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(em quarentena)
A COMUNIDADE DA INFÂNCIA
David Kennedy
NEFI Edições
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Reitor: Ricardo Lodi Ribeiro
Vice-Reitor: Mario Sergio Alves Carneiro
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Luís Antônio Campinho Pereira da Mota
Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPEd)
Coordenadora: Ana Chrystina Venancio Mignot
Vice-Coordenador: Guilherme Augusto Rezende Lemos
Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Coordenador: Walter Omar Kohan
"A comissão para avaliação cega dos trabalhos da Coleção Ensaios em 2020 foi integrada por Maria Reilta Dantas Cirino
e Magda Costa Carvalho”
ISBN: 978-65-991017-2-4
1. Infância, 2. comunidade de investigação filosófica, 3. educação
4. filosofia 5. filosofia para crianças. I Título. II Série.
CDD 370.1
Índice para catálogo sistemático:
1. Educação: Filosofia 370.1
© 2020 David Kennedy
© 2020 Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI/UERJ)
Site: http://filoeduc.org/nefiedicoes
Email: publicacoesnefi@gmail.com
Apresentação da Coleção
PRÓLOGO.................................................................................................................................................... 13
Bernardina Leal e Rosana Fernandes
2. RECONSTRUINDO A INFÂNCIA............................................................................................................. 51
A infância está desaparecendo? ....................................................................................................... 51
Criança como sujeito marginalizado ............................................................................................. 53
Crianças como propriedade ............................................................................................................. 54
Criança como economicamente desprovida ............................................................................... 55
Criança como outro ontológico ...................................................................................................... 55
Criança como epistemicamente incompleta............................................................................... 57
Criança como excluída da cultura ................................................................................................. 58
A criança como caso especial do outro marginalizado .......................................................... 59
O surgimento da forma moderna de colonização da criança: uma explicação psico-
histórica ................................................................................................................................................... 63
O privilégio epistêmico das crianças ............................................................................................ 70
Começando: Elementos de uma reconstrução emergente da relação criança-adulto. 72
O modo da mudança .......................................................................................................................... 79
8. AIÓN, KAIRÓS AND CHRÓNOS: FRAGMENTOS DE UMA CONVERSA INFINDÁVEL SOBRE INFÂNCIA,
FILOSOFIA E EDUCAÇÃO ......................................................................................................................... 193
Filosofia e educação ............................................................................................................................ 193
Perguntas............................................................................................................................................... 198
Educação ................................................................................................................................................ 203
Alegria — desejo............................................................................................................................... 206
Escolaridade e filosofia ...................................................................................................................... 210
Por que filosofia para crianças? ..................................................................................................... 215
com Walter Kohan
REFERÊNCIAS ...........................................................................................................................................234
PRÓLOGO.
13
Bernardina Leal e Rosana Fernandes
14
Prólogo
15
Bernardina Leal e Rosana Fernandes
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Prólogo
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Bernardina Leal e Rosana Fernandes
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Prólogo
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ORIGEM DOS TEXTOS.
4. “Pensar por si mesmo e com outros” foi publicado in: Kohan, W. & Leal,
B. (Eds.), Filosofia para crianças em debate. Petrópolis: Vozes, 1999.
22
1. OS MOVIMENTOS DAS CRIANÇAS PEQUENAS:
COMUNIDADE DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA EMERGENTE
NO DISCURSO DA PRIMEIRA INFÂNCIA
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A comunidade da infância
1
Collected Papers of Charles Sanders Peirce, C. Hartshore, P. Weiss e A. Burks, ed, Cambridge:
Harvard University Press, 1935, 1958, vol. 4, par. 05.
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Thalia: Um pouco diferente. É como você desejar que algo vai acontecer,
mas você sabe que não acontecerá e, então, de repente, acontece.
Sally: Eu penso que pode haver uma poção algum dia. Eu não acredito que
possa acontecer. Eu quero dizer, uma poção para transformar alguém em
um leão. Mas pode acontecer.
Harry: Eles poderiam ser capazes, não de transformá-los em um leão, mas
fazê-lo parecer um leão, com todos os médicos esforçando-se muito para
isto.
Sally: Você quer dizer parecer um leão, mas não falar como um leão. Não
rugir, nem nada. Mas isto não seria mágica. Isto teria algo a ver com ciência.
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A comunidade da infância
ser muito difícil, mas talvez, depois de anos de prática, você possa tornar-
se “alguma outra coisa”.
Stuart, ainda extraindo algo de sua experiência pessoal, introduz um
novo conceito — “acreditar, mesmo”. Ele distingue isto de mágica, mas
reivindica que é “como mágica”, isto é, algo análogo. John contra argumenta
que isto também não é “real”: não é um truque, mas uma autoilusão, um
enganar-se a si mesmo.
Harry e Thalia introduzem duas outras novas ideias que sintetizam o
que veio antes. Harry apresenta uma ciência-mágica “real” que se afasta
bem das especulações de Allan. Ele diz “cientistas poderiam trabalhar
bastante e elaborar uma fórmula para transformar alguém em um leão”.
Thalia reage tanto ao desafio de Allan de que deveria haver uma mágica
“real” quanto à proposta de Harry da ciência como, pelo menos, algo
análogo à “mágica real”, oferecendo o milagre como um caso de mágica
“real” e, então, a distingue (com o auxílio da professora) do “acreditar” de
Stuart.
Sally entra na discussão. Ela retorna à sugestão de Harry sobre a
aproximação mútua entre mágica e ciência. “Eu penso que pode haver uma
poção algum dia. Eu não acredito que possa acontecer. Eu quero dizer, uma
poção para transformar alguém em um leão. Mas pode acontecer”. Ela está
reunindo o “Continue praticando até que você saiba como fazê-lo realmente
bem” do Allan, o “anos de prática” da professora, o “cientistas trabalhando
bastante para elaborar uma fórmula” do Harry, e resumindo as posições
deles com a noção de contínuo avanço científico e tecnológico que poderia
conduzir à descoberta. Sally usa a palavra “poção” que evoca, perfeitamente,
as históricas conexões entre mágica e ciência.
Harry responde a este movimento integrativo: “Eles podem ser
capazes de não o transformar em um leão, mas fazê-lo parecer com um
leão, com todos os médicos esforçando-se para isso”. Em outras palavras,
29
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2
Para uma pequena discussão sobre a relação entre abdução e juízo conceitual, assim
como abdução e “qualquer universo dado do discurso”, ver Robert S. Corrington,
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Nature and Spirit. An essay in Ecstatic Naturalism ( New York: Fordham University
Press, 1992, p. 83-85).
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retornará a uma ideia anterior. No entanto, a nova ideia não estará perdida
— ela reaparecerá momentos depois, integrada na discussão maior, seja
pelo mesmo ou por outro falante. Uma ideia que, quando primeiramente
introduzida, parece não estabelecer qualquer conexão ou apenas uma
pequena conexão com as ideias precedentes, aparecerá, depois de algumas
rodadas, completamente conectada. Um momento de integração virá - como
acontece com a entrada de Sally na conversação acima transcrita — no
qual se encaixam elementos que estavam apenas vagamente conectados até
então e a discussão se auto clarifica. Isto ocorre por conta de sua qualidade
recursiva e integradora, de sua tendência a circular e a incorporar
elementos anteriores em sua próxima vaga constelatória.
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3
F. Schiller, On the Aesthetic Education of Man, ed. E.M. Wilkinson & L.A. Willoughby
(Oxford University Press, 1982.
36
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4
Michael L. Raposa, Peirce’s Philosophy of Religion. Bloomington: Indiana University
Press, 1989, p. 47. Para ampla, bem documentada organização das noções de Peirce
de Tychism, especulação e jogo, ver p. 31-32, 74, 126-133.
37
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5
Matthew Lipman, “Critical Thinking: What can It Be”, in Educational Leadership 46,
I, 1988, p. 38-43. Lipman identifica quatro aspectos do pensamento crítico em grupos:
fundamentação em critérios, sensibilidade ao contexto, busca de juízo sobre algum
assunto e autocorreção.
6
Robert S. Corrington, Nature and Spirit, p. 144.
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A comunidade da infância
Jill: Uma fada do dente vem através da parede e uma bruxa tem que
bater na porta.
Wally: Se uma bruxa viesse, ela poderia roubar a criança.
Eddie: Jill, eu não penso que uma bruxa bateria na porta — ela a
arrombaria. Ela poderia até roubar a mãe.
Jill: A fada do dente deixaria 25 centavos e, então, a bruxa vem e
rouba o dinheiro. Mas, então, você faz o desejo novamente.
Warren: Uma bruxa levaria embora o travesseiro. Espere, primeiro
ela coloca sua vara mágica debaixo do travesseiro, então ela faz o travesseiro
desaparecer, aí a vara machuca sua cabeça. Então sua mãe tem que vir e
dormir com você porque você pode estar sangrando.
Deanna: Bruxas do dente deixariam aranhas no dinheiro.
Kim: Não existem bruxas do dente.
Deanna: Eu sei, quero dizer se existissem.
Kim: Bruxas não podem ser invisíveis. Então só uma fada pode ser
uma fada do dente.
Deanna: Fadas são sempre boas. Se elas fizerem algo ruim, elas se
tornam bruxas. Então, em seiscentos anos, uma bruxa pode ser fada de
novo.
Wally: Ah! Então é assim que existem fadas boas no Mágico de Oz.
(retirado de Wally's Stories, pp. 44-45)
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pelo qual a proposição “nenhuma bruxa é fada do dente” foi aceita: bruxas
são materiais e visíveis e fadas do dente fazem coisas imateriais, invisíveis,
como atravessar paredes. Na verdade, ela está oferecendo um silogismo:
41
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A comunidade da infância
Algumas conclusões
Estou sugerindo que nós olhemos para os movimentos e tendências
que eu identifiquei neste artigo — o esforço para o juízo, a proliferação
espontânea de dados, a díade proposição-exemplificação, jogo combinatório,
ramificações, recapitulação e integração, a sobreposição assimétrica de
temas e ideias, auto-organização e autocorreção - como ocorrências em
grupos discursivos de modo espontâneo e caoticamente ordenado. Isto
ocorrerá, em graus maiores ou menores, sempre que um grupo de pessoas,
quaisquer que sejam suas idades, se sentem e busquem realizar juízos sobre
algo que os interesse. Mas há estruturas mais amplas emergindo através do
jogo de movimentos menores e tendências? Ou eles acontecem apenas
localmente e a sua combinação em padrões mais amplos é, pelo menos
entre crianças pequenas, casual? Estas transcrições são curtas demais para
responder a estas questões. Mas uma aplicação da teoria de sistemas não-
7
Para uma análise acurada de “pensamento transicional”, ver D.H. Winnicott, Playing
and Reality. New York: Basic Books, 1971.
43
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8
James Gleick, Chaos: Making a New Science. New York: Viking, 1987, p. 56-74.
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9
C. S, Peirce, Collected Papers, vol. 2, par. 646.
47
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10
C. S. Peirce, Collected Papers, vol. 2, par. 397.
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2. RECONSTRUINDO A INFÂNCIA
51
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52
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11
The Disappearance of Childhood. New York: Delacorte, 1984.
12
Freire, P., Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
53
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13
deMause, L. The Evolution of Childhood. In: deMause, L. (org.), The History of Childhood. New
York: Harper, 1974.
54
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podemos dizer que elas são como os escravos e, até bastante recentemente
no Ocidente, como as mulheres.
14
Aristóteles, Ética a Nicómaco I ix, 1099b33-1100a5; VI xiii, 11445-10 ; VII xii, 1153a30; Física, II 6,
197b7-8.
15
Aristóteles, Física II vi, 197b; Ética a Nicómaco I ix, 1100a.
55
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“Para ser um verdadeiro pai, você tem que ter controle absoluto de todo o
ser de seu filho; e sua preocupação principal deve ser com aquela parte do
caráter dele que o distingue dos animais e está perto de refletir o divino...
Assim, o que nós podemos esperar do homem? Ele certamente será um ser
bruto improdutivo, a menos que imediatamente e sem demora seja
sujeitado a um processo de intensiva instrução.”16
16
On Education for Childhood. In: Rummel, E. (org.), The Erasmus Reader, trad. ingl. Toronto:
University of Toronto Press, 1990, p. 67-69.
