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Visdo geral de sua teoria Existem imagens as vezes indissoluvelmente associadas a nomes que merecem uma atengao especial. E 0 caso da queda da maga sobre a cabega de Newton, das girafas de longos pescogos de Lamarck, dos olhos arregalados de Einstein, etc. Até que ponto elas so verdadeiras, ‘© que nos dizem e como podem ser interpretadas? ‘Nao se trata aqui de fazermos uma anilise do imaginério cientifi- co, mas de recontar uma histéria. O caso das girafas de Lamarck, por ‘exemplo, alcangou uma dimensio impar, tanto na historia da biologia como na do cientista, Jean Baptiste Pierre Antoine de Monet de Lamarck, Chevalier de Lamarck. Nascido em 1744, viveu até 1829. Foi um homem do século XVIII, quando a historia natural, o estudo das criaturas divinas, das rochas ao proprio homem, cedeu lugar a biologia, o estudo da vida. _ Como militar, durante sete anos, conheceu diferentes lugares em viagens pelos fortes franceses no Mediterraneo. Como estudante de medicina. com énfase em botinica, a partir de 1768 foi “Botinico da Rei © Guardiio do Herbario do Jardim Real”. Apesar de botdnico, Lamarck ironicamente tornou-se professor da cadeira de “Insetos, Ver- mes ¢ Animais Microscépicos”, do Museu de Historia Natural de Paris, cargo que ocupow até a morte. Entre suas obrigagdes, constava a organizagao do acervo do museu e 0 desenvolvimento de um curso anual. Apesar disso, sé em 1794, com 50 anos de idade, Lamarck iniciou seus trabalhos de zoologia Da mesma forma que as imagens, os dados biogrificos também nos remetem a um contexto, sem 0 qual fatos, fotos, datas e cargos niio passam de meras ilustragdes. A propésito, com o que 9 breve histérico acima contribui para o entendimento da eiéncia e qual a utilidade daqueles nomes ¢ mimeros? O que o longo pescogo das girafas tem a ver com 0 trabalho de Lamarck? Segundo interpretacdo atribuida a cle, as girafas adquiriram ¢ transmitiram aos descendentes seus longos pescogos, gracas ao hébito de esticd-los para alcangar as folhas mais verdes da copa das érvores. ‘Nessa histéria, ha muitos conceitos e idéias embutidas. O que fica evidente imediatamente é a relagao estabelecida entre o ser vivo e o seu meio ambiente: pescovo/érvore alta. Dessa interagio vues trans- formagiio: 0 pescoco se alonga a medida que se estica’ pata buscar comida. Sinal de mudanca a vista. E com sua vida, qual seria a relacdo das idéias de Lamarck? Que importancia teve o fato de nosso especialista em boténica, por ironia do destino, ter sido professor de zoologia no final de sua vida? Alguém © transformismo de Lamarck v _ ARCOM A ON A I que, ac contréria dele, nunca tivesse organizado ¢ classificado 0 acervo de um museu de histéria natural teria condigdes de perceber que certas mudangas, no mundo, acontecem e o transformam? E de perceber que tais mudangas se dio com maior ou menor velocidade, ou seja, que enquanto algumas se dio quase que abruptamente, outras modificacdes demoram muito tempo para aparecer? E importante lembrar que, antes das idéias de transformagio ¢, ‘mais tarde, de evolugdo, o aparecimento da vida era entendido como um fenémeno ocorrido uma iinica vez, na época da formagao da Terra. Para um aluno de Lamarck, todos os seres que viviam na atualidade descen- diam de um tinico e mesmo ancestral, ou de um niimero muito pequeno ‘de formas primitivas criadas por Deus. O ser vivo nascia do set vivo ¢ povoava a Terra, num longo, monétono ¢ continuo desfile de formas semelhantes. ‘Mas textos da época revelam-nos uma certa surpresa ao constatar que catistrofes ¢ cataclismos modificaram profundamente 0 mundo onde viviam esses seres: a Terra contava uma hist6ria. Entio o universo vivo ndo era imutavel! O mundo néo havia sido criado e permanecido tal e qual! As espécies de seres vivos nao eram representantes imutiveis da ubra divina! Admitir 0 contrério ora alimen- tar uma visio de mundo fixista, que se opunha a qualquer pensamento transformista. Do contraste entre estagnagdo © mutabilidade, entre fixismo ¢ estremecimento, e oscilagao, do catastrofismo, decorre uma nova perspectiva de perceber um mundo que pode se transformar produzir algo novo. ‘Naquela época, o que se entendia por transformismo e evolucao? Evolugao, diferentemente do conceito que temos hoje, significava apenas desenvolvimento, Falar em evolugdo era o mesmo que falar em desenrolamento, em crescimento de um organismo. Lamarck sempre tusou as palavras progressio, aperfeicoamento, mutagao e transformagio ara expor suas teorias, nunca a palavra evolucdo. conveniente ressaltar. no entanto, que o transformismo acolhia, ainda que de forma muito ampla, a idéia de transformagao de um ser vivo para outro. Explicava que, mediante movimentos de liquidos e de impulsos, que cavavam canais no corpo e 0 alteravam, os seres trans- formavam-se de mais simples em mais complexos. O transformismo, portanto, pressupde uma causa que justifique o aparecimento das espé- cies e suas variedades. 