trabalho tanto quanto do mundo
do lazer e do mundo da política — e, por implicação ainda mais profunda,
a reconstrução da subjetividade humana. O adulto que não é sujeitado à
"mecanização prematura" carrega consigo a sua infância, no que aprendeu
sobre uma maneira de ser, um padrão para coordenar meios e fins, de unir
ação e alma por "utilizar constantemente um impulso não usado para
efetuar uma reconstrução contínua."160 Este sujeito adulto oferece a
promessa histórica de construir, coletiva e individualmente, novas
abordagens para o mundo instrumental que implicam novas abordagens
com relação à ética do trabalho, à justiça social, à construção do poder. O
indicador de uma cultura orientada à reconstrução e não à reprodução será
uma estrutura educacional que encoraja um tipo de vida individual e social
que busca sempre casar fins e meios, hábitos e pensamentos, prática e
teoria. O psicanalista britânico D. W. Winnicott chamou a forma de
subjetividade caracterizada pelo espaço transicional ou potencial de
"terceira área de experiência cultural" ou "terceira maneira de viver",
"sagrada para o indivíduo", à qual ele opôs o sujeito em um relacionamento
de uso-do-objeto com o mundo externo no qual o objeto é uma realidade
fixa; ou, inversamente, no qual o sujeito é um "si unitário", caracterizado
pela "membrana delimitadora" de fronteiras discretas. Ele encontra esta

159
Ibid., p. 50, 70 e 52.
160
Ibid., p. 73.

144
A comunidade da infância

área intermediária de experiência no relacionamento mãe-infante, e a


descreve como uma forma de subjetividade na qual o dentro e o fora estão
ainda em uma relação fluida, um espaço "potencial entre o subjetivo e
aquilo que é percebido objetivamente." Ele associa a terceira maneira de
viver, não apenas com a experiência da infância ou com a primeira infância,
mas também com a cultura e a criatividade, com a arte, a religião e a
filosofia na vida adulta.161 E como a escola tem sido o lugar para a
reprodução de uma forma de subjetividade, a escola é o espaço lógico para
a sua transformação através da reconstrução da vida em comunidade do
trabalho e da brincadeira.
Quais são as diretrizes práticas fundamentais para esta escola? Há só
uma maneira para construir esta escola ou há múltiplas? Afirmar o
precedente promete a imposição de ainda um outro "melhor único sistema".
O único conjunto de critérios que podem ser consistentemente aplicados
sem o perigo de totalitarismo são os princípios do diálogo, que podem ser
identificados como: 1) uma abordagem hermenêutica com relação a si
mesmo [self] e ao outro, isto é, o reconhecimento e aceitação da distância
e da relação em um processo dialético; 2) a afirmação da identidade única
e insubstituível do outro, a qual se identifica com a "alteridade"; 3) uma
ênfase em relações não instrumentais, que neste caso implica um respeito
e uma atenção para com as percepções, interesses, e objetivos da infância
e das crianças individualmente; 4) uma atenção contínua para as relações
de poder equitativas, o que implica autonomia política e autogoverno,
ambos dentro da escola — o que inclui a própria "sala de aula" — e na
relação da escola com associações maiores das quais ela pode ser uma parte.
A autonomia política e o autogoverno são requisitos fundamentais para a
formação da democracia social.

161
D.W. Winnicott, 1989 [1971], p.102, 103, 107 e 114.

145
David Kennedy

Uma escola da "terceira maneira de viver" deve ser entendida como


uma coletividade autônoma e autogovernante em sua relação com corpos
ou associações maiores. Nenhum currículo ou padrão acadêmico ou
profissional será exigido de cima para baixo a ela por nenhum grupo que
presuma saber objetivos e interesses dela mais do que ela própria. Tudo o
que o estado pode prover à escola é uma alocação nivelada de taxas
monetárias, que pertencem às pessoas como um todo — as "pessoas",
supõe-se, sendo comprometidas eticamente, em seus próprios melhores
interesses e de acordo com os dois domínios de valores comuns
mencionados acima, acesso educacional igualitário e oportunidade para
todos os seus membros. Além de oferecer o suporte financeiro, o estado
pode certamente trabalhar como um gerador e disseminador de ideias e
materiais educacionais, mas nenhum desses deve ser imposto.
Os pais dos estudantes são entendidos como parte do "comitê do
todo" da comunidade escolar, e participam diretamente no governo e
administração da escola, assim como o fazem professores, estudantes,
outros funcionários, e qualquer outra pessoa que expresse um desejo por
ser parte da comunidade escolar. Como um princípio geral, não há
administradores permanentes, embora qualquer membro da comunidade,
incluindo estudantes e pais, tanto individualmente ou como partes de
grupos administrativos, possa servir nesta função por períodos de tempo
extensos — sempre a critério da comunidade como um todo. As decisões
sobre dimensões cruciais da escola como o currículo, agrupamentos,
horários, funcionários e até mesmo questões disciplinares são tomadas
democraticamente, através de investigação e de deliberação mútua, e,
finalmente, através do julgamento coletivo ou do comitê do conjunto. Em
termos práticos, isto significa que o espaço e o tempo alocados nestes
processos, na forma de espaços de encontro apropriadamente preparados
e de um horário que permita tempo pago adequado para a investigação

146
A comunidade da infância

colaborativa e a deliberação, são admitidos como sendo tão essenciais para


a qualidade de vida da escola como o espaço e o tempo alocados para a
instrução.
A escola é uma comunidade de investigação para os adultos — um
laboratório para a democracia social entre adultos — tanto quanto o é para
as crianças, e os processos de investigação, deliberação e julgamento são
partilhados por ambos. Em alguns lugares há interseção entre estes
processos, em outros, eles operam separadamente, ou em paralelo, ou em
conjunto. A vocação profissional do educador é entendida como uma
indagação contínua sobre a melhor relação entre teoria e prática, uma
investigação contínua sobre a relação adulto—criança, e — mantendo a
sugestão de Dewey de que é entre os jovens que a sociedade é reconstruída
— sobre a reconstrução social em colaboração com a própria juventude.
Neste tipo de comunidade intencional de adultos e crianças, uns e outros
são co-investigadores, e esta co-investigação se aplica a ambos aspectos da
comunidade, o acadêmico e o político (ou relacionado ao poder).
Os professores são preparados para a escola da terceira maneira
através de uma forma reconstruída de enculturação e construção de
habilidades: a academia se muda para a escola, que agora se torna o lugar
primário para a preparação em pedagogia, desenvolvimento de currículo, e
dinâmicas de grupo. Aulas, seminários, ensino dos estudantes, consultas e
tutorias ocorrem primeiramente na escola, e estas classes, seminários,
oficinas, projetos, episódios de pesquisa, etc. são implicitamente entendidos
como abertos em geral para todos os membros da comunidade, incluindo
as crianças. Pré-professores ou estagiários participam na vida da escola em
todos os níveis, incluindo a organização e governo. Isto representa uma
repetição de um padrão, iniciado no começo do século XX nos Estados
Unidos e abandonado na última metade, de "escolas laboratório" nas
universidades; o que é diferente, neste caso, é que a escola hospeda a

147
David Kennedy

universidade e não o inverso. Professores de pedagogia passam tarefas que


incluem a residência em determinadas escolas, que envolvem, por sua vez,
responsabilidades de ensino em sala de aula e orientação de crianças,
colaboração com professores no desenvolvimento e implementação de
currículo, coordenação e mediação da ação e pesquisa de campo, e
investigação filosófica e dialógica com professores e outros funcionários.
A reconstrução do espaço físico para acomodar esta reconstrução na
prática e na relação teoria-prática é um aspecto crucial da própria mudança.
As práticas institucionais são moldadas e determinadas tanto pelo design
do ambiente construído como pelas atividades que nele têm lugar; de fato,
os dois são inseparáveis. O ambiente construído é uma reificação no espaço
— em fronteira, calçada, parede e setor — dos papéis sociais e
relacionamentos que o causam — que, em troca, são influenciados e
determinados pelo ambiente construído, e assim por diante, em um círculo.
O filósofo da arquitetura Yi-Fu Tuan se refere ao espaço construído como
"um texto que codifica as regras de comportamento e até mesmo toda uma
visão do mundo", "que demarca e intensifica as formas de vida social"
dentro dele.162 O espaço construído dá forma, identifica e determina o
campo de possibilidade das atividades daqueles que ele contém. Para a
criança, o ambiente construído da escola é um primeiro e decisivo texto
social em forma arquitetônica, que forma e instrui a experiência vivida e
cria, para toda a vida, um molde psicológico para a funcionalidade,
possibilidade, conforto e beleza do ambiente de trabalho.
Um espaço dedicado a ambos, crianças e adultos, e à sua interação
deve levar em consideração as diferenças na experiência vital do espaço das
crianças e dos adultos, deve identificar as interseções e as trajetórias do
desenvolvimento dos dois, e equilibrar as distintas necessidades dos dois. O

162
Yi-Fu Tuan, 1977, p. 116, 112.

148
A comunidade da infância

projeto mais fundamental da criança é "assenhorar-se" do mundo —


aprender a controlá-lo e manipulá-lo e preservá-lo e expandi-lo com
ferramentas e habilidades emergentes — através da brincadeira, ou
"brincantemente". A brincadeira é uma forma de atividade na qual o meio
e o fim estão em harmonia, o que significa efetivamente que eles se
fundiram, por ser a atividade da brincadeira experienciada como um fim
em si própria. A criança não abandonou a convicção de que o trabalho deve
ser brincadeira, e que qualquer distinção exagerada entre os dois é
problemática. No trabalho brincante, o domínio é obtido através da
participação no mundo da tarefa, através do engajamento neste mundo
como um interlocutor no espaço transicional. Como um resultado da
interação, algo é produzido, e este objeto é tanto uma transformação do
mundo quanto uma representação da transformação interna, que em
termos de desenvolvimento pode ser entendida como maior diferenciação,
articulação, integração funcional e controle centralizado, isto é, "domínio".
Como o artista, o encontro da criança com o mundo produz não apenas
objetos para uso, não apenas artefatos, mas também símbolos do seu
próprio desenvolvimento interior. A criança no estado de latência é, nas
palavras de Erikson, orientada na direção de "ajustar a si mesma às leis
inorgânicas do mundo da ferramenta"163 — o que é o mesmo que tornar-
se adulto — através de um processo semelhante ao do artista. O resultado
é uma maior distância e uma maior relação dentro do ambiente: como
resultado do processo de trabalho brincante, o organismo se torna melhor
adaptado ao ambiente através da mudança que imprime ao ambiente e no
processo de mudá-lo, é ele mesmo mudado.
A intencionalidade transicional da criança e do artista promete a
reunificação do trabalho e da brincadeira. Ambos brincam em uma unidade

163
Erik H. Erikson, 1963, p. 259.

149
David Kennedy

diferenciada com o mundo, em benefício da comunhão e da integração. O


ambiente com suas demandas e exigências provê o desafio, ou o "alimento"
para este processo, ou seja, para a sua própria transformação. Para a criança
assim como para o artista, o produto que emerge do engajamento e que
representa o encontro com o ambiente é relativamente inesperado, porque
ele emerge através de um processo interativo que possibilita resultados
criativos. Não é uma parte do que Heidegger chama a "reserva estável" —
o produto de estratégias de dominação, a ser extraído do mundo e ordenado
e estocado — mas um símbolo de transformação. Ele se situa em uma
relação de significado diferente frente ao ambiente. Ele resiste ao status de
reserva estável, é "ininquadrável" — uma transformação e não uma
colonização do mundo e da relação com o mundo-de-si.
O plano físico de uma escola dedicada à realização de um espaço
voltado à reunificação do trabalho e da brincadeira incluirá espaços que são
planejados para tipos variados, para o trabalho, a brincadeira e o encontro
de ambos, crianças e adultos. A configuração de salas de aulas, escritórios,
auditórios, oficinas e estúdios, salas e cantinas, grandes e pequenas áreas
de encontro, deve ser imaginada dentro de um contexto mais amplo de
variáveis de design como a construção geral de calçadas e rotas, a interface
entre espaços internos e externos e a construção concomitante de uma
combinação de luz natural e artificial, a justaposição de espaços "aberto" e
"fechado", "barulhento" e "quieto", "duro" e "macio", público, semipúblico e
privado — de espaços planejados para grandes grupos, pequenos grupos,
grupos íntimos e indivíduos. Estes princípios óbvios, concretos de design
geral têm sido virtualmente ignorados por arquitetos de escolas, sob o
marco da economia e um argumento espúrio a favor da "eficiência." 164 Esta

164
Trabalhos principais que se dirigem ao design institucional diretamente ou por implicação são:
Christopher Alexander, A Pattern Language (New York: Oxford University Press, 1977); Meyer Spivak,
Institutional Settings: An Environmental Design Approach (New York: Human Sciences Press, 1984);

150
A comunidade da infância

insensibilidade dramática com relação aos efeitos ou possibilidades do


ambiente construído é um indicador, não apenas de adultismo, mas também
da função da escola como um lugar de colonização. O prédio de escola
tradicional é uma reificação do modo intrusivo, e surgiu no fim do século
XVIII, como Foucault afirmou, com a prisão, os quartéis, o hospital, o asilo
e o prédio de escritório, construindo um ambiente planejado para os
propósitos de vigilância, classificação e "normalização" da população.165 A
normalização serve ao controle social através da produção de um "corpo
dócil", "um corpo tanto produtivo como sujeitado", um sujeito que tem, no
mesmo uso que Dewey faz da palavra, se convertido da "docilidade
verdadeira" do jovem — que ele descreve como "ser ávido para aprender
todas as lições da experiência ativa, investigativa e expansiva" — à "sujeição
àquelas instruções dos outros que refletem os hábitos atuais deles… uma
disposição para seguir para onde os outros apontam, em conformidade,
constrição, entrega ao ceticismo e experimento".166 Em sua arqueologia das
práticas disciplinares, Foucault relata a emergência de um desenho
arquitetônico

para permitir um controle interno, articulado e detalhado — para tornar


visíveis aqueles que estão dentro dele; em termos mais gerais, uma
arquitetura que operaria para transformar indivíduos: para agir naqueles
que ela abriga, para prover um freio em sua conduta, para levar os efeitos
do poder diretamente a eles, para tornar possível o saber sobre eles, para
alterá-los. 167

Esta é de fato a arquitetura da escola como a conhecemos.

e Carol Simon Weinstein and Thomas G. David (eds.), Spaces for Children: The Built Environment
and Child Development (New York: Plenum Press, 1987).
165
Michel Foucault, 1979, p. 26.
166
J. Dewey, 1988 [1922], p. 47.
167
1979, p. 190.

151
David Kennedy

A escola da terceira maneira assume um ambiente físico que acomoda


um equilíbrio emergente, sistemático de pedagogias e currículos múltiplos,
desde as formas mais abertas até as mais fechadas de estrutura e
organização. A perspectiva teórica abrangente, através da qual este
equilíbrio é determinado, seria baseada, não em uma unidade imposta ou
um continuum hierárquico, mas na afirmação da diferença radical ou
alteridade. Na educação, isto levaria a uma teoria da aprendizagem — e,
portanto, do ensino — baseada em teorias construtivistas do
desenvolvimento por estágios e da inteligência por campos, sendo que
ambas implicam uma ênfase primária na individualização da aprendizagem
e da instrução dentro de um contexto social. A teoria que justifica esta
abordagem tem sido considerada pelo menos desde que o trabalho sobre
inteligência e motivação humanas começou, por volta de cem anos atrás
com Binet, foi desenvolvida e articulada em Piaget, ligada ao impulso e à
psicologia do ego em Rogers, Maslow e Bruner, reconstruída como múltipla
e não-linear através de Gardner, entendida como implicitamente social e
dialógica em Vygotsky, e operacionalizada por praticantes em uma
diversidade de maneiras, desde currículos baseados em planos instrucionais
individualizados na educação especial até currículos diretamente baseados
em inteligências múltiplas, até todo tipo de aprendizados baseados na
investigação.
O princípio agrupador da terceira maneira é baseado na afirmação
de que a escola é uma comunidade intencional ao invés de um coletivo
forçado ou colônia do estado planejada para a produção da "alta conquista"
grupal e individual, ou especificamente para "armar" a população para fins
da economia ou do "mercado". Como uma comunidade intencional, ela é
concebida por definição como normativa — ou seja, ela é tanto
experimental e emergente como guiada por ideais normativos; ela não é
uma comunidade que "simplesmente acontece", nem é uma comunidade

152
A comunidade da infância

que é determinada do alto, por uma hierarquia de poder. É uma


comunidade que explora muito conscientemente as possibilidades da
relação entre adultos e crianças em benefício do surgimento da auto-
atualização individual e da reconstrução social, as quais são inseparáveis. E
a forma de reconstrução social que qualquer comunidade intencional
baseada no diálogo necessariamente envolve será democrática, o que
implica uma comunidade intencional dedicada à construção das atitudes,
disposições, conhecimento e habilidades características de uma democracia
social.
O que até agora tem impedido a realização prática da teoria de
desenvolvimento construtivista são os currículos e uma pedagogia
correspondente baseada na lógica da dominação — uma lógica inscrita não
apenas na atividade e interação da sala de aula, não apenas nas relações de
poder entre adultos e crianças e adultos e adultos nas escolas, mas também
no design físico das próprias escolas. A reconstrução dos currículos, da
pedagogia e das relações de poder — e, portanto, dos padrões de governo
— demandam a reconstrução do espaço no qual eles são desenvolvidos,
articulados e atualizados. As atividades grupais e os espaços nos quais elas
acontecem são mutuamente interativos e determinantes. Começar a
reimaginar como grupos e indivíduos são organizados para o trabalho e
para o encontro na escola reconstruída é, necessariamente, começar a
reimaginar a organização material, física, daqueles espaços.
Não há senso comum óbvio ou razão instrucional empiricamente
provada para regularmente agrupar estudantes por idade ou atuação
acadêmica, ou para regularmente colocar estudantes em grupos de mais de
quinze pessoas — sejam aqueles grupos baseados na idade ou
determinados por algum outro critério. Onde a unidade de medida e análise
acadêmica é o indivíduo e seu interesse e atuação, planejar atividades e
espaços para essas atividades baseando-se unilateralmente em um modelo

153
David Kennedy

de instrução de grupos grandes é, se não contraintuitivo, então


simplesmente dramaticamente ineficiente. O princípio do espaço
transicional pede a construção de espaços físicos que se prestam ao "entre"
de qualquer encontro, seja este encontro entre membros de grupos grandes,
medianos ou pequenos, incluindo tríades, duplas, ou o "entre"
intrassubjetivo do estar só. Um currículo, um plano de agrupamento, um
sistema de horário, um sistema de orientação, um sistema de instrução e
investigação e deliberação individual, de grupo grande ou pequeno, um
sistema de autogoverno coletivo e de desenvolvimento profissional — todos
estes deveriam se encaixar em um espaço planejado para favorecer, até o
melhor grau possível, as formas específicas destas práticas.
Um currículo que é tanto dialógico quanto completamente
individualizado é melhor construído operacionalmente como uma
combinação de projetos individuais e grupais, de instrução de habilidades
individuais e em pequenos grupos, e vários tipos de investigação em grupos,
relacionados tanto a projetos em andamento quanto a áreas de disciplinas
usuais que podem ser aplicadas a eles. Em termos de áreas de conteúdo, o
currículo deve incorporar todas as disciplinas tradicionais, incluindo as
artes, línguas, matemática, educação física e as ciências naturais e humanas.
A “pedagogia de projetos", que tem estado presente como conceito desde o
movimento da escola progressista do começo do século XX, apresenta a
mais óbvia possibilidade de uma reconstrução dialógica e emergente do
currículo e da pedagogia. Ela favorece abordagens múltiplas tanto em
função do número de estudantes envolvidos em qualquer projeto, quanto
para o fato do tema ou assunto do projeto ser o resultado de uma
negociação entre o professor — cujo interesse está em comunicar e
transmitir o conteúdo e processos das disciplinas — e o interesse do

154
A comunidade da infância

estudante.168 Um projeto pode ser uma investigação individual ou


colaborativa, e uma certa proporção de cada dia é devotada a ele. Ele com
freqüência exige "viagens de campo", e requer espaços de oficina, estúdio,
laboratório e biblioteca suficientes para a sua implementação. Como os
recentemente implementados nas escolas de Reggio Emilia, os projetos
seguem naturalmente três categorias: aqueles que surgem diretamente do
interesse de uma criança ou das crianças, aqueles que refletem interesses
mútuos de professores e crianças, e aqueles escolhidos por professores com
certos conceitos cognitivos e sociais em mente.169
O efeito de tal currículo emergente é diversificar as práticas de
agrupamento, e desta forma também as estratégias pedagógicas. A qualquer
momento durante o dia da escola, grupos que variam em tamanho, desde
uma a vinte pessoas, podem ser encontrados reunidos, isso para não falar
nas assembleias da escola-toda que se dedicam a vários propósitos. Cada
um destes agrupamentos terá um espaço apropriado no qual se encontrarão
— um espaço que em um nível ótimo contém, encoraja e favorece a
estrutura da atividade específica na qual o indivíduo ou grupo está
engajado. Os professores estarão engajados em uma variedade de atividades
pedagógicas correspondentes — desde a palestra ou exercício para a
mediação de grupos pequenos ou grandes até a instrução guiada de

168
Para duas visões históricas breves da pedagogia de projetos, cf. See H. Warren Button and Eugene
F. Provenzo, Jr., History of Education and Culture in America (Englewood Cliffs NJ: Prentice Hall,
1983), p. 257-259, e Lawrence A. Cremin, The Transformation of the School: Progressivism in
American Education, 1876-1957 (New York: Alfred A. Knopf, 1961), p. 216-220. Para o seu surgimento
inicial, cf. William Heard Kilpatrick, “The Project Method,” Teachers College Record v. 19, n. 4
(September 1918), e sua elaboração em Foundations of Method (New York: Macmillan, 1925). Para
uma formulação mais recente, veja Lilian G. Katz and Sylvia C. Chard, Engaging Children’s Minds:
The Project Approach (Norwood NJ: Ablex, 1991).
169
Para descrições da prática de Reggio Emilia, veja Carolyn Edwards, Lella Gandini e George Forman
(eds.), The Hundred Languages of Children: The Reggio Emilia Approach to Early Childhood
Education, especialmente Capítulos 10 e 11, que são relatos detalhados de projetos específicos.
Também cf. Rebecca New, “Excellent Early Education: A City in Italy Has It”, Young Children, v. 45,
n. 6 (September 1990), p. 4-10.