17
Foucault, M., Discipline and Punish, trad. ingl. New York: Vintage, 1979, p. 198.
56
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18
Jung, C. G. & Kerenyi, K., Essays on a Science of Mythology: The Myth of the Divine Child and
Mysteries of Eleusis. Princeton: Princeton University Press, 1963.
19
Esta interpretação particular deficitária é mais característica das interpretações de Piaget feitas
por psicólogos e educadores durante a década de 80, do que da própria obra de Piaget, a qual
apresenta uma concepção mais rica em nuances.
57
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20
Piaget, J., Biology and Cognition. In: Inhelder, B. & Chipman, H. H. (org.), Piaget and His School,
trad. ingl. New York: Springer Verlag, 1976, p. 52.
58
A comunidade da infância
segregadas nas escolas (e também são segregadas por idade dentro das
escolas), excluídas dos lugares de trabalho dos adultos e forçadas a ficar em
áreas recreativas criadas para que elas brinquem e socializem Para além
disso, são objetivadas pelo “establishment” científico como unidades de
estudo, sujeitas a uma barragem de classificações normativas e são
atribuídas a elas estatutos semi-médicos quando se afastam da norma
(“incapaz de aprendizagem”, “hiperativo”, etc.).
21
Werner, H., The Concept of Development from a Comparative and Organismic Point of View. In:
Harris, D. B. (org.), The Concept of Development. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1957,
p. 126.
59
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22
Reconstructing Childhood: A Critique of the Ideology of Adulthood. In: Traditions, Tyranny and
Utopias: Essays in the Politics of Awareness. Delhi: Oxford University Press, 1987, p. 61. Nos Estados
Unidos, a mais flagrante, proeminente e recente expressão deste conjunto de pressuposições, talvez
seja o relatório da Comissão Nacional em Excelência de Educação, A Nation at Risk: The Imperative
for Educational Reform. Washington D.C.: U.S. Government Printing Office, 1983, o qual começa:
“Nossa nação está em risco. Nossa outrora inquestionada proeminência no comércio, indústria,
ciência e inovações tecnológicas está sendo ultrapassada por competidores por todo o mundo.”
61
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23
Nota do tradutor: o autor se refere a decisões de juízes que devolveram as crianças a pais que
tinham abusado delas, mesmo com risco físico para as crianças. Muitas delas acabaram perdendo a
vida.
24
Pedagogia do Oprimido, p. 70.
62
A comunidade da infância
25
Ibid., p. 83.
26
Elias, N., The Civilizing Process: State Formation and Civilization, trad. ingl. Oxford: Blackwell,
1994 [1939], p. 475.
27
Centuries of Childhood: A Social History of Family Life, trad. ingl. New York: Knopf, 1962.
63
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28
Elias, N., The Civilizing Process: The History of Manners, trad. ingl. Oxford: Blackwell, 1994 [1939],
p. 134-178. Cf. Shahar, Sh., Childhood in the Middle Ages London: Routledge, 1990.
29
Martin, L., Gutman, H. & Hutton, P. H., (org.), Technologies of the Self: A Seminar with Michael
Foucault Amherst: University of Massachusetts Press, 1988.
64
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30
Elias, The History of Manners, p. 204. Cf. p. 205-215.
65
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31
Cf. ONG, W., Orality and Literacy: The Technologizing of the Word. New York: Methuen, 1982.
32
Elias, N., The History of Manners, p. 115.
66
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33
Foucault, M., The History of Sexuality, trad. ingl., v. I, extraído de Rabinow, P. (org.), The Foucault
Reader. New York: Pantheon, 1984, p. 267.
34
Elias, N., The History of Manners, p. 137.
67
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35
deMause, L., The Evolution of Childhood, p. 153.
36
Em The Evolution of Childhood, p. 53, deMause identifica os seguintes modos, os quais afirma
seguirem um progresso evolutivo através da história: Infanticida (Antigüidade até séc. IV d.C.),
Abandono (séc. IV a séc. XII), Ambivalente (séc. XIV a séc. XVII), Intrusivo (séc. XVIII), Socialização
(séc. XIX até a metade do séc. XX) e, Cooperação (começa no meio do séc. XX).
37
Não é necessário ler a teoria de deMause como evolucionista para que ela funcione. De fato, Peter
Peschauer sugeriu que todos os seis modos estejam presentes em qualquer determinada sociedade
humana, expressados em práticas que podem variar através da história e cultura. Ele ressalva o
aparecimento de uma cultura evolucionária pela sugestão de que um modo particular é
predominante em cada período, e que a direção ou progresso dos modos indicam que a criança é
uma projeção completa do próprio material instintivo do adulto, evoluindo para modos nos quais
está aumentando a separação entre os dois. Cf. “The Childrearing Modes in Flux: An Historian’s
Reflections”, The Journal of Psychohistory 17 (1), 1989, p. 1-41.
68
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38
The Evolution of Childhood, p. 3.
39
Ibid, p. 6.
40
Ibid., p. 6-7.
69
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41
Cf. Gadamer, H-G., Truth and Method, trad. ingl. New York: Crossroad, 1975; e Ricoeur, P., The
Hermeneutical Function of Distanciation. In: Hermeneutics and the Human Sciences, trad. ingl.
Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 143.
70
A comunidade da infância
Uma vez que sejam permitidas às crianças serem mais que os portadores
de projeções parentais, elas podem se tornar, para os seus pais, uma fonte
inesgotável de conhecimento sobre a natureza humana. Sensualidade,
prazer com o próprio corpo, prazer no afeto demonstrado por outra pessoa,
42
Harding, S., Whose Science? Whose Knowledge? Thinking from Women’s Lives. Ithaca, NY: Cornell
University Press, 1991, p. 124, 131.
43
Ibid., p. 307.
44
Ricoeur, P., “The Hermeneutical Function of Distanciation”, p. 144.
71
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45
Thou Shalt Not Be Aware: Society’s Betrayal of the Child, trad. ingl. New York: Meridian, 1986, p.
154.
46
Ibid, p. 144.
47
The Evolution of Childhood, p. 3.
72
A comunidade da infância
48
Cf. Keniston, K., Psychological Development and Historical Change. In: Rabb, T. K. & Rotberg, R.
I, The Family in History: Interdisciplinary Essays. New York: Farrar, Straus & Giroux, 1976. Ele
caracteriza o desenvolvimento psicológico como “uma estrada muito áspera, marcada com
obstruções, entremeada com ruas sem saída, e com paradores sedutores.” (p. 149).
73
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49
Misgeld, D., “Self-Reflection and Adult Maturity: Adult and Child in Hermeneutical and Critical
Reflection”. Phenomenology + Pedagogy v. 3, n. 3 (1985), p. 199.
74
A comunidade da infância
50
Para uma ideia da criança jovem como um profeta involuntário contra a redução ontológica da
natureza implícita no materialismo filosófico, Kennedy, D., Fools, Young Children, Animism, and the
Scientific World Picture. Philosophy Today, v. 33, n. 4 (1989), p. 374-381.
51
Dewey, J., Democracy and Education. New York: Macmillan, 1916, p. 43.
75
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52
Citado em Kennedy, D. The Hermeneutics of Childhood. Philosophy Today, Vol. 36, n. 1 (1992),
p. 44 -58.
76
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53
“Reconstructing Childhood”, p. 73, 75.
54
Ibid., p. 75
77
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55
Assim J. Derrida diz: “o Homem se chama homem só traçando limites que excluem seu outro do
jogo da suplementaridade: a pureza da natureza, da animalidade, do primitivismo, da infância, da
loucura, da divindade. A aproximação para estes limites é temida imediatamente como uma ameaça
de morte, e desejada como acesso a uma vida sem diferença”. Of Grammatology, trad. ingl. Baltimore:
Johns Hopkins Press, 1976, p. 245.
78
A comunidade da infância
O modo da mudança
Qualquer que seja a causa formal ou eficiente, é provavelmente
seguro (e talvez confortável) dizer que a transformação positiva da relação
adulto-criança não está realmente sob nosso controle. As vicissitudes da
dialética histórica que esbocei neste trabalho foram, sem dúvida,
simplificadas demais, e, como conhecimento retrospectivo, não têm,
necessariamente, qualquer valor preditivo. De fato, nossa época está
assombrada pelo espectro do que Postman chama de “adulto-criança”, isto
é, uma personalidade modal, produzida e mantida pela televisão, com a
“idade mental de treze anos”, quer ela tenha oito ou trinta anos de idade,
que sorri maliciosamente diante das mesmas piadas sexuais em séries
televisivas e vibra diante da mesma violência (quer real ou representada —
isto nem sempre é claro), que veste as mesmas roupas e assiste aos mesmos
eventos esportivos. Do ponto de vista do reequilíbrio da economia
instintiva, isto pareceria análogo àquilo que os estudantes de culturas
bilíngues chamam de “semilinguismo”, erosão da competência linguística
em ambas as línguas que a pessoa fala.
Uma mudança histórica do tipo aqui discutida parece acontecer de
modo fragmentado e se caracteriza por períodos, possivelmente muito
longos, de avanços, de retrocessos, de supressão, de reação e, de repente,
de saltos imprevisíveis. O único controle real que nós possuímos sobre ela
é provavelmente no campo da educação. Mas o caráter colonizador da
educação patrocinada pelo Estado parece estar ainda profundamente
entranhado na corrente principal. Enquanto isso, os esforços na
descentralização escolar, dominados como são por interesses próprios
econômicos, religiosos e de classe, tendem a reproduzir o modelo
hegemônico. Como quer que seja, a emergência da teoria e prática
educacionais dialógicas centradas na criança parece oferecer a esperança
79
David Kennedy
80
3. NOTAS SOBRE A FILOSOFIA DA INFÂNCIA
E A POLÍTICA DA SUBJETIVIDADE
56
Lao-tsé, Tao-te ching. Trad. de Stephen Mitchell. New York: Harper & Row, 1988, par. 55.
57
Marcos, 10, 13.
81
David Kennedy
Elas são o que nós fomos; elas são o que nós devemos tornar-nos
novamente. Nós fomos natureza assim como elas, e nossa cultura, mediante
a razão e a liberdade, deve conduzir-nos de volta para a natureza. Elas são,
portanto, não só a representação da nossa infância perdida, [...] mas são,
também, representações da nossa realização mais elevada no ideal.60
58
Bales, Eugene. Recordação, esquecimento e a revelação do ser em Heidegger e Plotino.
Philosophy Today. v. 34, n. 2, 1990, p. 142.
59
Citado In: Abrams, M. H. Natural Supernaturalism: Tradition and Revolution in Romantic
Literature. New York: W. W. Norton, 1971, p. 380.
60
Von Schiller, Friedrich. Naive and Sentimental Poetry and On the Sublime. New York: Frederick
Unger, 1966, p. 85.
82
A comunidade da infância
61
Sobre a divina criança no mito e na psicanálise. ver Jung, C. G., Kerenyi, C. Essays on a Science of
Mythology: The Myth of the Divine Child and the Mysteries of Eleusis. Princeton, NJ: Bollingen, 1963.
62
Diels-Kranz. Fragmento 52.
63
Saint Augustine, Confessions. Trad. R. S. Pine-Coffin. Harmonsworth: Penguin Books, 1961, p. 177
[trad. brasileira pela Vozes].
64
Klein, Melanie. The Psycho-analysis of Children. London: Hogarth Press, 1980, p. 7, 9.
83
David Kennedy
65
Gadamer, Hans-Georg. Truth and Method. Trad. Ingl. New York: Continuum, 1975, p. 92 [trad.
pela Vozes].
66
Winnicott, D. W. Playing and Reality. New York: Basic Books, 1971, p. 41.
67
Brown, N. O. Life Against Death. Middletown, CT: Wesleyan University Press, 1959, p. 38.
68
Schiller, Friedrich. On the Aesthetic Education of Man. New York: Frederick Ungar, 1965, p. 74.