8 © transformismo de Lamarck Resumindo: as idéias de progressio, de crescimento da complexi- dade e de impulsos modificadores e inerentes ao ser vivo déo sustenta- sao aos teéricos do transformismo, incluindo o préprio Lamarck. Para ele, especificamente, a transformagdo de um ser em outro ocorria como adaptagao desse organismo ao seu meio ambiente, do que resultaria um aperfeigoamento das suas “faculdades”. As transformagBes sempre re- presentam um éxito, nunca um fracasso, até porque ocorrem nur tinico sentido, obedecendo a uma escala de aperfeiguamento. De acordo com sua teoria, no inicio os primeiros seres vivos criados pela natureza cram muito simples, nascidos de uma geragio espontinea. Gragas as circunstincias favordveis €, com o passar do tempo, seres mais complexos tiveram origem a partir daqueles mais simples, ¢ em diferentes graus de perfeigao, formando uma escala animal, com seres suscetiveis de irritabilidade, isto é, capazes de res- ponder a estimulos do meio, e outra vegetal, com seres incapazes de fazer isso, portanto insensiveis a irritabilidade. Os primeiros animais ¢ vegetais nao se confundiam nem procediam um do outro. Foram origi- nados naturalmente distintos. Por isso mesmo, eles no faziam parte de uma tinica cadeia, mas de duas, no minimo, separadas pela origem, cuja tinica semelhanca é a simplicidade inicial natureza, por sua vez, cabia desenvolver e aumentar 0 grau de complexidade daqueles organismos simples e primitivos, dos quais se formavam diversos grupos de animais que Lamarck chamou massas. Cada uma dessas massas apresentava um sistema proprio de 6rgiios essenciais ¢ constituia um conjunto, uma cadeia linear de pro- ‘ressio, que se apresentava como: pélipos, radiados, vermes, insetos. aracnideos, crusticeos, anelideos, moluscos, peixes, répteis, passaros ¢ ‘mamiferos. A passagem do sistema branquial dos peixes para o sistema pulmonar dos répteis, ou mesmo essa passagem em um tinico individuo, como acontece de girine para sapo, por exemplo, é um caso tipico:de aumento do grau de complexidade © de disting&o entre as:miassas Basicamente, as causas dessa progressio seriam duas: uma delas ineren- te 4 propria vida, um impulso natural & complexidade, do organismo; a outra diz respeito-ao meio ambiente, responsdivel por influéncias acidentais e modificadoras que desviam e deturpam curso natural e regular da vida. Essas “causas de progressao” pertenciam a um contexto de flui- dos, moléculas, ago e repulsio — termos e conceitos vigentes naquela (© transformismo de Lamarck 19 época, se bem que nem sempre muito claros ¢ bastante controversos. De um modo geral, Lamarck incorporou as suas teonas a idéia de uma atragdo universal, que reunia moléculas, ¢ a de uma agao repulsiva, que as afastava, caso tipico dos fluidos sutis e da eletricidade. @ crise sat nso @ crosrismos susie © Fermes mais simples > ‘Aumento de orgenizagio > ‘A sonetants deo — [ = = Grifico explicativo para a idéia de progressio orginica de Lamarck: cada ponto da escala (Colinas com lisiras) representa um organismo atua, derivado progressva e isoladamente ‘partir de um ancestral mats simples (oolinas brancas), © qual srg Por geragao espontanea ‘ho ponto inferior da escala de organisms atuais (bolinka prea) corresponde 0 arganismo mais ‘recentomente producido por geragao exponénea, que ainda ndo sofreu modificagses. sim, podese dizer qu, para Lamarck, a evoluyio ndo é um sistema de descendéncia « partir de wm ‘ancesral comin, mas conssie em um sistema de inhas evolutvas separadas, que progridem em pparalelo, ao longo da mesma herargua. Os corpos mais simples teriam se originado na agua ou em lugares ‘imidos. A aco da forca atrativa juntaria as moléculas afins, enquanto as forcas repulsivas abririam intersticios entre essas moléculas, forman- do cavidades onde os fluidos sutis provocariam uma tensao, nas paredes mais viscosas. A essa tensio, Lamarck chamou orgasmo vital, estigio de desenvolvimento em que © corpo estaria apto a desenvolver a capacidade de absorver liquids do meio ambiente. Esses movimentos 20 © transformismo de Lamarck Se a SESE CPT MS IR EDM TRE de fluidos, nas palavras de Lamarck, confeririam ao organismo faculda- des peculiares a vida: absorcao, eliminacao, crescimento e reproducao Portanto, no inicio, os animais mais simplesmente organizados eram dotados apenas de irritabilidade. Gradativamente, a natureza foi formando e aperfeicoando os sistemas muscular e nervoso, responsaveis pela movimentagiio dos miisculos e reagiio As sensagdes. A partir desse ponto seria instaurada uma quarta fungo, ou seja, transformar as sensagdes em idéias conscrvéveis, em meméria. transformismo de Lamarck integra uma teoria muito mais ampla, que diz respeito 4 vida e ao desenvolvimento da natureza. Parte dela refere-se As etapas a que um organismo é submetido para adquirir mudangas a serem herdadas pelas geragdes seguintes. Convém reiterar aqui que a variagdo das espécies estava intimamente relacionada ao jogo de interagées entre impulso interior e circunstincias externas ao orga nismo. Trata-se de um jogo com normas ¢ leis préprias, no sentido mais amplo da palavra. No entanto, a idéia de progressiio na obra de Lamarck apareceu gradualmente. Até 1799, ele ainda acreditava que as espécies eram sempre as mesmas, imutiveis, cujas variagdes dependiam exclusiva- mente do meio ambiente. No ano seguinte, no discurso de abertura de sua aula, entretanto, ele jd se mostrava convencido da idéia de aperfei- oamento das espécies. A partir de entio, Lamarck publicou uma série de obras em que desenvolveu e retificou suas teorias sobre as mudancas dos seres vivos, dentre as quais a mais conhecida e mais extensa é a Filosofia zoolégica, publicada em 1809. importante, aqui, esclarecer o que significava 0 termo filosofia acoplado ao adjetivo zoolégica, Dentro do contexto criacionisnio versus transformismo, duas idéias se contrapdem: por um lado a vontade divina, por outro a instaurag&o na natureza de um poder inteligente © criador de diversidade. Uma coisa era constatar e classificar. a obra divina, papel executado pelos naturalistas da época; outra era tentar entender, por meio de um método, como a vontade divina funcionava perguntar até que ponto a obra néo escapara das maos'do Criador € seguira seu curso proprio. Desse modo, na tentativa