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Administração Pública Gerencial e Construção Democrática no Brasil:

Uma abordagem crítica

Artigo apresentado no ENANPAD, Campinas, 2001


Autoria: Ana Paula Paes de Paula

Resumo:
O objetivo deste artigo é analisar a administração pública gerencial demonstrando seu
potencial de contribuição para a construção democrática brasileira. Após discutir as
influências do movimento gerencialista internacional na reforma e administração pública
gerencial, descrevemos suas características e salientamos os quatro principais argumentos
utilizados pelo ex-ministro Bresser Pereira para sustentar que este modelo administrativo
contribui com a construção democrática: (1) a adaptação crítica do modelo ao Brasil; (2) a
utilização de múltiplos controles sociais; (3) a opção pelo modelo pós-burocrático de gestão e
(4) a constituição de uma esfera pública não-estatal. Em seguida, analisamos estes argumentos
à luz da teoria crítica das organizações e das contribuições de alguns pesquisadores
brasileiros, revelando que a administração pública gerencial se distancia de sua própria
concepção de democracia, além de pactuar com uma noção de participação social que não
reflete a complexidade da esfera pública brasileira. Finalmente, realizamos algumas
recomendações para futuras pesquisas, destacando a importância de investigar outras
concepções de democracia e argumentando que a administração pública, assim como a
construção democrática, estará sempre sujeita à uma constante reinvenção.

INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, a produção acadêmica brasileira sobre administração pública se
desenvolveu significativamente. A questão da dicotomia entre técnica e política foi trazida
para o centro do debate, ressaltando a importância de se realizar análises dos aspectos
técnicos-administrativos sob a perspectiva da ciência política. No entanto, uma vez que a
administração e a ciência política apresentam suas histórias e peculiaridades, as tentativas de
fazer análises integradas vêm revelando enormes dificuldades.

No que se refere à administração, pesquisadores filiados à teoria crítica das organizações


(Alvesson & Willmott, 1993) não hesitam em afirmar que, durante todo o século XX, a
disciplina apresentou um caráter predominantemente instrumental, focalizando mais a criação
de técnicas administrativas do que a análise de suas conseqüências políticas e sociais. Sendo
que este tipo de reflexão é central na ciência política, as disciplinas apresentam, a princípio,
objetivos inconciliáveis.

Entretanto, é de entendimento geral entre os pesquisadores que promover um diálogo entre


elas possibilitaria um avanço no campo do conhecimento administrativo. Isto porque as
grandes mudanças econômicas e sócio-políticas derivadas da restruturação produtiva, das
reformas dos Estados, dos avanços da tecnologia de informação, da mundialização sócio-
cultural e das lutas sociais pela democracia transformaram radicalmente as relações entre
Estado, sociedade e organizações empresariais.

No campo da gestão empresarial, a avaliação das conseqüências das decisões e práticas


administrativas é hoje uma questão estratégica. Mais conscientes de sua cidadania, os clientes
passaram a demandar seus diretos e a questionar os impactos sociais das ações das empresas.

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Desta forma, atualmente a sobrevivência corporativa está diretamente relacionada à uma
administração responsável.

Uma mudança análoga ocorreu na gestão pública. A crise de governabilidade e credibilidade


do Estado e a crescente conscientização popular abriram espaço para críticas ao seu caráter
autoritário e centralizador. Isto deslocou o referencial político do Estado para a sociedade
civil, de modo que o conceito de público, que antes era sinônimo de estatal, ampliou-se,
deixando de ser uma mera localização institucional para se constituir como um valor a ser
socialmente construído (Mezzomo Keinert, 2000). Este espaço aberto para extrapolar as
questões públicas para além dos limites do aparelho estatal, trouxe para o debate social
assuntos como as experiências inovadoras de gestão, os novos atores políticos, a participação,
a cidadania e os papéis do Estado e da sociedade na construção democrática.

Os discursos políticos presentes no atual contexto histórico valorizam o desenvolvimento de


uma administração de empresas socialmente responsável e de uma administração pública
efetivamente voltada para o interesse público, mas no campo das ações floresce a difusão do
ideário gerencialista, que legitima a excelência dos modismos e ferramentas difundidas no
mundo do management, além de recomendar a transplantação de técnicas e práticas utilizadas
nas empresas para a gestão pública.

Como os resultados no setor privado nem sempre alcançam as expectativas e reforçam a


alienação em relação à avaliação das conseqüências sociais das decisões administrativas, no
setor público, onde esta avaliação é crucial, eles têm se mostrado ainda mais insatisfatórios.
Dessa forma, a administração está sendo desafiada a encontrar novas saídas e respostas, mas
como ciência social se encontra em estágio preliminar, pois se desenvolveu muito mais no
campo da técnica.

Historicamente voltada para soluções técnicas em detrimento da responsabilidade social, ela


sempre enfatizou mais os aspectos instrumentais do que os sócio-políticos. Por outro lado, ao
longo do século, a administração de empresas assumiu uma posição hegemônica na produção
do conhecimento técnico-administrativo, subordinando a administração pública aos seus
desígnios no campo da aplicação prática. Este caráter subsidiário da gestão pública vem
dificultando a superação de um problema fundamental nesta área: o desenvolvimento de um
saber técnico que também contemple os aspectos políticos.

Nas últimas décadas, os brasileiros estiveram engajados no processo de redemocratização do


país, buscando reformar o Estado e construir um modelo de gestão pública capaz de torná-lo
mais aberto às necessidades sociais e participativas dos cidadãos brasileiros, mais transparente
e voltado para o interesse público e mais eficiente na coordenação da economia e dos serviços
públicos.