155
David Kennedy

habilidades para indivíduos, grupos pequenos ou grandes. Alguns


estudantes estarão engajados em trabalhos de projeto, sozinhos ou em
pequenos grupos, alguns reunidos em grupos de tamanhos variados para
tutoria ou instrução de habilidades em disciplinas como matemática ou
línguas estrangeiras; alguns estarão escrevendo ou engajados em edição ou
escrita cooperativa, alguns estarão trabalhando na produção de uma peça
de teatro, ou praticando música; alguns estarão fazendo artesanato em uma
oficina ou estúdio, alguns engajados em uma crítica grupal de uma obra de
arte, alguns engajados em observar as estruturas celulares em um
laboratório, e alguns engajados em uma investigação literária ou histórica
e filosófica comum, que inclui a investigação dialógica.
Se há um conjunto de expectativas com relação ao conteúdo que
forma a espinha conceitual e a abrangência e sequência do currículo, ele é
entendido como uma dimensão da estrutura na qual os estudantes e
professores entram em diálogo para produzir um currículo emergente. Se
os adultos decidem, por exemplo, que alguns conhecimentos e habilidades
literários, numéricos, musicais, artísticos, computacionais, sinestésicos ou
outros são críticos para a noção escolar do que é uma "boa educação", então
o princípio do diálogo requer que eles encontrem uma maneira de trazer
aqueles conhecimentos e habilidades para o contexto do interesse dos
estudantes. O "interesse" dos estudantes não implica necessariamente seus
interesses de prazer — não há uma relação necessária entre interesse e
"divertimento" — assim como não implica que não haverá conflitos de
interesses entre adultos e crianças a serem continuamente trabalhados.
Entende-se também que em certas áreas da vida ou mundo há uma
autoridade diferenciada entre adultos e crianças, assim como se entende
que em certas áreas há responsabilidades diferenciadas. O argumento para
este diferencial está dado na experiência cotidiana, e na grande maioria dos
casos é tão óbvio para as crianças como o é para os adultos. Os pontos nos

156
A comunidade da infância

quais isto não é óbvio são os próprios pontos do diálogo e da reconstrução,


e o coletivo adulto—criança da escola, como uma "vida comunitária
embrionária",170 é o lugar lógico para este diálogo. A escola da terceira
maneira é, nas palavras de Dewey, uma "comunidade progressiva", porque
ela "se esforça para dar forma à experiência dos novos para que, ao invés
de reproduzirem hábitos presentes, melhores hábitos sejam formados, e
assim a sociedade do futuro adulto será um melhoramento da deles".171
Se, por exemplo, depois de uma deliberação cuidadosa, sensível ao
contexto, os adultos decidirem que habilidades e entendimentos de
aritmética, álgebra e geometria serão, na avaliação da sua escola,
considerados um objetivo, então estratégias curriculares serão adotadas ou
desenvolvidas para operacionalizar este objetivo em contextos múltiplos.
Estas estratégias podem ser amplamente categorizadas em três grupos: 1)
Estratégias para a incorporação do estudo e do domínio de habilidades e
conceitos matemáticos nos projetos. Isto representa a adaptação daquelas
habilidades e conceitos aos interesses espontâneos, nativos, e emergentes
das crianças. 2) Estratégias de instrução individualizada, e em grupos
pequenos e grandes, que podem muito bem envolver leitura, exercícios,
estudo individual com livros, programas de computador e assim por diante.
3) Estratégias para investigação colaborativa crítica e dialógica no campo
filosófico — neste caso, epistemológico, ontológico e metafísico — da
matemática.
A investigação filosófica é da maior importância para o caráter geral
e para a estrutura da escola da terceira maneira, porque, quando ela é
conduzida em comunidade e dialogicamente, ela representa uma
metodologia através da qual as crianças se tornam capazes de encontrar

170
John Dewey, 1959, p. 49.
171
John Dewey, 1987 [1916], p. 79.

157
David Kennedy

por elas mesmas as questões fundamentais que oferecem uma base racional
para estudar matemática — ou qualquer umas das outras áreas de
conteúdo — em um nível mais profundo do que o de sua aplicação prática.
A questão da ausência da aplicação prática é usualmente apresentada como
fonte da não satisfação das crianças com a escola, mas, de fato, a questão é
a ausência da presença dos questionamentos próprios das crianças na
construção daquilo que é estudado — isto é, a questão do sentido e
significado. 172 Quando a matemática — ou a história, ou as artes, ou a
linguagem, ou a ciência — é abordada criticamente em busca das
pressuposições inerentes que subjazem suas crenças e suas pretensões
normativas, então sua identidade como um corpo de conhecimento estático,
já-estabelecido, imposto externamente, é desatada, e se revela a medida até
a qual cada disciplina é ela própria um produto de investigações prévias.
Como resultado, as crianças se tornam capazes de conectar a disciplina —
um artefato organizado — com seus próprios questionamentos
espontâneos e interessados.
As atitudes, motivos e interesses contidos na experiência da criança
que identificam a criança e o currículo como dois limites que definem um
só processo não têm, em um nível mais profundo, a ver com a aplicação
prática, ou com a questão do "como posso usar isso na vida real?". Aquela
questão é simplesmente o primeiro desafio de uma criança com relação à
pedagogia e ao currículo da colonização, e um primeiro ato de rebelião
cognitiva contra uma forma de educação que separa o trabalho do sentido
e significado. Ela não seria sequer perguntada em uma escola que
verdadeiramente valorizasse os interesses da criança. Ao invés disso, as
atitudes, motivos e interesses ligados ao questionar revolvem em torno da

172
Para uma argumentação eloqüente a favor da prioridade do "sentido e significado" [meaning] e
"ponderação" [thoughtfulness] com relação à “racionalidade” na estrutura e design educacionais, cf.
Matthew Lipman, Ann Margaret Sharp and Frederick S. Oscanyan, 1980, 4-11.

158
A comunidade da infância

investigação, que — como a epistemologia genética construtivista,


começando com Dewey e Piaget, tem cada vez mais indicado no decorrer
do último século — é a categoria fundamental de um tipo de aprendizado
conduzido pelo aprendiz e não imposto sobre ele. Dito de forma simples, a
investigação é uma resposta ao desequilíbrio no sistema cognitivo, e a
investigação bem sucedida resulta na reconstrução do sistema, da forma
que é mais adequada ao ambiente que colocou o sistema em desequilíbrio
em um primeiro momento.
A investigação se apresenta na forma de uma pergunta. Uma
pergunta é um indicador do desequilíbrio do sistema. Um currículo
intrusivo se apresenta na forma de uma série de proposições. O objetivo
do currículo intrusivo não é colocar o mundo em questão, mas afirmar uma
série de proposições já aceitas sobre o mundo. Mas se a criança vai se
encontrar com o currículo no nível do sentido e significado, isto deve
ocorrer com uma pergunta; porque se o aprendizado autoiniciado acontece
em benefício da reconstrução do sistema cognitivo dela, então a
reconstrução implica um estado prévio de desequilíbrio, que é indicado por
uma pergunta.
O movimento natural que a investigação aberta faz do descritivo ao
normativo assegura que a dimensão de investigação ética e moral esteja
presente no currículo como um elemento permanente, e que esta seja
integrada a todas as áreas de conteúdo. Ele também define a escola como
um lugar no qual a instrução serve à investigação, e não o inverso. Tal
ênfase não terá nenhum poder reconstrutivo real a não ser que o mesmo
tipo de investigação deliberativa em comunidade que é praticada ao longo
do currículo seja também praticada dentro da comunidade escolar como
um todo. Como nós já vimos, a escola da terceira maneira é o lugar principal
para o treinamento e desenvolvimento dos professores. Professores
universitários têm escritórios lá, e participam em grupos de níveis múltiplos

159
David Kennedy

— grupos de crianças, de professores—estudantes e aprendizes, e dos


professores da escola. A escola como um todo é entendida como uma
comunidade de investigação — investigação sobre aprendizagem, ensino,
construção do currículo, governo escolar, avaliação, e outras questões de
ordem e disciplina. Em qualquer momento dado durante o dia, pode-se
encontrar grupos de adultos — que podem incluir crianças — de tamanhos
variados, um discutindo um tratado recente ou clássico sobre educação ou
alguma outra disciplina; um outro grupo engajado em um curso de estudo
inovador em matemática ou literatura ou arte; um outro construindo um
projeto curricular interdisciplinar; um outro deliberando sobre uma série
de observações feitas por professores ou estagiários sobre uma criança em
particular ou um grupo de crianças específico, com o propósito de gerar
um currículo ou algum outro tipo de intervenção como resposta; um outro
discutindo um incidente recente de conflito ou violação percebida de
pessoas, espaço ou rotina; um outro avaliando um projeto ou projetos em
processo; um outro discutindo um problema crônico no horário ou na
dinâmica do grupo; um outro composto por pais e professores engajado
em algum tipo de deliberação. Estes tipos de atividades devem ser
entendidas como sendo de igual importância com relação ao "tempo
instrucional", porque são um aspecto tão crucial na vida de uma
"comunidade embrionária" como qualquer outro.
Uma escola que tenha desconstruído e diversificado os padrões
grupais, descentralizado e individualizado as práticas de aprendizado e
instrução, e assim reconstruído a disposição da supervisão e "espaço do lar",
pede uma abordagem ao design do espaço, tempo, atividade e interação
que seja diferente do modelo tradicional. Uma escola pode adotar um
sistema de supervisão baseado em um aconselhamento individual. Assim
sendo, um professor entra, por exemplo, em uma relação de orientação com
dez a quinze crianças da mesma ou de diferentes idades, que desta forma

160
A comunidade da infância

constitui um grupo "lar". Estes grupos podem ser reunidos através do uso
de vários critérios: com base em um interesse disciplinar — por exemplo,
o grupo poderia ser interessado em linguagens, nas artes, ou ciências ou
matemática; com base em um interesse mais imediato, como um projeto
de longo prazo no qual eles todos expressaram interesse; ou com base no
nível de habilidade no aprendizado da matemática ou da escrita e leitura
(o que não significa necessariamente que todos os estudantes estariam no
mesmo nível); com base em uma análise sociométrica, ou alguma outra. O
professor mentor ou orientador se encontraria com este grupo no começo
e no fim do dia escolar, e geraria e/ou monitoraria, para cada criança, planos
individuais ou para pequenos grupos. E talvez haja outros períodos durante
o dia ou semana nos quais este grupo esteja junto — para instrução
individualizada, para investigação colaborativa, para trabalho de projeto,
para tutoria feita por um colega, pequenos grupos de trabalho de vários
tipos, ou para algum outro tipo de atividade de solução de problemas.
O espaço "lar" do grupo seria construído para tornar possível, não
apenas o conferenciar, como também o estudar e comer junto. Tais espaços
lar estariam espalhados pela escola, e cada um proveria lugares macios —
isto é, áreas encarpetadas e poltronas e cadeiras macias — uma mesa para
seminários, espaço apropriado para a preparação de comida e para comer,
lugar para estocagem e apresentação de materiais, e áreas individuais de
estudos na forma de pequenas mesas individuais [carrels]. Cada um desses
lugares seria contíguo ao escritório do professor orientador, e acessaria
também um jardim ou terraço interior ou exterior. Durante o curso do dia,
as crianças se aventurariam para fora dessas bases lar para uma variedade
de espaços que provêm estúdio, oficina, laboratório, recurso, ensino,
seminário, e eventos de encontros com o grande grupo. Alguns desses
espaços seriam fechados, alguns parcialmente fechados, e algumas áreas
abertas para as calçadas que conectam a todos eles. Quanto mais nova a

161
David Kennedy

criança, estes espaços e encontros seriam mais concentrados em uma área


ou seção em torno dos espaços lar, mas, como princípio geral, o território
a ser dominado progressivamente por cada criança é toda a escola, em toda
a sua complexidade e variedade. Isto representa uma diferença radical frente
ao modelo tradicional de entendimento da relação entre o local e o global
na escola. Neste último modelo, o território da criança é a sua sala de aula,
e o resto é espaço anônimo e administrado, requer passes, exceções ou
rebeldia para ser explorado. Mas o espaço da escola deveria ser entendido
a partir da metáfora de uma vila, ou colmeia, ou labirinto, em oposição a
um espaço "disciplinado" ou "normalizado", no qual um princípio ou estilo
de organização e uso espacial é imposto ao todo. Ambos, grupos lar e
indivíduos dentro deles, são na nova escola tanto autônomos como
interdependentes, locais e globais, dentro de todo o sistema.
Finalmente, em uma escola da terceira maneira simplesmente não há
lugar para um tipo de avaliação que não é diretamente relacionada com a
ajuda que pode ser dada às crianças para que cheguem melhor aos objetivos
que foram negociados entre elas e os adultos com quem estão colaborando.
O teste padronizado constrói o conhecimento como uma mercadoria ou
um bem de consumo, e a atuação do conhecimento como um ato de
competição, sendo ambos completamente irrelevantes aos objetivos da
educação, e amplamente perniciosos em seus resultados. O aparato do teste
padronizado é, exceto por seu possível valor como instrumento de pesquisa,
simplesmente um anacronismo opressivo, um puro instrumento de
colonização com nenhuma relevância educacional genuína. Em uma escola
reimaginada, a unidade de análise é o indivíduo, e os critérios para a análise
são a habilidade para se chegar aos objetivos. Assim sendo, todos os atos
de avaliação devem, em princípio, incluir a participação, de alguma forma,
daquele que é avaliado, todos os julgamentos avaliativos devem envolver
perspectivas múltiplas, toda avaliação deve ser conduzida na forma que é

162
A comunidade da infância

apropriada para o tipo de conhecimento envolvido, e o objetivo principal


de qualquer procedimento de avaliação deve ser capacitar aqueles sendo
avaliados para que apliquem eles próprios aqueles mesmos procedimentos
reflexivos e avaliativos. Não há razão, por exemplo, para não avaliar a
atuação na matemática usando critérios e métodos puramente
quantitativos, mas o mesmo algoritmo pelo qual a atuação de um estudante
é avaliada deve ser uma parte do próprio currículo de matemática, e seus
princípios implícitos de conhecimento e julgamento — neste caso, a
estatística — devem ser em algum ponto no currículo de matemática um
objeto da investigação filosófica. E se a avaliação não pode ser significativa,
que não haja nenhuma, exceto na forma que surge natural e
espontaneamente dos tipos de atividades cheias de propósito nas quais as
crianças estão engajadas.
A escola não tem mudado porque é a principal instituição para a
"sujeição" — a reprodução social de uma forma de subjetividade — para
as ideologias e economias hegemônicas modernas, e assim sendo nunca
mudará meramente através da introdução de novas técnicas ou tecnologias
ou metodologias, mas somente através de um acesso a uma nova forma de
experiência vivida — isto é, novas formas de subjetividade, e assim formas
de relações humanas reorganizadas — que depende, por sua vez, de novas
formas de subjetividade. A questão da causalidade na transformação ou
evolução histórica da subjetividade é discutível porque é tanto circular
como sobredeterminada; mas se a subjetividade é construída em grande
medida através da relação adulto—criança, então deve-se perguntar, o que
entra neste sistema ou o que muda dentro do sistema para que se mude o
seu ciclo de reprodução e como se dá esta mudança? Onde está o caminho,
não importa quão tortuoso seja, que vai de uma repressão excessiva a uma
ordem não repressiva? A escola da terceira maneira é um lugar para se
começar a procurá-lo.

163
7. A PARTIR DE ESPAÇO SIDERAL E DO OUTRO LADO DA RUA:
A DUPLA VISÃO DE MATTHEW LIPMAN

Lipman escreveu tarde sua autobiografia173 — muito tarde para um


homem que estava correndo contra a doença que vinha devorando sua
memória e sua formidável capacidade discursiva. A doença de Parkinson é
de uma crueldade suave e implacável; ela trabalha lenta, mas
definitivamente, ao destruir os neurônios como um apagador ao passar
sobre um quadro-negro repleto. Mas talvez este processo de apagamento
também revele algo inscrito mais profundamente, pois há uma vivacidade
de proximidade em suas primeiras lembranças, como se todos os afetos
ainda estivessem presentes. E, já no final, todos o notavam, a luz de seus
olhos e seu sorriso — que aparecem nas fotografias de seus últimos anos
como uma claridade quase hiperativa — intensificaram-se e profundaram-
se num brilho firme e benevolente. Seus interlocutores sentiam como se ele

173
Todas as referências são de Matthew Lipman, A Life Teaching Thinking. Montclair, NJ: IAPC.
2008.

165
David Kennedy

não se dirigisse pessoalmente a eles, elevando seu olhar para algum lugar
além dele mesmo, mas que era inteiramente ele, que era seu corpo, suas
células.
Sua primeira lembrança tem a ver com a exploração da possibilidade
humana de voar. Ele não tinha ainda dois anos. Ele está em pé, no alto da
escada, olhando fixamente para o pouso abaixo:

A escada tem um tapete e no pouso há uma estante de livros com uma


porta de vidro. Paro com os pés na beira do degrau. Deslizo um pouco um
pé para fora. Agora começo a deslizar o outro. Com uma mão no corredor,
avanço novamente para adiante. Tento manter o equilíbrio, mas de repente
estou caindo para frente pelos degraus, chorando frustrado. Meu
experimento não tinha dado certo! Eu não voei! Quando meu pai chegou
em casa para o jantar, minha mãe lhe mostrou a porta da estante quebrada
— um acaso da minha queda. Minha mãe ralha comigo, meu pai conserta
a porta... Várias noites eu tinha o mesmo tipo de sonho — voar pelos ares
no meu triciclo. No meu sonho todos me olham com admiração. (p. 1)

Após seu “incidente decisivo”, como ele o chama, o tema do voo


reaparece pelo menos quatro vezes em sua autobiografia, como um tema
musical em uma longa sinfonia que é a vida de cada pessoa, e cada variação
sucessiva aproxima tanto do amor quanto do medo de altura. Aos oito anos,
com frequência ele distrai a atenção de seu professor tentando subir por
uma janela do segundo andar para uma escada de incêndio. Adolescente,
na escola judaica, pula de uma sala de aula do primeiro andar, “batendo a
cabeça na esquadria da janela com um sonoro ‘CRACK’. Eu dei umas
risadinhas e corri para casa sem sofrer nenhum dano sério, mas o rabino
ficou furioso.” (p. 17) Na faculdade, sua carreira universitária é interrompida
pela “casa de horrores” chamada Segunda Guerra Mundial, aos dezoito anos
começa o treinamento básico e se encontra escalando uma ribanceira
íngreme na Carolina do Norte em fila indiana com outros soldados em
treinamento e atormentado pela “opção” de saltar de uma escarpa do
penhasco. Ele quer saltar, mas também está aterrorizado. Por um lado,