84
A comunidade da infância
A criança e o eu dividido
Platão e Aristóteles inserem a criança num tempo permanentemente
resistente à extinção no tempo. Fazendo isso, eles colocam a criança como
unidade original e símbolo da segunda harmonia, sujeita à supressão.
A criança entra pela primeira vez no tempo ocidental na teoria
platônico-aristotélica do eu tríplice e suas vicissitudes. Na criança, o
equilíbrio entre as três dimensões do eu — apetite, vontade ou “o elemento
vivaz”, e razão — está ontogeneticamente desbalançado. A criança carece
de razão. Por isso Platão considerava que as crianças eram modelos do
apetite indomado e da vontade descontrolada. Elas são propensas — junto
com mulheres, escravos e a “multidão inferior” — à “grande quantidade de
apetites, prazeres e sofrimentos diversos” próprios dos naturalmente
imoderados.69 “Elas estão cheias de sentimentos exaltados já desde o
nascimento.”70 “O menino... justamente porque, mais do que qualquer outro,
tem uma fonte de inteligência nele que ainda não tem ‘funcionado sem
embaraços’,... é o mais ladino, malicioso e indisciplinado dos brutos. Por
isso a criatura deve ser mantida sob controle...”71. A única virtude das
crianças parece ser o fato de serem “facilmente moldadas”, isto é, elas
podem ser transformadas em adultos. Isto requer uma certa forma de
educação como necessidade pessoal e social — daí que a República é o
primeiro sistema educacional do Ocidente.
Aristóteles desenvolve o raciocínio de Platão mostrando como a
comunidade do eu está desviada nas crianças. A preponderância da sua
natureza apetitiva resulta na ou da falta de capacidade de escolha ou “ação
moral”, isto é, a habilidade para engajar-se propositadamente em uma ação
69
The Republic of Plato. Trad. de F. M. Cornford. London: Oxford University Press, 1941, p. 125.
70
Republic, p. 125, 138.
71
Platão, Laws. In: Hamilton, E., Cairns. H. (eds.) Collected Dialogues. Princeton, NJ: Bolingen, 1961,
p. 1379.
85
David Kennedy
visando uma finalidade.72 Por esta razão, a criança não pode ser considerada
“feliz”, porque a felicidade resulta de “atividade de acordo com a virtude”,
que é um estado em que a função executiva da razão controla instinto e
vontade. A felicidade requer bondade plenamente adulta e uma vida
completa. As crianças não preenchem os requisitos de uma “vida completa”.
Se nós dizemos que uma criança é feliz, “é em razão das esperanças que
temos para seu futuro”73. Também não podemos chamar uma criança de
“amigo”, embora possamos amá-la: “Seria absurdo um homem ser amigo
de uma criança”74.
As formulações de Aristóteles e Platão são primeiras manifestações
de uma simbolização permanente, pela qual a criança é ao mesmo tempo
deficiência e perigo. Aristóteles poderia até ser lido como uma teoria
implícita de monstros, no sentido de que as crianças “parecem” humanas
— entendendo-se por “humano” adulto, de sexo masculino, nascido livre e
regido pela razão — mas não são. Elas combinam os mesmos elementos
numa mistura diferente e deficiente. É bem verdade que a criança, se não
tiver nascido escrava ou do sexo feminino, tem a oportunidade de virar um
adulto — isto é, razão em correta proporção com vontade e apetite -, ao
passo que a mulher e o escravo nunca conseguirão. Mas a transição torna-
se problemática. Na realidade, segundo Platão, algumas crianças nunca se
tornam “adultos” no sentido de uma harmonia do eu tríplice: “Algumas, eu
diria, nunca se tornam racionais, e a maioria só em idade avançada.”75 Faz-
se necessária uma tecnologia para atingir a condição adulta, ou seja, a
72
Aristóteles. Physics. In: Ackrill, J. L. (ed.). A New Aristotle Reader. Princeton, NJ: Princeton
University Press, 1987, 197b7-10, p. 104. Ver no mesmo volume Eudemian Ethics, 1224a27-29, p. 492-
493.
73
Aristóteles. Nichomachean Ethics. Trad. M. Ostwald. Indianapolis, In: Bobbs-Merrill, 1962,
1099b:25-1100a:5, p. 22-23.
74
Eudemian Ethics, 1239a:1-6.
75
Republic, p. 138.
86
A comunidade da infância
76
Nichomachean Ethics, 1104b, p. 37.
77
Republic, p. 102.
78
Republic, p. 141.
79
Martin, L., Gutman, H., Hutton, P. H. (eds.). Technologies of the Self: A Seminar with Michael
Foucault. Amherst: University of Massachusetts Press, 1988.
80
Dumezil, Georges. The Destiny of the Warrior. Chicago: University of Chicago Press, 1970.
87
David Kennedy
81
Golden, Mark. Children and Childhood in Classical Athens. Baltimore, MD: Johns Hopkins
University Press, 1990, p. 44.
88
A comunidade da infância
89
David Kennedy
82
Lyotard, J-F, Larochelle, G. What Which Resists, After All. Philosophy Today. v. 36, n. 4, 1992, p.
416.
83
Lyotard, J-F. Mainmise Philosophy Today, v. 36, n. 4, 1992, p. 421. E veja, na mesma edição,
Lindsay, Cecile. Corporalidade, ética, experimentação: Lyotard nos anos 80, p. 389-401. Ver também
Lyotard, J-F, The Inhuman. Trad. G. Bennington e R. Bowlby. Stanford, CA: Stanford University Press,
1991.
90
A comunidade da infância
84
Nandy, Ashis. Reconstructing Childhood: A Critique of the Ideology of Adulthood. In: Traditions,
Tyranny and Utopias: Essays in the Politics of Awareness. New Delhi: Oxford University Press, 1987,
p. 57.
85
Freud, S. Five Lectures on Psychoanalysis. In: Strachey, J. (ed.). The Standard Edition of the
Complete Psychological Works of Sigmund Freud, 24 vols. London: Hogarth Press, 1957, v. 11, p. 48.
91
David Kennedy
86
Brown, N. O. Life Against Death, e Love’s Body. Berkeley: University of California Press, 1966.
87
Harding, Sandra. Whose Science? Whose Knowledge? Thinking from Women’s Lives. Ithaca, NY:
Cornell University Press, 1991, p. 124-131.
88
Kristeva, Julia. Desire in Language. New York: Columbia University Press, 1980, p. 135; e
The Powers of Horror: An Essay on Abjection. New York: Columbia University Press, 1987, p. 65.
89
Marchak, Catherine. The Hoy of Transgresion: Bataille and Kristeva. Philosophy Today, v. 34, n.
4, 1990, p. 354-363.
92
A comunidade da infância
90
Schiller. Naive and Sentimental Poetry, p. 85.
91
Merleau-Ponty, Maurice. Sense and Nonsense. Evanston, IL: Northwestern University Press, 1964,
p. 63.
93
David Kennedy
92
Nandy, p. 75.
94
4. PENSAR POR SI MESMO E COM OUTROS
95
David Kennedy
século XX, embora ela tenha suas raízes filosóficas no idealismo alemão que
começa em Kant e passa por Fichte, Hegel e Feuerbach. É de Feuerbach
que tomamos a frase “Eu e Tu”, que Rosenzweig, na sua metafísica do
diálogo entre Deus, o mundo e a pessoa, legou a Buber. A filosofia do
diálogo viaja, de três maneiras muito diferentes, no existencialismo em
Levinas, na fenomenologia em Merleau-Ponty, e na hermenêutica e na teoria
do jogo em Gadamer.
Gadamer chamou o diálogo socrático de um “viajar separadamente
que visa a unidade”, o que exprime perfeitamente a aparente antinomia
associada à estrutura e à dinâmica da CIF. O diálogo assume duas coisas ao
mesmo tempo: a radical incomensurabilidade das perspectivas individuais,
e uma disposição a ter a própria perspectiva mudada pela interação com
outro. No diálogo, nós estamos posicionados num espaço existencial e
interpretativo que Buber (1970) e outros têm denominado o “entre” — um
espaço que, em termos hermenêuticos, não é o do intérprete nem o do
interpretado, não é o espaço do sujeito nem o do objeto. Diálogo é a própria
estrutura de acontecimento de um espaço de diferença, de uma
interrogação do outro — ou do objeto de investigação — ou ambos —
que é necessariamente também uma auto-interrogação. Ele é uma situação
intersubjetiva singular e significativa. Buber evoca este espaço interpretativo
na sua descrição do momento do surgimento da objetivização e da
categórica tipificação da experiência que ele chama de relação “Eu-Tu”.
Levinas denomina-o “desorientação”, “rompimento” que resulta na “ruptura
do eu-egoísta e no seu recondicionamento face ao Outro” (Levinas 1987:
17). O recondicionamento leva-nos a reconhecer o outro na sua
individualidade como “aquele que é singular” — aquele que anula ou foge
de todas as projeções do ego, e existencialmente vem até antes do ego. A
teoria do diálogo baseia o sujeito não apenas no outro, mas nos limites da
sua própria subjetividade — onde ele só pode conhecer-se em relação a
96
A comunidade da infância
97
David Kennedy
98
A comunidade da infância
A luz que permite deparar-se com alguma coisa distinta do eu faz com que
ele se depare com essa coisa como se esta proviesse do ego. A luz, o brilho,
é em si mesmo inteligibilidade; fazendo com que tudo provenha de mim,
ela reduz toda experiência a um elemento de recordação. A razão está
sozinha. E neste sentido o conhecimento jamais se depara com nada
verdadeiramente distinto no mundo. Eis a verdade profunda do idealismo.
99
David Kennedy
93
A ausência deste conhecimento pode ser uma das fontes do contentamento e dos terrores da
subjetividade infantil, ou do que Freud chamava “narcisismo primário”.
100
A comunidade da infância
101
David Kennedy
102
A comunidade da infância
103
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104
5. LAS CINCO COMUNIDADES
105
David Kennedy
94
Michael L. Raposa, Peirce's Philosophy of Religion, (Bloomington: Indiana University Press), 1989,
p.154.
106
A comunidade da infância
que proviene de la palabra usada en griego para juicio y que trae como
componentes inseparables el riesgo y la oportunidad. Otros temas que
habré de caracterizar son diálogo, juego, teleología, conflicto y disciplina.
Pero primero, las cinco comunidades.
La comunidad de gesto
Esta es quizás la forma de comunidad más obvia y, sin embargo, la
más ignorada. Me refiero al nivel somático y kinestésico fundamental de
intersubjetividad "previo" al lenguaje, que fundamenta, enmarca y se
manifiesta en los niveles de interacción verbales y noéticos. Aun antes de
abrir la boca, ya estamos produciendo sentido juntos. Antes de los signos
que representan ideas o incluso objetos en el mundo, están los signos más
fundamentales de los estados mentales sintientes del cuerpo—James Edie
se refiere a esto como "la aparición física del sentido"— y este signo del
mundo, como el signo del mundo que es el lenguaje, es un signo
compartido, interactivo.95
El gesto es un signo mundano de una intervisibilidad intensa,
continua. Todos nos sentamos mirándonos las caras alrededor de la mesa
—estamos directa o periféricamente, en la mira del otro. Pero lo visual es
sólo una especie de conducto para los procesos liminares y subliminares
que Howard Gardner ha caracterizado como una inteligencia sobre uno
mismo —lo kinestésico-corporal.96 En este nivel, todo ocurre
simultáneamente y todo tiene un efecto: cambiar de postura, levantar la
mano, tensar la espalda y el cuello, mover la cabeza y los ojos al hablar, al
escuchar, etc. Este constante diálogo postural, kinestésico, es inmediato,
simultáneo y completamente inevitable. Desde el momento en que estás en
95
James M. Edie, "Prefacio" en Maurice Merleau-Ponty, Conciousness and the Acquisition of
Language, trad. Hugh J. Silverman (Evanston, Il: Northwestern University Press, 1973), pp. xiii-xiv
96
Cf. Howard Gardner, Frames of Mind (New York: Basic Books, 1985).