Analisando este contexto histórico, identificamos dois projetos políticos em desenvolvimento


e disputa.O primeiro se encontra em consolidação e inspira-se predominantemente na vertente
gerencial. É representado pela administração pública gerencial, que se constituiu no Brasil
nos anos 90 durante o primeiro mandato do atual presidente Fernando Henrique Cardoso, com
importante participação do ex-ministro da Administração e Reforma do Estado (MARE), Luís
Carlos Bresser Pereira.

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O segundo se encontra em desenvolvimento e tem como principal referencial a vertente ético-
política. Manifesta-se nas experiências alternativas de gestão pública, como os Conselhos
Gestores e o Orçamento Participativo e tem suas raízes no ideário dos herdeiros políticos das
mobilizações populares contra a ditadura e pela redemocratização do país, com destaque para
os movimentos sociais, os partidos políticos, as organizações não-governamentais e alguns
líderes políticos nacionais do campo da esquerda.

Ambos os projetos se dizem portadores de um novo modelo de gestão pública, se opõem ao


estilo de gestão burocrático e afirmam estar buscando a ampliação da democracia no país.
Para examinar a evolução destes projetos no cumprimento de suas promessas, é fundamental
realizar uma análise rigorosa de seus ideários e características técnicas e políticas.

Neste artigo, pretendemos analisar o projeto político da administração pública gerencial,


discutindo a sua contribuição e seus limites para na construção da democracia brasileira. Para
cumprir este objetivo, nos basearemos na bibliografia relevante e nos dados secundários de
investigações realizadas por outros pesquisadores.

Na primeira parte do artigo, analisaremos a influência do movimento gerencialista


internacional no projeto da reforma do Estado e da administração pública brasileira nos anos
90. O nosso objetivo será demonstrar que apesar das inúmeras críticas ao uso de ferramentas
gerenciais advindas do setor privado no setor público, ainda não foram realizadas análises
mais rigorosas do fenômeno, principalmente no que se refere às suas conseqüências para
construção de democracias recentes, como a brasileira.

Na segunda parte, apresentaremos a gênese e desenvolvimento da administração pública


gerencial no Brasil. Partindo da literatura sobre o tema, em primeiro lugar descreveremos a
estrutura organizacional do aparelho do Estado após a reforma e apontaremos as principais
características e objetivos da administração pública gerencial. Em seguida, discutiremos os
quatro principais argumentos que Bresser Pereira utiliza para sustentar que a administração
pública gerencial contribui para a construção da democracia brasileira.

Na terceira parte, analisaremos estes quatro argumentos à luz da teoria crítica das
organizações e das contribuições de alguns pesquisadores brasileiros, destacando ainda a
concepção de democracia partilhada pelo projeto político que se agrega em torno da
administração gerencial. Demostraremos então que a administração pública gerencial não
realiza a contribuição imaginada para a construção da democracia brasileira, pois em muitos
aspectos se distancia de sua própria concepção de democracia.

Finalizando, faremos algumas recomendações para futuras pesquisas, enfatizando a


importância de estudar o projeto da vertente ético-política para a gestão pública e democracia
brasileiras, bem como avaliar as diversas experiências de gestão que existem espalhadas por
todo o país a partir de suas próprias matrizes histórico-culturais, desfazendo o mito de que
existe uma única visão de inovação gerencial.

UMA CRÍTICA DA ADMINISTRAÇÃO GERENCIAL


Impactos do gerencialismo na construção democrática
Durante as décadas de 80 e 90, debateu-se intensamente a necessidade de reformar o Estado,
pois diante de sua crise de governabilidade e credibilidade, ele se tornara incapaz de dar conta

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das novas demandas impostas pela reestruturação produtiva e pela mundialização da
economia. Como resultado, assistimos à um movimento internacional de reforma do aparelho
do Estado, que teve início na Europa e nos Estados Unidos, atingindo também a América
Latina.

Uma análise da história dos países em que este movimento teve origem revela que o mesmo
está estreitamente relacionado com o gerencialismo, ideário que floresceu durante a década de
80 principalmente na Inglaterra, sob o governo de Margareth Thatcher e nos Estados Unidos,
na era Reagan. Um exame aprofundado deste ideário demonstra que ele se identifica tanto
com a hegemonia do privado em detrimento do público, como com a ênfase no liberalismo
econômico e político que caracterizaram as últimas duas décadas.

No caso da Inglaterra, por exemplo, tratava-se de responder ao avanço norte-americano,


alemão e japonês no mercado internacional. No referido período, a cúpula do governo inglês
procurou transformar a cultura e psicologia de duas gerações a fim de aumentar os níveis de
produtividade e realização no campo da economia, da política, do governo, das artes e das
ciências, bem como na vida privada dos ingleses (Heelas, 1991).

A ex-ministra e participantes de seu governo estiveram por anos engajados em instituições de


pesquisa como o Centre for Policy Studies, o Institute of Policy Research e o Adam Smith
Institute, onde realizaram vários estudos no campo da entreprise culture, inclusive
desenvolvendo ferramentas educacionais para difundir e ensinar seus valores (Morris, 1991).
Resgatou-se então os valores vitorianos, como o esforço e trabalho duro, cultivando-se
também a motivação, a ambição criativa, a inovação, a excelência, a independência, a
flexibilidade e a responsabilidade pessoal, valores estes que se tornaram a base do governo de
Thatcher.