de responder a essas inquictagdes, o termo filosofia traduzia a necessidade de uma teorizaco, requerendo generalizagao, sistematizagio © unificagio de numerosos fatos. A concepeao de Lamarck sobre a natureza exigia uma teoria que explicasse os fatos da biologia. © transformismo de Lamarck 21 Concemente ao termo biologia, podemos demarcar a sua primeira utilizagao em 1800, por Karl Friedrich Burdach, para designar 0 estudo do homem a partir dos aspectos combinados da morfologia, fisiologia e psicologia. Aparece novamente em duas obras de 1802: no tratado ‘Biologie”, de G. Treviranius, no qual o termo ¢ definido como “ciéncia da vida", € no “Hydrogéologie”, de Lamarck, que considera a biologia como uma “parte da fisica terrestre”, que incluia todo o relativo aos corpos vivos. \Nesses dois autores, 0 termo foi conscientemente forjado para demarcar um. novo campo de estudos que se contrapunha & historia natural. Mais do que dar nome a um novo campo do saber, Lamarck tragou ‘uma fronteira entre 0 orginico e o inorganico, considerando a vida um fenémeno “fisico” suscetivel a transformagdes, ¢ nao o resultado de uma intengo suprema. ‘Ao estabelecer uma rede de interagdes entre o produto das circuns- tancias, as ages repetidas que dio origem aos habitos € o resultado do uso mais ou menos freqiiente de um determinado érgio, Lamarck instituiu leis para a natureza que para ele passaram a ser: “wma ordem de coisas estranha @ matéria, determindvel pela observagiio dos cor- Pos, cujo conjunto constitui uma forga, inalterdvel em sua esséncia, que submete em todos seus atos, @ é constantemente atuante sobre todas as partes do universo”. ‘Como homem de seu tempo, Lamarck jamais descartou o papel de um Deus na criagao do mundo; o que ele fez foi limitar esse papel. Uma vez que a natureza foi criada por Ele, tal como se apresenta, com leis préprias, nada mais natural que seguisse o curso de sua vida sozinha, de acordo com essas leis. Certamente 0 desejo divino nao interferia no cotidiano dessa “ordem de coisas”, que, sucessivamente, deu origem a todos os seres vivos, vegetais ¢ animais. Para que esse povoamento acontecesse nao era necesséria, na concepgdo geral de Lamarck, a existéncia de nenhum “germe” ou de nenhum “ser espiritual”, pois a vida era um fendmeno fisico. As leis da transformagao das espécies Considerando o sistema de interpretagdo da natureza, Lamarck estabeleceu algumas regras ou leis que explicavam a formagao, 0 desenvolvimento e a reprodugio dos seres. A primeira lei dizia: “A vida tende naturalmente @ complexidade; os organismos aparecem, desenvolvem-se e aperfeioam-se cada vez mats”. ‘A idéia central dessa lei esteve presente em diferentes obras de Lamarck, as vezes confirmando resultados de suas pesquisas, outras vezes como conclusao de hipéteses testadas pelo cientista. No Filosofia zoolégica, citado anteriormente, Lamarck afirma: “A natureza, produ- zindo sucessivamente todas as espécies de animais, comecando pelos ‘mais imperfeitos ou mais simples, para terminar sua obra pelos mats perfeitos, aumentou gradativamente a complexidade de sua organiza- sao, e esses animais, espathando-se por todas as regides habitaveis do globo terrestre, cada espécie recebeu, por influéncia das circunstiincias nas quais se encontrava, os hdbitos que nds conhecemos e as modifi- cagdes de suas partes, que a observagao delas nos mostra” ‘Apesar de referir-se explicitamente as espécies, essa lei aptica-se também aos individuos. Lamarck aponta, como confirmagao dessa lei, a comparagdo entre a constituigio de um animal recém-nascido e a de um outro no fim da vida, para mostrar o processo de gradual comple- xidade a que um animal € submetido. ‘A segunda lei dizia: “Nao so os drgdios, isto é, a natureza € a forma das partes do corpo de um animal que dav origem a seus habitus a suas faculdades particulares, mas, ao contrario, sdo seus habitos, sua maneira de viver eas circunstincias nas quais se encontram os individuos, no meio do qual provém, que, com 0 tempo, constituem a forma de seus corpos, a quantidade e 0 estado de seus érgaos, enfim, as faculdades das quais eles dispoem". Portanto, o desenvolvimenty de un nove Giga, tesponsdyel pela mudanga e/ou manutengio de um habito, resultaria do aparecimento de uma nova necessidade. Diversas geragdes seriam submetidas.a mudan- 6s como essa, bem como partihariam das condides aiveraas de-meio para que a prole conservasse a aquisicéo. 'Nesse.assunto, particularmente, varias vezes Lamarck foi mal compreendido. Atibuiu-se a ele, como uma interpretagao da realidade bservada, a afirmagio de que os animais eram dotados:de um certo ‘desejo” de mudanga, como se tivessem poderes sobre 0 seu percurso (fisiolégico. Na verdade, segundo 0 proprio Lamarck; os animais eram dotados de uma “intengo” (volonté, em francés), no sentido de satisfa- zer uma necessidade fisioldgica. © transformismo de Lamarck 23 E 0 caso célebre das girafas, que, oriundas de regiao da Africa quase sempre drida ¢ vem vegetagav, siv obrigadas a buscar a folhagei do alto das arvores para se alimentar. ‘Um outro caso, lembrado pelo proprio Lamarck, é 0 dos moluscos gastrépodes (caracéis, lesmas), que, ao se locomover, necessariamente se atritam contra tudo o que esti a sua frente. Gragas a esse atrito, eles enviam, repetidamente, para a regido da cabega, fluidos nervosos © outros liquidos. Resultado: os nervos estendem-se gradualmente, até que, com 0 tempo, nesses pontos de atrito nascam tentaculos, ‘A justificativa do aparecimento de novos érgios esti fundamen- tada na terceira lei proposta por Lamarck (se bem que ela apare¢a como primeira na Filosofia zoolégica), ao