107
David Kennedy
97
Estos patrones fundamentales de regulación mutua pueden trazarse desde la situación
interlocutiva primaria del lactante y la madre. La madre y el bebé son una persona en la medida en
que el bebé carece de la capacidad de regular su propio afecto vital y, en consecuencia depende de
la madre para su autorregulación. El modo en que la madre "baila" con el niño para hacer esto es
internalizado por el niño y se convierte en un marco de referencia para los gestos que ha de esperar,
un estilo particular de bailar que puede ser más o menos inhibido, más o menos armónico, etc. Ver
Daniel Stern, The Interpersonal World of the Infant, New York: Basic Books, 1985, especialmente el
capítulo 7, donde describe lo que llama “afecto armonizador”.
108
A comunidade da infância
98
Paul Schilder, The Image and the Appearance of the Human Body: Studies in the Constructive
Energies of the Psyche (New York: International Universities Press, 1950), pp. 235-273
109
David Kennedy
99
John Dewey, How We Think, (Buffalo(New York: Prometheus Books, 1991 [1910]), p. 171.
100
Merleau-Ponty, pp. 45-46.
101
Ibid., p. 12.
110
A comunidade da infância
gestual grupal? Schilder dice que no se produce cosa tal como una imagen
corporal colectiva, sino sólo lo que él llama una comunidad parcial de
imágenes corporales, pero estamos tentados de afirmar que una gestalt
colectiva gestual es un análogo necesario del proceso colectivo de mente y
lenguaje —i.e. la Discusión— que es más fácil de ver, porque deja huellas,
porque no es "mudo". Merleau-Ponty sugiere al menos una coordinación
grupal de perspectivas fisionómicas cuando afirma que "en la actividad del
cuerpo, como en el lenguaje, existe una lógica ciega, pues en la comunidad
de sujetos hablantes se observan leyes de equilibrio sin que ningún
miembro sea consciente de ello."102 Quizás podamos aproximarnos a esta
idea, nuevamente con la ayuda de Merleau-Ponty, por medio de la idea de
"estilo" que él define como una "manera que aprehendo y luego imito" de
otras personas, aun cuando sea incapaz de definirla", a través del poder
comprehensivo de mi corporeidad."103
A medida que pasa el tiempo en la comunidad de cuestionamiento e
investigación, dado que nos entendemos con nuestros cuerpos y en
coordinación con las realidades del lenguaje, la mente, el poder y el deseo,
construimos juntos una manera de sentarnos a la mesa que es la suma de
todos nuestros hábitos posturales, faciales, de nuestros modos de mirar y
movernos y también algo mayor que la suma. Como la relación que tienen
nuestras imágenes corporales entre sí, este todo está continuamente en
construcción; hay, como dice Schilder del diálogo de imágenes corporales
individuales, "un examen continuo para averiguar qué partes encajan en el
plan y en el todo".104 Este todo incompleto da forma tanto al movimiento de
la Discusión al tiempo que ésta da forma a aquél, en el sentido de que
cuando los movimientos son "buenos" el todo se va tejiendo y hay un
102
Ibid., p. 95.
103
Ibid., pp. 42-43.
104
Schilder, p. 286.
111
David Kennedy
La comunidad de lenguaje
Ya he citado a Merleau-Ponty cuando dice "el discurso emerge del
'lenguaje total' constituido por gestos, mímicas, etc." Luego continua
112
A comunidade da infância
105
Merleau-Ponty, p. 12.
106
Esto parece relacionarse con la paradoja señalada por Russell: la paradoja de la clase que no
puede incluirse a sí misma (e.g. la clase de las sillas no es en sí misma una silla).
113
David Kennedy
107
Siempre quise conducir una reunión de comunidad de cuestionamiento e investigación sin
palabras, sólo con gestos.
114
A comunidade da infância
115
David Kennedy
La comunidad de mente
La comunidad de mente opera en un continuo desde el pensamiento
deliberativo, disciplinado de la lógica Occidental, con una voluntaria
sumisión a sus leyes, hasta la cualidad de cuidado por el todo, un campo
emergente de ideas, que se encuentra a sí mismo moviéndose extrañamente
más allá de la ley de contradicción y del tercero excluido. El borde principal
de este emergente se llama, a veces, la "discusión", que por medio de un
proceso dialéctico, dialógico, busca un horizonte que se aleja
constantemente. El borde emergente implica un todo, que es aprehendido
por cada individuo tanto estética y emocional como lógicamente. Lo capto
de acuerdo con mi capacidad para integrarlo, y su calidad total cambia cada
vez que actúo dentro de él. Es vulnerable frente a la confusión cuando la
discusión se pierde, pero la misma calidad de emergencia, de sentir
autocorrectivamente el propio camino, es necesaria para su progreso.
Quizás más que cualquier otra, la comunidad de mente requiere cierto
coraje, o disciplina de juego, una confianza en el despliegue de la discusión
por medio del conflicto y el intercambio de perspectivas.
Todos tenemos la impresión de que la mente, o el pensamiento, está
en alguna medida fuera del tiempo; un sistema de signos —naturales,
intencionales, icónicos, establecidos o lingüísticos— lo introduce, si bien
imperfectamente, en el tiempo. Pero esto no quiere decir que separada del
lenguaje sea pura, etérea o "espiritual", pues como lo señala Peirce, "la
materia de la mente es el sentimiento, ya que las ideas no son más que
continuos de sentimientos vivos". Porque "el sentimiento vago es el estado
primordial de la mente" y los sentimientos son pensamientos vagos, la
comunidad de cuestionamiento e investigación es tanto un fenómeno
emocional cuanto mental. Tanto la mente como el sentimiento operan por
asociación, expansión, conexiones y uniones. La discusión siempre lleva a
un estado de sentimiento tanto como a un juicio puramente cognitivo. "Las
116
A comunidade da infância
108
Raposa, pp. 38, 131.
109
John Dewey, Ibid., pp. 39, 34, 79, 80, 211.
117
David Kennedy
La comunidad de amor
La comunidad de cuestionamiento e investigación es un grupo de
romance, cuyo eros es tanto sexual, platónico (en el sentido del eros del
Banquete) como agápico. El eros sexual de la comunidad de
cuestionamiento e investigación se experimenta no solamente en las varias
110
Raposa pp. 18, 25.
111
Robert S. Corrington, The Community of Interpreters (Macon: GA; Mercer University Press, 1987)
p.3.
118
A comunidade da infância
112
Herbert Marcuse, Eros and Civilization (Boston: Beacon Press, 1955) cap. 10, "The Transformation
of Sexuality into Eros".
119
David Kennedy
113
Ver Ann Sharp, "Peirce; Feminism and Philosophy for Children", Analytic Teaching (14, 1), 1993,
p.58
114
Raposa, p. 83.
115
Peirce lo identificó como algo más. Para él es, de hecho, el principio de "amor evolutivo" por el
cual tanto la naturaleza y la mente, o el pensamiento, tienden hacia la unidad y la totalidad. Dada la
metafísica freudiana, "instinto" debe haber sido la única manera en que él podía llamarlo.
116
Rechazo deliberadamente cualquier tipo de distinción final entre eros y agape. Los considero
formas, modos o dimensiones de lo mismo.
117
Corrington, p. 43.
120
A comunidade da infância
118
Ibid, p. 17.
119
En Collected Papers 2.654. Citado en Raposa, p. 23.
121
David Kennedy
La comunidad de interés
La comunidad de interés podría también caracterizarse como la
comunidad del interés de cada yo, o simplemente del yo o como la
comunidad política. Es la comunidad de individuos que buscan poder e
invulnerabilidad a través de la amistad, la alianza, la puesta en práctica, la
influencia, la dominación, la jerarquía, el favor especial, etc. Cada individuo
es llevado a "ser alguien", a contar, a tener importancia y para lograrlo está
continuamente, de manera, casi inconsciente, negociando la influencia y el
reconocimiento tanto con el grupo como todo, como con diferentes
subgrupos y con cada individuo dentro del grupo.
La negociación se construye socialmente, con relaciones de poder que
en todos los casos, de manera tácita o no, ya están definidas, pero siempre
en proceso de cambio y variación. Esto es necesario en la medida en que
ser un yo significa pasar por series continuas de interpretaciones que se
derivan en parte de la estructura comunitaria y, entonces, mi
autocomprensión depende en gran medida de cómo el grupo me
comprende a mí. Por otra parte, es una necesidad trágica, puesto que lo
que la hace completamente necesaria es mi radical finitud, un solipsismo
involuntario que subyace a la "autoreferencia narcisista de la vida
precomunicativa" mencionada más arriba. Estoy atrapado en mi propio
horizonte y ese horizonte está arraigado en aquello que Corrington llama
una "voluntad de vivir descontrolada y sin guía.. que se encuentra en todos
los seres, que los obliga a luchar unos contra otros por la dominación...
dando lugar a una lucha trágica que, en su forma extrema, hace imposible
la comunidad."120
Esta finitud trágica da cuenta de los elementos patológicos y
disfuncionales que con tanta facilidad perturban a la comunidad de
120
Corrington, p. 26.
122
A comunidade da infância
121
Ibid, p. 47, 67.
123
David Kennedy
124
A comunidade da infância
Algunas interrelaciones
Quisiera explorar ahora algunas de las relaciones analógicas, las
armonizaciones expresivas y las influencias mutuas entre las cinco
comunidades; sin olvidar que la descripción de estas interrelaciones
corresponde siempre a "un modo de decir", dado que en la experiencia las
cinco comunidades son inseparables.
El gesto y el lenguaje están siempre en alguna relación de mutuo ir y
venir, aunque las modalidades de ese ir y venir puedan ser irónicas,
contradictorias o ambiguas. El gesto también interactúa con la mente, en
un reflejar o expresar su movimiento generalizador y dialéctico dentro de
nosotros y entre nosotros, en un signo natural cuya forma más intencional
es la danza.122 Entonces, el pensamiento nos mueve: nuestros rostros brillan,
se contraen, estamos posturalmente electrificados por una idea; una
contribución que ciñe la discusión, también nos ciñe alrededor de la mesa.
El amor y el interés dan forma a las energías y modalidades más
fundamentales del gesto, por cuanto, biológicamente, el movimiento se
arraiga en el deseo y el miedo (nos acercamos hacia uno y nos alejamos del
otro), que se manifiestan en los objetivos, catexis, antipatías, seguridades e
inseguridades del yo y sus relaciones. El interés y el deseo se reflejan y
expresan también en la danza intersubjetiva que tiene lugar entre los
individuos y algunas veces entre los subgrupos, danza que puede ser erótica,
tímida, agresiva, juguetona, abstracta, ambigua, formal, no decisiva, etc.
El lenguaje, sólo por ser una traducción de la mente, es ya una
distorsión, aunque pueda ser una distorsión coherente. Esto también ocurre
con sus efectos en las otras comunidades. En cada caso, el costo que se
extrae de traducir cosas en palabras es la dimensión misma que hace a la
comunidad ser lo que es. Aunque lo poético, en la medida en que es un
122
En el último, el gesto va por delante de la mente y la guía.
125
David Kennedy
126
A comunidade da infância
Crisis
Se ha convertido casi en un lugar común de las teorías del desarrollo
que, en cualquier proceso dialéctico, el movimiento hacia adelante implica
una ruptura del equilibrio previo de manera que permita establecer un
nuevo equilibrio en un nivel superior. La investigación avanza a través de
continuas disrupciones; Lipman lo compara con el caminar "en el que sólo
se avanza perdiendo constantemente el equilibrio."124 Duda y creencia —
una compleja red de creencias y supuestos instintivos, en su mayoría vagos
y muchos de ellos, en algún momento dado, totalmente inconscientes125—
permanecen en un estado de constante tensión dinámica. Cuando estas
123
Para un ejemplo de este dilema, ver Marguerite y Michael Rivage-Seul, "Critical Thought and
Moral Imagination: Peace Education in Freireian Perspective", en McLaren, P. & M. Lankshear (eds.),
The Politics of Liberation (South Hadley, MA: Bergin and Garvey, 1994).
124
Matthew Lipman, Thinking in Education, Cambridge: Cambridge University Press, 1991, p. 232.
125
Raposa, p. 96. En la p. 104 se refiere a "un sistema completo de opiniones, hábitos de pensamiento
que pueden considerarse instintivos o, en palabras de Peirce, ocasionados en el aprendizaje infantil
y la tradición."