Paralelamente, nos Estados Unidos se desenvolveu o culto à excelência (Gay, 1991) que
como a entreprise culture promove entre as pessoas uma imagem de auto-determinação no
trabalho e as convida a se tornarem seus próprios chefes, além de empreendedoras de si
mesmas. Este ideário se tornou um grande sucesso e alimentou o ufanismo da era Reagan,
pois captou a essência do american dream, uma vez que fixa no imaginário social fantasias
de oportunidade de progresso e crescimento baseados na iniciativa individual.

Neste contexto, justifica-se o grande sucesso do livro de Peters & Waterman (1982), The
search of excellence entre o público estadunidense, pois este representa um movimento para
posturas proativas, um deslocamento do estilo burocrático para o estilo gerencial e para novas
formas de trabalho baseadas na identidade dos trabalhadores, que estabelece conexões e
simetrias entre “o meio de governar os outros e o meio de governar a si mesmo.” (Gay, 1991)

Neste país, cerca de uma década mais tarde, um fenômeno análogo ocorreu no campo da
gestão pública com o livro de David Osborne e Ted Gaebler (1994 [1992]): Reinventando o
Governo. Como o espírito empreendendedor está transformando o setor público. Não por
acaso, os autores, que revolucionaram o setor público norte-americano, atribuem seus acertos
ao pioneirismo de alguns autores famosos no mundo do management como Peter Ducker,
bem como à idéias de excelência de Tom Peters & Robert Walterman.

Em ambos os casos, o movimento gerencialista no setor público é baseado na cultura do


empreendedorismo, que focaliza principalmente os esforços individuais no processo de

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transformação social. Esta cultura é um reflexo do capitalismo flexível e se consolidou nas
últimas décadas através da criação de um código de valores e condutas que orienta a
organização das atividades de forma a garantir controle, eficiência e competitividade
máximos (Harvey, 1992).

Importante notar que apesar de ter se desenvolvido no contexto cultural da Inglaterra e dos
Estados Unidos, o gerencialismo, bem como seu modelo de gestão administrativa e reforma
do Estado, se espalhou pela Europa e América Latina. Como há uma estreita conexão entre os
valores e ações de cunho gerencialista e as prerrogativas pós-fordistas da reestruturação
produtiva da economia mundializada (Baggulley, 1991), o gerencialismo passou a representar
as necessidades das mais diversas empresas e governos, transcendendo, portanto, as matrizes
histórico-culturais locais.

Por outro lado, ao representar valores amplamente aceitos e incentivados no mundo


contemporâneo, a cultura do empreendedorismo transita com facilidade do mundo dos
negócios para outras esferas da vida social (Harvey, 1992), influenciado não apenas a
administração pública, mas também o campo acadêmico, as artes e mesmo a vida pessoal.
Este “trânsito” costuma ser considerado positivo, pois há uma urgência de eficiência e
competitividade em todos os campos, que de fato requer uma boa dose de esforço e
engajamento. No entanto, o caráter individualista do empreendedorismo e seu distanciamento
moral da formação de um espírito público e democrático, em geral é deixado em segundo
plano (ver Sennet, 1999). Como resultado, as conseqüências e impactos culturais do
gerencialismo nos mais diversos setores da vida social e administrativa ainda não foram
totalmente analisadas e discutidas.

No que se refere à administração de empresas, o espraiamento da cultura do


empreendedorismo no setor privado brasileiro se acelerou entre a década de 80 e 90, gerando
um crescimento notável da indústria do management (Wood Jr., 2001), que é constituída pelas
escolas de administração, pela mídia de negócios, pelas empresas de consultoria e pelos gurus
de gestão. No setor público, o movimento ganhou força nos anos 90 com o debate da reforma
gerencial do Estado brasileiro e o desenvolvimento da administração pública gerencial.

Na constituição deste modelo de gestão pública, as experiências da Inglaterra e dos Estados


Unidos serviram como referências para discussões e análises comparativas. De um modo
geral, o uso de ferramentas gerenciais advindas do setor privado no setor público é
considerado um componente indispensável e mesmo caracterizador do modelo. Apesar das
inúmeras críticas à esta promiscuidade de idéias e práticas, ainda não se realizaram análises
mais rigorosas do fenômeno, principalmente no que se refere ao modo como este afeta a
construção de democracias recentes, como é o caso da brasileira.

Assim, na seção seguinte, resgataremos a gênese e o desenvolvimento da administração


pública gerencial no Brasil, apontando os seus objetivos, suas características e seu formato
organizacional, bem como as críticas que enfrentou na última década, descrevendo e
analisando os principais argumentos de seus idealizadores e implementadores para qualificá-
la como democrática. Na seção subseqüente, analisaremos estes argumentos à luz da teoria
crítica das organizações e das contribuições de pesquisadores brasileiros para a temática da
reforma, avaliando o caráter democrático da administração pública gerencial.

Uma anatomia da administração pública gerencial

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A Reforma Gerencial foi um desdobramento do ajuste estrutural da economia brasileira, que
teve início com a adesão do governo Collor às recomendações do Consenso de Washington
para a crise latino-americana. Em um primeiro momento, o discurso reformista incorporou as
recomendações neoliberais, propondo uma redução do tamanho do Estado brasileiro e outras
medidas de restrição da atuação estatal.