tratar do uso desuso dos drgaos. Dizela: “Em todo animal que ndo tenha ainda se desenvolvido comple~ tamente, 0 uso fregiiente e repetido de um ébrgdo qualquer fortalece, pouco a pouco, esse drgdo, desenvolve-o, aumenta-o, tornando-o mais forte, com uma forca proporcional ao tempo de uso; enquanto 0 desuso de tal drgdo enfraquece-o, aos poucos, deteriora-o, diminui progressi- vamente suas faculdades e acaba por fazé-lo desaparecer”. Em Lamarck, sio varios os exemplos que ilustram 0 uso ¢ desuso de éraios, que corresponderam, respectivamente, a0 desenvolvimento e desaparecimento deles: os olhos vestigiais em animais como a toupei- 1a; vestigios de dentes nas baleias; desaparecimento de patas nas serpen- tes; as membranas entre os dedos de passaros aquaticos; o alongamento do pescogo nos animais que pescam na beira da 4gua; o achatamento do corpo dos peixes que vivem em grandes profundidades ¢ o famoso caso do tamanho e da forma do pescoco ¢ das patas das girafas. préximo passo, a transmissio das alteracdes do individuo aos seus descendentes, é assunto da quarta lei, na qual Lamarck diz: “Tudo 0 que a natureza fez com que os individuos ganhassem ou perdessem, por influéncia das circunstancias ds quais sua espécie encontra-se submetida ha longo tempo, e, como conseqtiéncia do emprego predo- ‘minante de um drgdo, ou da falta de uso de tal parte; ela, a espécie, 0 conserva, nos novos individuos dos dois sexos, por reproducao, € naqueles que thes deram origem”. Lamarck exclui, explicitamente, aquilo que chamamos de heranga de mudangas acidentais, como lesdes ou danos e amputagdes de membros. Também nao usa o termo heranca de caracteres adquiridos, mas sim a conservagao adquirida ou a transformagao das mudangas adquiridas. 4 (© wansformismo de Lamarck eS RATS EO A Apesar de essas idéias estarem incluidas num contexto em que se buscava uma teoria que explicasse 0 fenémeno vida, Lamarck nao claborou nenhum mecanismo que esclarecesse a forma como se dava a heranga de caracteres adquiridos, e nem mesmo a idéia de aquisicdo foi por ele trabalhada de forma mais detalhada. De modo geral, a.auséncia de uma teoria de hereditariedade foi um ponto fraco no transformismo de Lamarck, mas seria dificil, ou mesmo impossivel, conceber uma teoria de heranga, se este nem era um conceito cientifico na época. Em resumo, podemos dizer que essa heranca lamarckista foi um mito inventado no final do século XIX, que colocava em oposigiio Weismann € 0s neolamarckistas. Falar de Darwin invariavelmente nos remete a sua famosa obra A origem das espécies (1859), na qual o autor contradiz a crenga na criagao individual de cada espécie, estabelecendo, em seu lugar, 0 conceito de que toda a vida descende de um antepassado comum. Ele dedica um livro inteiro 4 evolugdo de sua espécie, A origem do homem. publicado em 1871. Muitas foram as Contribuigdes originais de Darwin; por exem- plo, uma série de livros sobre botanica experimental, que ele publicou quase no final de sua vida. Esse aspecto da obra darwiniana & pouco conhecido, mesmo entre os bidlogos, e o mesmo pode ser dito acerca de sua extraordinaria obra sobre a adaptagio das flores e a psicologia animal, assim como de seu rigoroso trabalho sobre os cirripédios (cracas). Em todos esses campos, Darwin foi um pioneito, abordou problemas importantes com originalidade e rigor metodoldgico. Igualmente interessante e pouco conhecida é a sua obra A vari- agdo de animais e plantas domesticados, publicada pela primeira vez em 1868, na qual Darwin expde a sua hipdtese da pangénese. Tam- bém se da pouca importéncia as suas idéias de hereditariedade, que so, no entanto, importantes para compreender varios aspectos da propria teoria de evolucdo. Em particular, deve-se assinalar que a suposigao de que os caracteres adquiridos pelos pais so transmitidos aos seus filhos era parte integrante da concepgao aceita por Darwin. Poderiamos nos questionar sobre esse fato: como um homem tio brilhante, que desenvolveu uma das teorias mais controversas e comen- tadas da histéria, péde aceitar a “errada e descartada” idéia de transmis sio de caracteres adquiridos? Teria sido um equivoco de sua parte? Para tentar responder a essa inquietago, vamos & historia, aos fatos € aos livros, ¢ depois, quem sabe, os leitores possam se desfazer dessa idéia de equivoco e compreender melhor Darwin, em seu contexto. Um pouquinho de historia Imaginemos que um estudante de biologia pudesse trocar a sala de aula por um curso itinerante em um transatlantico. Ao longo de cinco anos percorreria boa parte do mundo; em lugar de videos e slides sobre a fauna e a flora, ele visitaria cada uma dessas maravilhosas obras da natureza. Entre coletas, catalogagao de material, caminhadas por florestas, desertos e ilhas, nosso estudante, praticamente, se “gra- duaria” em histéria natural. Darwin cursou medicina, em Edimburgo, e bacharelou-se em artes, na tradicional Cambridge. Mas foi em viagem a bordo do Beagle que ele descobriu o que mais lhe interessava e dava prazer: Charles Darwin e a pangénese 2 eR ETRE ESA RR REN, estudar a natureza. Em dezembro de 1831, Darwin iniciou seu curso itinerante pelo mundo. Numa expedigiio que durou cinco anos, ele maravilhou-se com as belezas tropicais, indignou-se com a escravidio, admirou a forca ¢ resisténcia dos habitantes das terras frias, assustou-se com terremotos, conheceu fésseis, conchas ¢ formagdes geolégicas inusitadas. Tudo isso acompanhado de muito enjéo ¢ mal-estar durante as interminaveis travessias entre os portos. Quando o mar permitia, nosso “marujo naturalista” lia, escrevia cartas e fazia companhia ao capitéo Robert FitzRoy, tarefa para