127
David Kennedy
Diálogo
La crisis se precipita por medio de otro. El diálogo comienza en el
reino de la "segundidad" de Peirce, donde la experiencia contradice nuestras
126
Dewey, p. 11.
127
Esto lo señala Raposa, p. 95. Distingue esta forma de duda de la duda cartesiana de creencia igual
a cero, que es una suerte de patología intelectual, o al menos un fanatismo.
128
En How we think Dewey dice, "ningún objeto es tan familiar, tan obvio, tan común , como para
que no pueda presentar, en una situación nueva, algún problema.” (p. 120)
128
A comunidade da infância
129
Hans-Georg Gadamer, Truth and Method, New York: Crossroad, 1975, p. 318.
130
Raposa, pp. 78 y 83.
131
Para una brillante fenomenología de la dialéctica, ver H.-G. Gadamer, The Idea of the Good in
Platonic-Aristotelian Philosophy, New Haven: Yale University Press, 1986. Para un resumen de estos
argumentos, ver mi "Hans-Georg Gadamer's Dialectic of Dialogue and the Epistemology of the
Community of Inquiry" in Analytic Teaching 11, 1, 1990, pp. 43-51.
129
David Kennedy
Juego
Como un momento de negatividad, de la contradicción que tiene
lugar, el diálogo es un trabajo de los más profundos, aun como aquello a lo
que se refería Sócrates en el Fedón como "práctica para la muerte". Desde
el punto de vista del campo de sentidos emergentes que crea, el diálogo es
profundamente lúdico, porque rompe la rutina de lo instrumental, la
"voluntad de vivir descontrolada y sin guía". Al abrirnos nosotros mismos
a la perspectiva del otro, estamos arrojados a un espacio de emergencia y
transformación, en el que la discusión ya no surge de ninguna persona en
particular sino del intercambio entre las personas. A través de lo que Peirce
llamó la "reflexión interpretativa", "permitimos que los signos se
desplieguen en patrones nuevos y creativos,"133 y a menudo lo inesperado, la
combinación azarosa permite que la discusión progrese.
Según la noción de "tychismo" (del griego týche = azar) de Peirce, el
azar genera orden, ya que en su espontaneidad, en su diferencia, en su
variación, actúa como un catalizador en la producción de niveles más
elevados de uniformidad, rompiendo viejos hábitos y estimulando el
132
Corrington, pp. 41 y 42.
133
Corrington, p. 8.
130
A comunidade da infância
134
Raposa, pp. 32, 74; Corrington, p. 126.
135
Raposa, p.131. Peirce también dijo "las más grandes verdades sólo pueden sentirse." (ibid)
136
Ibid, pp. 218-219.
137
Dewey, p. 219.
131
David Kennedy
138
Ibid, p. 75.
139
Ibid, p. 217
132
A comunidade da infância
Teleología
Somos capaces de entregarnos al juego del diálogo en la comunidad
de cuestionamiento e investigación porque confiamos implícitamente en
que hay una formación inmanente y un despliegue tanto del pensamiento
como de la estructura relacional entre nosotros. Sentimos que estamos
embarcados juntos en un movimiento hacia una coordinación de
perspectivas, a través de la cual nuestro universo de sentido será
transformado, incluyendo la relación fundamental entre el individuo y el
grupo, i.e. la estructura óntica de la comunidad misma. Este télos se
presenta como lo que Corrington llama una "fuente incondicional de valor"
que desde adentro, nos conduce y desde afuera, nos atrae. Promete un
estado de perfecta razonabilidad, de unidad inclusiva y de apertura radical,140
i.e. de superación de la finitud trágica que perturba y distorsiona nuestra
investigación, así como nuestras relaciones. Entonces, cada acto
interpretativo individual apunta más allá de sí mismo hacia un todo en
formación, hacia una perspectiva más abarcadora en la que todos los signos
se ubican unos en relación con otros. Cada acto interpretativo es, en
definitiva, juzgado por ese horizonte infinito que prometía una verdad total
o "un largo plazo infinito que garantiza la validación de los actos
interpretativos."141Aunque no podemos evitar operar atraídos por este
horizonte infinito, siempre excede el horizonte de lo que puede estar
presente ante nosotros en un momento dado; entonces tenemos solamente
verdades parciales, destellos de la verdad que manifiesta aspectos de sí
misma en el discurso humano; no podemos deducir de antemano cómo se
verá. Como plantea Corrington, "ninguna serie [de signos] alcanzará la
totalidad, aunque ninguna serie dejará de anhelar la integración completa
140
Corrington, p. 12.
141
Ibid, p. 47.
133
David Kennedy
Conflicto
El conflicto en la comunidad de cuestionamiento e investigación está
habitualmente asociado con la comunidad de interés —con luchas
personales, divisiones ideológicas o actitudes o comportamientos
presuntuosos, insensibles y difamantes. Pero así la razón entra
necesariamente en contradicciones que le permiten desarrollarse: el
conflicto es un tema universal de la comunidad de cuestionamiento e
investigación. La experiencia de la investigación siempre acarrea un
elemento negativo, una necesidad de ser refutado para aprender lo que no
se sabe. El dia de dialéctica representa el proceso de diferenciación, de un
ir a través en el que las cosas se separan, lo cual implica siempre un cierto
grado de conflicto.
El conflicto es un resultado de la resistencia de la segundidad, los no-
yo, lo particular y disruptivo, a nuestras expectativas. La resistencia es un
elemento clave en el progreso de la discusión, pues a través de ella, la
realidad resiste las pretensiones de cualquier teoría que se vuelve presuntiva
e intenta explicar más de lo que realmente puede; en consecuencia los
caminos falsos son eliminados.143 Pero el hecho de que todo conflicto sea un
aspecto central, necesario de todo proceso dialéctico no reduce el
importante riesgo que representa para la comunidad de cuestionamiento e
investigación. Este riesgo aumenta por nuestra tendencia a sostener un
modelo homeostático o de "orden" del proceso grupal, que entiende el
conflicto como inherentemente malo y desintegrador, y que en
142
Ibid, p. 66.
143
Ibid, p. 4.
134
A comunidade da infância
144
Ibid, p. 64
145
Raposa, p. 90
135
David Kennedy
Disciplina
La disciplina es la virtud operativa de la comunidad de
cuestionamiento e investigación, en tanto implica un mínimo nivel de
146
Ibid, p. 57.
147
Ibid, p. 64.
148
Ibid, p. 66.
149
Raposa, p. 89.
136
A comunidade da infância
150
Ibid, p. 64.
137
David Kennedy
el que yo creo que aún no hemos terminado. Para ser capaz de practicar
esta disciplina, debo tener confianza en el carácter evolutivo de la
comunidad de cuestionamiento e investigación —que aunque "a la razón
le gusta esconderse", la discusión, como el agua que busca su nivel,
eventualmente superará todos los obstáculos que le impiden avanzar.
En las áreas del amor y el interés, la misma disciplina es necesaria
para proteger el espíritu de la investigación de los riesgos de
monopolización, agresividad, competitividad, seducción, timidez,
intimidación, sobreexcitación, disipación, negativismo, parálisis,
trivialización y otros. Además, cualquier discusión dada genera su propia
lógica y ritmo, que no puede anularse por un método mecánico. El
entendimiento debe esperar el kairós, el momento oportuno y no forzar el
diálogo hacia patrones predeterminados.151 Cada miembro de la comunidad
de cuestionamiento e investigación debe llegar a entender y a practicar los
sacrificios, grandes y pequeños, que son necesarios para animar y proteger
ese momento oportuno. Esta habilidad de sacrificio se expresa de manera
muy concreta cuando los miembros aprenden a retener su participación
porque perciben que algo más importante emerge del horizonte discursivo,
a convertir en pregunta lo que iba a ser una afirmación positiva o a dejar
de lado la posibilidad de continuar un intercambio que limita la
participación de los otros. Esta disciplina está bajo el signo cristiano de la
crucifixión o el principio de que nada se transforma sin una muerte o una
pérdida —en este caso la pequeña muerte de nuestra potencial
intervención. Actúa minando las formas más extremas de individualismo y
purificando progresivamente las distorsiones hermenéuticas individuales o
subjetivas,152 lo que a su vez aumenta la agudeza del juicio y, de ese modo
151
Corrington, p. 43.
152
Ibid, p. 77.
138
A comunidade da infância
Conclusión
Aun antes de ser una comunidad de signos naturales e intencionales,
la comunidad de cuestionamiento e investigación es un contexto
comunicativo, un terreno de intersubjetividad dinámica, que está
continuamente creciendo, cambiando, ocupada en nacer o en morir. Su
investigación no es meramente cognitiva, sino lingüística, personal, social,
emocional, política, erótica, festiva. Si se desarrolla bien, está abierta en
todos estos niveles a la emergencia de algo, en un movimiento dialéctico,
autocorrectivo que parece interminable. Lo que la mantiene en
funcionamiento es el impulso erótico hacia la sabiduría y este eros hace
posible los sacrificios que demanda. El amante del todo sacrifica sus
reclamos peculiares en pos de la transformación del grupo que, a su vez, lo
transformará a él. Este principio recorre como un filamento rojo todas las
dimensiones de la comunidad de cuestionamiento e investigación. En la
comunidad de mente, debemos aceptar el desmembramiento de nuestra
opinión, abandonar una conclusión provisoria para permitir que la
139
David Kennedy
140
6. A ESCOLA DO TERCEIRO REINO ALEGRE153
153
Tradução de Juliana Merçon. Título original: “The School of the Third Joyous Kingdom”.
154
Friedrich von Schiller, 1954 [1795], p. 78, 75.
141
David Kennedy
155
John Dewey, 1988 [1922]), p. 70.
156
Erik H. Erikson, 1963, p. 259.
157
“A sublime melancolia da nossa espécie consiste em que todo Tu deve se tornar um Isso em nosso
mundo. Não importa quão exclusivamente presente ele tem estado no relacionamento de direção —
assim que o relacionamento tiver feito o seu percurso ou for permeado pelo meio, o Tu se torna um
objeto entre outros, possivelmente o mais nobre deles e ainda um deles, atribuída sua medida e
fronteira. A atualização do trabalho envolve uma perda de atualização… Todo Tu no mundo está
condenado por sua natureza a se tornar uma coisa ou pelo menos a entrar para o domínio das coisas
uma e outra vez… O Isso é a crisálida, o Tu a borboleta. Só que nem sempre esses estados se alternam
com clareza; muitas vezes é uma série de eventos intrincadamente entrelaçada que é tortuosamente
dual" Martin Buber, 1970 [1922], p. 68-69.
142
A comunidade da infância
158
John Dewey, 1988 [1922], p. 50.
143
David Kennedy
159
Ibid., p. 50, 70 e 52.
160
Ibid., p. 73.
144
A comunidade da infância
161
D.W. Winnicott, 1989 [1971], p.102, 103, 107 e 114.
145
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146
A comunidade da infância
147
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162
Yi-Fu Tuan, 1977, p. 116, 112.
148
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163
Erik H. Erikson, 1963, p. 259.
149
David Kennedy
164
Trabalhos principais que se dirigem ao design institucional diretamente ou por implicação são:
Christopher Alexander, A Pattern Language (New York: Oxford University Press, 1977); Meyer Spivak,
Institutional Settings: An Environmental Design Approach (New York: Human Sciences Press, 1984);
150
A comunidade da infância
e Carol Simon Weinstein and Thomas G. David (eds.), Spaces for Children: The Built Environment
and Child Development (New York: Plenum Press, 1987).
165
Michel Foucault, 1979, p. 26.
166
J. Dewey, 1988 [1922], p. 47.
167
1979, p. 190.
151
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152
A comunidade da infância
153
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154
A comunidade da infância
168
Para duas visões históricas breves da pedagogia de projetos, cf. See H. Warren Button and Eugene
F. Provenzo, Jr., History of Education and Culture in America (Englewood Cliffs NJ: Prentice Hall,
1983), p. 257-259, e Lawrence A. Cremin, The Transformation of the School: Progressivism in
American Education, 1876-1957 (New York: Alfred A. Knopf, 1961), p. 216-220. Para o seu surgimento
inicial, cf. William Heard Kilpatrick, “The Project Method,” Teachers College Record v. 19, n. 4
(September 1918), e sua elaboração em Foundations of Method (New York: Macmillan, 1925). Para
uma formulação mais recente, veja Lilian G. Katz and Sylvia C. Chard, Engaging Children’s Minds:
The Project Approach (Norwood NJ: Ablex, 1991).