No entanto, nos anos 90, após algumas experiências concretas de ajuste estrutural, cresceram
críticas ao movimento neoliberal, que apontavam principalmente para sua tendência de
realizar um desmonte indiscriminado do Estado, atingindo inclusive as políticas sociais. Em
conseqüência, a partir do primeiro mandato do atual presidente Fernando Henrique Cardoso,
no discurso político do governo abandonou-se as palavras “redução do Estado” e
“transferência de suas funções” em favor da expressão “reforma dos institutos legais e
estatais”, reforma esta que teria como objetivo tornar o Estado mais “administrável” pelos
burocratas.

Como observou Santos (1998), o recente movimento de reforma do Estado nos países semi-
periféricos teve duas fases: um período de “terapia de choque”, quando ocorreu o auge do
pensamento neoliberal e um período mais complexo do ponto de vista político e social, no
qual as forças progressistas e conservadoras se reorganizaram e passaram a disputar suas
visões da reforma. Ao nosso ver, neste fértil terreno de embates políticos destacam-se
principalmente a vertente ético-política, herdeira do campo movimentalista de 70 e 80, que
busca alternativas de reforma e gestão pública e a vertente gerencial, que alcançou o poder
nos anos 90 implementando a reforma e administração pública gerencial.

Características e objetivos da Reforma Gerencial


Principal articulista e implementador da reforma, o ex-ministro Bresser Pereira (1998a)
argumenta que a Reforma Gerencial teve 3 dimensões: a institucional, a cultural e a gestão.
Com a aprovação da emenda reforma administrativa em 1998, efetivou-se as mudanças legais
e organizacionais necessárias para a implantação das idéias da Reforma Gerencial. Assim, do
ponto de vista organizacional, no atual aparelho de Estado:
a) as atividades foram distribuídas entre unidades descentralizadas, que são de dois tipos:
- agências que realizam atividades exclusivas do Estado, entenda-se regulamentos e
formulação de políticas públicas, e pertencem ao seu núcleo estratégico: secretarias
formuladoras de políticas públicas, agências executivas e agências reguladoras, como é o da
Agência Nacional do Petróleo (ANP) e sua similares;
- órgãos que realizam atividades não-exclusivas do Estado: as organizações sociais, que
integram o setor público não-estatal e são prestadoras de serviços sociais e científicos de
caráter competitivo; e as atividades auxiliares ou de apoio (manutenção, segurança, limpeza,
alimentação...) terceirizadas através de licitação no mercado;
b) todas as unidades descentralizadas estão sujeitas à quatro tipos de controle: controle de
resultados, controle contábil, controle de competição administrada e controle social.

No que se refere à dimensão cultural, promoveu-se um trânsito da “cultura burocrática” para a


“cultura gerencial”, utilizando-se as idéias e ferramentas de gestão mais recentes do setor
privado, como é o caso dos programas de qualidade, da reengenharia organizacional, da
terceirização, do planejamento estratégico e de outras que teriam sido “criticamente
adaptadas” ao setor público. Com a consolidação das dimensões institucional e cultural da
reforma, passou-se a explorar a dimensão-gestão, que coloca em prática as novas idéias

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gerenciais, com o objetivo oferecer um serviço público de melhor qualidade e de menor custo
ao “cidadão-cliente”.

Estas dimensões estabeleceram os contornos da administração pública gerencial brasileira,


também denominada nova gestão pública, ou new public management. Na visão de Bresser
Pereira (1998a) este modelo de gestão se contrapõe à administração patrimonialista, que se
apropria privadamente do patrimônio público e à administração pública burocrática, que se
baseia no serviço civil profissional, na dominação racional-legal e no universalismo e na
rigidez dos procedimentos. Ao seguir os princípios do gerencialismo, a administração pública
gerencial se singularizaria em relação às demais, preservando, no entanto, a intenção de
formar quadros competentes de serviço civil profissional para ocupar o núcleo estratégico do
Estado.

Na visão do autor, os principais objetivos da administração pública gerencial são: melhorar as


decisões estratégicas do governo e da burocracia; promover o bom funcionamento dos
mercados garantido a propriedade e o contrato; obedecer aos fundamentos macroeconômicos
de forma estável e promovendo efetivamente o capital humano; desenvolver a tecnologia e o
comércio exterior; garantir a autonomia e capacitação gerencial do administrador público e
assegurar a democracia através de prestação de serviços públicos orientados para o “cidadão-
cliente” e controlados pela sociedade.

Para alcançar estes objetivos, o novo modelo de gestão, que é uma referência para os três
níveis governamentais – federal, estadual e municipal - deve apresentar as seguintes
características: administração profissional, autônoma e organizada em carreiras; indicadores
de desempenho transparentes; maior controle dos resultados; disciplina e parcimônia no uso
dos recursos; descentralização administrativa; maior competição entre as unidades
administrativas e ênfase no uso de práticas de gestão originadas no setor privado.

A administração pública gerencial é democrática?


No últimos anos, tanto a reforma quanto a administração pública gerencial sofreram inúmeras
críticas (Oliveira, 1998) (Andrews & Kouzmin, 1998) (Carvalho, 1999) (Diniz, 2000) às quais
Bresser Pereira (1996; 1997; 1998a; 1998b; 1999) vêm respondendo em seus trabalhos. Uma
análise destas críticas e das respostas do ex-ministro nos revela que a principal preocupação
do autor é demonstrar que esta reforma e seu o modelo de gestão não são neoliberais, mas
democráticos.