166
A comunidade da infância

pensa que se pular estaria ajudando seus companheiros, dos quais ele
vagarosamente fica para trás devido à angústia física. E, finalmente, como
a “última boa guerra” está terminando, ele, o escriturário e responsável pela
correspondência da sua companhia no exército, se encontra como um
turista no pináculo da catedral bávara de Ulm, querendo subir ao topo, que
o aterroriza, e novamente lutando com o desejo de pular.
A raiz dourada desses incidentes — em que o desejo de voar, após a
primeira frustração enquanto pequeno, converte-se em experiência do
medo, não só de cair, mas também de pular, como se ele fosse empurrado
por uma mão invisível para a morte — é um tema misterioso no relato de
Lipman sobre o começo de sua vida, que envolve uma profunda contradição.
Em cada caso ele diz “um aspecto complicado era minha tendência a
‘esquecer’ ou ‘reprimir’ ter escolhido ficar bem na beira de um lugar
elevado, de modo que, de fato, eu estava me desafiando ou me provocando
a me jogar”. E o fio conduz, com um surpreendente contratempo de
espelhismo e correspondência simbólica, à experiência da filosofia — mas
é a filosofia que o resolve. No final das contas, aos dois anos ele soube que
não podia voar, mas o desejo de voar persistiu como uma negação — como
um desejo de morte — até encontrar aquela nobre preocupação que, ele
acha, o leva às alturas sem o perigo de autoimolação. Quando vivia em
licença na Inglaterra durante o conflito, Lipman deparou-se com uma edição
da Ética de Spinoza em “uma pequena livraria de Londres”. Aos vinte e dois
anos, sua voracidade intelectual pelejou com ela e “quando finalmente
terminei, foi como se tivesse chegado ao topo de uma grande montanha, e
ao olhar para baixo visse o vale se espraiando em todas as direções.” (p.
79)
Mais tarde, Lipman conecta diretamente a experiência da leitura de
Spinoza à subida na catedral de Ulm, que de fato havia sido aterrorizante:
“A escada espiralada, cada vez mais estreita, ao redor da coluna central,

167
David Kennedy

enquanto que a abertura das janelas oprimia mais de perto à medida que
se subia” (p. 48); mas levado ao ápice pela Ética de Spinoza (amor Dei
intellectualis!), seu amor e medo de altura se transformou. Ele descobriu
que a filosofia tem ligação com os lugares altos porque permite ver ao
longe, e fazer filosofia é uma espécie de voo — sem queda, mas voando. É
o olho voando, a mente voando por sobre o mundo apreendido, provocado,
pelo que ele chama “conhecimento adequado”, o panóptico epistemológico,
a ruptura noética, o ponto arquimediano. “Eu estava magnetizado pela
ideia” escreve Lipman:

de que se pudesse achar, pelo menos teoricamente e com esforço e


paciência suficientes, o critério que entrelaçado com outro critério, que se
entrelaça com outro critério, até chegar ao ponto em que o mundo todo
pudesse ser explicado. Os seres humanos desde os gregos perseguiram este
critério. Não, ainda não chegamos à resposta, mas o processo de tentar
capturá-lo é intrigante, excitante, iluminador. (p. 59)

Mas a filosofia fez mais do que livrar Lipman do intrincado desejo de


morte. De fato, no espaço de poucas páginas da crônica de seu ingresso,
pós-guerra, como estudante na universidade de Columbia, abundam no seu
livro imagens, metáforas e exultações sobre sua entrada na estrada real da
filosofia. Ela lhe propiciou (“e até certo ponto”) o “entendimento objetivo
do mundo” que estava buscando. “Ela abriu minha visão das coisas” (p. 59),
diz ele, “foi como descobrir a câmera que produz fotografias muito mais
belas e claras do que qualquer coisa jamais vista” (p. 107). Foi “como
aprender a falar e a escrever numa língua diferente, era uma língua das
línguas” — não apenas a possibilidade de um ponto arquimediano, mas
uma Pedra de Roseta. Era o contentor para “várias formas lógicas que
podiam ser dissolvidas na língua que todos nós falamos”. (p. 60) Ela
também satisfez, ele confessa, seu lado de “ambição social” — era uma
maneira de “elevar a conversa”, recorrendo não só a juízos sobre um evento
artístico, mas exigindo critérios para aqueles juízos. Era uma forma de

168
A comunidade da infância

poder social que ele, sempre com a intenção idealista de “provocar uma
mudança real no mundo”, podia respeitar (p. 105).
Este é um amor de criança pela filosofia — sempre como se ele
acabasse de tê-la descoberto, sua beleza, seu poder e sua utilidade. Um de
seus primeiros usos foi fornecer um marco para a problemática posta pela
sua experiência juvenil da Segunda Guerra. Os elementos subjacentes, que
eu interpreto como binários, são: 1) a extraordinária crueldade, estupidez,
imoralidade, desperdício extravagante e a destrutividade maliciosa e gratuita
dos seres humanos na guerra, que inspirou nele “um horror interminável...
quanto à crueldade e à violência” e um ardente desprezo, geralmente
escondido, quanto à hipocrisia ignorante que a sanciona; e 2) o otimismo
extraordinário e a generosidade de uma geração e de uma nação que podia
reclamar os benefícios de ter vencido a única (como foi pensado) “guerra
justa” do século — o otimismo do império norte-americano em ascensão.
Ele havia deixado a casa dos pais muito jovem, em condições bem
determinadas pela Depressão, devido a uma falência financeira que não
tinha qualquer relação lógica com a inteligência, inventividade e tenacidade
do duro trabalho de seu pai (seu pai, tal como ele, foi um inventor) e sem
dinheiro para se matricular na universidade que queria: Columbia. Voltou
para casa no clima de euforia nacional com uma bolsa para Columbia,
através da lei G. I. Bill, para um doutorado que ele teria que fazer em cinco
anos, como o fez.
O primeiro elemento da problemática — a guerra e seus efeitos
posteriores — o levou a desejar “efetuar uma mudança real no mundo”,
viver o máximo possível para o “ato exemplar”, buscar aquela vida de
“princípios práticos” que ele identifica como sendo o patrimônio psicológico
de seu pai. Então, quando em 1952 casou-se — no Paris City Hall com uma
norte-americana afrodescendente, estudante como ele (“Eu me apaixonei
pela linda Wynona”) — ele (e ela) puderam ser considerados como tendo

169
David Kennedy

afirmado a recompensa da vitória sobre o fascismo. “Eu senti”, escreve ele,


“que de uma maneira ou de outra, mais cedo ou mais tarde, eu teria que
tomar a iniciativa e não esperar pelos outros para dar o exemplo do que
era preciso fazer.” (p. 80) O segundo elemento — que ele fornece no
contexto de uma oportunidade percebida como dramática, um tipo de
equivalente cultural dos “destroços da guerra” que, após tantas divagações
juvenis picarescas sobre o caótico e turbulento teatro global da guerra,
reforçou sua crença na própria capacidade, não só de sobreviver, mas de
vencer — foi a confiança na própria sorte.
Quando era uma criança pequena, ele estava preocupado em voar.
Durante a infância “Eu preferia brincar a estudar, e havia muitas
oportunidades para brincar” (p. 9) na pequena cidade de imigrantes judeus
russos de classe média, Woodbine, onde seu pai tinha uma loja de máquinas
até que a Depressão o levou à falência. Nos anos de escola secundária
“embora fosse o mais novo da minha turma, eu era o líder das travessuras”
(p. 7), e de fato, três semanas antes da formatura, foi expulso da escola no
último ano porque “Eu aprontava um pouco demais, e o diretor da escola,
Sr. Foley, interpretou meu comportamento como sendo tão pouco
cooperativo ao ponto de ser insolente”. (p. 29) Sua tia, influente na pequena
cidade e com quem ele estava morando temporariamente, conseguiu ajeitar
as coisas com o diretor a tempo de que o turbulento inconsequente
recebesse o diploma, mas com notas muito “inexpressivas” que lhe
impediram de ser aceito na Universidade de Rutgers. Então, aos vinte anos,
veio a interrupção para a guerra em solo estrangeiro, na qual participou
como simples escrivão da Companhia E, II Batalhão, Regimento de
Infantaria 14.
Lipman caracteriza-se a si próprio como sendo um “anti-herói” na
guerra — aquele que encontrou um lugar longe das balas voadoras e que,
a meio caminho do conflito, decidiu não carregar seu rifle de maneira

170
A comunidade da infância

alguma. Em vários pontos do relato de sua juventude ele se refere a si


mesmo como estoico, modesto, reservado, fleumático, tímido, inexperiente,
ingênuo, com traços de uma “autodestrutividade passiva”, cujos dotes
surpreendiam a ele mesmo e cujo sucesso foi sempre sentido como, pelo
menos em parte, não merecido. Sua poderosa capacidade analítica era
dirigida não só a si mesmo ou às suas relações, mas também ao mundo da
filosofia e da arte.
Dado o fato de como sua vida acabou transcorrendo, sugiro que a
autonarrativa de Lipman está organizada não só em torno de uma resposta
à problemática que ele colocou para si por ter participado da guerra, mas
de uma narrativa arquetípica maior, não de um anti-herói, mas do Herói
entrelaçada com a do Louco — pois estas duas figuras narrativas estão
frequentemente reunidas em interação. O Louco, exaustivamente
tematizado no Tarot, é, no folclore e nas histórias russas e alemães, dos
três filhos o mais novo, o que era o caso de Lipman. Com frequência, o
Herói ainda jovem tem uma doença, no caso de Lipman uma miopia
progressiva durante a infância, o que não o impediu de devorar os livros
de seus pais — ele “releu repetidas vezes” o conjunto de dez volumes de
Mark Twain e Edgar Allen Poe, leu cinco vezes The Education de Henry
Adams, e carregou uma bolsa de lona com seus livros prediletos e uma
máquina de escrever por toda Europa durante quatro anos.
O Herói se depara cedo com vicissitudes. A família de Lipman foi
ameaçada pelo embargo e pela falência e no meio de sua infância o pai
sofreu um infarto. No momento em que ele estava preparado para a
faculdade, a guerra estourou. O Louco apresenta-se com um entusiasmo
ilimitado, mas indefinido, e supera o perigo e o infortúnio por meio de uma
inocência pura e desajeitada e um bom coração. Ao se aventurar pelo
mundo para aprender as suas lições, desconhece as desventuras que
encontrará. O Herói desafia a sorte e a necessidade em busca de seu destino,

171
David Kennedy

que no final das contas está dentro dele. A busca de Lipman foi
exemplificada pela sua sede insaciável da “riqueza” de “experiências
preciosas” de poesia, romance, filosofia, música, arte, cursos acadêmicos e
amizades intelectuais. O Louco se encontra com reis, sempre de modo
pouco provável. Então Lipman, um jovem algo tímido com imenso
entusiasmo e uma gigantesca capacidade para o trabalho intelectual, ao
terminar a universidade recebe uma bolsa Fulbright de pós-doutorado, viaja
para Paris (ele conhece Wynona no barco, e eles se ligam imediatamente)
e encontra Madame Marc Chagall (o pintor não estava presente na ocasião).
Ela o convida para jantar “animadamente, numa família-estilo-Renoir”. Ele
deixou passar a oportunidade — “devido, eu refleti então, à minha timidez,
mais do que por falta de amizade pela família” — e, portanto, perdeu a
oportunidade de conhecer o eminente pintor. (p. 72) Ele conheceu Merleau-
Ponty, Bachelard e inúmeros outros artistas, poetas e intelectuais
proeminentes. Merleau-Ponty, que teve notícia de um de seus artigos, o
convidou para uma recepção em que o Louco, como Percival na casa do Rei
Pescador, conhece sua linda sobrinha, que, ele suspeita:

ter sido encarregada de me fazer sentir confortável na soirée. Parecia que


a noite perfeita se desenrolava justo diante de meus olhos e eu era incapaz
de lidar com isso. De repente, me senti envergonhado do meu francês
deficiente, das minhas roupas sovadas e amarrotadas. Eu queria
desesperadamente ficar e conversar mais um pouco, ou pelo menos saber,
de minha bela anfitriã, se poderia vê-la novamente. Mas tudo que consegui
fazer foi tartamudear uma desculpa esfarrapada e, a despeito de seus
esforços para que eu ficasse, fugi... Quando por fim eu estava diante de
uma situação em que a cultura que queria possuir se oferecia a mim, e até
mesmo ostentava sua beleza em frente dos meus olhos, eu não conseguia
fazer nada com polidez, engenho ou charme.

Após dois anos em Paris, o Herói — este modesto, profundamente


ambicioso jovem judeu intelectual do interior de Nova Jersey, filho de
imigrantes de princípios, cultos e inventivos, trabalha nos Estábulos de

172
A comunidade da infância

Áugias da academia na grande Nova Iorque durante uma década e meia e


em uma série de outras posições instáveis — Columbia College of
Pharmacy, Mannes School of Music, City College of New York e Brooklyn
College — escrevendo seu árduo trabalho de filosofia em estética, campo
no qual ele não se achava particularmente talentoso: “Eu não tinha muita
confiança em mim como filósofo tradicional.” Ele não aceitou a oferta da
Reed College e da Universidade de Arkansas. “Eu não queria deixar a
cidade”, ele explica, “pois me parecia duvidoso que um casamento interracial
pudesse florescer fora de Nova Iorque naquela época. Então,
gradativamente, as ofertas para sair da cidade desapareceram.” (p. 150)
Com o passar do tempo, ele conseguiu um cargo de professor
assistente no Departamento de Filosofia de Columbia College of Pharmacy,
que suplementou durante oito anos lecionando uma disciplina, Civilização
Contemporânea, no reputado curso de educação geral para graduandos,
além de um curso de lógica em vários lugares da cidade.
No momento de realizar seu sonho de assumir um cargo permanente
no Departamento de Filosofia de Columbia — o santuário de sua juventude,
lar do próprio John Dewey, autor da primeira obra filosófica que ele leu e
com o qual havia estabelecido uma tênue e acanhada amizade durante o
doutorado (ele enviou sua dissertação para Dewey) — prestes a alcançar o
sucesso para o qual havia trabalhado por tanto tempo, o Herói entra em
crise. Ele e Wynona moravam em Montclair, Nova Jersey, para onde se
mudaram quando ela lá conseguiu trabalho em uma escola secundária.
Obrigado a viajar diariamente para o trabalho pela necessidade de
dar outros cursos além do cargo em Columbia College of Pharmacy (“o
estresse de sair de Montclair dirigindo diariamente e a correria por vários
lugares da cidade, vagarosamente foi me desgastando”), além de assumir
uma nova responsabilidade com a família quando Wynona se envolveu na
política de Nova Jersey — ela viria a ser senadora pelo estado de Nova

173
David Kennedy

Jersey, cargo que assumiu durante trinta anos — e cada vez mais assediado
pela necessidade sempre presente de “fazer uma contribuição significativa
para o mundo” — quando então, com seu filho de três anos no carrinho,
escorregou em uma calçada com neve e quebrou o tornozelo.
Seu tornozelo foi imobilizado e ele precisou de muletas. Treinando
como usar as muletas perdeu o equilíbrio, caiu e lesionou a coluna. Passou
cinco dias no hospital onde leu O vermelho e o negro de Stendhal.
Capturado pelo “momento impressionante” em que o herói, Julian Sorel,
arrisca a vida ao segurar a mão de sua amada enquanto seu truculento
marido está sentado ao lado com um revólver, Lipman se deu conta de que:

eu também tenho que mudar de vida — não um pouquinho, mas mudá-la


completamente. É preciso entender que eu não estava desiludido com nada
— Wynona e eu íamos bem, eu dedicava todo o tempo livre que sobrava
ajudando-a nas suas campanhas, as crianças eram um deleite, e eu gostava
de dar minhas aulas em Nova Iorque. No entanto, estranhamente pensei
isso não pode continuar. Eu tenho que mudar de vida. Teria sido algo que
eu havia lido em Rilke, ou Camus ou Gide? Não importa. As coisas não
podiam continuar daquela maneira. Ou os sentidos da minha vida eram os
sentidos errados para mim ou minha vida não tinha qualquer sentido. Eu
estava infeliz com a minha felicidade. Continuei neuroticamente: tenho que
começar de novo. Mas o único novo começo que eu conseguia pensar era
fazer algo a mais (o que seria um aspecto negativo de um novo começo),
mas também algo diferente (o que seria o aspecto positivo de um novo
começo). (p. 98)

Isto é provavelmente o mais próximo que se poderia encontrar da


voz de Deus soando dentro de alguém que era um acadêmico secular da
grande Nova Iorque do pós-guerra. Mas Lipman — que na infância estava
“intelectualmente confortável” sem o sentido de divindade (que se funda na
mente das crianças pequenas pela noção de onisciência) e cujos pais
frequentavam a sinagoga “não apenas por que era o esperado, mas também
por que isto dava um toque de mistério e elegância às suas vidas” (p. 8)
— ao descrever sua grande virada, atribui suas referências à grande

174
A comunidade da infância

tradição existencialista europeia. No entanto, persiste a questão do que


exatamente o moveu a realizar este imperativo de “algo diferente” ao
elaborar uma confluência entre o currículo da escola básica e a pedagogia,
tão óbvia e original que, de um só golpe, constrói o marco para uma teoria
da educação radicalmente nova. A práxis educacional que surgiu da sua
iniciativa, com toda a sua aparente simplicidade, operacionaliza um ponto
de vista epistemológico pós-colonial em relação à infância e à criança, abala
o fundamento que sustenta a escola como um aparelho ideológico do
Estado, e empodera a sala de aula do ensino básico, por ele considerada o
primeiro espaço para a teoria e prática democrática.
Certamente a infância teve muitos interlocutores, conhecidos e
desconhecidos, na sala de aula e fora dela. Bronson Alcott, Tolstói, Kornei
Chukovsky, George Dennison, John Holt para nomear alguns, mas não
Peirce, nem Dewey em particular, não os mentores de Lipman: Meyer
Shapiro e Justus Buchler — não os seus heróis intelectuais. Onde em sua
vida estão os modelos para esta corajosa tarefa? Ao ser questionado sobre
seus predecessores, aqueles dos quais ele seria o herdeiro, Lipman não cita
linhagem alguma. Ele é o exemplo de um homem que cruza para outra
zona totalmente diferente — de acadêmico intelectual esteta e metafísico
um tanto abstruso, a radical inventor de currículos — e não só isso, mas
também protagonista incansável na proposição deste currículo. O
extraordinário entusiasmo e persistência empreendedora com que ele
escreveu, publicou, operacionalizou e difundiu sua invenção enganosamente
simples, são sinais de um esforço extremamente focado, de uma completude
de realização, do poder da ideia ou ideal de outra forma e comportamento,
que sugerem o Herói. Capturado pelo imperativo “Tenho que mudar a
minha vida!”, ele cozinhou em fogo lento, mexendo devagar, sua primeira
novela, Harry Stottlemeir’s Discovery, os dezessete capítulos foram escritos
em dezessete semanas, em uma mesinha que ele pôs no porão, ao mesmo

175
David Kennedy

tempo consciente e inconsciente, no calor da criação, de que o que ele


estava organizando em um livro infantil eram os principais elementos do
Curso 101 de Filosofia que durante anos havia ministrado para estudantes
universitários.
Decididamente, e mesmo marcadamente, Harry não é fantasia,
simplificação de ideias complexas, nem uma transposição não didática dos
“grandes filósofos”. Ele é de fato inteiramente composto de conversas entre
crianças. Nenhum nome de filósofo é mencionado e nenhuma terminologia
filosófica é utilizada. As crianças são “normais” — elas dão a impressão de
ser crianças de Queens ou Nova Jersey, crianças dos subúrbios das classes
média e baixa em meados dos anos 60, e se há referência ao lado sombrio
da vida de suas famílias, é de forma indireta. Isso é o que surpreende e
intriga no livro: as crianças podem ser “normais”, mas estão falando de
filosofia, e fazendo-a sem grandes palavras ou frases complicadas. Em outras
palavras, o anormal é que, apresentadas desta maneira, as conversas
pareçam inteiramente normais, até que se caia na conta de que elas de
modo algum o são, ou não precisam sê-lo. Aqui as crianças falam sobre a
mente e o corpo, sobre a beleza, a arte e a natureza, sobre religião, ciência,
sobre a própria investigação de modo crivelmente inacreditável, ou vice e
versa. O que Lipman inventou em seu porão suburbano foi uma nova forma
de novela filosófica, cujos tópicos foram escritos com o que ele chama “uma
linguagem de dupla função que pode ser compreendida pelos adultos em
um nível e compreendida pelas crianças, de certo modo, em um nível
diferente.” (p. 108) É uma novela que pode ser facilmente discutida por
adultos e crianças, e, portanto, representa uma ponte entre a infância e a
adultez, um espaço de conversa intergeracional. Ele inventou uma forma de
literatura filosófica.
Se ele tivesse feito apenas isso, então Harry Stottlemeier’s Discovery
teria sido apenas uma charmosa curiosidade da literatura ocidental, muito

176
A comunidade da infância

provavelmente esquecida. Mas a novela é o começo daquela mudança de


vida que ele chamou para si, e a primeira arma com a qual a iniciativa do
Herói avançou pelo terreno inflexível e perigoso da educação norte-
americana. Embora o estilo autobiográfico de Lipman seja modesto e
delicadamente irônico, mesmo assim se percebe uma inquietação no relato
de abandonar para sempre o prêmio acadêmico, o Departamento de
Filosofia de Columbia College, que naquele momento de sua crise estava à
mão. Em vez de isso, ele aceita trabalhar em escola normal bastante
provinciana, Montclair State College, pois havia a promessa de apoiar seu
projeto. Ele passou quase quarenta anos reunindo colaboradores e colegas
ao seu redor, escrevendo novelas e para cada uma escrevendo um manual,
que de fato são livros enormes de questões filosóficas, desenvolvendo uma
pedagogia pós-socrática para facilitar a conversa comunitária das novelas
em sala de aula (“Eu estava determinado a ser radicalmente inventivo... é
preciso uma nova pedagogia? Invente-a”) (p. 116), organizando projetos e
pesquisas piloto, iniciando, organizando e mantendo os programas atuais
de Filosofia para Crianças em escolas locais e nacionais, buscando e obtendo
subvenções, intercedendo junto a figuras influentes da educação e da
filosofia, escrevendo e editando vários volumes teóricos, fundando e
editando um periódico dedicado à Filosofia para Crianças, organizando
conferências, desenvolvendo programas acadêmicos, organizando cursos de
verão (cuja pedagogia é exatamente a utilizada com crianças, i.e., leitura e
discussão em grupo dos tópicos filosóficos das novelas como fazem as
crianças na sala de aula), recebendo estudantes e colaboradores de outros
países e procurando a Associação Americana de Filosofia, ano após ano,
para argumentar a favor de crianças fazendo filosofia, com filósofos
acadêmicos céticos e esnobes que, na maioria das vezes, faziam ouvidos
moucos.