a qual Darwin foi indicado ¢ contratado, segundo as mais recentes biografias, j4 que, para isso, 0 capitdo precisava de um jovem culto e educado. Havia um outro naturalista no navio, este sim era 0 oficial. De volta para a Inglaterra, em outubro de 1836, Darwin entregou para taxonomistas especializados suas colegdes de diferentes animais ¢ plantas que ele havia selecionado durante a viagem, para a devida classificacdo. A conclusdo dessa classificagdo levou Darwin a suspei- tar que as espécies pudessem originar-se gradualmente, a partir de ancestrais comuns. Em 1838, enquanto lia 0 Ensaio sobre o principio da populagao, de Malthus, Darwin passou a sistematizar explicagdes para a evolugio das espécies, mas a teoria da evolucdo por selegio natural veio a piiblico somente vinte anos mais tarde, em 1858. Nesse intervalo Darwin dedicou-se a seus livros e artigos geolégicos e a sua monografia sobre cirripédios — obra monumental ¢ de carater taxonémico, que Ihe proporcionou um verdadeiro curso de especiali- zagao em morfologia, desenvolvimento embrionério e classificagao. A ‘experiéncia obtida com essas investigagdes foi uma importante prepa- ragdo para escrever A origem das espécies. Finalmente, em abril de 1856, Darwin comegou a escrever 0 que considerava seu “grande livro das espécies”. Apresentando um estilo © um comportamento atipico na construgao de uma teoria cientifica, Darwin ndo estabeleceu uma miitua interagao com outros cientistas. Sabe-se que sua teoria permaneceu por quase 20 anos distante do grande publico, pois Darwin discutia suas idéias apenas com poucos amigos €, mesmo assim, s6 as apresentou a eles apés ter formulado a teoria. 28 Charles Darwin ¢ a pangénese NER NI IRE NERA RE I CN projeto inicial de Darwin era escrever uma imensa obra. D- fato, a publicaco de sua teoria de evolugio foi “forgada” por circuns- tncias externas: a chegada de um artigo de Alfred Russel Wallace (1823-1913) com as mesmas idéias de Darwin, Foi entéo que, em julho de 1858, Charles Lyell e Joseph Hooker, amigos de nosso naturalista, apresentaram os manuscritos de Wallace e os de Darwin em uma reuniao da Sociedade Linneana de Londres. Essa apresenta- cdo representou uma publicaco simultinea da teoria de ambos os autores. E assim Darwin publicou apenas um resumo de sua monu- mental obra, que conhecemos hoje como 4 origem das espécies, no dia 24 de novembro de 1859. ‘Nos anos seguintes, Darwin deu continuidade a certos aspectos da evolugéo que nao tinham sido tratados adequadamente no resumo dedicado teoria de evolugao. Basicamente, cada capitulo da Origem foi desmembrado em outras obras. Sobre a origem da variagdo e sua consegiiente transmissio, Darwin produziu uma obra em dois volumes —A variagao dos animais ¢ plantas domesticados (1868) -, em que diz: “Neste livro constam todas as minhas observacdes e um imenso nimero de fatos coletados de varias fontes a respeito de nossas produgées domésticas. No segundo volume so discutidas as causas leiy da variagdo © sua heranga, tanto quanto nosso conhecimento presente permite. No final do trabalho apresento minha hipdtese da pangénese”. De acordo com essa hipétese, todas as unidades do corpo contri- buem para a formagao do novo ser, ou seja, todas as partes do corpo produzem miniisculas particulas ~ as gémulas —, caracteristicas daque- las partes; essas gémulas reiinem-se nos gametas e sito transmitids as geragdes seguintes, sendo que algumas podem ficar dotmentes outras, apresentar certa predominiincia. Essa idéia fora amplamente difundida entre os estudiosos, Antigtidade até 0 comego deste século; portanio, Darwin no’ foi o primeiro autor a descrevé-la, mas o primeiro a elaborar um-mecanismo ‘que explicasse a heranca de caracteres adquiridos baseado haidéitr cima. Antes de verificarmos, cm detalhes, os pressupostos da Pangénese, vamos entender quais eram as leis ow regularidades observaveis. Ou seja, o que foi que chamou a atengdo de Darwin, o que se repetia na natureza, de tal forma que ele pudesse reunir as observa- ges feitas sob uma tinica teoria. Charles Darwin a pangénese 29 30 Charles Darwin ¢ a pangénese Para Darwin, a selecdo artificial, executada pelas maos do homem, era uma réplica, em menor escala, da selegio natural. Se o homem podia selecionar as caracteristicas de um animal ou de uma planta de modo que Ihe fosse mais conveniente — vacas que produzissem mais leite, aves mais vistosas, plantas que produzissem frutas maiores ~, 0 mesmo deveria ocorrer nas mios da mic naturcza. As caracteristicas mais adequadas a sobrevivéncia seriam selecionadas na formagao de uma “nova variedade. Portanto, para a evolugio de qualquer espécie, somente as caracteristicas que fossem herdadas tinham valor. Na tentativa de compreender como uma caracteristica & passada As geragdes seguintes, Darwin estuda os fenémenos que esto diretamente ligados & hereditariedade: a reprodugo, a importincia dos elementos sexuais na reproduco e 0 proprio desenvolvimento. Até 0 inicio do séeulo XIX, a idéia de reprodugao nao se diferenciava da idéia de desenvolvimento e de crescimento; tudo parecia um fenémeno ‘inico. J4 Darwin distingue esses eventos, estudando-os separadamente, submetendo-os, apenas, as mesmas leis gerais. ‘A producto de um nova individno pode ser dada de das tmaneiras distintas. Uma delas, a reprodugaio sexual, que envolve as células sexuais, que hoje conhecemos como évulo e espermatozbide, € a outra, a repro- dugo assexual, que pode ser realizada por brotamento ou por partigdes do organismo, como ¢ 0 caso da planéria. Darwin também considerava a nent de membros amputados como um caso de reprodugao a ele nao havia diferencas essenciais entre a seocruada € saxon, ampouco Iv sido ceclrecide ® alo de meiose, que poderia indicar as diferengas entre esses tipos de esse modo, ele admitia que os poderes de restauraco de um membro sto os mesmos exercidos na ‘embrido. Assim, o brotamento, a partigao, a regeneragio €: mento resultam, essencialmente, de um mesmo poder. Ou seja, © proprio rocesso que gera um novo ser 0 faz crescer € 0 processo que Darwin tentou esclarecer com sua hipétese da pangénese. No capitulo 27 do livro 4 variagdo, Darwin expée as premissas bisicas desse modelo, que so as seguintes: 1. Todas as unidades do corpo tém o poder de crescimento por autodivisiio. Charles Darwin ¢ a pangénese 31 2 RESORTS ANTONIN SEL 2. Todas as unidades do corpo expelem pequenissimos granulos, conhe- cidos por gemulas. 