169
Para descrições da prática de Reggio Emilia, veja Carolyn Edwards, Lella Gandini e George Forman
(eds.), The Hundred Languages of Children: The Reggio Emilia Approach to Early Childhood
Education, especialmente Capítulos 10 e 11, que são relatos detalhados de projetos específicos.
Também cf. Rebecca New, “Excellent Early Education: A City in Italy Has It”, Young Children, v. 45,
n. 6 (September 1990), p. 4-10.
155
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156
A comunidade da infância
170
John Dewey, 1959, p. 49.
171
John Dewey, 1987 [1916], p. 79.
157
David Kennedy
por elas mesmas as questões fundamentais que oferecem uma base racional
para estudar matemática — ou qualquer umas das outras áreas de
conteúdo — em um nível mais profundo do que o de sua aplicação prática.
A questão da ausência da aplicação prática é usualmente apresentada como
fonte da não satisfação das crianças com a escola, mas, de fato, a questão é
a ausência da presença dos questionamentos próprios das crianças na
construção daquilo que é estudado — isto é, a questão do sentido e
significado. 172 Quando a matemática — ou a história, ou as artes, ou a
linguagem, ou a ciência — é abordada criticamente em busca das
pressuposições inerentes que subjazem suas crenças e suas pretensões
normativas, então sua identidade como um corpo de conhecimento estático,
já-estabelecido, imposto externamente, é desatada, e se revela a medida até
a qual cada disciplina é ela própria um produto de investigações prévias.
Como resultado, as crianças se tornam capazes de conectar a disciplina —
um artefato organizado — com seus próprios questionamentos
espontâneos e interessados.
As atitudes, motivos e interesses contidos na experiência da criança
que identificam a criança e o currículo como dois limites que definem um
só processo não têm, em um nível mais profundo, a ver com a aplicação
prática, ou com a questão do "como posso usar isso na vida real?". Aquela
questão é simplesmente o primeiro desafio de uma criança com relação à
pedagogia e ao currículo da colonização, e um primeiro ato de rebelião
cognitiva contra uma forma de educação que separa o trabalho do sentido
e significado. Ela não seria sequer perguntada em uma escola que
verdadeiramente valorizasse os interesses da criança. Ao invés disso, as
atitudes, motivos e interesses ligados ao questionar revolvem em torno da
172
Para uma argumentação eloqüente a favor da prioridade do "sentido e significado" [meaning] e
"ponderação" [thoughtfulness] com relação à “racionalidade” na estrutura e design educacionais, cf.
Matthew Lipman, Ann Margaret Sharp and Frederick S. Oscanyan, 1980, 4-11.
158
A comunidade da infância
159
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160
A comunidade da infância
constitui um grupo "lar". Estes grupos podem ser reunidos através do uso
de vários critérios: com base em um interesse disciplinar — por exemplo,
o grupo poderia ser interessado em linguagens, nas artes, ou ciências ou
matemática; com base em um interesse mais imediato, como um projeto
de longo prazo no qual eles todos expressaram interesse; ou com base no
nível de habilidade no aprendizado da matemática ou da escrita e leitura
(o que não significa necessariamente que todos os estudantes estariam no
mesmo nível); com base em uma análise sociométrica, ou alguma outra. O
professor mentor ou orientador se encontraria com este grupo no começo
e no fim do dia escolar, e geraria e/ou monitoraria, para cada criança, planos
individuais ou para pequenos grupos. E talvez haja outros períodos durante
o dia ou semana nos quais este grupo esteja junto — para instrução
individualizada, para investigação colaborativa, para trabalho de projeto,
para tutoria feita por um colega, pequenos grupos de trabalho de vários
tipos, ou para algum outro tipo de atividade de solução de problemas.
O espaço "lar" do grupo seria construído para tornar possível, não
apenas o conferenciar, como também o estudar e comer junto. Tais espaços
lar estariam espalhados pela escola, e cada um proveria lugares macios —
isto é, áreas encarpetadas e poltronas e cadeiras macias — uma mesa para
seminários, espaço apropriado para a preparação de comida e para comer,
lugar para estocagem e apresentação de materiais, e áreas individuais de
estudos na forma de pequenas mesas individuais [carrels]. Cada um desses
lugares seria contíguo ao escritório do professor orientador, e acessaria
também um jardim ou terraço interior ou exterior. Durante o curso do dia,
as crianças se aventurariam para fora dessas bases lar para uma variedade
de espaços que provêm estúdio, oficina, laboratório, recurso, ensino,
seminário, e eventos de encontros com o grande grupo. Alguns desses
espaços seriam fechados, alguns parcialmente fechados, e algumas áreas
abertas para as calçadas que conectam a todos eles. Quanto mais nova a
161
David Kennedy
162
A comunidade da infância
163
7. A PARTIR DE ESPAÇO SIDERAL E DO OUTRO LADO DA RUA:
A DUPLA VISÃO DE MATTHEW LIPMAN
173
Todas as referências são de Matthew Lipman, A Life Teaching Thinking. Montclair, NJ: IAPC.
2008.
165
David Kennedy
não se dirigisse pessoalmente a eles, elevando seu olhar para algum lugar
além dele mesmo, mas que era inteiramente ele, que era seu corpo, suas
células.
Sua primeira lembrança tem a ver com a exploração da possibilidade
humana de voar. Ele não tinha ainda dois anos. Ele está em pé, no alto da
escada, olhando fixamente para o pouso abaixo:
166
A comunidade da infância
pensa que se pular estaria ajudando seus companheiros, dos quais ele
vagarosamente fica para trás devido à angústia física. E, finalmente, como
a “última boa guerra” está terminando, ele, o escriturário e responsável pela
correspondência da sua companhia no exército, se encontra como um
turista no pináculo da catedral bávara de Ulm, querendo subir ao topo, que
o aterroriza, e novamente lutando com o desejo de pular.
A raiz dourada desses incidentes — em que o desejo de voar, após a
primeira frustração enquanto pequeno, converte-se em experiência do
medo, não só de cair, mas também de pular, como se ele fosse empurrado
por uma mão invisível para a morte — é um tema misterioso no relato de
Lipman sobre o começo de sua vida, que envolve uma profunda contradição.
Em cada caso ele diz “um aspecto complicado era minha tendência a
‘esquecer’ ou ‘reprimir’ ter escolhido ficar bem na beira de um lugar
elevado, de modo que, de fato, eu estava me desafiando ou me provocando
a me jogar”. E o fio conduz, com um surpreendente contratempo de
espelhismo e correspondência simbólica, à experiência da filosofia — mas
é a filosofia que o resolve. No final das contas, aos dois anos ele soube que
não podia voar, mas o desejo de voar persistiu como uma negação — como
um desejo de morte — até encontrar aquela nobre preocupação que, ele
acha, o leva às alturas sem o perigo de autoimolação. Quando vivia em
licença na Inglaterra durante o conflito, Lipman deparou-se com uma edição
da Ética de Spinoza em “uma pequena livraria de Londres”. Aos vinte e dois
anos, sua voracidade intelectual pelejou com ela e “quando finalmente
terminei, foi como se tivesse chegado ao topo de uma grande montanha, e
ao olhar para baixo visse o vale se espraiando em todas as direções.” (p.
79)
Mais tarde, Lipman conecta diretamente a experiência da leitura de
Spinoza à subida na catedral de Ulm, que de fato havia sido aterrorizante:
“A escada espiralada, cada vez mais estreita, ao redor da coluna central,
167
David Kennedy
enquanto que a abertura das janelas oprimia mais de perto à medida que
se subia” (p. 48); mas levado ao ápice pela Ética de Spinoza (amor Dei
intellectualis!), seu amor e medo de altura se transformou. Ele descobriu
que a filosofia tem ligação com os lugares altos porque permite ver ao
longe, e fazer filosofia é uma espécie de voo — sem queda, mas voando. É
o olho voando, a mente voando por sobre o mundo apreendido, provocado,
pelo que ele chama “conhecimento adequado”, o panóptico epistemológico,
a ruptura noética, o ponto arquimediano. “Eu estava magnetizado pela
ideia” escreve Lipman:
168
A comunidade da infância
poder social que ele, sempre com a intenção idealista de “provocar uma
mudança real no mundo”, podia respeitar (p. 105).
Este é um amor de criança pela filosofia — sempre como se ele
acabasse de tê-la descoberto, sua beleza, seu poder e sua utilidade. Um de
seus primeiros usos foi fornecer um marco para a problemática posta pela
sua experiência juvenil da Segunda Guerra. Os elementos subjacentes, que
eu interpreto como binários, são: 1) a extraordinária crueldade, estupidez,
imoralidade, desperdício extravagante e a destrutividade maliciosa e gratuita
dos seres humanos na guerra, que inspirou nele “um horror interminável...
quanto à crueldade e à violência” e um ardente desprezo, geralmente
escondido, quanto à hipocrisia ignorante que a sanciona; e 2) o otimismo
extraordinário e a generosidade de uma geração e de uma nação que podia
reclamar os benefícios de ter vencido a única (como foi pensado) “guerra
justa” do século — o otimismo do império norte-americano em ascensão.
Ele havia deixado a casa dos pais muito jovem, em condições bem
determinadas pela Depressão, devido a uma falência financeira que não
tinha qualquer relação lógica com a inteligência, inventividade e tenacidade
do duro trabalho de seu pai (seu pai, tal como ele, foi um inventor) e sem
dinheiro para se matricular na universidade que queria: Columbia. Voltou
para casa no clima de euforia nacional com uma bolsa para Columbia,
através da lei G. I. Bill, para um doutorado que ele teria que fazer em cinco
anos, como o fez.
O primeiro elemento da problemática — a guerra e seus efeitos
posteriores — o levou a desejar “efetuar uma mudança real no mundo”,
viver o máximo possível para o “ato exemplar”, buscar aquela vida de
“princípios práticos” que ele identifica como sendo o patrimônio psicológico
de seu pai. Então, quando em 1952 casou-se — no Paris City Hall com uma
norte-americana afrodescendente, estudante como ele (“Eu me apaixonei
pela linda Wynona”) — ele (e ela) puderam ser considerados como tendo
169
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170
A comunidade da infância
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que no final das contas está dentro dele. A busca de Lipman foi
exemplificada pela sua sede insaciável da “riqueza” de “experiências
preciosas” de poesia, romance, filosofia, música, arte, cursos acadêmicos e
amizades intelectuais. O Louco se encontra com reis, sempre de modo
pouco provável. Então Lipman, um jovem algo tímido com imenso
entusiasmo e uma gigantesca capacidade para o trabalho intelectual, ao
terminar a universidade recebe uma bolsa Fulbright de pós-doutorado, viaja
para Paris (ele conhece Wynona no barco, e eles se ligam imediatamente)
e encontra Madame Marc Chagall (o pintor não estava presente na ocasião).
Ela o convida para jantar “animadamente, numa família-estilo-Renoir”. Ele
deixou passar a oportunidade — “devido, eu refleti então, à minha timidez,
mais do que por falta de amizade pela família” — e, portanto, perdeu a
oportunidade de conhecer o eminente pintor. (p. 72) Ele conheceu Merleau-
Ponty, Bachelard e inúmeros outros artistas, poetas e intelectuais
proeminentes. Merleau-Ponty, que teve notícia de um de seus artigos, o
convidou para uma recepção em que o Louco, como Percival na casa do Rei
Pescador, conhece sua linda sobrinha, que, ele suspeita:
172
A comunidade da infância
173
David Kennedy
Jersey, cargo que assumiu durante trinta anos — e cada vez mais assediado
pela necessidade sempre presente de “fazer uma contribuição significativa
para o mundo” — quando então, com seu filho de três anos no carrinho,
escorregou em uma calçada com neve e quebrou o tornozelo.