Uma vez que o caráter neoliberal do gerencialismo já foi exaustivamente discutido pelos
críticos na literatura recente, gerando diversas respostas defensivas do autor, optamos por não
enfatizar a questão do neoliberalismo, para privilegiar a questão da democracia, tentando
responder à seguinte pergunta: a administração pública gerencial está contribuindo para a
construção democrática brasileira?

Retomando a gênese do debate, segundo Bresser (1998a, p.206), a reforma gerencial foi
democrática porque debatida durante três anos no Congresso Nacional. Além disso, apesar da
opinião pública ter uma “...noção vaga do que é a reforma gerencial.. apoiou a mudança de
forma inequívoca...” manifestando “...seu desejo de ter um Estado mais moderno, ou mais
concretamente, ver os serviços por ele prestados serem realizados de forma mais eficiente.”

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Na interpretação do autor, a administração pública gerencial, derivada da reforma, também é
democrática, uma vez que rompeu com o modelo burocrático de organização e tornou a
gestão do aparelho do Estado mais transparente, eficiente e controlável, além de criar novas
oportunidades de participação social. Na sua argumentação, a administração pública gerencial
está contribuindo para a construção da democracia brasileira devido principalmente à quatro
motivos: (1) a adaptação crítica da administração pública gerencial à necessidades nacionais;
(2) a utilização de múltiplos controles sociais para gerenciar as ações dos burocratas públicos;
(3) a opção pelo modelo pós-burocrático de gestão, que em tese é mais participativo e (4) a
constituição de uma esfera pública não-estatal que através de dispositivos constitucionais e
das organizações sociais viabiliza a participação popular na gestão pública.

Para Bresser Pereira, apesar do modelo ter se originado em outros países como a Inglaterra e
os Estados Unidos, ele teria sido criticamente adaptado ao Brasil, pois há três orientações
possíveis para a administração pública gerencial - a técnica, a econômica e a política ou
democrática – e a reforma foi realizada tendo em vista as necessidades de transformação
cultural do setor público brasileiro no processo de construção democrática.

Na sua interpretação, a orientação técnica é mais “burocrática” do que propriamente


“gerencial”, pois não há uma completa absorção do ideário e práticas da administração de
empresas: predominam ferramentas típicas da administração pública e do Estado. A
orientação econômica é “gerencial”, mas absorve indiscriminadamente a administração de
empresas, sendo um modelo imperfeito para atender às atuais demandas de transformação do
Estado. Já a orientação política ou democrática, que teria servido de referência para o Brasil, é
“gerencial”, mas realiza uma filtragem e reelaboração crítica de qualquer técnica ou conceito
inspirado no setor privado, além de focalizar o “cidadão-cliente”, sem subestimar, no entanto,
a importância do controle social da gestão.

Além disso, a orientação política ou democrática teria humanizado a escolha racional, pois
neste contexto os administradores públicos não seriam motivados por interesses egoístas, mas
interesses públicos. Entre os fatores que assegurariam o interesse público, o ex-ministro
aponta a coexistência de diversos tipos de controles democráticos das ações dos burocratas,
que garantiriam uma cooperação desinteressada do agentes. Entre os controles citados
destacam-se: o controle do processo (participação dos cidadãos na tomada de decisões); o
controle dos resultados; o controle dos políticos sobre os burocratas; os controles
procedimentais (auditoria e conselhos de administração), além do autocontrole (valores
profissionais do administrador público).

Na sua argumentação, o funcionamento regular destes múltiplos controles viabilizaria o


controle a posteriori que atribui ao administrador público uma autonomia semelhante a do
administrador de empresas, aumentando a agilidade e flexibilidade nas decisões que são
necessárias para atender ao mercado e aos cidadãos. Além disso, isto possibilitaria a
concentração das decisões referentes à formulação de políticas públicas no núcleo estratégico
do Estado, pois o controle social evitaria o “insulamento burocrático”, legitimando a
delegação destas decisões para a burocracia governamental.

Por outro lado, ao se inspirar no modelo pós-burocrático de gestão, a administração pública


gerencial teria passado a usufruir das virtudes organizacionais deste modelo de gestão, que foi
concebido no âmbito da cultura do empreendedorismo. Uma vez que este incentiva a
iniciativa, a realização, a flexibilidade, a descentralização, a participação dos envolvidos e o
uso das inovadoras ferramentas de gestão oriundas do setor privado estaria rompendo com o
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modelo burocrático de organização, tradicionalmente rígido, fechado e autoritário, sendo,
portanto, adequado às demandas da construção democrática brasileira.

Para Bresser Pereira (1998a), a administração pública gerencial, tal como a moderna gestão
empresarial, baseia-se na teoria administrativa das organizações, deixando a teoria econômica
das organizações, representada por Taylor e Fayol, em segundo plano. Para o autor, a partir de
Elton Mayo, a teoria das organizações passou a ter matriz teórica-sociológica ao invés de
econômica, descartando perspectivas engenherísticas ou economicistas, que reforçam o
caráter autoritário e optando por abordagens mais humanísticas e participativas.

Finalmente, a constituição da esfera pública não-estatal (Bresser & Grau, 1999) viabilizaria a
participação representativa e direta dos cidadãos nos assuntos públicos através das
organizações sociais e do uso de dispositivos constitucionais de democracia direta como o
referendo, a iniciativa popular e a revogação de mandato. As organizações sociais garantiriam
a representação social em processos de formação ou controle de políticas e decisões públicas.
Além disso, elas fariam parte da alocação orçamentária do Estado, que com a recuperação
financeira promovida pela reforma econômica, permitiria maiores investimentos nos serviços
sociais. Ademais o caráter microorganizativo das organizações sociais também facilitaria a
adoção do modelo pós-burocrático de gestão, tornando-as mais permeáveis às demandas e à
participação social.