177
David Kennedy

Ele foi adiante contínua e incansavelmente, passando os dez primeiros


anos em um trailer no campus e quando o projeto prosperou transferiu a
operação para uma pequena casa do outro lado do campus — Alderice
House, internacionalmente conhecida, sede central do Instituto para o
Progresso da Filosofia para Crianças, com sua cozinha, a gata Ellie que lá
morava (a qual Lipman observava, mimava e com ela conversava), sua sala
de seminário e alguns escritórios. Durante as décadas de 70, 80 e 90,
Alderice House foi um espaço comunitário acolhedor para receber o fluxo
contínuo de professores e alunos visitantes — filósofos, pedagogos e outros,
pelo menos metade deles de outros países — atraídos, como por uma
melodia invisível, pelas ideias de Lipman e pelo seu magnetismo pessoal.
Tinha-se a impressão que cada novo professor que chegava à porta de
Alderice House tinha a mesma luz no olhar e era guiado pela mesma
investigação, quaisquer que fossem as combinações destes três elementos:
filosofia, infância e educação.
Mas a questão biográfica persiste: por que crianças e filosofia? O que
o impulsionou à reconstrução radical da filosofia como diálogo, e ainda mais
diálogo entre crianças? O que o levou a escolher a infância como espaço
para a democratização radical da disciplina? Percebe-se em seu livro que,
com sua modéstia típica e de forma incompleta, ele se coloca a mesma
questão. Sua abordagem à questão é refinada, alusiva e ilusiva, como
convém a um filósofo refletindo tardiamente sobre a sua vida. Eis aqui um
acadêmico apaixonado que não tinha qualquer interesse particular em
psicologia, epistemologia genética, desenvolvimento cognitivo e análise
sistemática do pensamento das crianças, ou da história da educação, que
leva os seus interessados a um movimento que fornece não só insight, mas
também inúmeros dados para todos aqueles campos e ilumina o núcleo da
tradição progressiva em educação. Como afirmado com simplicidade e
eloquência em seu primeiro livro teórico sobre o assunto, Philosophy in the

178
A comunidade da infância

Classroom, ele sugere uma revolução na educação que substitui o objetivo


de “aprender” pelo objetivo de “significar.” Isso resulta em uma metodologia
de sala de aula — apelidada por ele de comunidade de investigação — que
operacionaliza a reivindicação de Freire de o diálogo como fulcro
fundamental da teoria e da prática pedagógicas. Ao ser aquele que
desenvolveu o trabalho de Dewey até o ponto em que seu pensamento
estivesse suficientemente focado para encontrar Freire, o trabalho de
Lipman representa a ponte metodológica entre os dois filósofos da educação
mais influentes do século XX.
O que o levou a fazer isso? Foi a fascinação provocada pelos encontros
com crianças pequenas — por exemplo, com a garotinha de dois anos no
Jardim de Luxembourg — onde ele com frequência passeava, sentava, lia e
ouvia escondido durante “dois anos maravilhosos de aventura” em Paris —
que, quando seus pais pediram que ela se escondesse, (“Cache-toi, eles lhe
disseram”) ela fechou os olhos bem apertado? (p. 70) Foi a preocupação
com a educação de seus filhos que, diz ele, ocupou “uma parte considerável
do meu pensamento” no início e meados dos anos 60? Foi ter lido
Reflections on Little Rock de Hannah Arendt que “primeiro me mobilizou
profundamente quanto à questão dos direitos à educação”? (p. 94) Ou suas
conversas com o eminente esteta Rudolph Arnheim sobre a arte infantil,
enquanto passeavam pelos bucólicos arredores de Sarah Laurence onde
ambos eram professores visitantes? Foi seu ensinar para crianças do
terceiro ano na escola dominical da igreja unitariana de Montclair que ele
frequentava com sua família birracial? Foi seu encontro com uma exposição
de arte das crianças da escola Summerhill que ele visitou no Museu de Arte
Moderna de Nova Iorque no final dos anos 60, quando seus olhos se
abriram para “uma profundidade do pensamento das crianças que eu não
pensava ser possível”, onde ele viu “o processo criativo delas como uma
forma de pensamento”, e pensou “Não poderia haver certos tópicos nos

179
David Kennedy

quais o pensamento das crianças se aproximasse ou mesmo excedesse o


pensamento dos adultos?” Ou, finalmente, os anos 60 — aquela época
torturante, retalhada, aterrorizada e repetidas vezes atônita com a violência
por todos os lados e experimentos sociais impetuosos, aquele período de
transformação cultural, em que a profunda angústia, raiva, insatisfação e
falta de sentido da cultura americana dominante não podia mais ser contida
pelo que pareciam forças repressivas esmagadoras — que nele geraram, à
medida que a década “andava torta e aos tropeços” (p. 107), uma resposta
para o seu próprio tempo repleta de sua “estranha confiança” e de seu
“otimismo crônico”? (p. 159)

Eu não podia deixar de refletir sobre tudo que pudesse ser uma
oportunidade, para transformações pedagógicas não por intermédio de
meias medidas microscópicas, mas medidas dramáticas e transversais que
afetassem não apenas os estudantes universitários de amanhã, mas também
os professores de depois de amanhã. O que era preciso, pensei, era uma
educação que tornasse as crianças mais razoáveis e mais capacitadas para
exercer bons juízos. (p. 107)

Talvez fosse uma percepção, no caldeirão em lume brando que foi a


década de 60, de que a repressão do afeto, da criatividade, da consciência
social e do pensamento autônomo —que se anunciava claramente por
todos os lados ao seu redor e que subitamente se tornara alarmante e até
mesmo grotesca na nova era pós-colonial — seria de algum modo mantida
por meio da sua capacidade de enganar as crianças, a todos certamente,
mas as crianças antes de tudo.
Nesta primeira fase do que retrospectivamente parece quase um
processo alquímico, Lipman foi demovido de suas tendências “gradativas” e
de “melhoramento” em relação às reformas educacionais, pelos cáusticos
eventos das insurreições estudantis em 1968. Eles o levaram à convicção de
que um “plano inteiramente novo, uma prática inteiramente nova, uma
teoria inteiramente nova — tudo isso teria que ser planejado e posto em

180
A comunidade da infância

ação virtualmente naquele instante”. Ele estava “profundamente tocado”,


dizia, “pela forma como as crianças sofrem, e quão pouco elas podem fazer
a esse respeito”. Ele conta que começou a “ver a importância da liberdade
de investigação, não apenas para os professores, mas também para as
crianças. Os direitos acadêmicos que os estudantes universitários gozavam
não se estendiam às crianças nas escolas, e eu estava me dando conta do
quanto era necessário algo deste tipo. O que pode ser feito, me perguntei,
para ajudar as crianças não simplesmente a pensar, mas a pensar por elas
mesmas?”
Em outras palavras, o que motivou Lipman não foi só a isca da
curiosidade epistemológica das crianças e sua capacidade para o jogo, mas
uma preocupação genuinamente política. Um grão de ativismo democrático
se esconde no que parece ser a atividade meramente acadêmica da P4C
(filosofia com crianças) e está nela desde que era uma ideia na mente de
seu idealizador — na realidade, este radicalismo implícito brilhava nos
olhos daqueles que acudiam à Alderice House. O Herói sentiu necessidade
de “contribuir”, fazer alguma coisa “radical” que, somada à percepção de
que as crianças eram uma classe oprimida e marginalizada, o levou a um
processo de construção e reconstrução que “Eu não tinha a menor dúvida...
tinha que ser radical.” (p. 112) “A educação teria que significar algo novo e
diferente, e o lugar para começar não poderia ser o mundo adulto — o
mestre, o professor ou os pais — pois nenhum destes estava a pedir uma
luta. Ela teria que vir do questionamento da base do sistema social, a
criança... (p. 110) Ele teria que inventar um currículo e uma pedagogia
voltados a proteger as crianças “contra a ambiguidade e a imprecisão na
sala de aula, uma vez que isso poderia protegê-las da manipulação da
propaganda e da publicidade” (p. 108) e desse modo municiá-las com as
ferramentas necessárias para reconstruir sua relação com o mundo adulto,
e mais tarde, o mundo adulto em si mesmo.

181
David Kennedy

O projeto alquímico de Lipman se orientou frutiferamente em quatro


direções: a prática de filosofia para crianças, por ele inventada e que
espontaneamente coloca um desafio, tão impressionante quanto há
duzentos anos foi o de Rousseau, para um segundo campo, a filosofia da
educação. Em terceiro lugar, conduziu a um campo teórico da chamada
filosofia da infância, no qual a prática da filosofia para crianças é um tipo
de ação-meditação, estimulando os adultos a refletirem sobre as diferença
e semelhanças entre crianças e adultos, no mesmo tempo e no mesmo
espaço discursivo. Embora a filosofia da infância há muito estivesse presente
na crítica literária e em alguns temas da fenomenologia (durante seu idílico
pós-doutorado em Paris, Lipman assistiu na Sorbonne uma ou duas
conferências de Merleau-Ponty sobre psicologia da criança), a filosofia da
educação de Lipman forçou um encontro com a filosofia da infância que
contornou aquelas disciplinas — psicologia do desenvolvimento cognitivo
e sociologia — há muito mantidas numa escravidão positivista. Finalmente,
sua prática também desafiou de modo implícito as filosofias da criança,
paradigmaticamente representadas pela obra de Piaget, The Child’s
Conception of the World, que concebe a epistemologia da infância como
evidência de várias teorias genéticas e epigenéticas baseadas no
desenvolvimento cognitivo por estágios, das quais a mais amplamente
conhecida é a Teoria da Recapitulação.
A filosofia da infância aparece pela primeira vez em uma coleção
fascinante de ensaios e textos históricos reunidos em uma edição especial
de Thinking: The Journal of Philosophy for Children, periódico que ele
fundou e manteve pessoalmente por quase trinta anos, e que quase não é
mencionado no livro. Ao longo de sua carreira, Lipman deixou a cargo de
Gareth Matthews, professor de filosofia da Universidade de Massachusetts,
a articulação da perspectiva filosófica da criança que ele assumiu, e se
concentrou realmente na prática de escrever para crianças e, nos seus textos

182
A comunidade da infância

teóricos, defender a presença da filosofia no currículo regular do ensino


básico. Matthews, desde o ponto de vista filosófico, tentou articular uma
crítica à perspectiva piagetiana, que dominava as instituições educativas,
segundo a qual a criança não raciocinava; procurou argumentar que as
crianças como pensadores morais, o que Kohlberg, o discípulo intelectual
de Piaget, refutara por meio de uma teoria excessivamente simplista dos
estágios do desenvolvimento; e oferecer claras evidências da curiosidade
epistemológica e metafísica das crianças.
As lembranças de Lipman de sua própria infância, fragmentárias e
modestamente apresentadas, têm a vividez de “lembranças encobridoras”,
no sentido pós-freudiano de serem símbolos de todas as profundidades da
experiência infantil — incidentes contendo todo um mundo de experiências
primevas.
De maneira resumida e lacónica, ele evoca o mundo sem restrições
da pequena cidade: as brincadeiras infantis fora de casa, não vigiadas e
quase que ininterruptas (agora consideradas um idílio reservado às gerações
passadas) e nos dá uma visão infantil de energia prometéica da loja de
máquinas de seu pai, onde ele adorava ficar depois das aulas. Lá havia “Um
enorme e poderoso motor elétrico na altura do teto e rodas, que eram
conectadas por meio de tiras de couro às máquinas individuais” e a jovem
criança “nunca se cansava de olhar os pedacinhos enroscados de metal azuis
e quentes rodopiando para fora daquelas máquinas de cortar e afiar” ou de
maravilhar-se com as “impressionantes manobras” de seu pai — que em
casa era gentil e bem humorado — trabalhando na forja, “aquecendo um
pedaço de metal e depois curvando-o e dando-lhe forma na bigorna com
sua pesada marreta”.
Ao ler estes serenos e brilhantes fragmentos de lembranças, é difícil
não sentir, dado o que se seguiu, que o amor de Lipman pela filosofia, que
ao final de sua adolescência o guiou como um canto de sereia, se baseia, ao

183
David Kennedy

menos em parte, em seu potencial de conservar a infância. Talvez o que ele


chama “via estranha” (p. 23) da filosofia tenha sido para Lipman — como
Rilke disse em relação aos artistas — uma maneira de continuar criança,
no sentido de estar sempre perto de um começo ou começando e
recomeçando, uma vocação que se traduz em amor pela investigação, nunca
presumindo seu fim — além de, como muitas crianças, ser de certo modo
perseguido pelo espanto. A infância é também a representação da unidade
de ser e existência — da capacidade de agir que Lipman demonstrou de
maneira paradigmática no início e na consumação de seu trabalho. Uma
vez a tarefa posta, o Herói trabalha inteiramente orientado por aquela ideia
fixa, com total dedicação, como se aquele trabalho fosse inseparável do seu
brincar. Em Lipman, o princípio de praticidade que admirava no pai e por
ele adotado como seu próprio modus vivendi assume a forma exemplar. A
“pureza de vontade”, diz Kierkegaard, é “querer uma só coisa”. A infância
faz isso tão sem esforço como parece tê-lo feito Lipman.
Há outras dimensões narrativas nesse livro de esquetes, anedotas
intrigantes e meditações de autoquestionamento que convidam a um olhar
especulativo — por exemplo, narrativas de questões raciais, étnicas e de
classe de uma pequena cidade de judeus imigrantes ao sul de Nova Jersey
que ele rememora. Mais misteriosas e, sem dúvidas, mais difíceis de
interpretar são as súbitas e momentâneas divagações juvenis sobre
mulheres “especiais” em meio ao teatro global da guerra. Essas também
têm as qualidades de “lembranças encobridoras”, que aparecem com uma
claridade arquetípica surpreendente, cada breve encontro provocando uma
cuidadosa contenção que só aumenta sua força romântica. Por exemplo,
durante seus primeiros meses no exército, em um acampamento em uma
montanha na Califórnia, pegou uma carona até Los Angeles, na qual
entabulou “uma conversa estimulante com a charmosa mulher que dirigia
durante o longo percurso.” (p. 26) Num outro fim de semana em Los

184
A comunidade da infância

Angeles, ao voltar para o acampamento, tomou o ônibus em vez de pegar


carona:

Cheguei cedo para pegar o ônibus, eu era o primeiro de uma pequena fila,
e tinha escolhido meu assento, no meio do ônibus, junto à janela. Logo
depois, entrou uma moça extremamente atraente que teria mais ou menos
a minha idade (20). Ela esperou um pouco para ver quais os assentos livres
e veio sentar-se ao meu lado. Eu havia tido muitas experiências atestando
a hospitalidade californiana, mas aquilo superou todas as expectativas.
Quase que imediatamente nos viramos um para o outro e começamos a
conversar. Ela me disse que desceria em Santa Barbara. Eu não disse nada,
mas quando o ônibus parou em Santa Barbara, fiquei pensando no que
teria acontecido se eu tivesse descido com ela e transgredido meu período
de licença. (p. 26)

Essas mulheres continuaram aparecendo durante os anos de guerra,


cada uma das quais parecia ter sido enviada para intimidar o cortês Percival
advertindo-o com uma misteriosa visita. Por exemplo, nas últimas semanas
da guerra, estando aquartelado em uma pequena cidade alemã:

Encontrei uma jovem mulher que me fitava e ela me perguntou se


poderíamos conversar. Levou-me à sua casa e me mostrou uma fotografia
de seu marido, eu parecia quase idêntico a ele. Ela não sabia dele há alguns
anos: ele era soldado no front oriental e ela estava profundamente abalada
pela experiência de ter me visto. Se as nossas ordens não tivessem mudado
repentinamente e tivéssemos de nos mudar, eu gostaria de ter ficado mais
algum tempo. Antes de partir, olhei novamente a fotografia. A semelhança
de fato era impressionante. Talvez ele tenha voltado para casa, para sua
atraente mulher e seus filhos e neste momento esteja escrevendo suas
memórias.

Talvez, de algum modo, esses fragmentos sejam breves evocações da


economia erótica dos tempos de guerra. Quando a distância entre a vida e
a morte é pequena, a desconfiança natural entre os sexos igualmente
diminui. Na autobiografia como narrativa mítica, sugere-se o aparecimento
de Deusas — a Musa — ao predestinado, o de olhos cheios de estrelas, o
Louco que será transformado em Herói por meio da unificação da sua

185
David Kennedy

vontade. Dado o secularismo obstinado de Lipman, sua insistência na


navalha de Ockham em todas as situações, elas são oferecidas com uma
aura de fatualidade que cria um contraste surpreendente. Se elas são tão
fáticas, por que seriam lembradas tão vividamente, ou sequer lembradas
sessenta anos depois?
Igualmente característicos são os relatos circunspectos sobre seus
sombrios desejos e recusas. Ele conta que, em 1950, estava em um “período
sombrio” exacerbado pelo advento da guerra (da Coréia) que, pensava ele,
os Estados Unidos não deveriam ter travado, em conjunção com uma
“desastrosa” defesa da tese de doutorado (leia-se ele foi atacado pela banca),
Lipman reescreveu tudo novamente, quando somente lhe havia sido pedido
que revisasse a introdução. Tendo perdido o respeito pela banca, entregou
o trabalho revisado na biblioteca de Columbia sem sequer informar ao seu
orientador. Mais tarde, seu orientador o parou no corredor e se desculpou,
e Dewey lhe escreveu uma nota de consolo: “Nunca me pareceu correto
fazer uso das opiniões dos avaliadores como medida do trabalho do aluno.”
Durante esse período, diz ele, teve uma “série de encontros com uma
mulher, nada admiráveis.” Se algum tema os caracteriza seria algo como
surtos de irritação, uma súbita descoberta do negativo, que talvez seja o
lado sombrio da energia implícita na unidade da vontade, o trabalho
inflexível e tenaz sobre sua vocação que também o caracteriza. De fato, ele
conta ao longo do livro ter sentido momentos de rebeldia, arrogância e
antirrealismo insolente e até mesmo certo grau de crueldade ou indiferença.
Num incidente que Lipman relata, “havia estabelecido uma amizade
agradável com uma moça que também era aluna de graduação de filosofia”.
Ela tinha decidido se casar com um estudante de direito que ela pensava
ser capaz de lhe garantir uma segurança econômica que Lipman não podia.
Lipman argumentou repetidas vezes com ela a partir de boas razões
(aparentemente, não de seu próprio desejo), ela acabou por mudar de ideia

186
A comunidade da infância

e terminou o noivado, e ele então bruscamente lhe informou “não quero


mais continuar nossa relação.” Outro incidente, quando estava trabalhando
na livraria de Columbia:

onde eu passava várias horas conversando com uma funcionária muito


atraente, estudante de antropologia, como seu namorado. Penso que invejei
o relacionamento seguro e estável deles, porque me lembro de ela dizer
que gostava de Prokofiev, então eu lhe enviei uma gravação de seu concerto
para violino sem indicar o remetente. Quando ela me perguntou se havia
sido eu quem o enviara, prontamente respondi que não tinha nada a ver
com aquilo. Penso que o prazer que tirei daquilo foi que em suas
especulações ela pensasse ter um admirador secreto. No outono de 1950,
que eu estava passando na França com a bolsa Fullbright, ela me enviou
uma carta amável e lhe eu respondi resmungando como um velho urso. Ela
nunca me havia feito nada de mal, e minha impertinência foi totalmente
imerecida. (p. 64)

Esses incidentes têm uma aura de inexperiência juvenil — as pelejas,


golpes, colisões e contra-ataques entre sexos, involuntariamente conduzidas
pelo desejo, do mundo social de Ivy League dos anos vinte e alguma coisa.
É possível perguntar-se, então, por que eles marcaram tanto sua memória
a ponto de serem tema de uma confissão tardia, quando seu relato dos
trinta anos de relação com sua mulher, Wynona, é tão breve e comedido.
Wynona tornou-se senadora pelo estado de Nova Jersey, o que exigiu sua
mudança para Newark e Lipman permaneceu em Montclair para “atender
à minha própria carreira.” (p. 126) Nenhum dos dois pensou nisso como
uma separação, apenas uma inconveniência temporária. Mas “após algum
tempo”, Wynona “resolveu colocar ordem na nossa relação; ela decidiu pedir
o divórcio.” De início, ele ficou “chocado.” “Uma decisão como esta, refleti,
eu não teria conseguido tomar. Mas, por fim, concluí que ela deveria ter
pensado que o divórcio seria para o bem de ambos. É concebível, e mesmo
provável, que ela o tenha feito isso por minha causa.” A relação deles se

187
David Kennedy

manteve “amistosa e afetuosa, uma relação que nós, bem ou mal,


considerávamos ‘esperada’ entre acadêmicos.” (p. 126)
A neutralidade cuidadosa dessa descrição — do ponto de vista
afetivo, o tom é de quem, infelizmente, e não por sua culpa, tivesse perdido
o trem — é por si mesma sugestiva. Lipman era o primeiro a chegar e o
último a sair de Alderice House, e era conhecido por se sentir como um
peixe fora d’água nas situações em que o coleguismo descambava para uma
sociabilidade mais irrestrita. Assim, seria fácil interpretar este momento -
1972, em que ele estava lançando o projeto que virtualmente viria ocupá-lo
nos próximos quarenta anos -, como o encerramento de sua vida social e
erótica em favor da vida profissional. Mas, neste exato momento, 1972, o
Herói encontra sua alma gêmea, com quem muitos anos depois se casa,
uma estudante trinta anos mais jovem do que ele chamada Theresa:

... Ela era... visivelmente alegre, radiante e saudável... Eu nunca havia


encontrado antes alguém como Teri. Na presença de uma ideia filosófica,
seu rosto brilhava... Foi minha primeira experiência com tal radiância,
produto, creio eu, da alegria e insight espiritual ... profunda amizade ... que
eventualmente se desenvolveu como um amor simples e puro... e todos
aqueles anos que pareciam nos separar, a diferença de idade provou ser
insignificante e o casamento continuou sendo uma grande felicidade e
completude para nós durante muitos anos.