3. As gémulas crescem, multiplicam-se e agregam-se por afinidade. 4. As gémulas de todas as partes do organismo retinem-se, constituindo os elementos sexuais que formam um novo ser. 5. Nem todas as gémulas ao se manifestar ao mesmo tempo; algumas podem permanecer em estado de dorméncia por muitas geragoes. 6. Cada unidade ou célula expele suas gémulas cm todos os estégios de desenvolvimento do organismo. Para apreendermos melhor essa idéia, vamos imaginar um évulo e um espermatozéide repletos de gémulas que vieram do brago, dos othos, do cabelo, das cordas vocais, etc. Essas gémulas tém idades diferentes, ou seja, algumas foram produzidas por células do embriao, que talvez ja nem existam mais no adulto, outras foram expelidas, por exemplo, aos quatro anos de idade, outras aos cinco, aos seis € assim por diante. Darwin no esclarece em que momento do desenvolvimento embrionario se inicia a produgio de gémulas nem quando ela cessa; porém, enfatiza a necessidade de serem produzidas em todos os estagios do desenvolvimento. Pois s6 assim as células sexuais teriam represen- tadas todas as gémulas que aquele corpo fabricou e que representam todas as suas caracteristicas, de qualquer época de sua vida. Por ocasido da concep¢ao, na qual os gametas masculino e femi- nino se fundem em um s6, as gémulas provindas do brago da mie se unirdo as provindas do braco do pai, pois sio movidas por afinidades, ¢, assim, nessa sopa granular, vio-se formando os primeiros tecidos, érpios e partes do corpo. Dai a necessidade de estarem representadas todas as etapas do desenvolvimento. ‘Desse modo, podemos dizer que as gémulas sao responsaveis pela formagao ¢ diferenciacdo dos tecidos ¢ érgios ¢ também pela transmis- silo de caracteristicas: 0 mesmo processo que gera um novo ser o faz crescer e 0 reproduz. Variedade e heranga Os varios descendentes de um mesmo casal, geralmente, nunca sio idénticos entre si. Também, por mais que se paregam aos pais, nunca so cépias perfeitas destes. Cada ninhada, cada filho exibe uma certa 32 Charles Darwin e a pangénese CT SE A OR ERNE gama de diferencas. E sobre esse leque, conhecido por variabilidade, que a natureza trabalha Talvez nada tenha fascinado tanto 0 nosso autor quanto a diferen- ca, aquilo que muda, que aparece de novo em cada geragdo, ou, ainda, © reaparecimento de uma caracteristica na nova geragio, algo que faz lembrar aquele bisav6 to distante. A manutengéo da semelhanca € a regra, 0 igual produzindo o parecido, mas aquela ovelha negra... Por que cla é negra se scus pais c irmaos sio brancos? Por que os tentilhes tém bicos diferentes? Sera que o tipo de alimento esta relacionado com suas diferentes formas? Formulando esse tipo de pergunta, Darwin cercou 0 tema: “Por que a prole deveria ser afetada quando os pais foram expostos a novas condigdes?” Ou seja, como uma mudanca nas condigdes de vida pode causar uma variabilidade, ou, ainda, como a heranga do efeito do uso e desuso de um érgio pode ser explicada? Para Darwin, a variabilidade nao era um principio diretamente decorrente da reproducao, mas o resultado de sucessivas transformacdes ‘governadas por leis e determinadas pela mesma causa geral. Para ele, as leis que governam tais transformagGes sio as seguintes: 1. Todas as caracteristicas tm uma tendéncia a serem transmitidas. 2! Algumas caracteristicas podem ocorrer, nos descendentes, em épocas da vida correspondentes Aquelas em que houve a manifestagiio nos ais. 3. Alpemins-caractorioticas podem reverter ds fosman besten 4, Algumas caracteristicas podem estar limitadas pelo sexo. 5. Algumas caracteristicas adquiridas durante a vida podem ser transmi- tidas as geragdes seguintes. A cada uma dessas afirmacdes Darwin dedica alguns capitulos. Ele se baseia, em grande parte, nas experiéncias dos criadores de animais e de plantas, que por muito tempo acumularam-¢onhecimento sobre 0 assunto. Nao descartava, porém, outros tipos de reeursos, como aqueles oferecidos por colecionadores de autégrafos. Estes:afirmavam que 0 tipo de letra é pasado de pat para filho e que algumas vezes so se podiam diferenciar as assinaturas pela data. 3 ‘Outro aspecto que the chamava a atencio era a repeticdio de anomalias e doencas em individuos de uma mesma familia, como certos, problemas na visto (daltonismo), a presenga de um dedo a mais nas aos (polidactilismo) e o:libio leporino e palato fendido. Havia, ainda, Charles Darwin e a pangénese 33 algumas doengas que apareciam em determinada época na vida dos pais, © reapareciam, na época correspondente, na vida dos filhos; assin como © surgimento de barbas, chifres e determinado tipo de plumagem, que também se manifestam em certas idades. Em todos esses casos, Darwin supunha que as caracteristicas que reapareciam na prole deveriam se encontrar em estado latente até a época de sua manifestagio. A manifestagao de algo latente