Resumindo, segundo Bresser Pereira, a administração pública gerencial é democrática porque


(1) a adaptação crítica ao Brasil contemplou de forma equilibrada nossas necessidades de
mudanças na gestão do Estado e no controle social de suas decisões e ações; (2) a
diversificação de controles sociais da burocracia pública preserva o interesse público, pois
mantém os burocratas em contato com a sociedade, favorecendo o equilíbrio entre técnica e
política; (3) o modelo pós-burocrático de organização flexibilizou o aparelho do Estado
tornando-o mais eficiente na prestação de serviços e mais receptivo à participação popular e
(4) a esfera pública não-estatal viabilizou a participação representativa e direta dos cidadãos
na concepção e fiscalização das decisões públicas.

Considerações sobre a contribuição da administração pública gerencial na construção


da democracia brasileira
Nesta seção, analisaremos os quatro argumentos anteriormente destacados no pensamento de
Bresser Pereira em sua tentativa sustentar que a administração pública gerencial contribui
para a construção democrática, com o objetivo de demonstrar a congruência da contribuição
idealizada para a democratização do Estado brasileiro no contexto do projeto político da
vertente gerencial.

Quanto à adaptação crítica da administração gerencial à construção democrática, é


fundamental lembrar que no Brasil o gerencialismo é uma “flor exótica importada”, cujos
efeitos em nossa cultura e organizações, públicas ou privadas, foram escassamente avaliados.
O desenvolvimento de uma cultura empreendedora no corpo burocrático é uma dificuldade
que não se restringe aos brasileiros, como comprova a própria experiência inglesa, onde o
governo investiu em mudanças culturais e psicológicas dos governantes e da população,
apesar das raízes vitorianas. Por outro lado, dadas as nossas especificidades culturais, não
seria o caso de questionar se os problemas da administração pública brasileira podem ser
solucionados pela vertente gerencial?

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No que se refere ao controle social da burocracia pública, tanto o controle quanto a própria
burocracia pública são excessivamente idealizados no contexto da vertente. Em primeiro
lugar, porque há um expectativa de constituir um quadro burocrático que seja sintonizado com
o ideário gerencialista e ao mesmo tempo voltada para o interesse público. Isto de certa forma
é paradoxal, pois como vimos anteriormente, a cultura do empreendedorismo valoriza a auto-
determinação, a flexibilidade e a inovação que são necessárias a um processo de
transformação, mas todas as energias de mudança são identificadas na iniciativa dos
indivíduos e não dos grupos sociais. Considerando que no âmbito acadêmico se refletiu muito
pouco sobre o distanciamento moral deste ideário em relação à formação de um espírito
público e democrático, grandes são os riscos desta operação privilegiar interesses privados.

Por outro lado, temos que reconhecer que estamos ainda muito longe de alcançar um controle
social equilibrado que seja em si mesmo suficiente para garantir o interesse público (ver
Carvalho, 1999). Para citar um exemplo, o controle popular do processo decisório e o auto-
controle dos burocratas sofrem de limitações que comprometem a legitimidade do controle a
posteriori, que fica sujeito à possíveis arbitrariedades.

Neste ponto, é importante destacar que a expectativa de constituir uma burocracia pública que
seja capaz de representar o interesse público, captar as demandas sociais e utilizar os
instrumentos técnicos adequados para atendê-las, revela a existência de uma concepção bem
específica de democracia no âmbito da vertente gerencial: um regime gerido pela burocracia
pública e regulado pelo controle social, bem como por mecanismos representativos e diretos
de participação.

O confronto entre a idealização e a realidade, no entanto, demonstra que, além de ser estar
fortemente impregnada de idealismo, a concepção de democracia associada à administração
pública gerencial pactua de uma visão de participação onde a influência popular é bastante
difusa e os burocratas públicos continuam tendo a palavra final. Isto porque, citando apenas
um exemplo, o núcleo estratégico do Estado tem total autonomia para decidir sobre a
formulação das políticas públicas e a elaboração de novas técnicas gerenciais, enquanto que a
autonomia decisória das organizações sociais se restringe às questões operacionais e internas.

Quando examinamos a questão do modelo de gestão, o principal argumento é a adoção de um


estilo democrático e participativo, inspirado no setor privado: o modelo pós-burocrático de
organização, hegemônico na gestão empresarial nas últimas décadas, que supostamente
romperia com o autoritarismo do modelo burocrático. Neste aspecto, as controvérsias
presentes no atual estágio da reflexão sobre este paradigma organizacional vêm criando
interpretações ambíguas no próprio campo da administração de empresas, que são
potencializadas quando alcançam o domínio da gestão pública.

Entre os teóricos das organizações prevaleceu durante um tempo significativo a noção de que
o modelo burocrático de organização (centralizador, hierárquico, autoritário e baseado em
regras, disciplina e divisão do trabalho) estava sendo substituído por um modelo
organizacional que muitos acreditavam ser a tradução da pós-burocracia, mas que foi
adequadamente denominado por Clegg & Hardy (1996) como modelo pós-moderno, cujas
principais características são a descentralização, a estruturação em rede conectada pela
tecnologias de informação, bem como a liderança facilitadora e solucionadora de conflitos e
problemas, baseada na abertura, participação, confiança e comprometimento.