Não se pode evitar especular que Lipman, na história de sua própria


narrativa erótica, tivesse reencontrado a moça do ônibus de 1952 que ele
encontrou como o Louco, mas a qual, como um Herói, acabou por
encontrar e vencer sem ter transgredido sua licença. Seu casamento
intergeracional — ela tinha vinte anos e ele cinquenta — é tão exemplar
quanto o primeiro, interracial, mas o que ele exemplifica é mais ambíguo.
E o véu de obscuridade com que Lipman recobre sua vida privada através
de umas poucas frases sem interesse — “Nós nos tornamos ‘o casal do
campus’ e mais de um comentário no campus fez referência ao prazer de

188
A comunidade da infância

que ‘eles tivessem se encontrado’. Teri era um apoio também no meu


trabalho” — sugere um conto perigoso demais para ser contado, ou a pouca
atenção que dava à sua vida privada: um efeito colateral de ser, como ele
mesmo se descreve, um adicto ao trabalho que o levou a ser pego de
surpresa pelo pedido de divórcio de Wynona.
Lipman sobreviveu às duas esposas — Wynona faleceu de câncer e
Teri de uma overdose de remédios para dormir — e ele foi ficando com o
corpo e a discursividade, antes prodigiosa, progressivamente
comprometidos pela doença de Parkinson, cujo início ele relata no livro.
Estas memórias de fato foram escritas antes que fosse tarde demais, durante
horas, dias, semanas, meses e anos em que a gradual e devastadora
debilidade exigiu que o cuidado de seu corpo fosse confiado a pessoas
virtualmente estranhas — o que representa o último gesto do Herói. Então
ele embarcou em sua última Tarefa, a tarefa mais filosófica - a tarefa estóica
de manter seu “otimismo crônico” e que ele descreve, no fim do livro, como
sendo seu amor pela filosofia, e seu “amor [pelo] mundo que produziu algo
tão belo como a filosofia.” (p. 170) O tom das memórias de Lipman, modesto
e despojado, e mesmo seu título despretensioso, são as marcas de seu último
labor. “O que é grande”, escreveu Sêneca,

é uma alma inabalável, serena na adversidade, uma alma que aceita todos
os acontecimentos como se eles tivessem sido desejados ... O que é grande
é … lembrar que se é um homem; isto é, quando feliz dizendo para si
mesmo que não será feliz para sempre. O que é grande é ter a alma nos
lábios, pronta para partir; quando então se é livre, não das leis da cidade,
mas das leis da natureza. (Sêneca, Questões naturais)

Na mais ampla narrativa de sua vida, a determinação estóica de


Lipman diante da ferocidade da sentença sombria de Parkinson, está, para
mim, ligada ao momento do fim da guerra em que, podemos supor, foi
lançado o solo para a transformação do Louco em Herói. Em uma passagem,
em que ressoa a inteligência analítica e a determinação lacônica

189
David Kennedy

características de Lipman, ele narra a profunda mudança metafísica que o


fim da guerra lhe anunciou:

Para alguns veteranos, a guerra que eles experimentaram tinha em si certa


insularidade; outras lembranças mantiveram estes veteranos distantes da
guerra. É quase como se o tempo que eles serviram na guerra pertencesse,
ou de fato fosse, da vida de outra pessoa... Daí a relutância de vários
soldados em discutir suas vidas, pois esse é um período que podia ser
compartilhado com outros veteranos, mas dificilmente com mais alguém.
Para outros veteranos, a experiência dos tempos de guerra veio a ser um
momento definitivo em suas vidas. Toda realidade alegada teria que
inevitavelmente ser comparada àquela experiência. Para estes veteranos ou
a guerra era o critério de realidade ou então o critério da última irrealidade.
Sua autenticidade substituía todas as outras autenticidades; sua irrealidade
substituía todas as outras irrealidades.
Essas estão longe de serem as únicas possibilidades experimentadas pelos
veteranos. Houve, como é sabido, os céticos para os quais nada é crível, e
aqueles para os quais tudo parecia um sonho, inclusive os sonhos. Também
houve alguns que conceberam a realidade como uma questão de
intensidade, de tal modo que o real era qualquer coisa que evocasse horror,
terror, pesar e outras experiências igualmente extremas. Para mim parecia
haver algo de errado nessas posições e eu não podia deixar de concordar
como uma resposta alternativa à questão “O que é o real?” A resposta era:
“Tudo”. (p. 47)

É a “resposta alternativa” de Lipman - “Tudo” — que eu suponho


advir do encanto extraordinário por ele demonstrado sob a pressão dos
últimos anos de sua vida em seu quarto numa casa de idosos e que
representa a completude pessoal de uma promessa da filosofia: a promessa
de vir a ser livre “não pelas leis da cidade, mas das leis da natureza.” E
como tal foi seu ato exemplar final e supremo. Sua capacidade de fitar o
abismo, combinado à sua profunda generosidade — uma espécie de
piedade filial em larga escala — dirigida ao mundo inteiro e a todas as suas
espécies, repousa no final das contas sobre aquele amor à filosofia que o
cativou na adolescência e que o impulsionou adiante com o que ele chamou
“minha estranha confiança no que eu estava fazendo” (p. 113); um sentido

190
A comunidade da infância

de completa segurança, uma concentração focada que testemunha um


sentido mais amplo de destino, uma espécie de maestria por trás de si
mesmo na que ele sempre confiou implicitamente.
“Eu sinto pela filosofia”, escreve ele no último parágrafo de seu último
livro, “o que um astronauta deve sentir ao ver a Terra, toda verde, marrom
e azul, como é vista de uma estação espacial.” Ele então expressa a esperança
de que a filosofia para crianças “construa um mundo melhor e mais razoável
para que nele vivam nossas crianças e as crianças delas: um mundo que
pareça tão bonito desde o outro lado da rua como é desde o espaço
distante.” (p. 170) Lipman era fiel não só ao mundo, mas às suas mais altas
possibilidades. Suas memórias são um testemunho modesto de uma
trajetória de vida extraordinária e um exemplo de que o filósofo é alguém
com um tipo de dupla visão — vendo a vida desde o espaço sideral e desde
o outro lado da rua — isto é talvez a mais profunda vocação da filosofia.

191
8. AIÓN, KAIRÓS AND CHRÓNOS:
FRAGMENTOS DE UMA CONVERSA INFINDÁVEL
SOBRE INFÂNCIA, FILOSOFIA E EDUCAÇÃO

com Walter Kohan

Filosofia e educação
Esta conversa aconteceu em inglês em 2006, quando childhood &
philosophy tinha apenas um ano de idade. E foi publicada em finlandês,
como “AION”174.
Walter: Em seu maravilhoso fragmento 52, Heráclito diz, “Tempo (é)
uma criança brincando, seu poder175 é o de um menino”. Em grego existem
apenas algumas palavras nesse fragmento: aión país esti paízon, paídos he
basileíe. Aión é uma palavra de tempo, assim como são chrónos e kairós.
Em suas aplicações mais antigas, aión designa a intensidade do tempo na
vida humana — o destino, a duração, um movimento inumerável, não

174
In: Tuukka Tomperi; Hannu Juuso (eds.). Sokrates koulussa Itsenäisen ja yhteisöllisen ajattelun edistäminen
opetuksessa. Tampere: Niin & Näin, 2008, p. 130-155.
175
Nota de tradução: no original: “realm”, que também significa reino ou domínio.

193
David Kennedy

sucessivo, mas intenso176. Diferente de aión é chrónos que preside sobre a


continuidade do tempo sucessivo. Se aión é duração, Platão define chrónos
como “a imagem móvel de eternidade (aión) que se move de acordo com o
número” (Timão, 37d). Para os atenienses, tempo, como chrónos, só é
possível neste mundo imperfeito devido uma de suas mais imperfeitas
marcas: movimento. O mundo perfeito das ideias é aionico, anacrônico, sem
tempo crônico. Algumas décadas mais tarde, Aristóteles definiu chrónos
como “o número de movimentos de acordo com o ‘antes e depois’” Física
(IV, 220a). A terceira palavra de tempo é kairós, que significa ‘medida’,
‘proporção’ e, em relação a tempo, ‘tempo crítico’, ‘estação’,
‘oportunidade’177.
Vamos voltar para aión e Heráclito. Existe uma dupla relação afirmada
nesse fragmento: o tempo da infância e o poder da infância. A quarta
palavra do fragmento, a forma verbal paízon, significa a atividade de uma
criança. Algumas traduções dizem “brincando”, o que faz sentido, mas se
nós tivéssemos uma, nós poderíamos também utilizar uma palavra
denotando apenas o modo de ser criança, não necessariamente identificado
com brincar. A última palavra basileíe, é uma palavra de poder que significa
“reino”. Heráclito também usa uma forma dessa palavra (basileús) no
fragmento 53, como um atributo de pólemos, a guerra eterna. Finalmente
a palavra anterior, paídos, uma vez mais relacionada à criança, é um genitivo
possessivo, mostrando que tem a posse de, ou mais propriamente em aión.
O fragmento parece significar, entre outras coisas, que tempo —
tempo da vida — não é apenas uma questão de movimento numerável, e
que existe outra maneira de viver o tempo que poderia ser vista como um
modo infantil de ser, um que pertence a uma criança. Se uma lógica do

176
Liddell, Henry, Scott, Robert. A Greek English Lexicon. Oxford: Clarendon Press, 1966, p. 45.
177
Ibid., p. 859.

194
A comunidade da infância

tempo — a lógica de chrónos — se movimenta de acordo com o número,


outra — a de aión — move o numerável para uma dimensão inumerável
da existência. Em outras palavras, o fragmento sugere que, em relação ao
tempo, uma criança é mais poderosa do que qualquer outro ser. Se em
termos de chrónos uma criança está no início, em um primeiro, não
desenvolvido estágio de ser, em termos de aión, não há ser mais realizado
que uma criança.
Eu não estou lendo o fragmento de Heráclito desta forma com o
objetivo de sustentar uma concepção romântica ou idealista de crianças e
infância, mas, ao invés disso, para sugerir que o pressuposto inquestionado
de que a infância é o primeiro estágio do desenvolvimento humano, que
baseia a maioria dos discursos pedagógicos contemporâneos, teve seus
desafiadores desde tempos antigos.
O que é uma criança? O que é a infância? As duas perguntas podem
estar relacionadas, mas não são a mesma questão. Mantendo o fragmento
de Heráclito, se concordamos que uma criança é mais poderosa em termos
de aión do que de chrónos, então uma experiência de tempo não-
cronológica, aionica, emerge e, juntamente com um não-cronológico
conceito de infância: de acordo com isso, então, a infância pode muito bem
ser não apenas um período da vida, mas uma forma específica de
experiência na vida. Em outras palavras, infância parece ser uma
possibilidade, uma força, um vigor, uma intensidade, ao invés de um
período de tempo.
O que Heráclito sugere é que infância é algo relacionado a poder,
poder como uma forma de tempo e tempo como uma forma de poder. No
parágrafo anterior, eu introduzi algumas ideias relacionadas à natureza de
poder e tempo “infantil”. Neste contexto, infância não é um período de
tempo, mas uma experiência específica de tempo; e não, como é pensado
frequentemente, uma ausência de poder, mas um modo singular de praticar

195
David Kennedy

o poder. Além disso, quais os sentidos e significados dessas relações? Em


outras palavras, infância é um tempo para que? E poder para que? Ou a
questão de sentido e significado é uma questão não-infantil?
Eu vejo que neste último parágrafo meu próprio discurso mudou e
eu me encontro tendo entrado no tempo e poder do questionamento. E no
fim das contas, crianças são frequentemente associadas a perguntas. O link
parece ser direto. Ele é? Existe uma especial e intensa forma de discurso
associada à infância? Seria o questionamento a infância (dimensão aionica)
da linguagem? Seria a infância — etimologicamente, a carência de
linguagem, de fato não a carência, mas um poder específico da linguagem?
Ao invés da ausência de linguagem, seria a infância outra forma de
linguagem? Caso seja, qual é essa forma?
David: Eu diria que infância é a forma de linguagem que é a língua
feita pelo mundo. É a linguagem do Tolo, que imita a linguagem dos
pássaros, das árvores, das trovoadas e coisas como essas. Tolos de contos e
dramas, ele ou ela, que está na experiência da infância, vive em uma
condição de imediatismo psicológico que é perigosa para a construção
adulta de tempo e poder porque não retém nada, o que para os adultos
equivale ao estado de psicose. A linguagem de pássaros, árvores e trovoadas
é, em termos humanos, a linguagem do inconsciente, um código múltiplo,
polissêmico, a linguagem do desejo, o discurso do Todo, que é não-linear,
permanentemente anacrônico, o qual é completamente escondido porque
não tem nada a esconder. O código ontológico fundamental da natureza
em manifestação simples e expressiva. Não está na dupla relação de
significado que começa na idade adulta. Está e não está apontando para
alguma outra coisa. Está apontando para o que é, o que na dialética da
existência, é também aquilo que não é.
É claro que a linguagem da infância é imediatamente comprometida
e somos capazes de identificá-la apenas quando não existe mais, mas ela

196
A comunidade da infância

retorna em kairoi. A lei do pai, do pai tempo, chrónos, crucifica isso


eternamente. Momentos de êxtase — exstase — e todas as formas de jogos
profundos trazem à tona um domínio que escapa à Chrónos. O kairoi abre
o mundo dentro do espaço transitório da experiência estética: são
momentos de ruptura cronológica, no qual o binário de dentro/fora,
interno/externo, eu-pessoal, eu do outro é “tornado estranho”, isso é, no
qual seus limites tornam-se fluidos, negociáveis, reconstruíveis, no qual
descobrimos o quão limitada é a causa e efeito cronológico. A arte nos
ensina sobre esse espaço psicológico, como faz a experiência erótica e
experiências relacionais intensas, que podem ser desencadeadas por drogas
psicotrópicas e certas experiências de oração e meditação, assim como
sonhos e orgias selvagens ou experiências de estar no total deserto, etc.
Essa forma de descentralização através da experiência-limite transgressora
quebra a hierarquia hegemônica de uma forma ego-dominada da
subjetividade e abre um espaço para o projeto da grande intimidade e a
reconciliação da mente/corpo/mundo.
Mas eu vejo que esqueci sua questão sobre perguntas. Uma criança
realmente questiona? O que é uma pergunta? A pergunta de uma criança
difere do questionamento de um adulto? Existem questões na existência
aionica afinal? Uma pergunta não implica que algo pode ser diferente do
que é, o que implica movimento numerável, o que implica raciocínio e o
subjuntivo, divisão, distinção, o normativo, em resumo, o centro excluído
— enquanto para aión é apenas um mundo cantando, falando, respirando,
carne gloriosa do mundo, a qual é minha carne e sua carne também? Mas
pode ser que eu não tenha lhe entendido. Fale novamente, irmão.

Perguntas
“Uma criança que se disfarça como outro expressa sua mais profunda
verdade” Paul Ricoeur, Hermeneutics and the Human Sciences, John B.

197
David Kennedy

Thompson trans. and ed. (Cambridge: Cambridge University Press, 1981),


p. 187.

Walter: O que é uma pergunta? Isso é uma boa pergunta, mas


deveríamos exercitar a cautela aqui, isso soa como uma questão
característica da metafísica Socrático-Platônica que tem marcado a história
da chamada tradição Ocidental. Porque estamos interessados em perguntar
“o que”? O que estamos procurando? A natureza? A definição? A essência?
A ideia? E por que não estamos procurando pelo “quem” e o “para que”?
Em outras palavras, pode ser interessante não apenas focar no que é uma
pergunta, mas em quem está perguntando e do que o processo de
questionamento esta atrás. Isso implica que uma pergunta é interessante
não tanto pelo que é ou pode ser, mas por causa do movimento que pode
gerar no questionador e no questionado.
Deixe-me dar um exemplo. Algumas pessoas tentam encontrar
filosofia em tipos específicos de perguntas. Nós podemos até pensar em
alguns critérios de acordo com os quais identificamos uma pergunta como
filosófica — que seja “comum, central e contestadora”, por exemplo, como
Lipman e Sharp fazem. E podemos até identificar temas aos quais pensamos
que as perguntas filosóficas devem remeter, como amizade, verdade, o bom
e os chamados temas “eternos” da filosofia. Esta estratégia para filosofar
pode ser interessante, mas é aplicada apenas para filosofia como teoria,
conhecimento ou um sistema de pensamento, não é apropriado para
filosofia como experiência. Como conhecimento o que importa é uma
relação filosófica com perguntas, não importa o quão comuns, centrais e
contestáveis elas sejam. Uma experiência filosófica pode ser desencadeada
por uma pergunta aparentemente simples, concreta e ingênua, e uma
experiência não filosófica com uma pergunta aparentemente sofisticada.
Portanto, precisamos pensar sobre os propósitos pelos quais fazemos

198
A comunidade da infância

perguntas na filosofia como experiência, não importando o conteúdo destas.