pode conferir a0 seu portador uma semelhanga remota, ou seja, pode ressurgir alguma caracteristica de um ancestral antigo. © capitulo 12 do segundo volume de 4 variagdo & dedicado & reverso de caracteres ou atavismo, consistindo, basicamente, no apa- recimento de caracteres na prole que nao estavam presentes nos pais, mas que existiam em ancestrais mais remotos. Para estabelecer a existéncia do fendmeno, Darwin famece vérios ‘exemplos. No caso de animais, refere-se Aquelas caracteristicas que, as vezes, surgem espontaneamente e que nio existiam nas geracdes ante- riores, mas sim nas ragas selvagens das quais as domésticas possivel- mente teriam se originado. Por exemplo, o aparecimento, nos pombos domésticos, da coloracdo azulada e de marcas negras tipicas dos pom- bos selvagens. Ele indica, também. casos de animais domésticos. como © gato, que, ao se reproduzir fora do ambiente doméstico, poderia constituir uma prole mais feroz, chegando até a aparecer, no corpo dos fithotes, listras que lembram os gatos selvagens ancestrais. O caso que Ihe parece mais bem documentado é 0 de porcos que foram soltos em ocais onde nio existiam outros porcos, tornando-se assim selvagens. (Os descendentes adquiriram todas as caracteristicas dos porcos selva~ gens: cor escura, pélos grossos e grandes presas. Outro aspecto da hereditariedade estudado por Darwin é a prepoténcia de caracteres, um conceito semelhante ao de dominancia de genes que aceitamos hoje em dia. Naquela época a heranga por mistura era uma idéia comum, ou seja, o cruzamento entre uma planta vermelha e uma branca resultaria em uma prole résea, porém Darwin jé chamava a atenc&o para 0 {ato de que a média nem sempre ocorna, pois muntas vezes as caracteristicas no se combinavam ou nao se fundiam. Por exemplo, ele cita um caso de ‘um cachorro preto que, cruzado com diferentes fémeas, sempre gerou filhotes pretos, independentemente da cor da mie. Apesar de usar a idéia de prepoténcia de forma genérica, Darwin procura estabelecer algumas regras de ocorréncia do fenémeno; por ry Charles Darwin e a pangénese exemplo, que as caracteristicas mais antigas so mais “fortes” do que as adquiridas mais recentemente. Contudo, essa concepedo pré mendeliana nao esté associada a nenhuma lei numérica relativa as sucessivas geracdes. A heranga limitada ao sexo também foi alvo de interesse e espe- culagio de nosso autor e, de certa forma, se relaciona também com a questo de laténcia. Por exemplo, uma vaca com grande produgdo de leite pode gerar um boi. Fste, por sua vez, pode gerar uma vaca que apresente uma produgio de leite igual a da avé paterna e no igual & da mie, ou, ainda, um galo de briga que pode transmitir seus instintos bélicos a um neto, por intermédio de uma galinha. Darwin estabelece, ‘em forma de regra, que as variagdes que aparecem em um dos sexos em. um periodo tardio da vida, quando as fungSes reprodutivas esto ativas, tendem a ser desenvolvidas naquele sexo somente. Jé as variagdes que aparecem nas primeiras etapas do desenvolvimento sio comumente ‘transmitidas a ambos os sexos. ‘Além dessas variagdes inerentes aos individuos, acreditava-se que as modificagdes adquiridas durante a vida, como lesdes, podiam ser transmitidas as geragdes seguintes. Darwin aceitava essa idéia, mas foi bem claro ao colocar que nem todas as caracteristicas adqui- ridas seriam herdadas. Ele apresentou varias ocorréncias que indica- vam evidéncias favoraveis 4 heranga de caracteres adquiridos. Por exemplo, o caso de uma vaca acidentada que perdeu seu chifre esquer- do e. que gerou trés bezerros sem os chifres esquerdos. Entre os intimeros casos, cita, como evidéncia conclusiva, os estudos feitos pelo conceituado médico, senhor Brown-Séquard (e confirmados por outro estudioso, doutor Abersteiner), que, para fins de pesquisa, operou alguns porquinhos-da-india, tornando-os epilépticos: Esses mesmos animais passaram a gerar filhos epilépticos. A heranga de caracteristicas adquiridas pelo uso‘e pelo desuso e, ainda, a influéncia'do meio também sio discutidas'por-Darwin. Ele afirma que as modificagdes nas condigées de vida podemealterar as caracteristicas dos animais © das plantas. Por exemployaoredugo da la {que acontece nos cameiros que vivem em paises tropicais: ‘Acerca do uso e do desuso, Darwin refere-se ao desenvolvimento ‘de membranas entre os artelhos das patas de cies nadadores, i modifi- ‘cago na forma e tamanho dos eranios e das patas dos porcos domésticos ‘em fungo do desuso, a0 aumento dos tiberes de vacas que siio ordenha- Charles Darwin ¢ a pangénese 35 Seneca ERROR MOEN ORATOR das com mais freqiiéncia. Esses ¢ iniimeros outros exemplos podem ser encontrados ae longo de A variagao. ‘A questio principal, que esti sendo colocada em todos os casos apontados até agora, refere-se 4 otigem da variagdo. Darwin tentou elucidar como uma modificago pode surgir e ser mantida. Suas especu- lagdes partem do pressuposto de que as modificagdes do meio ambiente € 0 uso € desuso de membros provocam o aparecimento de transforma- gies. Ao longo do tempo, as variagées favoriveis slo selecionadas herdadas. Desse modo, apés varias geragdes, tem-se o surgimento de uma nova variedade. A teoria da evolucdo € a hipdtese da pangénese apresentam, portanto, para Darwin, uma estreita relagdo. Imaginemos o seguinte exemplo: uma planta que vive no solo de uma densa floresta esta acostumada a pouca exposicao ao sol. Por ocasido de uma tempestade muito forte, as grandes drvores so derrubadas e a nossa plantinha passa entdo a receber muito mais sol. Esse novo “habito” de vida provoca manchas amareladas em suas folhas. Essas “manchas” produzem gémulas