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Mais recentemente esta noção começou a ser questionada (Reed, 1996), criando a necessidade
de novas interpretações para fenômeno, que talvez possam ser realizadas através de reeleituras
das teorias organizacionais que se desenvolveram durante o século XX. Ao nosso ver, por
exemplo, Bresser Pereira (1998a) está certo ao afirmar que as teorias organizacionais a partir
de Elton Mayo são baseadas em matrizes sociológicas, mas não revela como Tragtenberg
(1974; 1980) que estas sofrem de um viés positivista e instrumental que acaba por esvaziar o
suposto caráter participativo de seus modelos gerenciais. Por outro lado, boa parte da
literatura do campo organizacional está contaminada de leituras equivocadas do pensamento
weberiano.

Entre estes equívocos o mais comum é utilizar o tipo ideal como parâmetro para caracterizar a
burocracia, ignorando a advertência weberiana de que mais do que uma estrutura, ela é um
tipo de dominação. Com isto propaga-se o “engodo da organização pós-burocrática” (Motta,
1993), pois o que vem ocorrendo não é a desburocratização, mas uma adaptação da burocracia
ao novo contexto histórico.

Da mesma forma que a burocracia da era fordista refletia as características rígidas do


capitalismo monopolista e das teorias administrativas então vigentes, no âmbito do pós-
fordismo ela incorporou a tônica da flexibilidade (ver Tenório, 2000) e assumiu o rótulo de
organização pós-burocrática. No entanto, na realidade, diante das demandas da economia
mundializada e da reestrutruração produtiva, a burocracia sofreu um processo de reelaboração
organizacional, constituindo a burocracia flexível (Paes de Paula, 2000). Se no início do
século o sucesso da organização burocrática como modelo organizativo se devia
principalmente à sua superioridade técnica, que possibilitava a maior aceleração possível do
tempo de reação da administração diante das situações dadas em cada momento (Weber,
1999), atualmente isto já não é realidade, pois sua rigidez não acompanha mais o ritmo das
mudanças.

A organização burocrática flexível continua se baseando nas relações associativas racionais,


que Weber considera a base da dominação burocrática, mas não enfatiza mais a rigidez e sim
a flexibilidade: as competências variam de acordo com as necessidades da empresa e as
hierarquias são dinâmicas vinculando-se ao domínio das informações e conhecimentos
cruciais para os problemas enfrentados em cada momento. Para além das regras escritas
surgiram regras implícitas de monitoramento comportamental, que ao lado das novas
tecnologias de informação são valiosas ferramentas de controle e estímulo à produtividade,
substituindo a antiga supervisão cerrada.

Neste contexto, a participação, a iniciativa e a capacidade de inovar são exigidas dos


funcionários, mas, como previu Weber, nas organizações burocráticas não se espera que a
ação criadora e participativa seja uma conduta espontânea, mas uma regra de comportamento.
Se antes o ethos burocrático parecia incompatível com a inventividade humana, atualmente a
criação e participação é visto apenas como um comportamento desejável, uma atividade
estereotipada.

Dessa forma, o modelo organizacional pós-moderno que serviu como fonte de inspiração para
a administração pública gerencial, inclusive alimentando a perspectiva de se alcançar uma
administração pública pós-burocrática (ver Abrucio, 1997), não rompe com o modelo
burocrático de organização. Ao contrário, continua perpetuando a dominação burocrática
através de parâmetros flexíveis de gestão, sendo esta uma dominação mais eficiente que a
rígida, pois baseia-se no controle subjetivo e consentido dos dominados.
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Ao alcançar o setor público, este modelo torna o aparelho do Estado ainda mais impermeável
à democratização e às demandas sociais, pois confina a burocracia pública à uma ilusão
participativa e empreendedora que ajuda a legitimar suas decisões como democráticas. E a
própria estrutura organizacional pós-reforma reforça ainda mais este risco, pois restringe as
decisões estratégicas no campo das políticas públicas ao domínio dos burocratas e confia o
interesse público a um controle social que ainda é bastante ineficaz.

Além disso, uma questão que não tem sido muito considerada é que a organização burocrática
flexível incentiva a participação e o engajamento da própria burocracia pública ou dos
quadros das organizações sociais, mas não da sociedade civil. Aqui há dois fatores que ainda
precisam ser mais discutidos: 1) ainda que o modelo se inspire em uma abordagem
participativa, os novos mecanismos de controle dos funcionários são muito mais sofisticados
e subjetivos do que antes, de modo que a participação é bastante “administrada” e 2) há uma
diferença fundamental entre democratizar uma organização pública e viabilizar a participação
popular.

Assim, constatamos que a questão da democratização organizacional ainda deveria estar na


pauta de discussão e que a democratização interna não implica necessariamente na
permeabilidade desta organização à participação social. Para que esta permeabilidade seja
efetiva, é preciso inventar novos arranjos institucionais que conectem a organização pública à
sociedade garantindo a representação e a participação direta dos envolvidos.

No âmbito da administração pública gerencial, tentou-se realizar a conexão entre Estado e


sociedade fomentando a constituição de uma esfera pública não-estatal constituída por
organizações sociais. Nos últimos anos, no entanto, o modelo não vem logrando sucesso na
articulação com as entidades da sociedade civil. Um possível obstáculo é a configuração legal
de sua estrutura organizacional, que é incapaz de representar o rico e complexo tecido
mobilizatório existente na sociedade brasileira. Além disso, o formato institucional das
organizações sociais associado à atual estrutura do aparelho Estado impede um maior alcance
popular nas decisões de formulação de políticas públicas.