Filosofia como experiência não é um conteúdo dado ou pensamento em si
mesmo, mas uma relação com outros e com nosso conhecimento e
pensamento. O mesmo poderia ser dito sobre perguntar: uma pergunta não
é filosófica em seu conteúdo, mas através de certa relação que é estabelecida
com a pergunta. Que tipo de relação? Bem, não é simples dizer, pois como
acabei de sugerir, perguntar não é um conteúdo, mas algo que permitimos
que a pergunta faça com nosso pensamento, as portas que nós a permitimos
abrir, os caminhos que nós a permitimos trilhar, assim uma pergunta pode
fazer o que espera-se que elas façam: perguntar! Isto significa colocar em
movimento algo que está fixo, dando vida a algo que está morto e assim
por diante. Como tal, não há coisa tal como perguntas filosóficas ou não-
filosóficas. Em vez disso, existem perguntas com as quais podem ser
estabelecidas relações filosóficas ou não-filosóficas, de tal forma que
perguntas aparentemente simples e inocentes podem desenvolver relações
filosóficas, enquanto perguntas aparentemente centrais ou importantes
podem não desenvolver nada. Obviamente não existem receitas certas ou
métodos para estabelecer uma relação filosófica com uma pergunta e
ninguém pode ensinar isso a ninguém, visto que experiência não pode ser
ensinada, apenas dividida.
Isso nos leva ao que você estava dizendo há pouco: “uma pergunta
implica que algo poderia ser outra coisa além do que é”. Neste sentido, o
que poderia ser outra coisa além do que ele ou ela é, é precisamente aquele
que está perguntando: em sua dimensão mais interessante, perguntar não
é um processo externo, algo que um faz ao outro, mas um auto-
questionamento (e é claro, nós não precisamos assumir o eu egocêntrico
que você estava criticando há pouco). Se fazemos uma pergunta e não nos
sentimos perturbados, tocados, movidos, descentrados por ela, parece que
estamos perdendo uma das mais interessantes e poderosas possibilidades

199
David Kennedy

da pergunta: a transformação que ela provoca. Se perguntar é filosófico —


eu estou tentado a dizer infantil — o questionador nunca vai ser o mesmo
uma vez que o processo da pergunta tenha início. O questionamento é
como a parteira da diferença.
Isso faz sentido, infância deve ser não apenas a atividade de
perguntar, mas um tipo especial de relação com as perguntas, que abre o
questionador para um movimento que ele ou ela não pode controlar nem
antecipar. Infância deve ser um tipo de experiência onde perguntar abre
experiências para não-experimentados, pensamento para os não-pensantes,
vida para os não-vividos.
Agora que eu li minha resposta para você, eu imagino porque comecei
a pensar sobre filosofia quando estava pensando sobre infância. De fato,
perguntas são tipicamente relacionadas à filosofia tanto quanto à infância.
Neste sentido, eu não gosto realmente do usual desprezo às respostas na
filosofia, como se elas não fossem importantes. De fato, a filosofia não tem
interesse para mim sem elas. Novamente não é uma questão de perguntas
ou respostas, mas de relação entre elas: uma espécie de dialética — para
usar uma palavra que você gosta — de perguntar e responder, onde
perguntar inaugura um movimento que clama por certas respostas e
perguntar inaugura um movimento que dá nova vida às perguntas. Filósofos
e criança, ambos perguntam e respondem.
Você acha que existe uma dialética específica filosófica e/ou infantil
de perguntar e responder? Se existe, como você a caracterizaria? Existe um
caminho comum na experiência filosófica e infantil de perguntar (e
responder)? Você deve estar tentado a me acusar de reformular suas
próprias perguntas. Eu vou reconhecer minha culpa com prazer, desde que
isso não o impeça de responder!
David: Nenhuma culpa é necessária, irmão — ou ainda, mesmo que
você seja culpado, nunca terá que pagar, pois não lembro de minhas

200
A comunidade da infância

perguntas desde que ouvi as suas, pois as suas as mudaram. E minha


resposta imediata é que o bebê, a jovem criança, até mesmo algumas
crianças mais velhas, assim como pintores, dançarinos, dramaturgos e
músicos, e provavelmente uma boa parte dos banqueiros, carpinteiros, etc.
perguntam com seus corpos — ou, mais precisamente, com suas mentes-
incorporadas/corpos-mentalizados. O bebê no berço tenta alcançar o celular
pendurado balançando sobre ele, não como uma apropriação, mas como
uma pergunta. Isto é que é interessante a respeito da noção de inteligência
“sensório motor” de Piaget e a sugestão de que é um tipo de interação com
o mundo, o qual é base para todas as futuras operações lógicas. Eu gosto
dessa ideia porque implanta lógica no corpo vivido.
Implícita na pergunta do bebê ou da jovem criança está, primeiro, a
liberdade em relação à mãe. Porque a mãe é o lugar onde todas as questões
já foram respondidas e mesmo que não tenham sido, isso não importa, pois
elas entraram no reino aionico do gozo, onde nenhum significado está
faltando. Então a primeira pergunta do bebê deve acompanhar o dramático
“Não!” dele ou dela para a mãe. Seu “Não!” para o pai chega depois, com
maior risco. A pergunta acompanha o momento de separação e, conforme
você sugeriu, auxilia no nascimento da diferença.
A pergunta é ainda o momento de desconstrução, de desmontar, que
está relacionado também ao fort-da, jogo da presença e ausência e à
outridade ou alteridade que acompanha a emergência da diferença. A jovem
criança constrói uma torre de blocos e tão essencial a essa experiência é o
momento em que ela derruba a torre. Nas mãos de ambos, criança e filósofo
a pergunta é uma ferramenta e às vezes uma arma, levantada contra a
máquina monolítica da lei. Como tal, é sempre transgressiva e desobediente,
mas é fiel da forma que uma simples recusa ou negação não é — leal à
possibilidade de reconstrução do que questiona e até mesmo à colaboração
com o que questiona em desenvolver uma resposta ao invés da substituição

201
David Kennedy

da pergunta. E é leal à diferença também, para isso abre uma fissura na


experiência que revela a discrepância radical entre o mundo e nossos mapas
do mundo. Isso nos lembra que não apenas o mundo poderia ser diferente,
como, de fato, é diferente — cada mapa cognitivo é diferente. Uma vez que
a criança ou o filósofo tenha feito a pergunta — uma pergunta genuína —
fica implicitamente entendido que há mais de uma resposta, pois há mais
de um mapa do mundo.
Ao invés de tentar pesquisar a forma como a criança e o filósofo são
o mesmo, eu preferiria pesquisar como cada pessoa humana em uma certa
maneira de pensar e falar é um filósofo e afirmar que, na medida que cada
pessoa é um filósofo, ele ou ela é uma criança. Indo mais longe, ele ou ela
voltou àquelas questões que são perguntadas com o corpo todo e que tem
sede do jogo de construção e reconstrução, e para quem o tempo é uma
criança brincando, i.e divertidamente construindo e reconstruindo o
mundo. E eu posso também dizer “artista” bem como “filósofo”, pois tanto
quanto o filósofo carrega para a adultez uma maneira infantil de questionar,
o artista carrega para a adultez um modo infantil de atuar no mundo, e
ambos agem para transformar o mundo. Mas ambos, devemos ser
lembrados pelas autoridades, são crianças “más”: eles fugiram do jardim (do
Éden) por fazerem uma pergunta e eles não podem voltar jamais — existem
anjos com espadas do costume e da lei e privilégio e hierarquia guardando
o portão. Para a “boa” criança, não existem perguntas ou apenas perguntas
catequéticas, que não são perguntas de todo. E adultos são boas crianças
se eles seguem a religião tomada em seu sentido mais amplo, o que significa
que eles renunciam às perguntas, eles as sacrificam pelo bem da ordem:
eles “crescem”. Eles lutam para manter o Mesmo, porque tem medo de
desordenar, o que a Diferença parece implicar. O problema é que a
desordem vem de qualquer forma, pois a diferença só pode ser suprimida

202
A comunidade da infância

através de assassinato em massa. É claro que houve e continua a ser repleto


disso.
Eu não estou — pelo menos penso que não estou — fugindo do
tópico aqui; que é, se queremos abordar em algum ponto deste diálogo, o
assunto da criança, do filósofo e da escola. Porque a escola — em meu país
de qualquer forma — é onde o Mesmo consolida seu aperto mortal e
sonâmbulo, onde as pessoas são ensinadas a evitar, até mesmo esmagar a
questão, quando a pergunta vem como um convidado bêbado, ou um
parente indesejado há tempos perdido, aquele que não foi convidado de
forma bastante incisiva para a celebração familiar, mas que inevitavelmente
aparece, como o retorno do reprimido. Se este é o caso, então quais são as
perspectivas para a filosofia, infância e educação? Mas leve isso aonde você
vai, meu irmão.

Educação
Walter: Eu vou levar isso aonde a pergunta me leva, em direção a
algum destino desconhecido. Pode ser que nós tenhamos que mover as
coisas adiante para encontrar um novo começo para filosofia, infância e
educação. Nós temos pensado na educação das crianças no padrão
Platônico, inspirada no modelo de educação dos guardiães em A República:
educação como formação dos recém-chegados ao mundo por aqueles que
já estão no mundo, a fim de alterar a ordem social para o Belo, o Bom e o
Justo. Infância tem sido tema de miríades políticas, estéticas e sonhos éticos
da república aristocrática de Platão (em seu sentido grego) para as nossas
sociedades democráticas contemporâneas.
Parece que precisamos de um novo começo para educação e infância.
Nós devemos olhar para a infância não como algo que deveria ser formado
e educado, mas como algo que forma a si mesmo, como na perspectiva
Romântica. Mas nós devemos ir mais adiante e considerar educação não

203
David Kennedy

como formação — não importando se a infância é formada ou formadora


— mas como um espaço de de-formação, um campo que permite a
afirmação da alteridade. Educação é um campo facilmente seduzido ou
intimidado por modas de um ou outro tipo. Palavras aparecem e de repente
saturam o discurso educacional como vírus de rápida proliferação, e
eventualmente elas começam a perder sentido. Tal é o caso — pelo menos
na América Latina — com termos como “criativo”, “crítico” e coisas do
gênero. Eles aparecem na maioria dos manifestos de reforma educacional,
juntamente com uma imagem de pensamento que é diretamente ligada a
“destrezas”, “habilidades” e “competências”. Em tempos como os nossos,
cansados como estamos de nossa obediência escrava aos interesses do
mercado e do capital, e da prevalência da competição, da docilidade,
consumismo e eficiência, essas palavras educacionais incômodas178 tornam-
se menos interessantes do que elas poderiam ser de outra forma. Em vez
disso, poderíamos muito bem criar espaços de incompetência,
desobediência e inabilidade para pensar o que deveria ser pensado, para
fazer o que deveria ser feito e para viver da forma que todos deveríamos
viver.
Eu não sei qual forma afirmativa esse tipo de educação levaria; na
verdade, eu não quero saber, porque exatamente na antecipação disso, nós
podemos estar inibindo algo extraordinário que isso poderia trazer, a exata
dimensão de seu poder subversivo. E, é claro, a questão mais mundana que
permanece é se alguma “outra” forma de educação — ou educação do
“outro” — é possível na escola moderna como conhecemos.
Por um lado é impressionante o quão diferentes parecem essas duas
abordagens da educação — tão opostas, tão estranhas, tão alheias, que uma
parece afirmar o que mata a outra. E eu não penso que nós precisamos

178
Nota de tradução: no original “buzz”, palavra que se refere ao barulho produzido por insetos

204
A comunidade da infância

considerar todos os detalhes da escolaridade contemporânea aqui, dada a


forte crítica já desenvolvida a partir de uma perspectiva Foucaultiana das
instituições educacionais como instrumentos de controle e disciplina. Não
é um problema nacional. Eu acho que foi o sociólogo de educação inglês
Basil Bernstein, quem salientou o quão surpreendentemente similares as
escolas parecem através do tempo e espaço. Eu gostaria apenas de sugerir
um pouco mais, o quão bem a escolaridade se adaptou às nossas sociedades
neocapitalistas globalizadas, dentro e fora de seus prédios modernos e
através das novas tecnologias e meios de comunicação de massa. Por outro
lado, uma escola é uma coleção de pessoas e nós nunca sabemos o que
pode emergir de onde seres humanos pensam juntos. Apesar de não parecer
estar emergindo nada promissor da escolaridade, quem sabe? Como
podemos ter tanta certeza de que é um caminho sem rumo? Em outras
palavras e para voltar à infância desta conversa, poderíamos ainda
perguntar: Uma escola aionica é realmente possível? Isso não seria uma
contradição, em termos? Pode parecer dessa forma, mas também pode ser
interessante questionar essa aparente contradição.
Se o que eu disse nos parágrafos anteriores faz sentido, ao invés de
procurar por uma nova forma de escolaridade para a infância, nós devemos
considerar a procura por uma nova infância da escolaridade, o que pode
muito bem significar a total inexistência de escolas. Ou não! Nós não
sabemos. Qualquer que seja o caso, nós devemos abrir instituições
educacionais onde possamos trabalhar — escolas, universidades, etc. — a
experiência transformadora sem antecipar seu ponto de chegada. Eu acho
que estamos novamente de volta ao poder.
Como você disse, infância é a linguagem do corpo. Eu ainda estou
encantado pela forma como você colocou isso em palavras “mãe é o lugar
onde todas as questões já foram respondidas”. A escola escolheu o corpo
como um lugar privilegiado para suas respostas, onde cada questão foi

205
David Kennedy

respondida pelo pai, o legislador, que é um tipo diferente, inquestionável.


Neste sentido a escola esta farta de totalitarismo e nosso maior desafio, no
meu ponto de vista, é dar espaço a maneiras não-totalitárias de lidar com
o outro, com o corpo do outro, que é, em um último sentido, nosso corpo.

Alegria — desejo
Ao mesmo tempo, devemos considerar a questão do fascismo. Neste
contexto eu penso que o conceito de alegria em um sentido de Spinoziano
e Deleuziano deve ajudar a nos inspirar: alegria como “tudo o que consiste
em preencher uma força” e seu oposto — tristeza o resultado de quando
alguém “é separado de uma força da qual ele ou ela acreditava ser capaz”.
Se nós queremos viver em um mundo cheio de alegria, se queremos
experiências alegres e experiências de alegria, se faz sentido viver para a
alegria, então devemos fazer algo a respeito daqueles espaços tristes onde
pessoas são impedidas de fazer aquilo que podem, de executar ou perceber
suas forças. Infelizmente, escolas são predominantemente lugares muito
tristes, apesar de muitas pessoas parecerem estar rindo dentro delas,
precisamente no sentido de que as pessoas parecem estar sistematicamente
impedidas de perceber e expandir suas forças. Esse impedimento
sistemático, que cria uma tristeza tão profunda na vida, não é apenas
totalitário, mas fascista. Sob meu ponto de vista, o principal desafio para
aqueles que pensam e trabalham em instituições educacionais é expulsar o
totalitarismo e o fascismo delas. Novamente eu não sei se isso é, de fato,
possível.
O que você pensa, irmão? Eu lhe levei para muito longe de onde você
estava pensando? Caso eu o tenha feito, traga-me de volta para algum outro
lugar. Não hesite em colocar em prática as forças do seu pensamento.
(sorrindo alegremente)

206
A comunidade da infância

David: Nós devemos perguntar, então, exatamente o que é a “força”


que você fala em um sentido Deluziano e Spinoziano e, uma vez que está
conectada aos nossos propósitos, que relação ela tem, se existe alguma, com
a infância e educação? Seu uso da palavra “alegria” levanta outra questão
— isso realmente tem uma relação necessária com a percepção da força?
Ou, colocado de forma ligeiramente diferente, não teriam os assassinos de
Columbine, para usar um entre uma miríade de exemplos, sentido “alegria”
enquanto executavam seu plano de massacre? Ou que tal sobre a “alegria”
daquele narcotraficante colombiano enquanto ele amorosamente cuida de
sua adorável família em sua casa enorme?
Walter: Eu não chamaria aquilo de alegria, uma vez que não preenche
qualquer força, pelo contrário, separa outros de suas forças, inibe a
realização do outro. Eu não vejo nenhuma alegria em qualquer forma de
imperialismo ou colonialismo.
David: Então a alegria da qual você fala é, na verdade, um fenômeno
coletivo e intersubjetivo. Este é um qualificador crucial, que torna o
conceito completamente ético. E, de fato, educação como uma força positiva
é — e aqui eu concordo com você absolutamente — sobre a realização
coletiva de um desejo, sobre aprender a entrar na “permanente revolução”
juntos, e a recolher habilidades para subverter as formas hegemônicas do
Mesmo social, sexual e econômico, sob as quais a maioria de nós está preso
como borboletas semi-mortas em um quadro de exposição. Mas é também
— e aqui deve ser reconhecido como Bildung — sobre a reconstrução do
desejo. Esta é uma reconstrução em curso e, da forma que vejo isso neste
exato momento, envolve principalmente a superação179, sublimação (ou
ambos) da agressão, ou o desejo morto, ou “antiprodução”, ou o “lado
negro”, ou como você preferir chamar. Eu não posso mais aceitar a sugestão

179
Nota de tradução: no original “sublation”, palavra em inglês que se refere ao termo alemão
Aufhebung, utilizado na filosofia de Hegel.

207
David Kennedy

de Sócrates de que o mal são apenas pessoas fazendo escolhas baseadas na


insuficiência de informação, ou atraídas um desejo imediato, mesmo que
ele esteja em conflito com seus desejos a longo prazo. Isso pode até ser
verdade em algum nível e em várias instâncias, mas não é o suficiente para
explicar a taxa de homicídios da espécie e os níveis de crueldade e
indiferença. E se um reclama que a taxa de homicídios, crueldade e
indiferença têm a ver com a sujeição e encerramento e impedimento do
desejo, com a “tristeza” da qual você fala, com o totalitarismo e o fascismo,
bem, nós não seremos entregues ao fascismo por aqueles amamentados por
seu leite envenenado. Deve haver uma atividade cultural mediadora que
ofereça a oportunidade de uma quebra na estrutura das coisas.
Eu sugeriria que como atividade prática, e especialmente quando
conduzida coletivamente, como diálogo comunal, filosofia é — entre outras
coisas, para ser preciso — exemplo desta atividade mediadora. Para usar
uma metáfora crua e vívida, filosofia é sobre o diálogo entre os três cérebros
da espécie humana: o “réptil”, ou tronco cerebral do instinto, o “mamífero”,
ou região límbica da emoção, e o córtex cerebral, ou “razão”. No modelo
Platônico, no qual três partes do mesmo — logistikós, epithymía e thymós
— correspondem bastante sugestivamente à tripartição cerebral, diálogo
não é uma possibilidade. Sem o controle estrito da “razão” e da classe
dominante que personifica isso, o inferno se abre. Agora nós percebemos
que esta é a economia do patriarcado e o complexo de Édipo, quintessência
de uma forma ocidental clássica de submissão e subjugação, a qual cria um
inferno com a intenção suprimir isso. Um novo modelo do eu, que já tem
nomes variados — “eu nômade”, o “sujeito em processo” ou o que eu
chamei de “inter-sujeito” — desconstrói a hierarquia Platônica e inicia o
“desejo produtivo” de Deleuze e Guattari, o qual eu entendo em um
sentindo muito amplo como a reconstrução em curso do desejo.

208
A comunidade da infância

Por que a filosofia comunal, dialógica — filosofia como um evento,


como agón colaborativo e jogo deliberado — é tão exemplar do desejo
produtivo? Porque filosofia é sobre o normativo — o córtex cerebral
procurando por regras e princípios e heurística — e o normativo é sobre
o que deve ser. O normativo é o mundo do como se, do mundo que não é
o que é, o qual implicitamente julga vai além do que é. O normativo é o
mundo do distintivamente humano — do animal de cérebro enorme,
criatura da neotenia, aquela que nunca para de crescer que está
continuamente refazendo a si mesma. Mas para escolaridade sob o
patriarcado (e eu percebo que nós já temos dois termos, totalitarismo e
fascismo, mas eu quero introduzir outro, sem saber exatamente a relação
semântica entre os três), o normativo é a Serpente no Jardim do Éden, que
sussurra (para a mulher), “a autoridade realmente diz isso, ou significa isso?
Isso não pode ser interpretado de maneira diferente?” Para o patriarcado
este é o primeiro princípio de Satã — questionar a autoridade — e isso é
tudo o que a filosofia faz.
A escola patriarcal está interessada em reprodução, não em
transformação, e em mudança quantitativa, não qualitativa (e.g. “A
economia precisa de mais pessoas com habilidades computacionais”). Ela é
também a principal instituição para a construção de um corpo dócil do
trabalhador — seja com as mãos ou mente — e para a libidinosa economia
da repressão excedente. Como outra Serpente em outro jardim paralelo, ela
diz para o animal de cérebro grande, “Não crie confusão, não questione,
não proponha alternativas, não siga o seu desejo, e as coisas irão muito
bem para você. Um bom carro está esperando por você, e uma casa e
abundância de alimentos, bebidas, viagens e entretenimento, incluindo
tanto prazer sensual quanto você puder suportar.”
Walter: Há algum tempo eu vi uma fotografia maravilhosa no jornal,
a qual é o perfeito exemplo dessa luta. Foi tirada durante uma destas

209
David Kennedy

manifestações em protesto contra o encontro do G8, em Gleneagles,


Escócia, e mostra uma mulher beijando o escudo de um policial. Ela estava
sorrindo, ele estava muito sério. Ela parecia muito forte, ele parecia
deprimido. Eu a vejo como uma metáfora da força da resistência, da rebelião
contra o Império, uma força cheia de alegria; e ele como a imagem deste
triste neocapitalismo, este poder repressivo, totalitário fascista.

Escolaridade e filosofia
David: Sim, é uma imagem interessante — especialmente uma vez
que o beijo é a linguagem do corpo, e é estranhamente ambivalente que a
mulher esteja beijando a arma concreta da opressão, o escudo. Em um nível
isso me faz lembrar um gesto de submissão e de profunda perversão —
beijar as botas do conquistador — mas aqui nós imediatamente o
reconhecemos como um gesto de poder: Com seu beijo, ela dissolve a
repressão, que é recolhida como uma força material do escudo. Mas vamos
imaginar que é com este policial que a Serpente está falando nesse Jardim
do Éden paralelo. “Não se iluda pensando que a chave para a felicidade
humana é outra que não a prosperidade universal. Todos os grandes
trabalhos de arte e todos os grandes sistemas de pensamento são
possibilitados por excedentes econômicos. E o excedente econômico vai ser
atingido apenas ao custo do sacrifício de determinadas classes e
determinados indivíduos em determinados períodos. Pode até ser você
quem precise ser sacrificado, mas eu estou certo que você aceitará seu
destino com dignidade e lealdade, visando a prosperidade universal, rumo
à qual o Mercado está vagarosamente, mas certamente nos guiando, e a paz
universal que é o objetivo do Império. E apenas no caso de você não estar
persuadido, deixa-me acrescentar isso: o tipo de liberdade e indeterminação
que você está imaginando vai libertar o lado negro humano. Na verdade, se
você apenas olhar ao seu redor, você vai ver que isso já começou”. E ao

210
A comunidade da infância

contrário do par no primeiro Jardim, o policial e sua Eva não saem. Eles
planejam mudanças quantitativas — aprovadas, é claro, pelo Chefe e
auxiliadas pro seus Anjos — no Jardim, conformado com seu sacrifício,
justificado, satisfeito com cada aparente suspensão da repressão — como
filmes de sexo explícito se tornando livremente disponíveis para o público
em geral, por exemplo. “Você vê?”, diz a Serpente, “você se submeteu ao
regime de repressão excedente a fim de criar abundância para todos, e
agora a repressão está suspensa. Agora você pode ter o seu bolo e comê-lo
também. Agora você confia em nós? Mas acima de tudo, evite a filosofia.”
Isso tudo é uma maneira um pouco pesada de dizer que a filosofia
representa uma ruptura em uma forma de escolaridade que está a serviço
do Império. Ela não pode ser apenas remendada. Mas eu não quero dizer
apenas filosofia, eu quero dizer filosofia como conversa e, ainda mais
especificamente, como diálogo. Nós parecemos concordar que as escolas
representam os elementos totalitários da cultura contemporânea, e
totalitarismos odeiam diálogo tanto quanto um gato odeia água, porque o
diálogo abre a dimensão normativa. Eu às vezes surpreendo um fraco
sentimento de escândalo — sempre tão fraco quanto um cheiro ruim
malmente perceptível — de alguns professores enquanto assistem crianças
fazendo filosofia. Ou isso, ou eles às vezes parecem considerar o fato
totalmente trivial, apenas um bate papo, sem a menor implicação
substantiva: o que de fato é apenas totalmente trivial e improdutivo se não
moralmente perigoso, sentar por ai e deliberar em conjunto sobre coisas
tais como pessoas e animais e subjetividade e justiça e beleza e
conhecimento e linguagem e mente e corpo e assim por diante — para não
mencionar a aplicação mais prática desses conceitos mais gerais em
conversas sobre mentiras e conflitos e o que é justo e amizade e assim por
diante.