Seu tornozelo foi imobilizado e ele precisou de muletas. Treinando
como usar as muletas perdeu o equilíbrio, caiu e lesionou a coluna. Passou
cinco dias no hospital onde leu O vermelho e o negro de Stendhal.
Capturado pelo “momento impressionante” em que o herói, Julian Sorel,
arrisca a vida ao segurar a mão de sua amada enquanto seu truculento
marido está sentado ao lado com um revólver, Lipman se deu conta de que:
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Eu não podia deixar de refletir sobre tudo que pudesse ser uma
oportunidade, para transformações pedagógicas não por intermédio de
meias medidas microscópicas, mas medidas dramáticas e transversais que
afetassem não apenas os estudantes universitários de amanhã, mas também
os professores de depois de amanhã. O que era preciso, pensei, era uma
educação que tornasse as crianças mais razoáveis e mais capacitadas para
exercer bons juízos. (p. 107)
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Cheguei cedo para pegar o ônibus, eu era o primeiro de uma pequena fila,
e tinha escolhido meu assento, no meio do ônibus, junto à janela. Logo
depois, entrou uma moça extremamente atraente que teria mais ou menos
a minha idade (20). Ela esperou um pouco para ver quais os assentos livres
e veio sentar-se ao meu lado. Eu havia tido muitas experiências atestando
a hospitalidade californiana, mas aquilo superou todas as expectativas.
Quase que imediatamente nos viramos um para o outro e começamos a
conversar. Ela me disse que desceria em Santa Barbara. Eu não disse nada,
mas quando o ônibus parou em Santa Barbara, fiquei pensando no que
teria acontecido se eu tivesse descido com ela e transgredido meu período
de licença. (p. 26)
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é uma alma inabalável, serena na adversidade, uma alma que aceita todos
os acontecimentos como se eles tivessem sido desejados ... O que é grande
é … lembrar que se é um homem; isto é, quando feliz dizendo para si
mesmo que não será feliz para sempre. O que é grande é ter a alma nos
lábios, pronta para partir; quando então se é livre, não das leis da cidade,
mas das leis da natureza. (Sêneca, Questões naturais)
189
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8. AIÓN, KAIRÓS AND CHRÓNOS:
FRAGMENTOS DE UMA CONVERSA INFINDÁVEL
SOBRE INFÂNCIA, FILOSOFIA E EDUCAÇÃO
Filosofia e educação
Esta conversa aconteceu em inglês em 2006, quando childhood &
philosophy tinha apenas um ano de idade. E foi publicada em finlandês,
como “AION”174.
Walter: Em seu maravilhoso fragmento 52, Heráclito diz, “Tempo (é)
uma criança brincando, seu poder175 é o de um menino”. Em grego existem
apenas algumas palavras nesse fragmento: aión país esti paízon, paídos he
basileíe. Aión é uma palavra de tempo, assim como são chrónos e kairós.
Em suas aplicações mais antigas, aión designa a intensidade do tempo na
vida humana — o destino, a duração, um movimento inumerável, não
174
In: Tuukka Tomperi; Hannu Juuso (eds.). Sokrates koulussa Itsenäisen ja yhteisöllisen ajattelun edistäminen
opetuksessa. Tampere: Niin & Näin, 2008, p. 130-155.
175
Nota de tradução: no original: “realm”, que também significa reino ou domínio.
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176
Liddell, Henry, Scott, Robert. A Greek English Lexicon. Oxford: Clarendon Press, 1966, p. 45.
177
Ibid., p. 859.
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Perguntas
“Uma criança que se disfarça como outro expressa sua mais profunda
verdade” Paul Ricoeur, Hermeneutics and the Human Sciences, John B.
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Educação
Walter: Eu vou levar isso aonde a pergunta me leva, em direção a
algum destino desconhecido. Pode ser que nós tenhamos que mover as
coisas adiante para encontrar um novo começo para filosofia, infância e
educação. Nós temos pensado na educação das crianças no padrão
Platônico, inspirada no modelo de educação dos guardiães em A República:
educação como formação dos recém-chegados ao mundo por aqueles que
já estão no mundo, a fim de alterar a ordem social para o Belo, o Bom e o
Justo. Infância tem sido tema de miríades políticas, estéticas e sonhos éticos
da república aristocrática de Platão (em seu sentido grego) para as nossas
sociedades democráticas contemporâneas.
Parece que precisamos de um novo começo para educação e infância.
Nós devemos olhar para a infância não como algo que deveria ser formado
e educado, mas como algo que forma a si mesmo, como na perspectiva
Romântica. Mas nós devemos ir mais adiante e considerar educação não
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Nota de tradução: no original “buzz”, palavra que se refere ao barulho produzido por insetos
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Alegria — desejo
Ao mesmo tempo, devemos considerar a questão do fascismo. Neste
contexto eu penso que o conceito de alegria em um sentido de Spinoziano
e Deleuziano deve ajudar a nos inspirar: alegria como “tudo o que consiste
em preencher uma força” e seu oposto — tristeza o resultado de quando
alguém “é separado de uma força da qual ele ou ela acreditava ser capaz”.
Se nós queremos viver em um mundo cheio de alegria, se queremos
experiências alegres e experiências de alegria, se faz sentido viver para a
alegria, então devemos fazer algo a respeito daqueles espaços tristes onde
pessoas são impedidas de fazer aquilo que podem, de executar ou perceber
suas forças. Infelizmente, escolas são predominantemente lugares muito
tristes, apesar de muitas pessoas parecerem estar rindo dentro delas,
precisamente no sentido de que as pessoas parecem estar sistematicamente
impedidas de perceber e expandir suas forças. Esse impedimento
sistemático, que cria uma tristeza tão profunda na vida, não é apenas
totalitário, mas fascista. Sob meu ponto de vista, o principal desafio para
aqueles que pensam e trabalham em instituições educacionais é expulsar o
totalitarismo e o fascismo delas. Novamente eu não sei se isso é, de fato,
possível.
O que você pensa, irmão? Eu lhe levei para muito longe de onde você
estava pensando? Caso eu o tenha feito, traga-me de volta para algum outro
lugar. Não hesite em colocar em prática as forças do seu pensamento.
(sorrindo alegremente)
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Nota de tradução: no original “sublation”, palavra em inglês que se refere ao termo alemão
Aufhebung, utilizado na filosofia de Hegel.
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A comunidade da infância
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Escolaridade e filosofia
David: Sim, é uma imagem interessante — especialmente uma vez
que o beijo é a linguagem do corpo, e é estranhamente ambivalente que a
mulher esteja beijando a arma concreta da opressão, o escudo. Em um nível
isso me faz lembrar um gesto de submissão e de profunda perversão —
beijar as botas do conquistador — mas aqui nós imediatamente o
reconhecemos como um gesto de poder: Com seu beijo, ela dissolve a
repressão, que é recolhida como uma força material do escudo. Mas vamos
imaginar que é com este policial que a Serpente está falando nesse Jardim
do Éden paralelo. “Não se iluda pensando que a chave para a felicidade
humana é outra que não a prosperidade universal. Todos os grandes
trabalhos de arte e todos os grandes sistemas de pensamento são
possibilitados por excedentes econômicos. E o excedente econômico vai ser
atingido apenas ao custo do sacrifício de determinadas classes e
determinados indivíduos em determinados períodos. Pode até ser você
quem precise ser sacrificado, mas eu estou certo que você aceitará seu
destino com dignidade e lealdade, visando a prosperidade universal, rumo
à qual o Mercado está vagarosamente, mas certamente nos guiando, e a paz
universal que é o objetivo do Império. E apenas no caso de você não estar
persuadido, deixa-me acrescentar isso: o tipo de liberdade e indeterminação
que você está imaginando vai libertar o lado negro humano. Na verdade, se
você apenas olhar ao seu redor, você vai ver que isso já começou”. E ao
210
A comunidade da infância
contrário do par no primeiro Jardim, o policial e sua Eva não saem. Eles
planejam mudanças quantitativas — aprovadas, é claro, pelo Chefe e
auxiliadas pro seus Anjos — no Jardim, conformado com seu sacrifício,
justificado, satisfeito com cada aparente suspensão da repressão — como
filmes de sexo explícito se tornando livremente disponíveis para o público
em geral, por exemplo. “Você vê?”, diz a Serpente, “você se submeteu ao
regime de repressão excedente a fim de criar abundância para todos, e
agora a repressão está suspensa. Agora você pode ter o seu bolo e comê-lo
também. Agora você confia em nós? Mas acima de tudo, evite a filosofia.”
Isso tudo é uma maneira um pouco pesada de dizer que a filosofia
representa uma ruptura em uma forma de escolaridade que está a serviço
do Império. Ela não pode ser apenas remendada. Mas eu não quero dizer
apenas filosofia, eu quero dizer filosofia como conversa e, ainda mais
especificamente, como diálogo. Nós parecemos concordar que as escolas
representam os elementos totalitários da cultura contemporânea, e
totalitarismos odeiam diálogo tanto quanto um gato odeia água, porque o
diálogo abre a dimensão normativa. Eu às vezes surpreendo um fraco
sentimento de escândalo — sempre tão fraco quanto um cheiro ruim
malmente perceptível — de alguns professores enquanto assistem crianças
fazendo filosofia. Ou isso, ou eles às vezes parecem considerar o fato
totalmente trivial, apenas um bate papo, sem a menor implicação
substantiva: o que de fato é apenas totalmente trivial e improdutivo se não
moralmente perigoso, sentar por ai e deliberar em conjunto sobre coisas
tais como pessoas e animais e subjetividade e justiça e beleza e
conhecimento e linguagem e mente e corpo e assim por diante — para não
mencionar a aplicação mais prática desses conceitos mais gerais em
conversas sobre mentiras e conflitos e o que é justo e amizade e assim por
diante.
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A comunidade da infância
escolas — maneiras como isso pode ser, por assim dizer, desarmado,
suprimido e expurgado com muito pouco esforço. Tudo o que é necessário
são pessoas praticando isso para fazer outra coisa — seja o “pensamento
crítico”, “esclarecimento de valores”, “educação moral” ou mesmo
“aprendizagem cooperativa” — enquanto protestam eles estão fazendo
filosofia, ou ao menos o mais próximos que eles podem chegar do que quer
que eles pensem que filosofia deve ser. E talvez isso nos traga de volta ao
entrono da primeira questão levantada por sua categorização de diferentes
tipos de temporalidade. Se a afinidade infantil com o tempo aionico faz dela
algo como um filósofo “natural”, chrónos faz do adulto exatamente o oposto,
por isso é só através de uma reapropriação da própria infância e de sua
forma de temporalidade, que o adulto se torna um filósofo. E quais
programas educacionais para professores podem trazer isso, visto que
foram programas educacionais, que de uma forma ou de outra lhes
causaram o esquecimento? Mas, eu escrevi demais, de volta para você,
irmão.
Walter: Sim, realmente parece que temos estado preocupados com o
quantitativo e o qualitativo desde o começo desta conversa. Afinal de contas,
chrónos é quantitativo enquanto aión é qualitativo; e também força e poder,
alegria e tristeza. Voltando a Heráclito, eu não acho que devemos nos livrar
das oposições se elas podem nos ajudar a pensar. Você mencionou Sócrates
e eu gostaria me fixar um pouco sobre essa figura. Sócrates é a imagem de
um “herói” nas chamadas filosofias democráticas ou progressivas da
educação, uma metáfora para o ensino não-diretivo, aberto, dialógico;
alguém que, enquanto reconhecedor de que não sabia nada, ajudou outras
a fazerem nascer seu próprio conhecimento. Esta imagem é muito
romântica e certamente baseada no maravilhoso retrato de seu mestre
desenhado por Platão. Mas se chegarmos perto o suficiente dos Diálogos,
outras faces de Sócrates emergem. É verdade que Sócrates é aparentemente
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Nós já sabemos o que elas vão dizer? Eu estou certo, irmão, que você vai
gostar de tomar uma dessas questões.
David: Por que estamos tão interessados em dar voz às crianças?