De acordo com lei número 9637 de 15 de maio de 1998, através de um contrato de gestão, as
organizações sociais recebem dotação orçamentária pública total ou parcial para
responsabilizar-se pela prestação de serviços contratualmente pactuada. Nestas organizações,
a participação popular ocorre através da participação de representantes da comunidade nos
órgãos colegiados de deliberação superior (ver Barreto, 1999).

Uma análise do funcionamento destas organizações tendo como pano de fundo o aparelho do
Estado revela importantes limitações no seu potencial democratizador. Em primeiro lugar, a
relação com a sociedade ocorre somente no nível da organização social, onde a
representatividade já é insuficiente pois dificilmente cobre a multiplicidade de demandas e
interesses sociais presentes na esfera pública (ver GRUPO DE ESTUDOS SOBRE A
CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA, 1999), que muito mais que um mero conjunto de
instituições, é uma intricada teia de relações sociais e interações discursivas.

Por outro lado, seguindo a cadeia de relações, a expectativa é que em um segundo nível, as
organizações sociais mediariam as demandas populares junto ao núcleo estratégico do Estado,
que é responsável pela formulação das políticas públicas. No entanto, não é isto que acontece,

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pois contratualmente estas são apenas prestadoras de serviços e não têm nenhuma posição
representativa no núcleo do Estado, que como já constatamos anteriormente, é totalmente
autônomo em relação às outras unidades descentralizadas e monopoliza as decisões de
formulação de políticas, considerada exclusivas do Estado. Desse modo, ainda está colocado
o desafio de se elaborar arranjos institucionais mais precisos no que se refere à
representatividade e participação direta da população na gestão pública.

Concluindo, a administração pública gerencial não realiza a contribuição imaginada pelo


projeto político da vertente gerencial para democratização do Estado brasileiro, mesmo
porque em muitos aspectos ela está distante de sua própria concepção de democracia: o
controle democrático da burocracia pública, o modelo de gestão pública participativo e os
mecanismos de participação popular são muito mais idealizações do que realidades. Como
atualmente se apresenta, a administração pública gerencial é apenas o correspondente público
das transformações gerenciais ocorridas no setor privado, que procura atender às necessidades
de governabilidade do Estado para garantir o bom funcionamento dos mercados e a prestação
de serviços públicos básicos ao “cidadão-cliente”, distanciando-se também de outras
concepções possíveis de democracia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES PARA FUTURAS PESQUISAS


Ao longo deste ensaio discutimos a origem, o desenvolvimento e as características da
administração pública gerencial brasileira com o objetivo de revelar seu potencial de
contribuição para a construção democrática. Concluímos que esta se distancia até mesmo da
concepção de democracia compartilhada pelos integrantes de seu projeto político, tanto pelo
idealismo presente em sua visão de controle social e burocracia pública, como pelos arranjos
institucionais adotados para gerir o interesse público.

A análise realizada ainda se encontra em estágio preliminar e suscita um grande número de


questões, entre as quais podemos destacar: as alternativas ao modelo gerencial no que se
refere ao controle e à organização do aparelho de Estado; a viabilização da participação social
na gestão pública; as influências do gerencialismo na administração brasileira no campo
público e privado; a elaboração popular de políticas e técnicas de gestão pública adequadas os
interesses nacionais e as concepções de democracia existentes no cenário político brasileiro.

Todas estas questões ainda necessitam de maior discussão e demandam uma análise detalhada
das concepções de democracia e administração pública da vertente ético-política, o que é um
desafio para futuras pesquisas. Entre as possibilidades de abordagem temos um exame dos
Conselhos Gestores e das experiências de Orçamento Participativo focalizando as formas de
controle, organização e canais de participação utilizados, atentando para a potencialidade de
reinvenção institucional e técnico-política presentes nestas arenas de discussão.

Além disso, há uma grande diversidade de experiências de gestão pública em


desenvolvimento em todo o Brasil em várias áreas (recursos humanos, finanças públicas,
serviços sociais...) e voltada para diferentes públicos (servidores, indígenas, mulheres,
crianças, idosos, excluídos...) que ainda requerem mais análises no que se refere à questões
técnicas, institucionais e políticas. De um modo geral, o que esta multiplicidade de
experiências vêm demonstrando é que a inovação na gestão pública no Brasil é um conceito
historicamente e culturalmente situado (Spink, 2000), variando de acordo com a região, o
público e as necessidades populares.

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Apesar das inúmeras dificuldades identificadas na democratização do Estado brasileiro e das
lacunas a serem preenchidas no campo da pesquisa, considerando que a construção
democrática é um processo sempre incessante e inacabado, podemos dizer que estamos
avançando. Analisando a história da administração pública brasileira, o momento revela
esperanças de transformação, pois é primeira vez que não há uma visão unívoca de gestão
pública, o que nos deixa muito próximos de desfazer o mito de inovação gerencial que
perdura há quase uma década.

Não existe um modelo gerencial que represente a nova administração pública, pois ela
sempre estará sujeita à uma contínua reinvenção. Fenômeno dinâmico e cambiante, tal como
a democracia, a administração pública é uma construção social que resulta cotidianamente de
uma efervescente “disputa de significados políticos” (ver Dagnino, 2000) recriadora da
gestão, das técnicas e da própria política.

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