211
David Kennedy

Crianças, por outro lado — algumas, é verdade, mais do que outras


— e também, é preciso acrescentar, vários professores, tanto jovens quanto
velhos — enxergam o ponto imediatamente: que é sobre a reconstrução do
desejo e que isso tem implicações imediatas para a reconstrução da escola.
Os dois não podem ser separados, visto que humanos são, como você diz,
orientados para “perceber e expandir suas forças” e a criança-adulta coletiva
da escola representa um planejamento ideal para este mais fundamental
projeto. Mas a educação totalitária diz às crianças, “Você nãos nos
reconstruir — isso seria contra Deus e a Natureza — em vez disso, nós
vamos reconstruir você — ou, mais especificamente, nós vamos reproduzir
nossa imagem em você, a imagem do Mesmo.” Portanto, eu posso apenas
concluir que a filosofia representa a melhor esperança para transformação
educacional e também o índice do fato de que esta transformação é
impossível — ou mais propriamente eu deveria dizer, incalculável.
Eu estou certo de que você percebeu que eu pareço estar emperrado
em um binário, no qual tudo desaba (sobre mim) da aporia apresentada
pela relação entre mudança quantitativa e qualitativa. A acumulação da
primeira eventualmente leva à segunda, como Marx sugeriu? Ou a segunda
é sempre a incalculável, a imprevisível, a incontrolável? Visto que filosofia
é sobre imaginar a reimaginar o eu, o outro e o mundo, pareceria que ela
se enquadra no domínio do qualitativo. Então, falando otimistamente
pareceria que a prática da comunidade de investigação filosófica nas escolas
representa a ruptura na estrutura hegemônica, um lugar por onde a luz
entra, onde a voz da criança é ouvida pela vez. Mas você mesmo tem sido
o primeiro a criticar até a santificada abordagem de Lipman à comunidade
de investigação filosófica como mera transmissão de habilidades e
socialização dentro de uma determinada consciência de classe — uma
posição com a qual eu não concordo inteiramente, mas a qual eu vejo como
bastante aplicável ao que pode ser feito com a abordagem de Lipman em

212
A comunidade da infância

escolas — maneiras como isso pode ser, por assim dizer, desarmado,
suprimido e expurgado com muito pouco esforço. Tudo o que é necessário
são pessoas praticando isso para fazer outra coisa — seja o “pensamento
crítico”, “esclarecimento de valores”, “educação moral” ou mesmo
“aprendizagem cooperativa” — enquanto protestam eles estão fazendo
filosofia, ou ao menos o mais próximos que eles podem chegar do que quer
que eles pensem que filosofia deve ser. E talvez isso nos traga de volta ao
entrono da primeira questão levantada por sua categorização de diferentes
tipos de temporalidade. Se a afinidade infantil com o tempo aionico faz dela
algo como um filósofo “natural”, chrónos faz do adulto exatamente o oposto,
por isso é só através de uma reapropriação da própria infância e de sua
forma de temporalidade, que o adulto se torna um filósofo. E quais
programas educacionais para professores podem trazer isso, visto que
foram programas educacionais, que de uma forma ou de outra lhes
causaram o esquecimento? Mas, eu escrevi demais, de volta para você,
irmão.
Walter: Sim, realmente parece que temos estado preocupados com o
quantitativo e o qualitativo desde o começo desta conversa. Afinal de contas,
chrónos é quantitativo enquanto aión é qualitativo; e também força e poder,
alegria e tristeza. Voltando a Heráclito, eu não acho que devemos nos livrar
das oposições se elas podem nos ajudar a pensar. Você mencionou Sócrates
e eu gostaria me fixar um pouco sobre essa figura. Sócrates é a imagem de
um “herói” nas chamadas filosofias democráticas ou progressivas da
educação, uma metáfora para o ensino não-diretivo, aberto, dialógico;
alguém que, enquanto reconhecedor de que não sabia nada, ajudou outras
a fazerem nascer seu próprio conhecimento. Esta imagem é muito
romântica e certamente baseada no maravilhoso retrato de seu mestre
desenhado por Platão. Mas se chegarmos perto o suficiente dos Diálogos,
outras faces de Sócrates emergem. É verdade que Sócrates é aparentemente

213
David Kennedy

não-diretivo, mas não é menos verdade que, coincidentemente, ele tortura


seus oponentes incansavelmente até que eles cheguem ao mesmo lugar
aonde ele havia chegado: o ponto em que eles reconhecem que sabem aquilo
que pensavam saber, isto é, o lugar onde eles reconhecem que o
conhecimento mais poderoso é o conhecimento filosófico — em outras
palavras, que Sócrates é, como o Oráculo diz — o homem mais sábio de
Atenas. Os chamados diálogos Socráticos mostram isso muito claramente:
enquanto algumas pessoas sabiam algo no início do diálogo, ninguém sabe
nada no final. E este “saber nada” é o truque de Sócrates, pois é
precisamente o que ele sabe e, em todas as ocasiões é o mesmo
conhecimento, seu conhecimento da (pseudo) ignorância, sua sabedoria.
Neste aparente movimento negativo, Sócrates leva todos para a sua casa,
para o seu lugar. Como um professor, Sócrates sabe o que todos deveriam
saber e escolariza seus alunos precisamente neste conhecimento — seu
conhecimento, o que ele considera conhecimento. Não há espaço para
criação ou invenção do outro. Como um filósofo e como uma metáfora para
a relação entre filosofia e política, Sócrates é certo tipo de estranho
estrangeiro — o que quer persuadir todos os nativos a falarem a sua língua
ao invés da deles. Sócrates não aprende, nem faz qualquer esforço para
aprender a língua dos outros. O resultado é trágico: a única vida que ele
considera valer a pena viver não pode levá-lo senão à morte. E quando ele
expande a vida filosófica para a vida da política em Apologia, é descoberto
que a única política que uma vida filosófica pode oferecer é oposta à —
não tem lugar, na política da polis.
Se filosofia é oposta a outras formas de conhecimento e vida — como
política, poesia e artesanato — nós podemos apenas denunciar a pobreza
deles, seu mundo interior não é tão alegre quanto parece à primeira vista.
Na verdade, Sócrates foi um dos primeiros modelos da hegemonia do
Mesmo, cultivada nos domínios da filosofia e educação a partir de seus

214
A comunidade da infância

nascimentos. Sócrates, nosso pai, é modelo de uma filosofia e uma educação


do mesmo, a qual conforma outros ao mesmo. Como acabamos de salientar,
espera-se que todo mundo que fala com Sócrates chegue ao mesmo ponto
ao qual ele chegou — que, como todo mundo sabe é a pessoa mais sábia
de Atenas — já é. É claro que Sócrates não é apenas isso, e há outras várias
direções interessantes implícitas no que ele faz. Mas é surpreendente como
a chamada história da filosofia da educação no Ocidente tem negligenciado
esta dimensão da prática Socrática. O principal movimento de Platão foi
institucionalizar Sócrates, instalá-lo dentro do pensamento e da escola. E
nós devemos reconhecer seu sucesso. Com poucas exceções, filosofia e
educação têm colocado sua confiança neste movimento de Platão até os
dias de hoje. Nossas escolas colocam. Suas escolas colocam.

Por que filosofia para crianças?


Neste sentido eu iria argumentar que não há tal coisa como filosofia
como tal, ou educação como tal. Filosofia é algo plural. Existem filosofias.
Sócrates é apenas uma possibilidade. E educação é também plural. Existem
educações. Também não estou tão certo sobre a comunidade de
investigação. Não é isso muito Socrático, muito normativo, muito certo
sobre onde esta indo e como chegar lá e quem está dentro e quem está
fora, etc.? A própria ideia de um programa para fazer filosofia com crianças
não me parece tão subversiva assim. Para colocar em seus termos e na
forma de uma questão, eu perguntaria: onde e qual é o lugar para o
incalculável, o imprevisível, o incontrolável em qualquer prática filosófica e
pedagógica dada? Quão preparados nós estamos para pensar o que nós não
devemos pensar? Quão dispostos estamos a indisciplinar nosso
pensamento? Deixe-me ainda colocar em outras e provavelmente mais
provocativas palavras: por que estamos tão interessados em dar voz às
crianças? Por que queremos que elas falem? O que queremos ouvir delas?

215
David Kennedy

Nós já sabemos o que elas vão dizer? Eu estou certo, irmão, que você vai
gostar de tomar uma dessas questões.
David: Por que estamos tão interessados em dar voz às crianças?
Porque a infância é a forma de linguagem que é a linguagem do mundo. É
a linguagem do Tolo que imita a linguagem dos pássaros, árvores e
trovoadas e coisas como essas. Mas por que estaríamos interessados em
ouvir isso? Porque é o momento no Ocidente quando a desconstrução da
subjetividade Platônica e Cartesiana nos abre a possibilidade de novas
versões do eu, as quais não se definem de acordo com a extensão de que
devem esquecer a linguagem dos pássaros e árvores e trovoadas, e por essa
razão a voz das crianças se torna tão interessante de ser ouvida quanto as
vozes dos poetas ou cientistas ou artistas ou filósofos.
Mas se oposições nos ajudam a pensar, nós não devemos nunca
permitir que elas se percam de vista, pois fazer isso é uma forma de
reificação. Na verdade não se pode pensar “disciplina” separada de
“indisciplina”, ou quantitativo separado de qualitativo, ou subversão
separada de ordem, ou o Mesmo separado da Diferença. Eu também não
penso que seja necessária a existência de uma “síntese” ou terceiro mediador
de binários, presente em qualquer tempo dado — por exemplo, a mediação
entre o mesmo e o diferente, nem que um pólo de oposição venha antes
do outro, tanto psicológica quanto ontológicamente. Ao contrário, eles são
co-presentes um para o outro, ambos emergem no mesmo momento, e são
parte de uma rede muito mais complexa de múltiplos conceitos e
sentimentos e valores — várias posições em um sistema, que está em um
estado permanente de contradição parcial e que está sempre a caminho de
reconstruir a si mesmo, a fim de encontrar algum tipo de balanço viável e
que nunca é bem sucedido em fazer isso.
Eu aplicaria a mesma análise para a relação criança-adulta em três de
suas formas: 1) A relação entre o adulto e o seu ou a sua própria “infância”,

216
A comunidade da infância

i.e, seu próprio tempo aionico, que tem a ver com uma forma de
subjetividade adulta; 2) A relação entre os pais e a criança; 3) e a relação
entre o pedagogo e a criança. Cada uma dessas três formas de relação —
as quais, certamente, são interelacionadas — está repleta de oposições. No
terceiro, o papel do adulto é de fato disciplinar, tentar normalizar a voz da
criança, para promover o mesmo, para ensinar a criança a falar como um
adulto e o papel da criança é de fato subverter e reinventar esse processo
para lembrar aos adultos da linguagem do corpo e do mundo e assim
engatilhar o surto do tempo aionico, e assim a reconstrução da
subjetividade e a humanização das espécies. E digo por experiência que há
sempre uma tensão entre esses dois, mesmo quando o adulto presume
nunca impor, nunca disciplinar, e mesmo quando a criança presume ser a
“criança perfeita” (i.e o pequeno adulto). Em uma pedagogia humanizada é
uma tensão criativa, uma tensão através da qual, ambos, criança e adulto
são enriquecidos, e cujas promessas de reconstruir a cultura tal qual, como
Coleridge disse sobre a educação ideal, “os sentimentos” da infância sejam
retidos em “poderes” da adultez. E nós devemos acrescentar, para não fazer
do “poder” da vida adulta o poder do mesmo, mas ao contrário, aquilo que
você se referiu como “força”, ou “energia”, ou “alegria”, ou até mesmo, eu
sugeriria “gozo”. Através desta tensão existe a possibilidade da emergência
de novas vozes adultas, aquelas que lidam com a oposição entre Mesmo e
Diferente de maneiras alternativas.
Logo, o que você critica em Sócrates — bem como em Filosofia para
Crianças — eu aceitaria como uma necessidade existencial. Como um
pedagogo, é meu papel encorajar e bajular crianças para “darem conta”,
para darem razões, para pensarem criticamente. Eu ouso fazer isso porque
eu acredito (talvez você me ache ingênuo) que o discurso filosófico — e
eu não quero dizer em sua forma apodíctica, mas em sua forma dialógica,
a forma para a qual Sócrates pelo menos nos deu algumas orientações

217
David Kennedy

preliminares — permite o intercurso e até mesmo tradução entre as


diferentes formas de temporalidade, as quais você descreve no começo do
seu diálogo. Certamente isso não revela tempo aionico do jeito que a arte
faz e o discurso poético não é constrangido pelo elencus, em todo caso a
tradução nunca tem o mesmo valor do original, mas o maior princípio da
comunidade de investigação filosófica é maiusis, o qual assume
espontaneidade e emergência, a esta é a dimensão da força, alegria e amor.
Dito de outra forma, eu tenho coragem de confrontar crianças com
disciplina, ordem e o mesmo, porque eu sei que elas — Ou pelo menos a
infância como aión, são inconquistáveis e insubjugáveis e me confrontam
com o incalculável, o imprevisto, o incontrolável, diferença e simples
desordem no evento de nosso encontro. É o diálogo que esta confrontação
promete o que também promete o permanente “desejo produtivo” que é a
promessa das espécies. E agora, caro irmão, que eu revelei o meu lado
totalitário...? O que segue?
Walter: Eu acho que suas memórias sobre o começo anunciam o fim
desta conversa. Nada segue após totalitarismo. Ou, para ser mais afirmativo
e menos dramático, se o seu pensamento opositivo ainda tem sentido.
Quem sabe? Eu realmente acho que a maneira como você acabou de
desenhar a relação entre educação, filosofia e infância é muito significativa.
Meus cuidados podem ser sem sentido se, crianças forem, como você bem
disse, uma forma do inconquistável e insubjugável. Mas eu ainda faria um
caso em favor da infância da educação e para reconsiderar o que você
chama “necessidade existencial”. Eu ainda fico chocado com a ideia de que
crianças precisam falar como adultos. Quem precisa disso? É muito
arriscado — muito irresponsável, você pode dizer — então pense essa
educação infantil em termos de ajudar o outro a falar outra língua, a pensar
de outra maneira, a viver outra vida? De qualquer forma, obrigado por uma

218
A comunidade da infância

conversa tão intensa, irmão, e, por favor, nos apresente algumas palavras
finais.
David: Bem, crianças nunca serão feitas para falarem como adultos,
mas adultos também não falam como adultos — eles não mais que se
aproximam. Apenas deuses falam como adultos. E ao mesmo tempo em que
adultos fazem demandas de razão no diálogo filosófico, as crianças fazem
as suas: que as ouçam falar, realmente ouçam e que não as tratem como
casos de um livro, como “organismos em formação”, mas como pessoas com
plenos direitos que sabem muito bem como pensar quando lhes é dada a
chance e se permitidas a fazer de sua própria maneira. Isto é um diálogo
no fim das contas, e no diálogo ambos os lados são considerados igualmente
valiosos de serem escutados. E o fim resulta neste tipo de diálogo, no qual
a representação de filosofia com crianças é exatamente, como você sugeriu,
falar outra língua, pensar de outra maneira, viver outra vida — uma
linguagem nem de animal nem de Deus, do mundo ou da mente, do adulto
ou da criança, mas do humano, a qual em sua realização mais profunda é
polivocal e polissêmica, múltipla e pronta para a transformação: um modo
de vida que inclui as três experiências de tempo com as quais você iniciou
esta conversa. E filosofia como diálogo — junto com muitos outros tipos
de atividades humanas — oferece continuamente a possibilidade do kairós
que abre espaço para um encontro com aión. Essa possibilidade pode ser
traída de muitas maneiras — através da “programação” disso, através da
assimilação de formas previamente mortas ou sem mente, através da
banalização, ainda apenas através da obrigação disso. Mas eu não acho que
a possibilidade vai embora algum dia, porque é parte do que Freire chamou
de “vocação ontológica” do ser humano, e como tal é inerradicável.
E onde nós estamos, caro irmão? Meu sentimento é de que apenas
começamos a abrir as diferenças entre nós, mas que este fato nos tornou
ainda mais próximos do que éramos. Certamente, você tem me levado

219
David Kennedy

rapidamente e diretamente aos limites do meu próprio pensamento, e


gentilmente me obriga a olhar através deles. O que eu vejo é indistinto —
contornos com formas móveis — mas estar no limite é o suficiente, e
quando o momento chegar, eu sei que vou me encontrar já naquele novo
território que você pinta para mim como uma paisagem Zen — uma linha
aqui, um golpe ali, uma curva, um ponto. Enquanto isso tem a força, a
alegria e o prazer de nossa relação...

220
9. INCÊNDIOS: INFÂNCIA E INFANTIA
com Walter Kohan

Este texto foi escrito por um duplo corpo-máquina, afetado pelos


mistérios evocados por Incêndios, filme canadense escrito e dirigido por
Denis Villeneuve, adaptado da peça de mesmo título do libanês Wajdi
Mouawad. No início de Incêndios — como um enigma que vai atravessar a
escura e serena paisagem dramática do filme — nos é dito que: “A infância
é uma faca presa na garganta. Ela não pode ser facilmente removida”. Este
ensaio é uma tentativa de desdobrar algumas das possíveis hipóteses e
inferências que se escondem nesta declaração, e rastreá-las através do
labirinto de Creta dos paradoxos, reversões e aporias da história. Nossa guia
será a noção de infantia de J.-F. Lyotard, a partir da qual esperamos oferecer
uma linha heurística até o santuário monstruoso do arquétipo Minotauro;
apreciando, assim, uma das possíveis leituras das dimensões estéticas e
políticas do filme.