com a nova informagio — cor amarela. Essas “gémulas amare- ladas” ficam reunidas nos gametas, que na proxima primavera produzi- ro plantas que ja nascerfio amareladas. ‘Vejamos 6 exemplo da vaca que perdeu seu chifre esquerdo em um acidente. Com a amputago do chifre, ela deixou de produzir gémulas do chifre esquerdo. Como seus gametas ndo apresentavam as tais gémulas, seus filhos nasceram sem o chifre esquerdo. As gémulas do pai nao foram suficientes para formar a parte perdida. © caso da heranga que se manifesta na prole em idades correspon- dentes, ou 0 caso da heranga ligada ao sexo, também podem ser explicados pelo mesmo processo. Por exemplo, uma doenca que se manifestou aos doze anos em um individuo provocou modificagdes naquele corpo; estas produziram gémulas que continham tanto a infor- magao sobre a doenga quanto a idade em que ela devera se repetir na prole. E bom lembrar que Darwin esta sempre se referindo a doencas hereditérias, e nd aquelas contagiosas, como 0 sarampo, por exemplo. ‘Um caso curioso exposto por Darwin é a ocorréncia de “homens- porco-espinho” na familia D’Lambert. E uma doenga que afeta apenas 0s homens, provocando 0 aparecimento de uma espécie de pele com cerdas que lembra esse animal. A explicagio dada por Darwin é que as gémulas, responsaveis pela doenca, encontram-se latentes nas fémeas, 36 Charles Darwin e a pangénese _ nA SERINE 86 se manifestando nos machos, da mesma forma que as gémulas responsiveis pelo surgimento dos caracteres sexuais secundarios de ambos 0s sexos se encontram latentes no sexo oposto. Daf, uma fémea poder ter um filho que terd barbas. (Os pressupostos apresentados na hipétese da pangénese consegui- ram explicar teoricamente alguns processos envolvidos com a heredita- riedade. As numerosas e pequenissimas gémulas, reunidas nos gametas ou circulando livremente por todo o organismo, seriam as responsiveis, tanto pelo desenvolvimento quanto pela reprodugao e heranca. O estado latente de algumas gémulas elucida 0 atavismo e a heranga ligada ao sexo. A produgao de gémulas em todas as etapas do desenvolvimento, juntamente com a idéia de preponderancia, confere um mecanismo & heranga de caracteres adquiridos. ‘Como ja foi apontado, a hereditariedade € um fenOmeno importante para o entendimento da teoria da evolugdo. Ao desmembrar alguns capitulos de 4 origem das espécies, Darwin pode-se aprofundar nas questdes relativas ao surgimento e transmissdo da variagéo, chegando a propor a hipétese da pangénese como um possivel modelo de heranga. Porém, apesar dessa proximidade, existem alguns problemas nas teorias. ‘© mais importante para nés refere-se a heranga de caracteres adquiridos. Em A origem das espécies, Darwin afirma que as variagées adqui- ridas 86 so incorporadas as geragdes seguintes se os individuos porta- dores forem submetidos, ao longo de muitas geragdes, mesma condi- cao adversa do meio. J4 segundo a hipétese da pangénese, uma modi- ficago ocorrida em uma geraco pode se manifestar na geraco seguin- te, mesmo que esta ndo seja submetida as mudanyas de habitus ou as presses seletivas. A idéia de particulas regendo 0 desenvolvimento © a heranga sempre pareceu muito atrativa aos estudiosos. Desde Hipdcrates até os nossos genes, varias foram as alternativas tedricas em torn, das unida- des responsiveis pela semelhanga. Por outro lado, a confirmagio pritica da maioria dessas hipdteses foi quase ula. Francis Galton (1822-1911) parece ter sido o tnico.a tentar uma comprovago experimental das gémulas darwinianas. De formagio médica e fundador da bioestatistica, nao teve muitos problemas praticos para elaborar um experimento que pudesse evidenciar a existéncia das gémulas. Charles Darwin e a pangénese 37 1 teen lednet anette aro eR CREST Na tentativa de provar os postulados da hipétese da pangénese, Galton executou alguns testes, que consistiram em transfusdes de san- gue em coelhos, pois, segundo suas interpretagdes, as gémulas “pangénicas” deveriam estar circulando pelo sangue. Ele utilizou a raga silvergrey, que apresenta uma pelagem cinza sem manchas. Esses coethos foram os receptores do sangue de outros tipos de coelhos que apresentavam pelagem bem distinta. A idéia de Galton foi a de submeter os animais silvergrey a uma transfusio de sangue. Depois, cruz4-los e observar as caracteristicas da prole. Caso a hipotese da pangénese estivesse correta, ele deveria obter, como resul- tado, coethos hibridos. Apés varias tentativas e utilizando-se de diferentes alternativas de transfusdes, Galton obtém 88 filhotes em 13 ninhadas. Em nenhum caso ele nota qualquer efeito de hibridizagio. Frustrado com o resultado, conclu que sua interpretacao esta incorreta, sugerindo gémulas agrupa- das em vez da sua circulagao livre. Egses experimentos foram publicados nos cademnos da Real Socie~ dade de Londres em margo de 1871. Como resposta a essa publicagio, Darwin escreveu uma nota para a revista Nature, publicada no dia 27 de abril do mesmo ano, iniciando assim uma breve série de dehates Contudo, Galton nao recusa a idéia de Darwin, mas propde 0 uso de outras palavras no lugar de “circulando livremente” ¢ “difundindo”. Esse trabalho de Galton no descartou.a hipétese da pangénese; a0 contririo, contribuiu para um melhor entendimento da doutrina, pois forgou o proprio Darwin a refletir e discutir alguns pontos obscuros de sua idéia, ‘A pangénese teve mais de duas décadas de vida, quando, em 1892, August Weismann expés sua teoria do plasma germinativo, que, no contemplando a heranca de caracteres adquiridos, até entdo aceita, apresentou fortes argumentos contrarios.

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