Porque a infância é a forma de linguagem que é a linguagem do mundo. É
a linguagem do Tolo que imita a linguagem dos pássaros, árvores e
trovoadas e coisas como essas. Mas por que estaríamos interessados em
ouvir isso? Porque é o momento no Ocidente quando a desconstrução da
subjetividade Platônica e Cartesiana nos abre a possibilidade de novas
versões do eu, as quais não se definem de acordo com a extensão de que
devem esquecer a linguagem dos pássaros e árvores e trovoadas, e por essa
razão a voz das crianças se torna tão interessante de ser ouvida quanto as
vozes dos poetas ou cientistas ou artistas ou filósofos.
Mas se oposições nos ajudam a pensar, nós não devemos nunca
permitir que elas se percam de vista, pois fazer isso é uma forma de
reificação. Na verdade não se pode pensar “disciplina” separada de
“indisciplina”, ou quantitativo separado de qualitativo, ou subversão
separada de ordem, ou o Mesmo separado da Diferença. Eu também não
penso que seja necessária a existência de uma “síntese” ou terceiro mediador
de binários, presente em qualquer tempo dado — por exemplo, a mediação
entre o mesmo e o diferente, nem que um pólo de oposição venha antes
do outro, tanto psicológica quanto ontológicamente. Ao contrário, eles são
co-presentes um para o outro, ambos emergem no mesmo momento, e são
parte de uma rede muito mais complexa de múltiplos conceitos e
sentimentos e valores — várias posições em um sistema, que está em um
estado permanente de contradição parcial e que está sempre a caminho de
reconstruir a si mesmo, a fim de encontrar algum tipo de balanço viável e
que nunca é bem sucedido em fazer isso.
Eu aplicaria a mesma análise para a relação criança-adulta em três de
suas formas: 1) A relação entre o adulto e o seu ou a sua própria “infância”,
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i.e, seu próprio tempo aionico, que tem a ver com uma forma de
subjetividade adulta; 2) A relação entre os pais e a criança; 3) e a relação
entre o pedagogo e a criança. Cada uma dessas três formas de relação —
as quais, certamente, são interelacionadas — está repleta de oposições. No
terceiro, o papel do adulto é de fato disciplinar, tentar normalizar a voz da
criança, para promover o mesmo, para ensinar a criança a falar como um
adulto e o papel da criança é de fato subverter e reinventar esse processo
para lembrar aos adultos da linguagem do corpo e do mundo e assim
engatilhar o surto do tempo aionico, e assim a reconstrução da
subjetividade e a humanização das espécies. E digo por experiência que há
sempre uma tensão entre esses dois, mesmo quando o adulto presume
nunca impor, nunca disciplinar, e mesmo quando a criança presume ser a
“criança perfeita” (i.e o pequeno adulto). Em uma pedagogia humanizada é
uma tensão criativa, uma tensão através da qual, ambos, criança e adulto
são enriquecidos, e cujas promessas de reconstruir a cultura tal qual, como
Coleridge disse sobre a educação ideal, “os sentimentos” da infância sejam
retidos em “poderes” da adultez. E nós devemos acrescentar, para não fazer
do “poder” da vida adulta o poder do mesmo, mas ao contrário, aquilo que
você se referiu como “força”, ou “energia”, ou “alegria”, ou até mesmo, eu
sugeriria “gozo”. Através desta tensão existe a possibilidade da emergência
de novas vozes adultas, aquelas que lidam com a oposição entre Mesmo e
Diferente de maneiras alternativas.
Logo, o que você critica em Sócrates — bem como em Filosofia para
Crianças — eu aceitaria como uma necessidade existencial. Como um
pedagogo, é meu papel encorajar e bajular crianças para “darem conta”,
para darem razões, para pensarem criticamente. Eu ouso fazer isso porque
eu acredito (talvez você me ache ingênuo) que o discurso filosófico — e
eu não quero dizer em sua forma apodíctica, mas em sua forma dialógica,
a forma para a qual Sócrates pelo menos nos deu algumas orientações
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conversa tão intensa, irmão, e, por favor, nos apresente algumas palavras
finais.
David: Bem, crianças nunca serão feitas para falarem como adultos,
mas adultos também não falam como adultos — eles não mais que se
aproximam. Apenas deuses falam como adultos. E ao mesmo tempo em que
adultos fazem demandas de razão no diálogo filosófico, as crianças fazem
as suas: que as ouçam falar, realmente ouçam e que não as tratem como
casos de um livro, como “organismos em formação”, mas como pessoas com
plenos direitos que sabem muito bem como pensar quando lhes é dada a
chance e se permitidas a fazer de sua própria maneira. Isto é um diálogo
no fim das contas, e no diálogo ambos os lados são considerados igualmente
valiosos de serem escutados. E o fim resulta neste tipo de diálogo, no qual
a representação de filosofia com crianças é exatamente, como você sugeriu,
falar outra língua, pensar de outra maneira, viver outra vida — uma
linguagem nem de animal nem de Deus, do mundo ou da mente, do adulto
ou da criança, mas do humano, a qual em sua realização mais profunda é
polivocal e polissêmica, múltipla e pronta para a transformação: um modo
de vida que inclui as três experiências de tempo com as quais você iniciou
esta conversa. E filosofia como diálogo — junto com muitos outros tipos
de atividades humanas — oferece continuamente a possibilidade do kairós
que abre espaço para um encontro com aión. Essa possibilidade pode ser
traída de muitas maneiras — através da “programação” disso, através da
assimilação de formas previamente mortas ou sem mente, através da
banalização, ainda apenas através da obrigação disso. Mas eu não acho que
a possibilidade vai embora algum dia, porque é parte do que Freire chamou
de “vocação ontológica” do ser humano, e como tal é inerradicável.
E onde nós estamos, caro irmão? Meu sentimento é de que apenas
começamos a abrir as diferenças entre nós, mas que este fato nos tornou
ainda mais próximos do que éramos. Certamente, você tem me levado
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9. INCÊNDIOS: INFÂNCIA E INFANTIA
com Walter Kohan
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que também não “sabia” que ela era sua mãe. Para os gêmeos, crescer
significa aceitar que são parte de uma história horrível, inumana. As
mulheres, a mãe e a irmã, Nawal e Jeanne, são ambas matemáticas. Em
matemática um mais um não pode ser igual a um. Na vida humana, um
irmão não pode ser pai. Sua história é histórica e matematicamente —
racionalmente — inaceitável. E eles têm que aceitá-la, a fim de viver uma
vida humana, a fim de ter um novo nascimento.
O que faz então Incêndios tão difícil de digerir é que, no filme, crescer
não é como na vida comum “civilizada”, simplesmente uma questão de
aceitar maduramente a própria história, mas uma questão de enfrentar o
horror do abjeto (Kristeva, 1982): o indiferenciado, incestuoso, estranho,
perigoso, proibido, impuro, objeto de tabus, uma alteridade inominável
como parte de nossa própria história. Como afirma o matemático, é um
“problema insolúvel”, cuja investigação leva a “problemas mais insolúveis”,
e, finalmente, fundados sobre o paradoxo de 1 + 1 = 1.
Da mesma forma que o matemático não pode aceitar o paradoxo de
1 + 1 = 1, uma sociedade racional e civilizada não pode aceitar o abjeto, a
irracionalidade que constitui a identidade do pai e do irmão. Ela não pode
viver com a memória do que desafia sua própria base. A sociedade precisa
esquecer a infantia e as sociedades neoliberais parecem ter desenvolvido
dispositivos mais e mais sofisticados, a fim de atingir esse objetivo.
Em Incêndios, o problema é duplo: esta “família”, se podemos assim
chamá-la, tem de superar uma infância difícil e não esperada, e ao mesmo
tempo uma infantia silenciosa, invisível, mas inevitável, que permanece
como uma dupla sombra de uma infância impossível. A tentativa da mãe
de resolver o duplo problema espelha sua ruptura interna, que a divide
entre o filho torturador e estuprador e aquele nascido de seu primeiro e
belo amor. Eles não se conhecem entre si. Nunca conhecerão um ao outro.
O único momento em que ela os encontra juntos — um corpo nu à beira
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da piscina —, ela não pode se conectar com esse corpo. Para ela, eles são
dois, eles não podem ser um. Ela não pode estar em qualquer forma de
relação humana com eles. Não há nenhuma família, nenhuma sociedade,
nenhuma cultura possível com o abjecto.
Na última parte do filme, o filho assassino sociopata perde de vista
os gêmeos, a prole de sua vontade monstruosa de violar e destruir;
enquanto o filho amado, permanece inocente perante o túmulo de sua mãe.
O problema não foi resolvido. O conflito não pode ser superado. A
excepcionalidade da mãe, a “mulher que canta” consiste em ter incorporado
— através do seu amor redentor — o abjeto na forma do impossível um
= dois; um = pai + filho; o bebê inocente e o assassino sociopata; vida e
morte; amor e ódio: todos os opostos são um em Incêndios. Nenhuma
ciência, nenhuma racionalidade, nenhuma ordem social é possível com eles.
Só a arte, para nos ajudar a lembrar a infantia.
Mais ainda, a forma de “superação” do conflito por Nawan, na
verdade, o aceita e o alimenta. Ajuda os espectadores a se lembrar dele.
Nawan é “a mulher que canta”. Ela canta uma canção impossível de cantar
e de lembrar; ninguém que tenha ouvido o seu canto em Kfar Ryat consegue
lembrar suas canções, apesar de sua beleza. A impossibilidade de se lembrar
de seu canto faz-nos lembrar o que não pode ser esquecido. Sua música é
o sublime, o corpo estético impossível, a infantia. A mulher que canta
inscreve em nós um resto, uma opacidade não transmissível que nunca será
derrotada, enquanto os seres humanos nasçam infantes.
Os gêmeos não são crianças e também não são adultos, simplesmente
porque eles não podem viver nem na infância nem na idade adulta, eles não
podem habitar uma vida humana, eles (quase) não são seres humanos. O
notário diz a eles que só através da pesquisa da “verdade” (o registro, como
mantido pelos seus depositários, o notário, o adulto, a sociedade, a lei) vão
se tornar adultos. Mas, na verdade, eles não estão à procura de sua infância,
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A elusão de infantia
Como Lyotard (1991) coloca, infantia é uma condição latente que está
por trás de cada palavra pronunciada por qualquer ser humano, e ela
própria é uma forma do inumano. Mas o que é o inumano? Lyotard (1991)
distingue duas formas de inumano: o inumano enquanto sistema desumano,
chamado de “desenvolvimento”, “competitividade”, “democracia
representativa”, “mercado”, “mundo livre”, ou simplesmente “capitalismo”;
e o inumano que cada alma humana carrega pelo fato de ter nascido,
forçada a abandonar a indeterminação onde estava a fim de se determinar
como uma vida particular, sem poder fazer nada para evitá-lo. Essa segunda
forma de inumano habita cada ser humano como a passagem do não ser
ao ser, a partir da qual todo ser humano nasce sem escolher. Fomos todos
obrigados a nascer, a nenhum ser humano foi perguntado se queria vir ao
mundo. Neste sentido todos nascemos do inumano.
Essas duas formas do inumano são opostas. Considere-se, por
exemplo, com respeito ao tempo. O primeiro inumano, o capitalismo, impõe
a necessidade de correr atrás do tempo, para fazer um uso bom, produtivo,
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A comunidade da infância
[...] O que mais resta para a ‘política’ senão a resistência a esse inumano?
E o que mais resta para resistir, senão a dívida que cada alma tomou da
miserável indeterminação da sua origem, e que não deixa de nascer? Isto é,
com o outro inumano? Esta dívida que temos com a infância não é paga.
Mas não esquecê-la pode ser o suficiente, a fim de resistir e, talvez, para
não ser injusto. Esta é a tarefa da escrita, pensamento, literatura, artes: se
aventurar para testemunhar isso. (Lyotard, 1999, p. 7)
Basta não esquecer a dívida com a infância a fim de não ser injusto,
afirma Lyotard (1999). Resistir ao inumano da ordem neoliberal, lembrando
o inumano do qual nascemos, como uma forma de lembrar o “potencial
inumano dérèglement, para desfazer as regras instituídas das forças de
aculturação” (Lindsay, 1992, p. 391). Política, então, é a resistência ao
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