221
David Kennedy

A infância como uma faca na garganta


A primeira parte da mencionada declaração de abertura do filme
poderia invocar a imagem da infância como uma ferida que é infligida à
própria vida adulta — e não apenas uma ferida, mas uma ferida que nunca
vai cicatrizar, ou, se atentarmos à segunda parte da declaração, que não vai
cicatrizar até que a própria infância, com dificuldade (isto é, por meio de
um trabalhoso processo envolvendo algum tipo de viagem da memória),
seja removida. Nossa tentativa é ir um pouco mais longe, atrás ou antes,
um atrás e um antes que não são tópicos nem cronológicos, mas
ontológicos. Nas palavras de J.-F. Lyotard, nossa tentativa é passar da
infância à infantia, aquele primeiro movimento anterior a qualquer
movimento humano, aquele primeiro nascimento antes de nascer na terra.
No caso do filme, a remoção requer encontrar o terror sublime e
numinoso de nossas origens quase míticas e, por implicação, as origens
profundas do que constitui cada um de nós, expressado na terminologia
freudiana como o mito de Édipo, a diferença sexual, a castração da mãe, o
tabu do incesto, a sexualidade pré-genital, ou nas associações antigas de
incesto com os deuses e as figuras semidivinas, como em práticas antigas
da realeza, ou qualquer outra fórmula que se refira a esse primeiro golpe,
antes que passemos a ser nós mesmos.
A garganta é o local onde se origina a fala humana, e onde a diferença
crítica entre infans (não falante) e adulto é mais concreta. Mas também é
o lugar onde a infância fala sem falar, ou além do discurso. Na teoria chakra,
é o local energético, não apenas de discurso, mas de expressão, comunicação
aberta e, na verdade, revelador, ou parrhesia. É o lugar onde o afeto-
sensorial, expressivo e comunicativo se manifesta no corpo. É o local no
corpo onde se situam a poesia e a canção — atos consumados de expressão
— misturando-se com a respiração. Em experiências de emancipação,
individual e social, a garganta é aberta, e a linguagem derrama-se livremente

222
A comunidade da infância

como verdade espontânea. Por exemplo, em setembro de cada ano, ainda


hoje e após mais de duzentos anos, os mexicanos se reúnem nas praças
para, através d’O Grito comemorarem o processo que deu início a sua
independência.
Se a infância é uma condição e não uma fase da vida humana, então
a metáfora da infância como uma faca que fere nossa garganta e que não
pode ser (“facilmente”) removida, pode ser lida como o inumano do
humano e sugere tanto que não existe (“facilmente”) vida humana sem o
inumano, que não há vida verdadeira sem corpo, quanto que a cultura e a
sociedade são, de certa forma, tentativas frustradas de abandonar e
esquecer a infância. Como Lyotard (1999, p. 52) aponta: “a ferida da qual
falamos [...] sangra incessantemente e exige, naturalmente, ser tratada, mas
também não deve ser tratada, ser respeitada [...].”. Como veremos, esta é a
principal dimensão política do filme: nos lembrar que não há vida humana
possível sem sangramento ou, em termos mais conceituais, que uma vida
humana digna de ser vivida exige uma certa relação com essa infância
primordial. Nesse sentido, Incêndios é um chamado a viver uma vida
plenamente humana, isto é, a não esquecer da infantia.
Seguindo Lyotard (1997) também podemos identificar a lei, que
proíbe a infância enquanto corpo estético, corpo governado pelo afeto de
“matéria imaterial”, como uma tentativa de curar a ferida. A lei considera a
infância, o corpo-estético “remanescente que não pode ser assimilado por
formas discursivas e representacionais de significação” (Locke, 2012) —
como carne criminosa que escapa da razão e a frustra. Em virtude de uma
das voltas paradoxais da história, remover a faca da garganta seria
“recuperar” a infantia, reconhecendo suas origens no desumano e no
sublime, numa experiência de dor e prazer que está para além do bem e
do mal.

223
David Kennedy

No filme, os gêmeos — que são praticamente duas formas de uma


mesma subjetividade — recuperam o inumano através de sua viagem
memorial pela sua infância, em pelo menos dois sentidos: como infância,
com sua verdadeira biografia histórica, nascidos na prisão de Kfar Ryat
(onde sua mãe ficou detida por 15 anos) e também como infantia, um
enigma, uma condição não resolvida que passa pela busca aparentemente
resolvida na trama. Como Lyotard deixará claro, “existe algo que nunca será
derrotado enquanto os seres humanos nasçam infantes. Infantia é a garantia
de que permanece um enigma em nós, uma opacidade não facilmente
transmissível — algo que permanece, e devemos testemunhá-lo” (Lyotard;
Larochelle, 1992, p. 416).
A história de Nawal Marwan e a resolução do quebra-cabeça por
ambos os gêmeos, testemunha também o enigma da condição humana,
reforçado ao longo da resolução da história: eles, como adultos que
conhecem sua história “verdadeira”, estão em dívida com o infans de
infantia: quando há infantia, não é possível nenhuma ordem humana,
nenhuma vida social, nenhum estado de coisas, nenhuma lei, nenhuma
forma de estar juntos; mas, ao mesmo tempo, não há vida estética ou
política, se não tenta testemunhar essa mesma infantia... este é o significado
da tentativa final de Nawal com as cartas, este é o objetivo da busca dos
gêmeos, esta é a imagem do dois = um, Nihad de Maio / Abu Tarek no final
do filme: ele foi encontrado, ele lê as cartas, mas quando volta a buscar
seus irmão-irmã-filha-filho, já não pode encontrá-los; não há reconciliação,
não há vida possível juntos; a dívida que o ser humano (adulto) deve ao
inumano de infantia não pode ser reparada, mas apenas lembrada; e,
finalmente, a condição de infans, de “indeterminação miserável e admirável”,
o corpo estético, a espiritualidade da carne, é tudo o que resta na resistência
a uma outra forma do inumano. Contudo, talvez seja necessário esclarecer

224
A comunidade da infância

algo do vocabulário conceitual de Lyotard para seguir lendo o filme em


questão.

Incêndios e a noção de infantia de J.-F. Lyotard


Infantia é uma palavra polissêmica na obra de J.-F. Lyotard (cf. Locke,
2012). Por um lado, Lyotard trabalha a partir da noção freudiana de infantia
e a reinscreve como uma presença “monstruosa” em um corpo que vai para
além dos corpos antropomórficos. Nesse sentido, Lyotard liga a infantia às
artes e à política, segundo mostra Locke (2012),

como uma zona em que o ‘trabalho’ na arte é transmitido através de um


gesto inaudível que toca e altera a temporalidade. Ele estende as fronteiras
do corpo para incluir a infância como uma zona de puro afeto que opera
dentro do objeto de arte. Esta zona mobiliza a capacidade de ser tocado do
exterior pela arte como um afeto sensorial.

Em outro aspecto, infantia pode ser descrita como a diferença entre


o que pode e o que não pode ser dito, o indizível, algo perdido que habita,
imperceptivelmente, o dizível como sua sombra, o seu lembrete, algo tácito
que trabalha como a condição de possibilidade para que algo significativo
possa ser dito.
Ainda do ponto de vista de Lyotard (1997), podemos fazer uma
distinção entre a infância, como temporal, e a infantia, como atemporal: a
infância não pode ser facilmente removida em si mesma de um ser humano,
pois ela é uma dimensão inevitável, inescapável que habita qualquer vida
humana como sua condição. Na verdade, o “facilmente” parece fora do
lugar. Nem fácil, nem dificilmente: a infância como infantia não pode ser
removida da vida humana de forma alguma. Pode ser lembrada ou
esquecida, mas uma vida sem infantia não seria uma vida humana.
Esse entendimento confronta o que normalmente evoca a infância,
especialmente no discurso educacional, em que a escolarização tem sido

225
David Kennedy

proposta como uma maneira de remover ou abandonar a infância. A


infância é, nesse esquema, compreendida ou assumida como uma fase da
vida humana, que por sua vez é entendida como um traçado retilíneo de
movimento evolutivo irreversível, sucessivo, consecutivo e constante. Neste
contexto, como é possível remover a infância? “Crescendo”, é a resposta do
discurso educacional; e a escola será uma das instituições sociais
privilegiadas, responsáveis por ajudar as crianças, de modo que a remoção
da infância possa ser a mais simples possível, de acordo com as aspirações
que sustentam a instituição social e cultural da escola. Todas as escolas, de
todos os tempos e espaços, partilham esta ambição: propiciar o abandono
da infância com o mínimo de dor e o máximo de utilidades possíveis para
as aspirações sociais dominantes.
Dessa forma, a escolaridade é o caminho cultural de conversão da
infância até a idade adulta, por meio dos dispositivos sociais da disciplina e
do controle, através das características tópicas de cada uma delas, a fim de
esquecer infantia: nas chamadas sociedades ocidentais, é uma
transformação de uma experiência do tempo (de aion para chronos); do
pensar (de perguntar para responder); do estar no mundo (do jogo ao
dever).
Precisamos crescer. No filme, o notário (o responsável pelo registro,
o adulto exemplar, o funcionário leal, a Lei) pede a Simon duas vezes para
crescer. Simon tende a resistir e parece mais convencido a abandonar seu
estado infantil pela emoção de sua irmã do que pela racionalidade do apelo
do notário. E que, para Simon — também para Jeanne, sua irmã gêmea —
crescer significa aceitar a realidade do impossível, do monstruoso, do abjeto
em que um mais um pode ser igual a um. Mais ainda: dois tem sido um
em sua história. Eles são um em relação ao abjeto sofrido pela sua mãe.
Como nas tragédias gregas não há vontade, nenhuma intenção, nenhuma
consciência. A mãe, Nawal Marwan, foi violada por seu filho, seu irmão-pai,

226
A comunidade da infância

que também não “sabia” que ela era sua mãe. Para os gêmeos, crescer
significa aceitar que são parte de uma história horrível, inumana. As
mulheres, a mãe e a irmã, Nawal e Jeanne, são ambas matemáticas. Em
matemática um mais um não pode ser igual a um. Na vida humana, um
irmão não pode ser pai. Sua história é histórica e matematicamente —
racionalmente — inaceitável. E eles têm que aceitá-la, a fim de viver uma
vida humana, a fim de ter um novo nascimento.
O que faz então Incêndios tão difícil de digerir é que, no filme, crescer
não é como na vida comum “civilizada”, simplesmente uma questão de
aceitar maduramente a própria história, mas uma questão de enfrentar o
horror do abjeto (Kristeva, 1982): o indiferenciado, incestuoso, estranho,
perigoso, proibido, impuro, objeto de tabus, uma alteridade inominável
como parte de nossa própria história. Como afirma o matemático, é um
“problema insolúvel”, cuja investigação leva a “problemas mais insolúveis”,
e, finalmente, fundados sobre o paradoxo de 1 + 1 = 1.
Da mesma forma que o matemático não pode aceitar o paradoxo de
1 + 1 = 1, uma sociedade racional e civilizada não pode aceitar o abjeto, a
irracionalidade que constitui a identidade do pai e do irmão. Ela não pode
viver com a memória do que desafia sua própria base. A sociedade precisa
esquecer a infantia e as sociedades neoliberais parecem ter desenvolvido
dispositivos mais e mais sofisticados, a fim de atingir esse objetivo.
Em Incêndios, o problema é duplo: esta “família”, se podemos assim
chamá-la, tem de superar uma infância difícil e não esperada, e ao mesmo
tempo uma infantia silenciosa, invisível, mas inevitável, que permanece
como uma dupla sombra de uma infância impossível. A tentativa da mãe
de resolver o duplo problema espelha sua ruptura interna, que a divide
entre o filho torturador e estuprador e aquele nascido de seu primeiro e
belo amor. Eles não se conhecem entre si. Nunca conhecerão um ao outro.
O único momento em que ela os encontra juntos — um corpo nu à beira

227
David Kennedy

da piscina —, ela não pode se conectar com esse corpo. Para ela, eles são
dois, eles não podem ser um. Ela não pode estar em qualquer forma de
relação humana com eles. Não há nenhuma família, nenhuma sociedade,
nenhuma cultura possível com o abjecto.
Na última parte do filme, o filho assassino sociopata perde de vista
os gêmeos, a prole de sua vontade monstruosa de violar e destruir;
enquanto o filho amado, permanece inocente perante o túmulo de sua mãe.
O problema não foi resolvido. O conflito não pode ser superado. A
excepcionalidade da mãe, a “mulher que canta” consiste em ter incorporado
— através do seu amor redentor — o abjeto na forma do impossível um
= dois; um = pai + filho; o bebê inocente e o assassino sociopata; vida e
morte; amor e ódio: todos os opostos são um em Incêndios. Nenhuma
ciência, nenhuma racionalidade, nenhuma ordem social é possível com eles.
Só a arte, para nos ajudar a lembrar a infantia.
Mais ainda, a forma de “superação” do conflito por Nawan, na
verdade, o aceita e o alimenta. Ajuda os espectadores a se lembrar dele.
Nawan é “a mulher que canta”. Ela canta uma canção impossível de cantar
e de lembrar; ninguém que tenha ouvido o seu canto em Kfar Ryat consegue
lembrar suas canções, apesar de sua beleza. A impossibilidade de se lembrar
de seu canto faz-nos lembrar o que não pode ser esquecido. Sua música é
o sublime, o corpo estético impossível, a infantia. A mulher que canta
inscreve em nós um resto, uma opacidade não transmissível que nunca será
derrotada, enquanto os seres humanos nasçam infantes.
Os gêmeos não são crianças e também não são adultos, simplesmente
porque eles não podem viver nem na infância nem na idade adulta, eles não
podem habitar uma vida humana, eles (quase) não são seres humanos. O
notário diz a eles que só através da pesquisa da “verdade” (o registro, como
mantido pelos seus depositários, o notário, o adulto, a sociedade, a lei) vão
se tornar adultos. Mas, na verdade, eles não estão à procura de sua infância,

228
A comunidade da infância

eles estão à procura de suas origens, de sua condição, do que os torna


humanos, num sentido mais profundo que a vida civilizada e confortável
do seu mundo capitalista; de fato, a sua infância na civilizada classe média
canadense é perfeitamente bem lembrada e bastante confortável: uma vida
“normal” que qualquer ser humano desejaria viver.
Jeanne e Simon afirmam maneiras diferentes de confrontar o desafio,
distintos estilos de existência. Jeanne parece mais preparada para enfrentar
o inevitável. Simon tenta atrasá-lo. Ele critica sua mãe: ela nunca viveu na
normalidade. Ele questiona o advogado. Ele discorda da sua irmã. Mas,
finalmente, ambos juntam-se ao confrontar o abjeto como uma dimensão
incontornável da sua tentativa de viver uma vida humana. Ele acaba,
finalmente, ouvindo a verdade da parte de um outro homem. Não poderia
ser diferente em uma sociedade machista. A verdade sairá do líder do grupo
político, pelo qual Nawan assassinou e se sacrificou durante mais de quinze
anos em prisão. Este não é um detalhe: Nawan era um corpo estético e
político na prisão de Kfar Ryat. Ela estava lá por causa de sua militância
política e fez dessa estadia uma militância estética.
De modo que Jeanne e Simon viveram uma vida “civilizada” muito
“normal”, até descobrirem a verdade. Mas essa vida normal é falsa, não sabe
de suas verdadeiras origens. Este é o paradoxo do filme: eles não podem
deixar de procurar uma verdade que, uma vez descoberta, irá mostrar as
diversas dimensões de sua monstruosidade. O caminho para si — para o
que “realmente” são — também é um caminho inevitável que os leva para
fora de si — o que os constitui como uma sombra, uma dimensão
esquecida, um resto. Eles são expoentes, de uma forma radical e exagerada,
da aporia humana: não há vida humana sem infância, mas também não há
vida sem a inumanidade de infantia. Não há nenhuma maneira de viver sem
infância, mas também sem infantia.

229
David Kennedy

Na verdade, os gêmeos são uma só subjetividade, que quer tanto


afastar-se da pesquisa (Simon) quanto levá-la onde quer que ela os leve
(Jeanne). O fato deles conseguirem resolver o enigma e entregarem a seu
pai-irmão as cartas que a mãe havia escrito para ele/s permite que o nome
da mãe apareça em sua lápide e seu rosto seja “virado para o sol”. Esse ato
também é aquele que os torna adultos. Eles extirpam o abjeto
incorporando-o. A sociedade de consumo agora vai aceitá-los para
continuar suas vidas desumanas. A infância foi legitimada em sua forma
abjeta pela Lei e redimida pela ordem administrativa. A infantia permanece
na sombra. Incêndios realiza a tarefa política da escrita: testemunhar o que
permanece como um enigma em nós (Lyotard; Larochelle, 1992, p. 416).

A elusão de infantia
Como Lyotard (1991) coloca, infantia é uma condição latente que está
por trás de cada palavra pronunciada por qualquer ser humano, e ela
própria é uma forma do inumano. Mas o que é o inumano? Lyotard (1991)
distingue duas formas de inumano: o inumano enquanto sistema desumano,
chamado de “desenvolvimento”, “competitividade”, “democracia
representativa”, “mercado”, “mundo livre”, ou simplesmente “capitalismo”;
e o inumano que cada alma humana carrega pelo fato de ter nascido,
forçada a abandonar a indeterminação onde estava a fim de se determinar
como uma vida particular, sem poder fazer nada para evitá-lo. Essa segunda
forma de inumano habita cada ser humano como a passagem do não ser
ao ser, a partir da qual todo ser humano nasce sem escolher. Fomos todos
obrigados a nascer, a nenhum ser humano foi perguntado se queria vir ao
mundo. Neste sentido todos nascemos do inumano.
Essas duas formas do inumano são opostas. Considere-se, por
exemplo, com respeito ao tempo. O primeiro inumano, o capitalismo, impõe
a necessidade de correr atrás do tempo, para fazer um uso bom, produtivo,

230
A comunidade da infância

do tempo; para ser eficiente, eficaz, a fim de seguir os movimentos extensos,


sucessivos, consecutivos, e irreversíveis que constituem a imagem
sistemática do tempo cronológico dominante. O segundo não corre atrás
do tempo, deixa o tempo se perder em rotas não lineares, mas polimorfas,
intensivas, repetitivas e complexas, procurando de maneira distraída o
tempo perdido, especialmente naquele tempo remoto da indeterminação
em um movimento, no qual o passado nem sempre precede o presente e o
futuro não, necessariamente, sucede ao presente. É o tempo circular do
eterno retorno, dos ciclos.
No campo da economia, abre-se um caminho para a política. Se a
primeira forma de desumano procura impor o capital em todas as suas
variantes como a única ideia triunfante e hegemônica, com a consequência
lógica de que não haveria possíveis alternativas para o sistema e nenhuma
outra ideia seria viável além do próprio capital, Lyotard (1999) acredita que
a única política possível pode ser a resistência a esta forma capitalista de
inumano em nome da memória da outra forma de inumano esquecida, a
de uma alma que constantemente lembra a dívida com o inumano de onde
nasceu. Em suas palavras:

[...] O que mais resta para a ‘política’ senão a resistência a esse inumano?
E o que mais resta para resistir, senão a dívida que cada alma tomou da
miserável indeterminação da sua origem, e que não deixa de nascer? Isto é,
com o outro inumano? Esta dívida que temos com a infância não é paga.
Mas não esquecê-la pode ser o suficiente, a fim de resistir e, talvez, para
não ser injusto. Esta é a tarefa da escrita, pensamento, literatura, artes: se
aventurar para testemunhar isso. (Lyotard, 1999, p. 7)

Basta não esquecer a dívida com a infância a fim de não ser injusto,
afirma Lyotard (1999). Resistir ao inumano da ordem neoliberal, lembrando
o inumano do qual nascemos, como uma forma de lembrar o “potencial
inumano dérèglement, para desfazer as regras instituídas das forças de
aculturação” (Lindsay, 1992, p. 391). Política, então, é a resistência ao

231
David Kennedy

inumano da ordem, lembrando o inumano do qual toda ordem emerge. É


uma espécie de resistência à pretensão de qualquer forma em perpetuar-se
através da memória do que faz qualquer ordem possível. As sociedades
neocapitalistas não deixam de pretender impor cada vez mais seu controle
por todo o planeta e até para além dele. A fim de fazê-lo, elas precisam
silenciar o que poderia questionar a sua universalidade, normalidade e
naturalidade, o que, como infantia, pode mostrá-las como arbitrárias,
artificiais, anormais e interromper o que elas pretendem mostrar como
claro e inevitável.
Radicaria nisso a dimensão política de uma possível leitura de
Incêndios? Em testemunhar o outro inumano, o inumano de infantia? Uma
lembrança da aporia da existência humana em sua dupla dimensão da
impossibilidade de cicatrizar a dupla ferida da infância monstruosa e da
infantia silenciada? Uma resistência política a qualquer pretensão de
naturalizar a existência humana?
É esta, também, uma tarefa política da escrita, ao mesmo tempo
impossível e necessária. É uma tarefa impossível, porque escrevemos para
dar forma a uma infância e uma infantia que em nenhum caso podem ser
escritas. Necessária como tarefa política de lembrar e afirmar a forma de
inumano que é silenciada, negada pela outra forma do inumano dominante:
o consumismo, o capitalismo, formas neoliberais de ordem social.
Escrever para testemunhar a infantia é necessário e impossível, como
também são para a humanidade, a filosofia, a própria infantia, uma espécie
de sobrevivente, uma entidade que deveria estar morta, mas ainda está viva
(Lyotard, 1997, p. 63). Esta é, provavelmente, a força estética e política de
Incêndios: apresentar, através da “mulher que canta”, um apelo para
lembrar o inumano silenciado, aquilo de onde viemos e que nossa vida
social tornou tão esquecido.

232
A comunidade da infância

A infantia como sobrevivente é também uma esperança: “no caso de


uma possível mudança radical no fluxo que empurra as coisas para repetir
o mesmo” (Lyotard, 1997, p. 62). Infantia nomeia algo que “já” é, mas sem
ser ainda “algo”, uma espécie de espanto, que introduz o ser humano no
mundo, uma forma de inumano que ainda não pode ser identificada;
infantia é o nome de um milagre, a interrupção do não ser das coisas pela
entrada de seu outro, o outro de ser. Pode ser o suficiente não esquecer
infantia “a fim de resistir e, talvez, para não ser injusto”, diz Lyotard (1999,
p. 7). Poderia ser o suficiente? A leitura deste trabalho ajudou a qualquer
um de seus leitores a não esquecer a infantia, tal como é fomentado pelos
nossos dispositivos sociais contemporâneos, nas sociedades neoliberais? Se
assim for, poderíamos considerar essa resistência a nossa principal tarefa
política como escritores? Não temos certeza. Olhando para as várias outras
formas da infância em nosso tempo, não sabemos se é o suficiente; mas,
quem sabe, pode ser um começo. Um leitor sensível à infância e à infantia,
certamente, vai ajudar-nos a pensar sobre isso.

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